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Anabela Mota Ribeiro

António Guterres

12.12.16

Numa entrevista, há uns meses, falava de um filme chinês que viu e de que gostou, «Yi- Yi». No filme um menino de seis anos tem a intenção de fotografar a verdade. Fotografa, então, a nuca das pessoas que, supostamente, nunca têm acesso à sua dupla face. Menino de seis anos, quais eram os seus intentos? Tinha noção da dupla face da realidade?

O meu imaginário infantil é de base rural. O meu avô materno, que teve três filhas, sentiu uma enorme alegria quando nasci e fez pressão junto dos meus pais para que passasse o máximo tempo possível com ele, lá nas Donas. Nos primeiros seis anos da minha vida passei um terço do ano na Beira Baixa. O imaginário rural é muito mais forte que o urbano; mas também muito mais ligado à terra, à realidade. Se quiser é como o granito, que é a rocha da minha região: dá-nos uma certa solidez nas convicções, permite-nos encarar a vida com um conjunto de certezas – mesmo que depois, pela vida fora, sejam postas em causa. Isto é, a realidade é tão rica, tão variada, tão forte, que normalmente não a pomos em causa. Não nos interrogamos se corresponde ou não à verdade.

 

A ausência é muito mais fantasista.

Exacto. Por ter vivido esta realidade, a minha infância não foi de grandes angústias ou dúvidas.

 

Foi uma infância de gineceu, com a mãe e as tias, a avó e a criada (como então se chamava)?

Não. Tinha duas figuras de identificação masculina muito fortes, o meu pai e o meu avô, que preencheram a minha primeira infância. Depois, na Beira, anda-se muito na rua, em contacto com os outros miúdos, que correspondiam a um leque social muito diversificado. A maioria deles, e os anos 50 eram anos de pobreza, com situações de dificuldade, de pé descalço. Essa realidade é também muito forte, muito dura até.

 

Como não era a sua realidade, admite que possa ter marcado uma diferença entre o que era o seu estatuto e o estatuto dessas crianças?

Marcou foi muito claramente um sentido de solidariedade com essas crianças, que eram os meus amigos. Que sofriam o que eu não sofria. Que tinham dificuldades que eu não tinha. E isso contribuiu decisivamente para mais tarde me dedicar à política e ter ideais socialistas.

 

Teve uma professora que o ensinou a ler aos quatro anos.

As professoras da aldeia eram muito amigas da minha mãe, e quando lá estava ia muitas vezes à escola. Por gosto.

 

É deliciosa a ideia do menino bem comportado que acompanha a senhora professora. Ela dizia que a sua letra era certinha e que não dava erros. Recorda essa professora?

Muito bem. Foi sobretudo com uma, Maria de Lourdes, que aprendi; a outra chamava-se Maria Angélica. A elas devo o ter sabido ler e escrever muito cedo.

 

O encontro precoce com as letras, a curiosidade sempre instigada, foram determinantes para o seu desenvolvimento intelectual futuro?

O facto de me ter interessado pela leitura tão cedo marcou-me pela vida toda. Ainda hoje, todas as noites, leio. E não leio dossiers.

 

Lê livros de história, não é?

Basicamente livros de história. A leitura foi sempre um hobby. Na infância lia as histórias próprias da idade. Na adolescência, além dos portugueses clássicos, uma série de outros autores que fui descobrindo. Steinbeck e Hemingway tiveram uma grande influência no fim da minha adolescência.

 

A presença do seu pai, nessas escolhas, era muito sentida? Consta que não comprou televisão para não o dispersar dos estudos. Queria que tivesse uma vida diferente daquela que ele teve.

Os meus pais fizeram um enorme investimento para que pudesse ter todas as coisas de que necessitava. Para poder ter êxito na vida em todos os seus aspectos. E sempre me rodearam de um afecto extraordinariamente forte. Penso que os afectos, a sua força e diversidade, são decisivos para a vida das pessoas. Eu não estudava à noite... Não terá sido por isso que os meus pais não compraram televisão.

 

O que é que o seu pai ambicionava para si?

Desejou que eu pudesse ter acesso a tudo aquilo que ele não teve. Ou só teve graças a uma vida de muito trabalho e grande sentido de responsabilidade. Teve onze irmãos, uma infância mais difícil, não pôde tirar um curso superior. 

 

Sentiu que tinha essa responsabilidade sobre si?

Não. As coisas aconteceram com naturalidade, nunca senti uma pressão particularmente forte.

 

Porque há, desde sempre, uma opção pela não transgressão. Como se a virtude fosse o seu dever. Era o menino bem comportado da letra redonda, o menino que só brincava depois de fazer os trabalhos de casa.

