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Anabela Mota Ribeiro

Ana Drago

03.07.14

Ela queria fazer coisas: “O que me encantou a certa altura foi [a possibilidade de] ir fazer coisas onde podia deixar a minha marca. Ter uma participação”. Ela sentia-se tocada por palavras “que tinham muito a ver com política, com nomeação política do mundo e vontade de acção”.

Foi criada em casa, em torno dos livros e da família. Ainda é tratada como uma menininha. Contudo, é deputada pelo Bloco de Esquerda na Assembleia da República. E confessa:Há sempre momentos em que me rio de mim própria quando me vejo deputada eleita no parlamento. Aos 29 anos. Eu não tinha planeado a minha vida assim”.

Tinha planeado estudar e investigar Sociologia. O colectivo é o seu habitat. E, talvez por isso, não é estranho que seja deputada eleita no parlamento, aos 29 anos.

Encontrámo-nos, primeiro, numa fila para pagar discos e livros. E reencontrámo-nos daí a minutos num terraço com vista para Lisboa. Ao fim da tarde. Falamos dela e procurámos a definição de palavras que compõem o seu léxico privado. Como escolha, desilusão, dor, fazer.

Ela chama-se Ana Drago.  

 

Em que é que estava a pensar?

Quando?

 

Há um minuto, há uma hora, o dia todo, o que é que foi dominante?

Estava a pensar que é uma pena que hoje, no final da tarde, se conjugam uma série de coisas. Tenho agora a entrevista, tenho uma reunião à noite, tenho um jantar de anos de uma amiga. Estava a pensar como é que vou conseguir ir a tudo.

 

Durante o dia, esta conjugação foi aquilo que mais a consumiu?

Isso e o meu discurso na apresentação da candidatura do Bloco a Lisboa, amanhã. Vou falar porque sou cabeça de lista à Assembleia Municipal. Estava a pensar como é que ia organizar um discurso escorreito, curto, sintético, que exprimisse a ideia desta equipa que se formou para concorrer a Lisboa.

 

A minha primeira pergunta é arrancada do livro «Jerusalém» de Gonçalo M. Tavares. É uma pergunta cuja resposta não podemos nunca saber se é verdadeira. Mas que coisas ocupam a sua vida mental? Quais são os assuntos e quais são as palavras nucleares? Apesar da vida pública, apesar das conjugações episódicas.

O problema dessa pergunta é que ela é sempre...

 

Completamente aberta.

Muita aberta e ao mesmo tempo muito intrusiva. Colocada dessa forma, pede às pessoas que sejam transparentes sobre o seu estado de alma, de espírito. Mesmo que se revelem as enormes insignificâncias em que gastamos imenso tempo, que ocupam o quotidiano.

 

Ainda que nos saibamos ocupados com “as grandes coisas”, relativas à vida social, quantitativamente e até qualitativamente nunca deixamos de nos ocupar das coisas mesquinhas. Que são o que provoca mossa na nossa vida...

Aquilo em que pensamos, as impressões que temos, as coisas que nos atormentam, as futilidades, interessam verdadeiramente às outras pessoas? Pode não ser interessante, pode ser banal. Partilhá-lo retira parte da capacidade que temos de, com o discurso, seduzir o outro. E a palavra tem muito essa função: a de nos mostrar, a de nos dar a conhecer, a de seduzir.

 

É simultaneamente revelação e enamoramento?

Sim. As pessoas que são interessantes são capazes de misturar as duas: verdade e encantamento. Não são completamente fantasiosas, porque isso as descola do quotidiano, mas também não são absolutamente factuais, porque isso lhes retira encanto. Portanto, por um lado, aquilo em que pensamos pode não ser interessante. Por outro lado, é o nosso espaço de intimidade, de individualidade. Nem sempre, mesmo numa relação amorosa de enorme partilha, o dizer tudo faz sentido, ou é uma boa estratégia de manutenção da relação.

 

Então vamos aos factos. Volto ao Gonçalo M. Tavares: “Pensava nas palavras fundamentais da sua vida. Dor, pensou, dor era uma palavra essencial”. Quais são os factos, e quais são as palavras?

Quando estava a estudar Sociologia, lembro-me de ter aulas, aulas encantatórias, de conhecer coisas novas, e havia palavras a que chamava “palavras-paredes-de-água”. Pareciam uma parede feita de água, como um vidro em que a luz atravessa. É muito bonito ver a água a ser atravessada pela luz. E temos a percepção de que, se partimos o vidro, a água que cai dali tem uma enorme força, leva tudo à frente.

