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Anabela Mota Ribeiro

Carminho (2014)

12.03.15

Fado, Alma, Canto. Palavras-âmago de Carminho. Três discos, vendas astronómicas, o mundo tornado um espaço pequeno. Fala com uma voz rouca. Está mais magra. Tem o mesmo sorriso. Entrega-se à entrevista e ilumina-se quando fala de Beatriz da Conceição (que lhe ensinou que não se poder dizer Deus como se diz pedregulho), ou quando recorda o tempo em que era criança e ia cantar os Reis com os primos numa noite de inverno. Claro que agora há Chico e Caetano e Marisa no pedaço, as gravações com personagens que se tornaram reais. Há 250 mil pessoas que a seguem no Facebook. A força da marca Carminho. Que isto tudo tenha nem cinco anos e ela menos de 30, impressiona. Ela continua a ser a mesma? E quem é ela, afinal?

 

Fiz-lhe uma entrevista em 2010. Parece uma outra vida. Tinha saído o primeiro disco. O aplauso era consensual entre críticos, pares e público. Ainda ia cantar uma vez ou outra à Mesa de Frades. E vivia em casa dos pais.

Ainda vou cantar, quando posso. Preciso de silêncio para ganhar força para uma nova resposta. Ir às casas de fado é algo que me alimenta. Há lá uma raiz.

 

O que é possível encontrar no silêncio?

Descanso, paz. E liberdade de pensamento. Organiza-me, recompõe-me. Às vezes o mundo encaminha-nos para um viver porque sim, para uma rotina, uma mecanização de gestos, de atitudes. É importante parar e reconhecer o que se conquistou, interrogar a origem dessa vitória. É bom reconhecer as pessoas que estão à nossa volta e que trabalham connosco, dar-lhes esse brilho, iluminá-las com o nosso sucesso.

 

Não quis viver porque sim. Por isso foi fazer uma viagem ao mundo para se encontrar. Foi depois desse ano de procura que decidiu que a sua vida ia ser a cantar.

Senti que era uma pessoa independente no canto. Isso deu-me muita alegria, muita força. Só na felicidade é que posso transbordar. O meu trabalho é dar o meu melhor.

 

Caetano Veloso usou uma expressão belíssima para falar de si: breve milagre.

Contaram-me: “O Caetano diz que chorou ao ouvir-te cantar”. Eu respondi: “Mas a culpa não foi minha”. Grata fico por ele se ter exposto e partilhado isso. Mas ele é que se emocionou, foi o mundo dele.

 

É uma pessoa religiosa. Que imagem lhe ocorre para “breve milagre”?

Gosto muito do desconhecido e de pessoas anónimas. Há um breve milagre em sorrisos desconhecidos, pessoas que se ajudam. (É um bocado piroso, esta coisa do sorriso que muda o nosso dia... Mas sou tocada por sorrisos na rua que mudam o meu dia.) Se calhar por ter viajado um ano sozinha, comecei a dar imenso valor a esses breves milagres. Muitas vezes ressuscitavam-me da solidão.

 

No fundo, o milagre é o do encontro.

É, são sempre encontros.

 

Ocorreu-me aquele encontro com o Chico Buarque, no concerto de angariação de fundos para a Escola de Samba da Mangueira...

Também foi um breve milagre, cantar com o Chico [riso]. O Carnaval move famílias e move corações. Assim como para mim é vital cantar, para outros é vital aquele acontecimento anual. Fá-los ter razão para viver todos os dias. O facto de ser levada pelo Chico para aquele concerto: houve um carinho maior no modo como me receberam. Este ano [2015] vou voltar, convidaram-me outra vez.

 

Que músicas é que cantou?

Cantei o Carolina. O Sabiá. Cantei As Pastorinhas [canta].

 

Dá uns ares de Elizeth Cardoso, a cantar As Pastorinhas. Elizeth era uma diva. Uma espécie de Amália brasileira, pelo génio, brilho, popularidade.

Toda a gente sabia aquela música. Foi arrepiante. Cada vez sei mais sobre música brasileira, porque o Milton [Nascimento], o Chico, vão-me mostrando. E faço muitas perguntas. Contam-me as histórias que viveram com os próprios [autores e intérpretes originais].