É capaz de ser uma imagem fantasiosa que as pessoas hoje dão, passadas algumas dezenas de anos.

 

Não corresponde à verdade?

É uma imagem estereotipada. Também fiz as minhas traquinices. Tive uma infância muito mais livre, estando na rua de manhã à noite, que a generalidade das crianças das cidades. E quando se tem liberdade, quando se não tem limitações, isso não nos obriga a transgressões desnecessárias. As transgressões decorrem muitas vezes dos limites que são impostos. Há uma frase do Brecht que diz: «Tão violento é o rio que tudo arrasta como as margens que o comprimem». Não tive margens que me comprimissem particularmente e por isso não tive necessidade de arrastar muita coisa no meu caminho.

 

Não ter necessidade de transgredir é um aspecto importante. Num texto antigo dizia: «Toda a minha vida se traduz na tentativa da minha mãe de me controlar e na minha de fugir ao controlo».

Isso é mais tarde. Na adolescência e juventude participei com intensidade em movimentos associativos de natureza diversa, muitos ligados à própria igreja, que correspondiam a uma ocupação muito significativa do meu tempo e me faziam escapar ao controlo familiar. Movimentos de trabalho social, em bairros de lata de Lisboa, na organização de colónias de férias para miúdos de fora de Lisboa. Os meus pais, e em especial a minha mãe, eram capazes de pensar que aquilo era tempo perdido.

 

Mas a sua mãe era católica.

Todas as mães têm tendência a controlar um pouco os filhos, acho isso normal.

 

Não é imediato, mesmo assim. Continuava a ser um aluno exemplar. Estava ocupado, mas em obras sociais de vocação católica.

Uma coisa são os resultados quando conhecidos. Outra é o que se passa antes de se conhecer os resultados. Podia ser visto como um risco ao normal funcionamento do meu curso.

 

Foi justamente esta convivência com os bairros de lata, a confrontação com a injustiça, que despertou em si o desejo de ser político.

Há, por um lado, a memória da injustiça que eu trazia comigo na impressão marcante do mundo rural nos anos 50, onde me sentia um privilegiado. Por outro, o choque com a realidade dos bairros de lata de Lisboa, que não tinham nada a ver com a minha vivência. Recordo quando organizámos uma colónia de férias na Fonte da Telha; o autocarro desceu o caminho de areia, e o grupo de que era suposto tomar conta, tinham 11, 12 anos, começou a correr, desenfreadamente, descendo a barreira, directo ao mar. Meteram-se dentro de água, rapazes e raparigas, completamente vestidos. Ficámos perplexos, organizadores e monitores, e depois, falando com eles, percebemos: nunca tinham visto o mar. Ou seja, viviam na Curraleira, a Curraleira é em Lisboa, e nunca tinham visto o mar. Isto é um símbolo de injustiça, de exclusão social profundíssima e chocante. 

 

De certa forma, foi a confrontação com situações desse tipo que o afastou da Física, a sua primeira fascinação?

Fez-me pensar que ser investigador em Física, o meu objectivo da altura, era capaz de ter uma utilidade social pouco relevante. Formei-me em engenharia, trabalhei fundamentalmente como economista, e dediquei-me à vida política com o objectivo de tentar, na medida das minhas possibilidades, que situações como essa pudessem desaparecer.

 

Houve um momento que em formulou, de si para si, que queria ser político?

Não um momento, mas uma transição. Houve um acentuar progressivo de um conjunto de preocupações. E no período que antecedeu e que sucedeu ao 25 de Abril houve um forte apelo da vida política em si. As coisas conjugaram-se, e encontrei na política a resposta a essa ansiedade.

 

Em 75 foi à União Soviética e, no regresso, percebeu que tinha de fazer uma opção entre a carreira académica e a política.

A opção é anterior, embora a sua expressão tenha sido nessa altura. Senti, não por ter ido à União Soviética, que o que estava a fazer no Técnico, como assistente, não tinha a seriedade que considerava indispensável – não tinha já tempo suficiente para isso. As duas coisas eram incompatíveis. Devia fechar uma delas e dedicar-me à outra. 

 

O seu empenhamento político, enquanto estudante do Técnico, teve sempre uma motivação católica.

Não tive uma actividade política significativa antes do 25 de Abril. O meu envolvimento foi em questões de natureza social. Fui lentamente, com isso, despertando para opções políticas. Entrei para o PS justamente no dia 25 de Abril de 74.