 

Que palavras, então.

Para mim, e por isso é que estou, com a idade que tenho, no Bloco, eram palavras que tinham muito a ver com política, com nomeação política do mundo e vontade de acção.

 

Vontade de acção significa vontade de fazer?

Palavras que puxam para coisas que foram construídas, e são bonitas, e para uma vontade de mexer no mundo. Mexer no mundo dessa maneira meio abstracta e macroscópia que é a política. Obviamente a ideia de Socialismo, mas também a ideia do Estado, a ideia de Poder. A palavra Poder é uma palavra encantatória, porque é sempre um conceito de difícil definição. Parece que raspamos, raspamos e nunca damos a definição correcta.

 

Qual é a que corresponde de modo mais aproximado?

Poder: eu sinto-a sempre como subordinação disciplinar, como um domesticar o mundo. O mundo e os outros. Qualquer forma de acção comporta sempre uma dimensão de poder. Aquilo por que luto é um equilíbrio de poderes. A utopia é essa: é a subversão do poder, é arranjar uma forma em que o poder se desestruture e sejamos todos autónomos, livres de criar o nosso próprio caminho. E depois há as outras palavras, as palavras da intimidade, da nossa vida, dos nossos amores, que ficam presas em livros, em frases. Mas essas não devem ser ditas nem reveladas muitas vezes, porque senão perdem a sua força interior e tornam-se banalidades.

 

Mais do que o pudor pela revelação da intimidade, é sobretudo a ideia de que esse reduto da intimidade não deve ser banalizado?

É. A sua intensidade e a sua unicidade também residem numa revelação ascética do que é isso da intimidade. As palavras que definem a nossa inquietude, os nossos medos, os nossos afectos, as nossas atracções devem ser protegidas da banalidade.

 

Podemos apontar, na entrevista, para um equilíbrio, no fio da navalha, entre aquilo que é factual e o seu lado fantasioso e sedutor?

Mas é que a revelação da intimidade deve ser sempre feita cara a cara. O problema de uma entrevista transcrita é que ela chega a pessoas relativamente às quais não posso argumentar, justificar o meu discurso. Isso retira-me liberdade. Fica plasmada uma coisa que não sei se quero dizer àquela pessoa. A revelação do que somos, cá dentro, desta busca de coerência, deve partir sempre da interacção_ porque é aquilo que permite a comunicação. Não acho que seja interessante, nem sequer nos consola, revelarmo-nos perante uma audiência anónima.

 

Estava a tentar perceber como é que, a partir dos factos, e dando-lhe a si o papel de traçar a sua biografia, podemos perceber e adivinhar outras coisas. O jogo da incoerência e do contraditório é sempre o mais instigante.

Sim.

 

Por exemplo, quando a vi com a madeixa vermelha no cabelo, que não colava com a imagem pre-concebida que tinha de si, lembro-me de ter pensado: o que é que lhe terá passado pela cabeça?
Aos 20 anos pensei em fazer três furos numa orelha e uma madeixa vermelha. Fiz os três furos; entretanto já fecharam, deixei de usar brincos. Mas nunca fiz a madeixa vermelha. E agora apetecia-me fazer qualquer coisa diferente, e repeguei a madeixa vermelha. Durante uma semana andei a pensar: vou ter que cortar isto tudo ou pintar outra vez, mas habituei-me, e gosto.


O que parece é que lhe passou uma coisa pela cabeça, que decidiu divertir-se.

É isso mesmo.

 

Qual é, desde sempre, o espaço que se permite para a experimentação, para o risco, para a contradição?

Não sei se sei responder. Vou fazendo. O que me encantou a certa altura foi [a possibilidade de] ir fazer coisas onde podia deixar a minha marca. Ter uma participação. Eram coisas que ao mesmo tempo me assustavam muito. De cada vez que tinha que as fazer, tinha que me desafiar para as fazer. Ultrapassar-me. Eu tinha imensa dificuldade em falar em público, entretanto habituei-me.

 

Falar em público?

Mais do que seis pessoas num sítio. Tinha um enorme receio, e comecei a fazer rádio, associativismo, e depois política, sempre coisas que me puxavam para falar. Tinha aquela mania, achava que tinha qualquer coisa para dizer.

 

Quem é que a convenceu disso? A sua mãe?

Não.


Parece uma “filha da revolução”. Uma rapariga que acha que tem qualquer coisa para dizer seria improbabilíssima há 30 anos.