Aquela música foi-me apresentada uns meses antes. A versão da Elizeth Cardoso é de ir às lágrimas. Entro num palco e estou a cantar uma canção que aprendi há pouco tempo. Não fazia ideia de como é que o público ia reagir. E de repente calo-me e toda a gente canta. É como se estivesse a cantar a Casa Portuguesa!

 

Cantou alguma música portuguesa?

Cantei a Marcha de Alfama acompanhada pela bateria da Escola de Samba. Transformaram aquilo num frevo. Foi também uma forma de dar um bocadinho da minha cultura.

 

Que importância é que isso tem para si?

É importantíssimo. Apesar de ter o privilégio de me entrosar com esses artistas, de aprender com eles, quero mostrar a minha identidade. Não quero deixar de transparecer a importância que o fado e a música popular portuguesa têm para mim.

 

Hoje estive a ouvir o seu disco em repeat. É uma experiência diferente de ouvir músicas avulsamente. Há contribuições de músicos brasileiros (de Caetano a Marisa Monte), e não só; mas aquilo continua a soar Carminho. Como é que consegue que soe Carminho, ou seja, fado? É a sua maneira de cantar?

É a minha maneira de cantar. Estando tão envolvida com estas personagens, que passaram a ser pessoas reais (abrem-me as portas de suas casa, cantando), percebi que têm uma identidade e que não abdicam dela. E fazem-me constantemente olhar para mim, de longe, e pensar assim: “De onde é que venho, mesmo?”. Percebi que não vim só do fado. Venho da música popular portuguesa.

 

Explique isso.

Venho de muitos anos a viver no Algarve, onde me batiam à porta para cantar as Janeiras. Eu ia cantar os Reis. Era muito pequenina e aquilo era assustador e mágico. Com frio, com lanternas. Cantávamos. Acendiam-se as luzes, abriam-se as portas, tinham um banquete para nos oferecer. Os meus primos saíam sempre com os bolsos cheios de camarões [risos]. Uma vergonha. A minha avó ficava furiosa porque aparecíamos com bolos inteiros. “Aquilo é só para petiscar”, dizia ela. (Resolvemos importar o Halloween. Temos tantas tradições similares que podem dar o mesmo prazer às crianças. Não é preciso mascararmo-nos de abóbora.) A vivência destas tradições aumentou o meu imaginário de uma forma incalculável.

 

Como era a sua voz quando era criança?

Não sei. Há uma gravação aí com 12 anos. Sempre fui muito afinadinha, dizem os meus pais.

 

Nessa gravação dos 12 anos, que está no Youtube, usa um vestidinho branco, muito querida e infantil.

A minha mãe não me deixou ir em devaneios de criança de 12 anos que acha que já não é criança. Chorei baba e ranho durante o ensaio de som. Vi que todas as outras meninas iam de saltos altos e alcinhas. Eu tinha que ir de bolo-rei! Com a fava!, porque as minhas sabrinas eram dois números abaixo. E não tinha brinde.

 

Quando olha para aquela gravação, o que é que ouve?

Tenho imenso orgulho. Ali começou uma coisa muito importante da minha vida.

 

Cantar perante uma plateia.

Sim. As pessoas que conheciam os meus pais (e em especial a minha mãe [Teresa Siqueira], que canta, que tinha uma casa de fados), perceberam que eu cantava. Passei a ser uma mascote: “Tens que trazer a tua filha”. Para cantar nos jantares de beneficência, numa noite de fados, ao fim-de-semana. Adorava viver de noite. Pedia sempre para ir para o restaurante da minha mãe, o Embuçado. Acabava por adormecer nos bancos. Jantava na cozinha, os empregados enchiam-me de mimos, bolos de chocolate e morango.

As viagens de carro: a minha mãe resolvia que o canto evitava discussões. Não andávamos à estalada, os meus irmãos e eu, por causa disso. Organizávamo-nos por vozes. Cantávamos fado, o cancioneiro popular, Fausto, Vitorino.

 

Uma família tradicional a cantar esses esquerdalhos.

Não é maravilhoso? Às vezes nem sabíamos o que é que estávamos a dizer [risos]. Esse imaginário, ficou.

O Diogo Clemente (o produtor [e marido]), conseguiu transpor esta genética, que é a minha, para o disco. Há um lado meu que é português e é muito forte. Comecei a conhecer os adufes, os cavaquinhos, que são tão característicos. O Júlio Pereira fez um trabalho extraordinário com o cavaquinho. Recuperar é não deixar morrer. Não numa perspectiva de condescendência, mas numa perspectiva de identidade. Eu sou isto.