 

Onde eu queria chegar era a uma dicotomia essencial ao seu posicionamento político (e de síntese nem sempre fácil): Socialismo/ Catolicismo.

O problema não existe, nunca existiu. Também não quero fazer a demagogia de dizer que Cristo foi o primeiro socialista da Terra, (essas tentativas de contra-resposta são igualmente absurdas). São dois mundos diferentes. Ser cristão dá-nos uma matriz de valores. Ser socialista dá-nos uma visão política do mundo e uma vontade de intervir. Não há qualquer contradição entre uma e outra. Mas não creio que seja aceitável instrumentalizar, para a acção política, os valores cristãos. Há que distinguir os valores do Evangelho do comportamento concreto que em cada momento uma instituição, a Igreja Católica, tem. Essa confusão não pode ser feita. É verdade que em muitos momentos a Igreja Católica teve comportamentos ligados a forças conservadoras, é verdade que a Inquisição existiu. Como também é verdade que há uma teologia da libertação, que a Igreja esteve por detrás de movimentos revolucionários na América Latina. Em nenhuma das circunstâncias, à Direita ou à Esquerda, faz sentido instrumentalizar a Igreja ou as convicções religiosas. Se quiser, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

 

Portanto, a conjugação de um e de outro não foi nunca um problema para si. O socialismo que reclama tem os valores de solidariedade da Esquerda e os valores de iniciativa da Direita.

É a síntese moderna do pensamento socialista. O pensamento socialista moderno fez uma síntese entre os valores tradicionais da social-democracia, a solidariedade, a justiça social, com os valores do que se exprimiu sobretudo do outro lado do Atlântico, com filósofos como John Rawls, ou Dworkin, ou Michael Walzer. Em todos eles há uma consciência muito forte da importância da iniciativa e da actividade individuais. Não é possível construir hoje uma sociedade moderna sem contar com isso. O objectivo último de qualquer projecto político é a felicidade das pessoas. A felicidade das pessoas passa pela sua realização individual. Agora, essa realização pode ser feita enquanto indivíduos ou enquanto cidadãos. Eu prefiro que seja feita enquanto cidadãos solidários com outros cidadãos.

 

Porque é que o senhor não resultou num social-democrata?

Eu sou um social-democrata. É uma questão de pura nomenclatura. Em Portugal chama-se Socialismo aquilo que é o movimento social-democrata europeu. O que não tem nada a ver com a existência em Portugal de um partido chamado Partido Social Democrata.

 

Atendendo ao passado, seria mais fácil situá-lo no Partido Social Democrata para onde transitaram elementos proeminentes do Grupo da Luz e da SEDES, como Marcelo Rebelo de Sousa, por exemplo. A social-democracia que estes perfilharam estava mais conotada com a Direita e os valores conservadores. O senhor voltou à Esquerda e filiou-se no PS. Porquê?

Porque as pessoas têm vivências diferentes, experiências diferentes, valores diferentes. A SEDES é um exemplo disto. Houve um momento em que estive muito activo, depois desiludi-me um pouco, e afastei-me. Das pessoas que colaboraram, com vontade de mudança, e com muitas ingenuidades, umas tinham valores conservadores abertos à mudança e outras tinham valores de transformação mais radical da sociedade.

 

O senhor nunca foi tido por radical.

Sempre procurei ser moderado. A moderação na acção é uma condição indispensável para executar uma radicalidade de convicções. Quando temos convicções profundas, podemos ser moderados na acção. Normalmente é-se muito radical na acção quando não se está bem seguro daquilo que se quer.

 

Esse é o seu modus operandi.

É. Devo dizer-lhe que estou cada vez mais chocado com as injustiças do mundo de hoje. É intolerável que no continente africano uma larga parte da população esteja condenada à morte, à fome e à guerra. Decorre em grande medida de uma ordem económica e de uma política internacional imposta por grandes potências e interesses. Tenho uma visão cada vez mais radical na condenação desta situação. Mas compreendo que não adianta nada armar-me em terrorista. É muito mais útil estar na União Europeia procurando, gradualmente, fazer algumas reformas que ajudem a combater esta situação, sabendo que são sempre limitadas, do que fazer actos quixotescos que não têm qualquer utilidade. Não está em causa para nenhum de nós, a não ser que se seja megalómano, querer salvar a humanidade. Mas é muito importante fazer coisas que ajudem pessoas, pessoas concretas, a ter uma vida melhor.  

 

Salgado Zenha foi uma figura essencial ao seu percurso político. Foi uma espécie de pai putativo?

Pai tenho um, que desempenhou totalmente o seu papel.