Não sei bem se sou filha da revolução nesse sentido tão estereotipado. Em casa falava-se de política, mas não muito, e para os meus pais a participação política não era tão determinante quanto isso.

 

Os pais modernos sabem da importância de dotar os filhos de auto-estima. Como sei que tem uma relação forte com a sua mãe, imaginei que pudesse ser ela a convencê-la de que tinha coisas para dizer.

Os meus pais tentaram dotar-me de um conjunto de competências para andar na vida, obrigaram-me a ter uma mínima cultura geral – funcionava um bocado pela vergonha de não saber determinadas coisas... –, e sempre me pediram que soubesse justificar cada decisão, que me responsabilizasse pelas minhas acções. Isto, num ambiente em que as gerações são muito parecidas, (a música que oiço não é muito diferente da música que o meu pai ouve, os livros que interessam não são muito diferentes), dá uma vivência em família diferente da da geração anterior. E isso é uma mudança cultural revolucionária. É uma outra revolução.

 

Não estou a falar da revolução política. Estou a pensar num novo ciclo e nessa transformação, que é transversal, que ocorre na sociedade portuguesesa no pós 25 de Abril.

Há uma mudança cultural profunda nas relações entre os pais e os filhos, e sou muito o produto dessa transformação. Os novos pais têm uma outra forma de relacionamento com as crianças; elas participam desde cedo na vida da família, são responsabilizadas, discutem assuntos que supostamente não seriam para jovens nem para crianças. E são levadas a sério as suas opiniões.

 

Isso é quão importante?

É importantíssimo. Isso depois é que dá confiança para a pessoa se afirmar fora do núcleo familiar e achar que pode ser levada a sério, que tem qualquer coisa para dizer ao mundo. Antigamente não, os jovens eram considerados ineptos.

 

Significa que, quando fala em público, e desde sempre, nunca lhe ocorreu que não a iam levar a sério, porque é muito nova, muito menininha...

Confesso que jogo com isso... Sempre foi uma forma de defesa. Como tenho um tipo físico muito de menina...


Que idade é que tem?

Estou com 29 anos. Sou assim baixinha e magrinha, tratam-me como uma menina. Eu quero que levem a sério as minhas palavras, mas a minha postura física ou a minha colocação das ideias tem esse ar de menininha que me protege um pouco. Não sei se é uma boa estratégia, às vezes exagero...

 

Situação concreta: recentemente, aquando do arrastão, que é um assunto de que eu não queria falar...

É inevitável.

 

Eu queria destacar a convicção com que falou, dizendo qualquer coisa que contrariava tudo o que vinha sendo dito. Essa convicção inabalável, que é pública desde, pelo menos, o programa de televisão com o Luís Osório e o Daniel Sampaio, fez-me interrogar sobre o que a sustenta.

O arrastão... Eu sabia que estava a comprar uma guerra difícil. E as coisas ficam sempre truncadas, mas já sabemos que vão ser truncadas. Durante a intervenção que fiz, fui citando testemunhos que tinham chegado até ao Bloco: de que não havia arrastão ou não tinha sido naqueles moldes. Achámos importante, naquele momento, fazer aquela intervenção, sabendo que depois ia cair sobre nós tudo e mais umas botas. Mas estas batalhas não podem ser ignoradas. Era um momento em que se estava a jogar no alarmismo, no racismo.

 

Não lhe ocorre pensar: “Não vou fazer isto porque não me vão levar a sério” ou “Não me vão ouvir como ouviriam o Francisco Louçã”?

Mas é mesmo assim, não podemos fugir das nossas circunstâncias! Quando estou a falar a sério tento fazer com que as pessoas me levem a sério. Ás vezes utilizo esse ar de menina, (protecção ou defesa), faço com que me levem menos a sério. Mas não sei se me quero modificar. Ou se me quero robotizar para desempenhar determinado papel. Sei que muitas vezes sou gozada, mas não é isso que me tira o sono.

 

A noção de que somos alvo da troça é tremenda. Kafka dizia que não há nada mais estigmatizante que a vergonha.

É. A troça é uma coisa horrível, quando é pessoalizada. A mim só me aconteceu uma vez, (assim uma coisa mais séria), nas páginas de um jornal. Foi muito, muito desagradável. Mas na luta política sabemos que isso acontece. A partir de determinado momento, percebemos que também nos vai acontecer a nós. Ao princípio, uma pessoa tenta manter a respeitabilidade, acha que no dia em que lhe acontecer um editorial arrasador se vai embora, porque não está disposta a ser tratada assim.

 

É sempre uma boa pergunta: por que é que aturam isto?

