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Anabela Mota Ribeiro

Rodrigo Leão

08.09.14

Uma tarde de Verão, no Frágil. Tudo parece novo, e ao mesmo tempo imemorial. As paredes cheias de impressões digitais. Os balcões a derramar conversas imaginárias. As mesas e as cadeiras ainda brilhantes, os cortinados de veludo. Rodrigo Leão senta-se para conversar sobre esse tempo em que o famoso bar lisboeta era uma extensão de casa. Onde se desenhava a história da música portuguesa. Onde se acabava a noite. Tudo acontecia sob o signo da partilha e da cumplicidade. Acabou por falar dos dias da infância em que ouvia música com a mãe. Dos dias da adolescência em que ia ao cinema com os amigos. Dos dias em que estava em cima de um palco com a Sétima Legião e os Madredeus.

Tão longe, tão perto. Ele faz uma música que parece distante de todos estes caminhos, mas insiste na herança, não renega nada do que faz parte do seu código genético. Faz uma música maravilhosa, que tem tanto de portuguesa como de universal. Há poucos meses saiu uma colectânea que sintetiza o seu percurso a solo. Mas desdobra-se em múltiplos planos: prossegue a tournée «Mundo» até Dezembro, edita a banda sonora do documentário que António Barreto fez para a RTP (e cuja música compôs), desenvolve um projecto em torno da poesia de Cesariny e prepara um disco novo para daqui a um ano. Tem pouco mais que 40 anos, é Rodrigo, um rapaz de Lisboa.

 

 

Começamos pelo sítio onde nos encontramos? Parece que a sua vida não seria a mesma sem o Bairro Alto e a movida dos anos 80…

É verdade. A Madredeus, por exemplo, nasceu aqui no Frágil, em conversa, entre mim e o Pedro Ayres [Magalhães]. Em 85 começámos a pensar na ideia de um grupo, mais acústico, diferente do que tínhamos na altura – eu estava na Sétima Legião e o Pedro nos Heróis do Mar. O Frágil: tantos concertos que fizemos, e depois acabámos a noite aqui…

 

Funcionava como casa, era um espaço aglutinador de músicos, artistas, gente que se cruzava nessa Lisboa em mudança. 

Venho cá há 25 anos. Os restaurantes, as tasquinhas, estas ruas, foram sempre uma paixão – que se mantém. Nos últimos anos, a vida diurna do Bairro Alto cresceu imenso.

 

Antes dos anos 80: como é que os seus caminhos vieram dar…

À música?

 

À música e a este ambiente. Sublinho isto porque a sua música está cheia de encontros. Com outras disciplinas, com outras pessoas… E resulta dessa síntese.

Faço as coisas intuitivamente, e tudo vai acontecendo. Sempre tive “encontros”. Mesmo no liceu. Havia na sala da associação de estudantes um piano. Eu não sabia tocar, mas nos intervalos ia para lá com um gravador e tocava umas notas.

 

Aprendeu quando?

Não aprendi nunca. Ou melhor: aprendi sozinho e com os amigos. Sou auto-didacta. Aos 12, estive um ano a aprender guitarra clássica. Mas sou canhoto…, era uma grande confusão. Aprendíamos, essencialmente, uns com os outros. A nossa preocupação, desde pequenos, era tocar coisas nossas, e não tocar com grande técnica coisa dos outros. Estávamos em 81, eu tinha 16 anos. Mas já em 79 fazíamos ensaios em minha casa, para a Sétima Legião. Levava aquilo muito a sério. Embora os instrumentos fossem a brincar: baldes de Skip, umas guitarras manhosas… Mas púnhamos a gravar e ouvíamos no dia seguinte. Eu era muito optimista. E romântico. Gostava de sonhar com o futuro.

 

O que é que lhe permitia acreditar que um dia ia fazer qualquer coisa? A si e ao grupo.

Oh, o entusiasmo era tão grande…, tinha a certeza que íamos fazer qualquer coisa. Mas nunca me passou pela cabeça que pudesse dedicar-me exclusivamente à música. Estava a estudar Direito, era suposto ser advogado.