 

E a sua têmpera, como era?

Eu não tinha personalidade suficiente para assumir com toda a minha força que gostava de fado. E escondia. Ficava com vergonha, pensava que estavam a gozar comigo. Havia um mar de emoções que me moldavam.

 

Quando tinha 12 anos, o fado não estava na moda. Hoje parece muito fácil.

Hoje parece tudo facílimo. Na altura, ninguém era fadista. Cantava fado apenas nos meios do fado.

 

Como é que se canta, ou cantava, fado nos meios do fado? O que é que pode fazer numa casa de fados que não se pode fazer em cima de um palco?

Nada. Às vezes é abordar temas que não fazem parte do meu reportório e que me apetece cantar. Mas em termos de canto, não. Canto como sou, seja aqui, na Mesa de Frades, em cima do palco. E como estou.

 

“Como estou”?

Sim, porque estou sempre diferente. Tem a ver com uma consciência maior da beleza das coisas, com o que cada palavra significa. Um poema tem uma energia, cada palavra tem uma energia. Não é mecânico, não é igual, é inspirado em alguma coisa, em alguém, em nós próprios, no como estamos. Sobretudo, quanto menos penso no momento em que canto, quanto mais me entrego sem pensar, melhor canto.

 

Como se estivesse a sós consigo? Como se fosse uma espécie de oração?

Sim. Não canto – isto agora pode parecer um bocadinho duro – necessariamente para os outros. Canta-se para que os outros ouçam.

 

Então, se cantar em casa, para si…

É igual.

 

Nestes quatro anos, e de novo estamos no começo da entrevista, o que mudou substancialmente? Já era uma grande fadista, entretanto passou a ser uma grande artista.

Há outras coisas envolvidas, isso é verdade. E são tão importantes como uma boa interpretação. Saber o que é que se quer de um concerto. A maneira como nos mexemos. Não se pode ser alheio à nossa imagem. Não pensar: “Eu canto, o que interessa é cantar”.

 

A marca Carminho é forte. Só no Facebook tem 250 mil seguidores.

Um artista passa a ser possuidor desse valor de marca. Esse valor traz amor e traz responsabilidade. É nessa dança que se é um artista. Entreguei a minha vida ao canto e às pessoas. Isso traz-me peso. E traz-me muita alegria, muita realização. Eu não queria ser outra coisa. Penso: onde é que estaria se não cantasse?

 

Podia ser publicitária, tirou o curso de Marketing. Ou trabalhar numa empresa, no departamento de comunicação.

Que horror! Não me vejo e não me revejo. Não seria eu. Não sei o que é ser artista, confesso. Essa pergunta é traiçoeira. Põe-nos a falar de: “O que é que é ser eu?”. O que é que é ser Carminho? Não sei.

 

Então, como é que é a máquina Carminho? Tem uma empresa que trabalha consigo. Com quantas pessoas? Que participação é que tem nisso?

Trabalho com o João Pedro Ruela, que é o meu manager, e que tem uma agência de management e concertos. Construir esta marca tem muito a ver com o que sou como pessoa e como artista. “O que é que queres fazer?, quem és?, como estás?, o que é que sonhas?, o que é que queres dizer às pessoas?”. Depois é planear isso em termos objectivos e em conjunto. Por exemplo: vamos fazer um disco; quem é o produtor, quem são os autores, quais são as canções? Eu escolho o meu reportório.

 

Escolhe mais do que tudo sozinha ou com o Diogo Clemente?

Eu com o Diogo, neste caso. Tem-me ajudado nestes três discos porque fez sentido até agora. Não quer dizer que venha a fazer sentido a seguir. Não tem nada a ver com a relação pessoal que tenho com ele. Ou tem porque ele me conhece muito bem. Na verdade, o Diogo percebe muito de fado, gosta muito de fado. Percebe a minha forma de interpretar. Sabe traduzir aquela minha genética portuguesa.

Convidei artistas. Ao Javier Limón disse: “Tenho um poema musicado pelo Mário Pacheco, do Fernando Pessoa, que vai soar a português, mas gostava que trouxesses a tua característica”. E tornou-se um tema muito ibérico. É o Na Ribeira Deste Rio.