Porque achamos que as coisas porque lutamos valem a pena.

 

Mas é um idealismo assim tão puro? Eu e mais uns quantos cínicos, achamos que, além dos casos de puro interesse e desonestidade, há noutros um misto de vaidade e de fascínio pelo poder. É um exercício de subordinação do outro.

Penso que não.

 

Há com certeza um substracto, um ideário; mas além disso, o que é que os faz continuar?

Com certeza todas aquelas coisas, aparentemente ingénuas, que as pessoas enunciam, e que são o que nos move. Desde muito cedo, encanta-me a ideia de movimentos sociais, de gente que se organiza por coisas por que acha que deve lutar. Isso foi-me conduzindo a níveis diferentes de participação política. Depois, há uma coisa que é muito importante: não é só o ideário que o Bloco defende, mas é a ideia de estar a participar na construção do Bloco. Estar aqui, estar presente no sítio onde as coisas estão a acontecer, dá-nos também um sentimento de bem-estar, de realização. Durante muitos anos tive uma enorme desconfiança da ideia de um partido político, era muito crítica da lógica de funcionamento dos partidos; hoje em dia, quando oiço as pessoas criticarem os partidos, já não tenho muita paciência. Tenho a sensação de que já respondi a essas questões.

 

Como?

Já sei que não há organizações perfeitas. O Bloco não tenciona ser a Santa Madre Igreja, infalível. Comete erros, tem pecadilhos, tem protagonismos pessoais, tem erros estratégicos, há coisas que fazemos mal. Mas quanto a mim, está-se a construir bem. No fim de contas, acredito naquilo e estou lá. Uma pessoa responsabiliza-se por aquilo que acontece.

 

Como membro de uma família? Família por ser construído de raiz.

Isso foi uma das coisas fundamentais: entro, e a partir de agora sou responsável. Se um dia achar que não, saio fora.

 

Estava à espera de ouvi-la falar mais de si. Não tinha percebido que se sente tão responsável pelo Bloco, que o Bloco é uma parte dominante da sua vida.

É, hoje em dia é uma parte quase sufocante da minha vida. Preenche-me muito, profissionalmente, ideologicamente, ocupa muito do meu tempo e do meu espaço. Os amigos estão no Bloco. E muitas vezes penso: estas pessoas, militantes, activistas, que estão a trabalhar para o Bloco, será que não estamos fechados no nosso mundinho, a darmo-nos uns com os outros e a falarmos uns com os outros? Embora seja gente muito interessante, dinâmica, que traz muita informação, que está muito atenta ao que acontece lá fora. Não sei se continuo a ter um espírito suficientemente crítico relativamente às coisas que vamos fazendo, porque estou imersa nisto. E assumo isto claramente.

 

Até onde é que se identifica com as pessoas que votam em si?

Identifico-me com uma camada que vota Bloco e que é muito, muito exigente em relação ao Bloco. É gente letrada, que tem uma dose de cinismo e de idealismo, as duas fortes. É gente muito desconfiada da política e do poder, e às vezes muito metida nas coisas. Tenho a sensação de que foi a extracção de onde eu vim. Há depois um outro Bloco, popular, que vem da velha extrema-esquerda, que tem uma experiência de derrota do PREC, que é marcada por isso, e que agora volta a interessar-se e volta à política. E há a componente PSR, que é uma sub-cultura, muito radical, libertária. Há gente apoiante do Bloco com quem não tenho sequer linguagem comum, de passado ou de leitura do mundo, embora nos entendamos quando chegamos à parte programática. Mas os partidos fazem-se dessa mistura.

 

Fiquemos na sua leitura do mundo. Expressa-se muito bem. Quem é que a ensinou a exprimir-se? E quem é que a ensinou a ler o mundo? Onde radica a sua vivacidade, atenção, curiosidade?

Tenho curiosidade, gosto da ideia de estar nos sítios onde as coisas estão a acontecer. Li muito, muito, muito quando era miúda.

 

Porquê?

Gostava imenso.

 

Era pouco exuberante?

Era. Cumpria todos os patamares, mas falava pouco nas aulas, era muito timidazinha, amedrontada. Depois tive um período em que não sabia propriamente o que fazer. Aos 17 anos pensava que queria ir para Agronomia, acabei por entrar em Psicologia.

 

Mas está a galgar muito depressa isso tudo! E os anos da adolescência são fundamentais.