 

Tradição familiar?

Não, o meu pai é engenheiro, engenheiro de máquinas. No segundo ano de Direito deixei os estudos para trás. Já tocava muito com a Sétima Legião, Madredeus estava a começar, e sentia que era mesmo aquilo que queria fazer.

 

Na Sétima Legião era espantosa a modernidade, a sofisticação, a congregação de influências díspares; e, ao mesmo tempo, havia na banda qualquer coisa que era muito portuguesa, ligada à nossa raiz.

Éramos muito marcados pelo som dos anos 80 que se fazia em Inglaterra. Joy Divison, Echo and the Bunnymen, U2, todos esses grupos, ouvíamos com regularidade.

 

O Miguel Esteves Cardoso foi um agente essencial dessa aproximação? Ele viveu uma parte dos anos 80 em Manchester, onde fazia o doutoramento. E escrevia sobre música, também.

O Miguel escreveu a primeira letra em português – até aí tínhamos uns dez temas, mas em inglês. A Fundação Atlântica, à qual o Miguel pertencia, estava interessada em editar a Sétima Legião. Depois, tínhamos o Paulo Marinho que tocava gaita-de-foles, um instrumento galego, que também se ouvia em Trás-os-Montes. As percussões eram muito populares… De facto, houve uma fusão de sons. Mas foi intuitiva. O Paulo era nosso amigo e vizinho e tocava gaita-de-foles. Se calhar, se tocasse outro instrumento, as coisas teriam sido diferentes.

 

A vossa geografia, era qual?

Era a da Avenida de Roma. Morávamos perto daquele que é agora o cinema King. Ensaiávamos em garagens que nos emprestavam. Mas rapidamente passámos a dar-nos com pessoas que frequentavam o Bairro Alto: o Miguel Esteves Cardoso, o Pedro Ayres, o Ricardo Camacho [médico, viria a integrar a Sétima Legião].

 

Insisto num aspecto: havia uma apropriação de valores nacionais e bons – para citar o slogan – num período em que havia uma quase vergonha em assumir um lado tradicional e em que havia uma adesão incondicional ao que vinha de fora.

Essa identificação foi mais forte nos Madredeus que na Sétima Legião. Mas havia grupos como os Heróis do Mar, que admirávamos, em que isso era muito vincado. Agora, não era nossa preocupação fazer uma coisa que fosse completamente portuguesa.

 

Completamente portuguesa e completamente universal – era aí que eu queria chegar.

Pois… Éramos tão miúdos, nem tínhamos bem noção. É assim que olho para esse período. Ainda hoje em dia penso que muitas coisas que faço não são estudadas.

 

Quando é que passou a ser uma coisa profissional, uma opção consciente?

Foi em 87, 88, quando saiu o segundo disco da Madredeus. Nos primeiros anos, Madredeus tocava cinco vezes por ano – pouquíssimo. A Sétima Legião tinha imensos concertos, e os Heróis do Mar faziam uns 60. Era um projecto que nos dava grande prazer, muito português, inspirado nalgum fado. Quando a Sétima Legião ou os Heróis do Mar não estavam a tocar, íamos a correr para o Teatro Ibérico ensaiar. Gravámos o primeiro disco em dois ou três dias. Foi em 90/91 com a Europália, com o primeiro concerto lá fora – os belgas editaram os Madredeus pouco depois – que começámos a tocar pelo mundo inteiro.

 

Era um miúdo.

Sim, tinha 25 ou 26 anos!

 

Quando sai dos Madredeus, fica por sua conta, entregue a si. Tudo o que foi feito antes aconteceu em grupo. Com os amigos, os vizinhos – uma família alargada.