 

Estabeleci um paralelo entre o seu percurso e o da Marisa Monte. Ainda não tinha gravado um disco e já toda a gente sabia quem era a Carminho. A Marisa Monte começou por gravar um disco ao vivo, uma coisa inédita no Brasil. As duas são muito cuidadosas na gestão da carreira. E não tiveram de fazer aquelas coisas aos trambolhões, com muitos erros, que muitas cantoras têm de fazer.

Por imaturidade, às vezes. Por começo. As pessoas não têm que saber tudo ao princípio. Se calhar, o que ajudou foi ter tido consciência do perigo que seria entregar-me sem conteúdo.

 

O que é que quer dizer “sem conteúdo”?

Entregar-me a esta vida sem ter muito para dar. Isto é uma vida de dádiva artística, de energia, de alma. Por isso é que quando uma pessoa fica alienada começa a ficar vazia e começa a ser difícil dar alguma coisa. Nunca posso deixar a minha alma fixar-se e acomodar-se.

Tive propostas para gravar quando estava na Mesa de Frades. E disse que queria fazer uma volta ao mundo de um ano. Até usaram aquela expressão: “A vida é um comboio, só passa duas vezes, à segunda já vai cheio”. Como quem diz: “Aproveita já”. Muitas vezes cai-se nessa tentação. E eu, por iluminação do espírito ou por intuição, recusei. É uma certeza que tenho: devo sempre seguir a minha intuição.

 

Como quem escuta e obedece a uma voz íntima?

É uma voz muito presente em mim. Ela é que escolhe o que é que se vai fazendo. Ela, e depois a equipa que está à volta. Escolhi três ou quatro pessoas para me criticarem.

 

Escolheu-as como?

Umas por gostarem muito de mim, incondicionalmente. A minha mãe, o Diogo. Não há nada que elas digam que seja para mim um mal. Outras, porque percebem como é que são os ouvidos do mundo. Como é que vão ouvir a mensagem.

Às vezes é muito duro. Não acertamos sempre. É chato.

 

Uma perfeccionista.

Não gosto nada de falhar. E fico muito chateada comigo porque o meu falhanço pode implicar que outros falhem.

 

A sua vida é como?, concertos, ensaios, viagens? No espaço de uma semana vai a vários países, cruza Portugal de norte a sul. Há uma primeira fase em que é glamoroso, depois passa a ser cansativo. Como é que arranja energia?

Tem que se procurar a energia nas pessoas, nas equipas. Depende imenso dos músicos, da energia que me dão, do companheirismo. Sou a única mulher na estrada, a menina.

 

Dizem palavrões à sua frente?

Não. Dizem muito poucos. Às vezes sou eu que digo [risos]. Mas não digo muitos. Tratam-me sempre com muito cuidado. Eu preciso de descanso, eles são mais resistentes. Acabo por ficar mais sozinha. Tenho lido imenso. Tenho rezado.

 

Como é que reza? Reza o terço ou reza pensando?

Converso. Mas são conversas de longas horas.

 

Quem é o seu interlocutor? Maria, Jesus? Tem um santo de devoção, uma figura religiosa a quem se dirige?

Vai variando consoante o propósito.

 

Sabe que há uma Santa Rita dos Impossíveis?

Também há o São Judas Tadeu, das causas impossíveis. Os santos são todos um bocadinho de causas impossíveis. A fé transpõe montanhas. Quando uma pessoa acredita… Tenho fé nas pessoas. Deus está nas pessoas e em nunca desistirmos de nós próprios.

 

O que é que tem que fazer para aguentar as tournées? Na prática, como é que se passa?

É muito exigente. É ser um atleta de alta competição. Tenho que dormir muito bem. Tenho que comer bem. Passo a vida a dizer: “E se fôssemos ali a um vegetariano?”. Janto sempre depois do concerto, nunca antes, e faço questão que jantemos todos juntos. O ar condicionado mata a agilidade vocal. Bebo água, muita água. Muito soro fisiológico. Mezinhas, chá e mel. Tento falar pouco, não cansar a voz. A minha estrutura: tenho um técnico de luz, um técnico de som. O de luz é o meu road manager e trata de toda a parte de marcações, check in, check out, viagens. Desaparece uma mala, e eu estou noutra.