São horríveis! A adolescência, graças a Deus, é um período que passa. A adolescência não me correu bem. Tinha expectativas muito elevadas... Como era muito boa aluna e filha única, muito queridinha dos adultos, cheguei à adolescência e não tinha as capacidades para ser popular.


Que competências são essas?

Estar à vontade, falar facilmente, ser gira. Demorou algum tempo a passar e a sarar... Os adolescentes são muitíssimo maus uns para os outros.

 

Achava-os desinteressantes e desinteressados?

Não. Fui criada em casa, em torno dos livros e da família. Aquilo que me tinha sido ensinado, do que é que se conversava, como é que as pessoas mostravam o seu valor, no contexto da adolescência não funcionava. Os meus valores não funcionavam ali.

 

Tinha um outro paradigma?

E não tinha grande grande facilidade em adaptar-me à situação. Depois fui para Macau e as coisas foram diferentes.

 

Foi para Macau no fim da adolescência?

Fui para para lá com 16 e vim com 18, 19. Mas também não gostei muito Macau era muito fechado, era um meio muito pequenino, as pessoas controlavam-se muito. Verdadeiramente, libertei-me e comecei a fazer coisas quando cheguei à universidade, aos 19 anos. Aluguei um quarto muito pequenino em Coimbra, tinha um metro e meio por um metro e meio, e disse: «Não vou ficar aqui muito tempo». Comecei a sair e a conhecer gente.

 

O que é que a fez ousar sair?

Foi aquela sensação de...

 

Claustrofobia?

Exactamente. No último ano de Macau comecei a sentir que a minha vida estava a estreitar, e que não podia ser. Eu tinha que fazer não sei quantas coisas na vida e tinha que ter coragem de me atirar a elas. Depois logo se via como é que tentava resolvê-las.

 

Estava a entrar em desespero?

Não, não é bem desespero. É a ideia de que há um momento em que nós temos que nos fazer. Temos que arriscar. E eu arriscava muito pouco, jogava muito pelo seguro. Não me mostrava, não fazia, não nada. E também não ganhava muita coisa. Aos 18 anos tive assim uma coisa que me bateu na cabeça, e percebi: “Tenho que ver do que é que sou capaz e o que é que sou”.

 

A convulsão que a faz formular as coisas dessa maneira acontece porquê?

[riso] Desgosto amoroso. Salvou a minha vida. Grande paixão, coração partido... Aquela coisa de uma pessoa pensar: “Agora não tenho nada a perder”, e atira-se para a frente. E foi mesmo a ideia de começar uma vida nova. Resolvi ir para Coimbra, começar de novo e experimentar ser alguém. Acho que correu bem, fui-me metendo em coisas, umas puxaram para as outras.

 

Foi estudar Psicologia.

Aquilo acabou por correr mal, aquela linguagem não me seduzia...

 

É demasiado virada para o indivíduo e para o interior, e o que lhe interessa é sempre o colectivo e o exterior?

Um amigo de Psicologia disse-me uma coisa engraçada: “As pessoas têm dois tipos de preocupações: umas com os aspectos das emoções e da interioridade, outras com os aspectos éticos do mundo e a sociedade”. De facto, aquele aspecto mais introspectivo servia para pouco. Achava que para falar da interioridade, da inquietude interior e dos estados de alma, mais valia lermos romances e boa poesia.

 

Aprendeu a ler o mundo cá fora ou nos romances?

Muito nos romances. Acabei por perder isso. Quando comecei a ler Sociologia, praticamente larguei o romance. Praticamente só compro ensaio, de História, Sociologia. Tornei-me analfabeta em literatura. 

 

A decisão de se fazer a si mesma e de se fazer à vida são já uma vitória, porque correspondem a uma audácia. E fê-la sair desse hiato que foi a adolescência. Porque saltou... do mundo dos adultos para o mundo dos adultos, certo?

Sempre disse que nasci velha e que foi esse o meu problema na adolescência. Sempre fui demasiado adulta e sempre tive ar de miúda. Como se houvesse uma contradição. Passei do mundo dos adultos, de viver em função dos adultos, de gostar muito de ouvir as conversas que os meus pais tinham com os amigos ou entre eles...

 

Essas conversas eram mais éticas ou mais sentimentais, recuperando a divisão feita pelo seu amigo?

Havia uma diferença. O meu pai é mais para os aspectos da ética, da política. A minha mãe é mais para os aspectos da interioridade, do crescimento. Há essa diferenciação e isso também se traduz nos apoios que vou tendo da minha vida.

 

Portanto, ouvia as conversas dos adultos.