Exactamente. Entre 91 e 93 houve uma série de músicas que compus, influenciado por música minimalista que ouvia, (Michael Nyman, Phillip Glass), que não cabia nem na Sétima Legião nem na Madredeus. Foi isso que deu origem ao meu primeiro disco a solo. Eram só as minhas composições. Era o que queria fazer. Não é que não fosse assim nos outros projectos. Mas aquilo era mais intimista, menos comercial. Eu queria fugir um pouco, se calhar, a esses dez anos que já levava de grupos, em que a língua portuguesa assumia um plano essencial – no meu primeiro projecto a solo cantava-se em latim. A voz aparecia como mais um instrumento; era mais a melodia da voz do que o significado das palavras.

 

Precisava de se exprimir mais musicalmente e menos colectivamente…

Nem sei. Quando o disco saiu, nem pensava em abandonar o grupo. Madredeus tocava muito, entretanto. Passado um ano ou dois é que senti que não estava a dar atenção a esse trabalho, e o disco estava ser editado em muitos países. Percebi que tinha de encerrar o capítulo Madredeus. Com muita pena.

 

Para sempre.

Quer Madredeus, quer Sétima Legião ainda estão muito dentro de mim, parece que foi há pouco tempo... E está tudo interligado. Madredeus era uma escola, aprendíamos uns com os outros. Se não fossem esses dois projectos, o que faço hoje não seria o mesmo.

 

É curioso o que diz, porque o que faz actualmente parece muito distante do que foi feito nesses anos… E isso faz com que os dois primeiros discos dos Madredeus, por exemplo, pareçam longínquos.

Penso que as bases são as mesmas. São bases simples da música pop. Não é uma música erudita, complicada.

 

Uma simplicidade muito laboriosa, em todo o caso. O disco «Cinema» é muito acessível, mas é sofisticadíssimo.

Não digo que seja fácil… Quando estamos a fazer música, pode haver um período de quatro, cinco, seis meses em que estamos preocupados, obcecados mesmo…, se conseguimos ou não conseguimos fazer. 

 

Tem essas inseguranças?!

Tenho, imensas! É uma espécie de luta que travamos cá dentro, no sentido de sabermos quais são os melhores momentos para compor e não desistirmos. Posso estar semanas e não sair nada do que quero.

 

O que é que lhe é mais confortável? Qual é a sua primeira forma de expressão, a composição, a produção?

A composição, ainda que seja mais difícil. Posso perder a inspiração... Nesse momento estou muito sozinho, mesmo que mostre as coisas a pessoas que estão à volta. Quando tenho material suficiente para pensar na gravação do disco, tenho dois produtores que me ajudam. Há arranjos que escrevo, noutros temas está a melodia, apenas. E depois aparecem os músicos e o seu contributo.

 

Por vezes sente a falta do grupo, dos que estão à volta, inclusive no processo de decisão?

A energia que as pessoas trazem com elas é muito importante. Se, por um lado, gosto de compor sozinho, por outro lado tenho necessidade de trabalhar com outros músicos.

 

O que é que ouvia em pequeno? Que tipo de criança era?

A minha mãe sempre ouviu música lá em casa. Entre os 11 e os 14, ela chamou-me para o mundo das coisas sensíveis. Da música, do cinema, da pintura. Nunca trabalhou fora, dedicou-se à educação dos quatro filhos, rapazes, dos quais sou o mais velho. Houve alturas em que estudou filosofia. Continua a ser uma senhora da Avenida de Roma. Ela dava-nos a ouvir Beethoven, o que no princípio era estranho…, mas foi ficando cá. Também ouvia música francesa, brasileira, e tudo isso contribuiu para o que sou e faço.

 

As outras disciplinas, entravam também na vossa educação? Se é verdade que essas influências são detectáveis na música que hoje faz, é verdade também que ela não é puramente música. Evoca o cinema, a pintura…

O cinema era uma paixão. Nós, no bairro, passávamos os dias no cinema. Nas sextas à noite íamos para o Quarteto, onde havia sessões da meia-noite às cinco da manhã! As pessoas diziam que havia um lado muito cinematográfico naquilo que fazíamos na Sétima Legião. Havia uma certa melancolia… Há uma melancolia em Portugal que é diferente da melancolia que há noutros pontos do mundo. Está na música, nos sítios, nas pessoas, na poesia.