 

Referia-me ao quadro político, evidentemente.

Em termos políticos pode dizer-se que teve para comigo um papel muito paternal, é indiscutível. Aprendi imenso, devo muito à sua generosidade, foi a figura política que mais me marcou. Penso, aliás, que é uma pessoa a quem os portugueses não fizeram justiça, de quem têm uma imagem desfocada. Era um homem tímido, as pessoas tímidas têm por vezes uma certa agressividade, e foi essa agressividade que passou no seu contacto com a opinião pública. Ele que era um dos mais tolerantes dos homens políticos que já conheci, deixou uma imagem oposta.

 

Havia a cúpula socialista, eminentemente soarista, que olhava de desdém o seu catolicismo. Salgado Zenha fazia de si uma espécie de protegido e deu-lhe a possibilidade a chegar às bases e trabalhar directamente com elas.

Não. Foi muito mais importante que isso.

 

O senhor, citando-o, dizia: «Há três maneiras de sobreviver à desilusão. Dar um tiro na cabeça como o Antero ou retirar-se como o Herculano. A minha solução é mais pequeno-burguesa: vivo como cidadão e intervenho quando acho oportuno».

É a tal coisa: não vamos salvar a humanidade, vamos fazer aquilo que pudermos.

 

Essa opção não é também a mais desapaixonada?

Não, ela pode ser profundamente apaixonada. É a paixão pelo concreto, e não pelo ideal abstracto, de fazer coisas que se traduzam numa melhoria da vida dos outros.

 

É um homem apaixonado, ou emotivo?

Sou um emotivo, inquestionavelmente.

 

Se me permite, penso que o senhor é muito menos emotivo do que parece. É um homem profundamente racional que sabe exactamente o que quer. Ter recusado, por exemplo, em 78 o lugar de ministro para que o convidaram, e que era apetecível para qualquer homem com intenções políticas, revela justamente um método e uma pragmaticidade que o futuro confirmou.

Pelo contrário. Do ponto de vista pragmático, teria feito todo o sentido aceitar. Simplesmente não estava ainda preparado. Era importante fazer outras experiências, ganhar outra maturidade antes de exercer essas funções. Ter um pensamento razoavelmente organizado, e devo muito isso à vida universitária, esconde uma natureza que é bastante mais emotiva. As pessoas que me conhecem sabem todas isso. Mesmo no aspecto racional sou um intuitivo, não sou um dedutivo. Primeiro faço uma escolha de acordo com a intuição, e depois posso arranjar um conjunto de argumentos para a justificar. Hoje todos reconhecem que a emoção é uma componente muito importante da própria inteligência.

 

Aquilo em que pensei quando soube da recusa em 78, e de outras que entretanto aconteceram, foi que estava a guardar-se para coisa melhor.

Não, não, isso não é verdade. Até era muito atractivo o convite que me foi feito.

 

Refreou a sua ambição em nome bom do senso. O senhor é ambicioso.

Depende do conceito de ambição. Se me perguntar se tenho alguma ambição política para o futuro, respondo-lhe com total verdade que não tenho nenhuma. Se quiser, se alguma coisa me custou recusar foi a Comissão Europeia. Se tivesse uma lógica de ambição pessoal, deveria ter aceite naquele minuto. Entendi que não o devia fazer.

 

A verdadeira razão porque não o fez não é, também ela, pessoal? A viuvez recente e a sua filha adolescente, que não queria sujeitar a um desenraizamento, não foram realmente as razões da recusa? Falou-se disso como razões privadas mas decisivas.

Não. É uma elucubração que não tem sentido. Nem alguma vez poderia sobrecarregar os meus filhos com o peso de entrevarem as minhas decisões políticas. A questão tinha a ver com a vida política nacional e com a forma como a entendia. Achei que o que estava a fazer aqui me criava obrigações de que não podia fugir. Custou-me muito dizer que não. E por isso me custa quando hoje alguns dizem que não penso noutra coisa senão nisso.

 

Que planos é que tem para o seu futuro?

Continuar a exercer as minhas funções com o máximo de dedicação e empenhamento enquanto for possível e útil.

 

Está numa fase nova da sua vida, a título privado.

Ah, aí tenho imensos planos.

 

Planeia ter um filho?

Não está na ordem do dia. Quer a Catarina, quer eu temos filhos, e gostamos imenso dos nossos filhos e dos filhos um do outro.

 

O que ia perguntar-lhe era se, estando numa nova fase da sua vida, não lhe apetecia ter toda uma nova vida, com menos responsabilidades e uma maior disponibilidade para a viver.