Eu adorava as conversas dos adultos! As crianças em geral apanham seca quando os pais estão a conversar com os amigos; eu gostava imenso. Passei do mundo dos adultos para o mundo dos adultos, sim, é uma boa definição.

 

Esta adulta que é agora, isto que fez de si, corresponde ao que projectava nessa primeira fase do ser adulta?

Não sei, as coisas ganham vida própria. Há sempre momentos em que me rio de mim própria quando me vejo deputada eleita no parlamento. Aos 29 anos. Eu não tinha planeado a minha vida assim.

 

Para si, era improvável? É que, ouvindo-a, não parece muito estranho que o seu percurso tenha sido este.

Pois... Como é que hei-de explicar? Conheci gente muito interessante a partir dos 20 anos, em Coimbra. Gente muito capaz, muito inteligente. E, daquele grupo, acabei por estar eu como deputada; e essas pessoas foram fazer outras coisas. Acho isso sempre um pouco estranho.

 

É quase uma culpa por ser priveligiada?

Não. Uma das coisas que me ensinaram, e que aprendi bem, foi a aproveitar todas as oportunidades. Não me quero sentir culpada, porque acho que aproveitei bem as oportunidades.

 

O discurso psicologista da culpa, consigo, não dá.

Não, culpa, não entra. Mas há uma sensação de estranheza em relação a essas pessoas com quem cresci e depois... Sou a deputada aos 29 anos. Onde é que estão os outros?

 

Então, como é a sua vida de deputada aos 29 anos? E vamos pensar no que seria a sua vida aos 29 anos se não fosse deputada.

Estaria com uma bolsa de doutoramento. É uma vida excelente, ser bolseiro. Não pagam muito, mas uma pessoa tem tempo para ler e para fazer investigação, que é uma coisa de que gosto. Gosto dessa busca, de andar a ler coisas diferentes e tentar escrever e depois aquilo ficou tudo mal e depois é preciso escrever outra vez...

 

Se estivesse a escrever a tese de doutoramento, seria sobre quê?

Seria sobre o movimento de contestação à globalização. É um pouco um movimento de renovação da esquerda, movimentista, alternativa, radical, que refabrica o tecido da esquerda numa lógica ofensiva, que nos anos 80 e 90 se foi perdendo. Parece-me ser uma nova onda política muito interessante, e eu gosto dessa ideia dos percursos das pessoas, em particular das pessoas de esquerda.

 

Eu também. Por isso é que pergunto porque é que o seu percurso foi este. O percurso alternativo seria a tese de doutoramento. Assim sendo, é deputada. Que vida é que tem?

A vida de deputada é uma vida de estar no parlamento, de estar sempre a responder a coisas, estudar projectos de lei, ir buscar informação nova, fazer projectos de lei, fazer uma intervenção sobre isto, sobre aquilo. É uma vida em que temos que estar sempre a saltar de umas coisas para as outras. Depois há toda a vida de militante do Bloco. São as inúmeras reuniões que temos para decidir umas coisas, programar outras, fazer não sei quê, fazer não sei que mais. A minha agenda quase que pertence ao Bloco.

 

Pareceu-lhe que esta vida seria a mais excitante porque só acontece agora, e o doutoramento pode ser adiado? Foi a razão essencial da escolha?

Um bocado. Há a ideia de que podemos sempre fazer o doutoramento... Mas o Bloco está a fazer-se e a construir-se, e é agora. As coisas estavam a acontecer agora. Há momentos em que penso: por que é que não estou a fazer o doutoramento? Mas isto é muito desafiante, tem momentos de adrenalina, provoca uma atracção enorme. É uma vida que puxa por nós, sempre.

 

A reputação é uma coisa importante?

A reputação é uma coisa fundamental.


Quando se faz um doutoramento há uma reputação académica, mais sólida. A política corresponde à popularidade, a um reconhecimento e a um poder que são efémeros.

Quem se mete na investigação, está sempre muito em busca do prestígio intelectual, do reconhecimento das suas ideias.


Achou sempre que era inteligente?

Houve um momento, no final da adolescência, em que achei que não. Tinha sido muito boa aluna, mas depois descuidei-me um bocado. Quando estava em Psicologia, pensei: “Será que sou mesmo esperta ou sou um bluff”, e mudei para Sociologia. Enfim, descobri que não sou nenhum génio, mas que também não sou completamente parva.

 

A palavra que usou é muito persecutória: bluff. Faz-nos voltar mais uma vez àquela coisa de ser a menininha e de ser muito nova.