 

Continua a falar como a menina que vivia em casa dos pais, a do primeiro encontro...

Percebo o que diz e fico feliz. Sinto que há o perigo de perder esta alegria de viver. Este breve milagre de gozar os pequenos momentos da vida. Isso não pode acontecer comigo. Isso apaga-me. E se me apagar, deixo de fazer sentido.

 

O disco chama-se “Canto”. Pensemos num canto biográfico. Quais são os fados que melhor dizem quem é?

“Escrevi teu nome no vento”, que a minha mãe cantava. Tornou-se um fado meu. “Disse-te Adeus”, uma letra da Manuela de Freitas que coloquei num fado de Raul Pinto. A Folha, que foi uma letra que fiz. (Os fados, todos os que escolho para cantar, são referentes a momentos e a lugares diferentes de mim. Preciso de ouvi-los todos. Assim como preciso de ouvir marchas populares, porque acho que aquela alegria, aquelas cores dizem muito sobre mim, sobre Portugal.) Também o Voltaste, da Beatriz da Conceição.

 

Aponta sempre Beatriz da Conceição como uma influência enorme.

A Beatriz é uma força que me faz transpor montanhas. Quando preciso de passar um desafio muito grande, num canto, numa gravação, quando estou perante uma situação derradeira, ela vem-me à cabeça.

 

Que fado cantaria para ela?

Cartar-lhe-ia A Folha, alguma coisa que eu fiz. É uma pessoa muito exigente, muito crítica, mas muito valente. Não suporta o acomodamento, o fraco. Disse coisas sobre a minha forma de cantar. É um património único, porque ela quase não criticava ninguém.

 

Por exemplo.

Eu cantava o António Baptista, a história de um contrabandista. O fado tem uma parte que diz [canta]: “Ai, valha-me Deus”. E eu só cantava, não dizia nada. E ela: “Não vês que ele está a dizer valha-me Deus? Não podes dizer ‘Deus’ como dizes pedregulho, mulher!”!

 

Estava a ensiná-la a interpretar, a sentir as palavras.

Quando são coisas muito importantes, lembro-me do exacto momento em que as aprendi. Ora, aprendi a cantar as palavras naquele dia, àquela hora, com a Tia Bia. Aquele foi o primeiro momento de consciência da poesia, da importância da palavra. Quando comecei a ouvir a Beatriz, perguntei à minha mãe, com muito medo: “Ó, mãe, será que faz mal eu não gostar da Beatriz?”. Toda a gente a tinha como o ex-libris – e é.

 

Consegue perceber porque é que não gostou?

Aquilo agrediu-me, entrou por mim adentro com uma força de que não gostei. A minha mãe riu-se: “Já, já vai gostar, não se preocupe” [risos]. Era uma miúda, como é que ia conseguir descodificar tudo aquilo? Ainda hoje não consigo. Em pouco tempo comecei a apaixonar-me perdidamente por ela. E hoje é a minha grande referência, a seguir à minha mãe. A minha mãe é minha mãe.

 

Apanhou uma vida fadista na Beatriz da Conceição, noutras figuras de referência que passaram pela cada de fados da sua mãe. Essa substância é diferente de cantar, simplesmente cantar.

É. Cresci aí. Fez-me ter respeito pelos mais velhos. Cantar bem e ter uma grande voz, pode ser muita coisa – e pode não ser nada. E geralmente não é nada quando as pessoas não olham para o outro. Aprendi a ter os pés na terra. Tudo pode mudar. Já vi tantas pessoas que vendiam tanto, que faziam tantos concertos, e de repente as suas marcas desapareceram. Nada é garantido. É preciso ser-se coerente. Esse é o maior desafio, é o meu maior desafio. Tem que se ir contra a expectativa de outros, dizer que não a coisas que parecem tentadoras.

 

Já está rica?

Não [risos].

 

Falou de coisas tentadoras e pensei: “Ofereceram-lhe um anúncio publicitário de milhões”.

Recusei uma publicidade. Não estou a evidenciar o recusar uma publicidade, mas o preservar uma imagem, um valor que é maior. A minha avó dizia: “O que interessa não é perguntar: ‘Qual é o mal?’, quando fazes alguma coisa. O importante é perguntares: ‘Qual é o bem?’”. Muda a perspectiva.

  

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014