 

A melancolia é um elemento nuclear naquilo que faz?

É, é. A melancolia não tem que ser forçosamente triste. Há uma melancolia que é mais contemplativa, e que até pode transmitir esperança. Nunca soube explicar porque era assim, porque fazia músicas mais assim e menos assado.

 

Fale-me mais da aprendizagem com a sua mãe.

Muito cedo ofereceram-me uma guitarra clássica e estabeleceu-me uma relação musical mais forte entre mim e a minha mãe.

 

O que é que a sua mãe acha do que faz?

Acha óptimo! Gosta, gosta. E pronto, o ambiente era este: íamos a pé para o liceu Dona Leonor, íamos ao cinema, e sonhávamos com o que queríamos fazer.

 

Vive várias vidas: a do compositor, mais isolada, a do músico que está com outros, em ambiente instigante, a familiar, com a mulher e os três filhos pequenos, a do homem de Lisboa, onde se fez e retorna sempre.

Estão todas ligadas, nem consigo separá-las bem… Quando estou fora, em tournées mais demoradas, tenho imensas saudades da minha mulher e dos meus filhos. Em Portugal, muitas vezes vão comigo. E gosto que vão e assistam: dá-me conforto emocional.

 

Preciso realmente de apoio. Pode ser deveras inseguro…

Ah, sim, as dúvidas fazem parte de mim, todos os dias. Mas não faço tournées como aquelas que fazia com os Madredeus, de meses. Entre 91 e 94, com eles, fui três vezes ao Japão, Coreia do Norte, Europa toda, Brasil. Era uma experiência muito enriquecedora, mas estava cansado de ter tantos concertos e não poder estar em casa, a compor. Foi uma das razões porque saí do grupo.

 

Depois de sair, retirou-se por um período longo.

De 94 a 2000 fiz muito poucos concertos. Os discos saíam, fazia no máximo 20 concertos, e acabava. Nos últimos anos, voltei a fazer uns 30 ou 40 por ano. Também tem a ver com a música que agora faço e que chega mais às pessoas.

 

O dinheiro pesou na sua decisão? Os concertos são uma grande fonte de receita…

Não pesou. Há momentos mais aflitos, mas a decisão não passa por aí. Quando saí dos Madredeus não sabia o que ia acontecer. Mas como sou autor de muitas músicas, e o grupo cresceu muito depois da minha saída, fui recebendo dinheiro desses temas. Isto para dizer que não tive que fazer tantos concertos assim… Mas nunca aconteceu ter de fazer uma música mais comercial, para chegar a mais pessoas, para vender mais discos, para fazer mais concertos – isso não. Tive a sorte de poder fazer aquilo que quis. Sem saber se ia vender ou não. Quem é que imaginava que Madredeus ia vender dois milhões de discos no mundo inteiro?

 

A sua mulher é uma pessoa essencial no processo musical? Ela escreve algumas letras dos seus discos.

Conto imenso com a opinião dela, é importantíssima. Ajuda-me nas letras e consegue captar o espírito das músicas que faço. E é a pessoa que está mais tempo comigo, que percebe as minhas inseguranças, que me dá força para fazer o que quero.

 

Explique-me o processo a partir de um exemplo prático: quando pensa na Beth Gibbons para cantar no seu disco, antes de a contactar pede a opinião à Carolina?

Não, não. Quando tenho dúvidas, ouço imensas opiniões. Até pode ser a opinião de alguém que apareceu por acaso no estúdio e disse qualquer coisa que me fez sentido. (Essa é outra coisa da música que faço: é muito partilhada, muito cúmplice). Mas por fim, sou muito determinado. E mesmo que a Carolina ou os produtores não concordem, faço o que quero. Outra coisa: tenho de estar descontraído, não posso sentir-me pressionado por calendários que não são os meus. Vou trabalhando, devagar, no meu ritmo. 

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2007