Pois. A tese de licenciatura foi para mim um desafio: fazer qualquer coisa a sério. Demorei meses a escrevê-la, estava tristíssima, a achar que não prestava... Mas hoje, quando olho para ela, gosto. Naquela tese, provei a mim o que tinha que provar como investigadora: sou capaz de fazer um trabalho decente e relativamente interessante, relativamente inteligente.

 

Qual era o tema?

Era sobre o movimento estudantil em Coimbra. É o que acho mais interessante: as pessoas serem capazes de se juntarem e de fazerem uma coisa juntas. Os desentendimentos, as cooperações, essa mistura, a forma como as pessoas vão andando pela vida e são capazes de criar coisas com as outras. Quando nos viramos uns para os outros, acho que somos sempre um bocadinho maiores do que quando somos só virados para nós.


Acha mesmo?

Acho, acho. Acho que as batalhas interiores ou muito individualizadas têm sempre o seu quê de mesquinho. Quando fazemos coisas por nós e pelos outros, quando se torna um bocadinho maior, quando nos ultrapassamos a nós, parece que dá sentido à vida. Ou, pelo menos, dá sentido à minha vida.

 

É para si urgência perguntar: para que é que isto serve?

Ai, sim, [em relação a] tudo na vida devemos perguntar para que é que serve. Às vezes serve só para ser bonito, ou para nos encantar, ou para nos mexer.

 

Marx escreveu «O Capital» na belíssima biblioteca do British Museum. Foram anos de reclusão e investigação. Se estivesse a fazer o seu doutoramento, estaria retirada do mundo, do fazer, dessa urgência. 

Gosto dessa abordagem da teoria social marxista: procurar conhecer para depois agir e transformar, e conhecer outra vez o que é que transformámos e o que é que correu mal. O novelo entre a acção e o pensamento crítico é o que deve ser a vida.

 

O mais extraordinário é a felicidade com que fala disto!

Sim, gosto mesmo disto. Tenho uma enorme sorte: até agora a vida tem me corrido mutíssimo bem, tenho tido oportunidade de fazer coisas que adoro

 

Voltando às palavras essenciais: “escolha” é uma palavra essencial?

É uma palavra essencial.

 

E a dilaceração da escolha, sente-a muitas vezes?

Sinto, sinto, sou um pouco indecisa. Indecisa, ansiosa. É uma palavra fundamental no meu léxico e na minha vida.

 

A escolha traz consigo a responsabilidade por essa escolha. É capaz de se depositar nas mãos do acaso, sentir o fluir, não escolher?

Não, isso não consigo fazer, preciso muito da sensação de...

 

Segurança?

De controlo, que controlei uma escolha arriscada, mas que a fiz. Adoro a sensação de ter a minha vida nas minhas mãos. Adoro a sensação de mudar de uma cidade para a outra, mudar de casa. Se eu quiser, movo-me, se não me sentir bem, posso romper aqui e começar ali. Ou seja, conto comigo, e contando comigo, as coisas hão-de correr bem.  

 

Não há nada que seja para si intimidatório? Medo.

Para além da saúde, a única coisa em que o terreno é mais movediço é o terreno dos amores. Porque aí, se o controlo é total, não tem graça. Tem que haver uma margem de indefinição, de ambiguidade, de coisas que podem acontecer, que podem não acontecer.

 

Novamente na casa da partida: o que é ocupa a sua vida mental? Essas coisas de que fala em público são também o que aparentemente domina a sua vida. Então, quais são os seus nós mais íntimos?

Não sei se tenho uma resposta para isso. Eu tinha uma amiga psicóloga que falava da teoria do bitoque. Ela dizia que a vida deve ser como um bitoque, deve ter diferentes ingredientes e que o prato da vida fica bom se nós tivermos disso tudo um bocadinho: os amores, o trabalho, os amigos, o lazer, os interesses intelectuais, isso tudo é que faz a vida.


No léxico existe a palavra “desilusão”?

O que é que hei-de de dizer desilusão? Não me consigo lembrar de uma coisa que tenha tido...

 

Pergunto por ser tão idealista. Caetano Veloso tem um verso que diz: «A dor define a nossa vida toda». E Gonçalo M. Tavares fala também a dor como palavra essencial. Porque nos esculpe.

Há uma frase muito engraçada, no filme «Azul», quando ela encontra a amante do marido que morreu e a amante lhe diz: “Você é boa, ele disse-me que você tinha escolhido ser boa”. É genial: a escolha de ser qualquer coisa. Quando as pessoas me dizem que sou idealista, como se fosse um pouco para o tonta, apetece-me dizer-lhes: eu escolhi isto, isto faz-me sentir bem, isto dá sentido à minha vida. Poderia ser cínica, mas sei que não seria muito feliz. As desilusões, quando existem, amarguram-nos muito. E tento livrar-me delas, muito, muito. Tento limpar, limpar e passar à frente, porque a amargura, o cepticismo e o cinismo são cansativos, uma pessoa passa a vida inteira à defesa. Bom, agora pareço um livro do Paulo Coelho [risos].

 

O que é que anda a ler? Não anda a ler o Paulo Coelho?!! [risos]

Não ando a ler o Paulo Coelho, li um uma vez e jurei para nunca mais. Ando a ler um calhamaço que se chama “Pós Colonialismo – uma introdução histórica”.

 

Humm, apetitoso...

É interessantíssimo. Fala de movimentos de libertação em África, correntes marxistas, é mesmo aquilo de que gosto! Vou lendo um bocadinho daquilo ao final da noite. Como é muito grande, estou a ver que não avanço. Olhe, agora estou a pensar como é que levo para a praia um calhamaço destes!

 

Lanço outras palavras, como futuro, como ambição. Se tem a convicção de que tem coisas para dizer, que coisas são essas?

Não consigo dar uma cartilha. Não sei se devo dar lições às pessoas sobre o que devem fazer com a vida, ou sobre o que é que a vida, porque receio transformar-me de facto em Paulo Coelho e fazer grandes tratados lamechas sobre qualquer coisa!

 

Sim, mas recupero isto porque no início da nossa conversa disse que se meteu na política, também, porque tinha a convicção de que tinha coisas para dizer.

Eu acho que as pessoas devem perceber que muitas das coisas que temos foram conquistadas por outras pessoas. Aquilo que hoje temos de bem-estar, de liberdade foram lutas sociais antigas. Isso dá-me, primeiro, algum sentido histórico – o que existe não é natural, foi construído.

 

Isso faz de si um elo na cadeia, é isso?

Pois. Gosto da ideia de que temos responsabilidades para quem lutou por nós sem nos conhecer e para quem vem a seguir. A base política em que acredito é procurar mais e mais liberdade, mais autonomia. Que cada um de nós possa ser mais dono da sua vida. Falar de justiça social, de questões sociais, das questões da guerra, do que quer que seja, tem a ver com esta ideia central, (como diz a Constituição Americana): os homens devem ser livres para buscar a felicidade. A ideia de um novo mundo onde os homens serão livres, mais donos das suas circunstâncias.

 

«A liberdade é o reconhecimento da necessidade», dizia Marx.

No espaço onde estou é uma ideia que se mistura com a ideia de socialismo e de movimento socialista, que foi aquele que um dia sonhou, se constituiu na base dos que se sentiam oprimidos e que tentaram construir um mundo onde fossem mais livres. Esta é a base política e a ideia que tenho: por um lado peçam mais do poder instituído, exijam mais, mas também responsabilizem-se mais, estejam mais presentes, sejam mais lutadores e mais solidários.

 

Fica com horror se pensa que, como muitos políticos, pode ser outra, daqui a 20 anos?

Penso, acima de tudo, que ser política ou deputada não é uma profissão. E que não é saudável nem para mim nem para a política que eu esteja 20 anos.

 

O provável é que daqui a 20 anos esteja na Sociologia.

Espero bem que sim, se houver política de investigação neste país.

 

No fundo, trata-se de ler o colectivo e sentir-se parte desse colectivo.

É.

 

O futuro é isso?

É. O sentido da minha vida não está muito dentro de mim, está um pouco nos outros. Nada do que fazemos tem muito sentido se não houver testemunho, apreço, crítica sobre isso. Se damos um trambolhão nas escadas e estamos sozinhos, é como se nunca tivesse acontecido. O que somos e fazemos da nossa vida tem que ser visto pelos outros. É nesse jogo de espelhos que a pessoa se encontra.


Por fim, o jantar de anos da sua amiga. O saco que contém a prenda diz Women’s Secret...
São coisas de mulheres, evidentemente: lingerie.

 

Não é risível, nem é menos credível, se terminarmos a entrevista a falar da lingerie que comprou para a sua amiga.

Não, pelo contrário. Comprei uns discos para mim, [e comprei] uma lingerie para ela se sentir bonita, porque está a fazer trinta e poucos anos está lindíssima. Espero que ela goste.

 

 

Originalmente publicado no DNa do Diário de Notícias em 2004