É evidente que o exercício de funções políticas com esta responsabilidade traduz-se em limitações. Mas essas limitações foram aceites e compreendidas por ambos. Faço um enorme esforço no sentido de reservar o máximo de tempo possível para a família. Assim como faço um enorme esforço no sentido de garantir e preservar a privacidade da minha família e de nunca utilizar a família para objectivos de natureza política.

 

Como reagiu quando o acusaram de encenar o beijo no congresso?

Mal. Se há coisas que me deixam profundamente furioso, essa foi uma delas.

 

Como é que explica que os jornalistas tenham sabido do seu percurso e intenção?

Não explico nada. Não faço a mínima ideia. A coisa mais natural do mundo é um homem dar um beijo à sua mulher. Nem nunca percebi porque é que se levantou tanto bruá a esse respeito.

 

Pronto, não está mesmo à espera que isto caia de madurinho para se dedicar a uma vida mais sossegada.

Não, não estou nada à espera.

 

Não é muito cansativo? Não há uma altura em que o extraordinário prazer e paixão dos primeiros tempos sucumbe à erosão dos dias e se transforma num fardo?

A fase mais cansativa, mais difícil e mais dura foi a primeira.

 

Eu pensava na erosão inquestionável e inevitável aos dias.

Uma coisa é a erosão junto da opinião pública.

 

E a erosão pessoal?

Quem corre por gosto não cansa.

 

Tem sempre resposta pronta?

Não, nem sempre.

 

Tenho sempre a impressão de que há uma espécie de cassete.

Não, a cassete é repetitiva, é pré-programada e por isso não dá para respostas prontas e rápidas.

 

Não me referia especificamente a esta conversa, mas a todas a que vou assistindo. O tom de voz, para começar, e o tipo de resposta, remetem, mais uma vez, para o menino bem comportado e certinho que nunca se descontrola, que não se emociona para além daquilo que é suposto.

Posso emocionar-me. Procuro é continuar bem-educado. É uma coisa indispensável na vida política: que se mantenha um conjunto de regras, que se não insultem as pessoas. Comportamentos menos razoáveis resultam na erosão do prestígio da vida política nos cidadãos. Ninguém gosta de ver responsáveis políticos a insultar-se ou a dizer barbaridades uns sobre os outros. Há uma contenção e decoro que é indispensável manter.

 

Tem sido alvo de ataques permanentes, os índices de popularidade não lhe têm sido nada favoráveis. Como é que, na verdade, reage às críticas? É preciso uma auto-confiança extraordinária.

É, é. Quando se está na vida política é preciso distinguir duas coisas: uma são os ataques que nos dirigem e que têm por objectivo destruirmos ou derrubar-nos. Em relação a isso é preciso ter uma grande serenidade de espírito, e a auto-confiança ajuda. Outra coisa são as críticas que nos são dirigidas por pessoas independentes intelectualmente, e para elas é necessário ter uma grande atenção. Nem sempre é fácil perceber onde estão as duas coisas, mas a distinção é muito importante.

 

Insisto no efeito que realmente tem o que nos últimos tempos se tem dito e escrito sobre si.

Quando isso provém de pessoas pelas quais não tenho respeito, não me afecta rigorosamente nada.

 

Mas faz mossa.

Quando provem de pessoas por quem tenho respeito, naturalmente que me preocupa, e, mais do que fazer mossa, tem de me levar a reflectir.

 

A questão da confiança é importante. É precisa uma dose generosa de amor-próprio para dizer: «Eu sou o mais apto para desempenhar o cargo de primeiro-ministro».

Não digo que sou o mais apto. Digo que nas circunstâncias que ocorreram eu é que estava em melhores condições para o fazer. São lugares de muita responsabilidade e é inquestionável que se temos uma angústia permanente em relação a nós próprios rapidamente soçobramos.

 

E não tem.

Angústia em relação a mim próprio, não. Tenho muitas angústias em relação a coisas que acontecem, a pessoas que sofrem profundamente. Os meus momentos de angústia têm a ver com situações concretas que não consigo resolver.

 

Enquanto pai, que tipo de angústia experimenta? Os pais angustiam-se com o futuro dos filhos, com o problema da toxicodependência, com a entrada na universidade e no mercado de trabalho.

Não sinto angústias em relação aos meus filhos. Um deles é adulto, tem o seu caminho traçado. A minha filha tem 16 anos e eu tenho uma enorme confiança nela.

 

Ela tem namorado?

Sobre essa matéria, não lhe vou dizer nada. Faz parte da reserva de intimidade da vida privada onde procuro não tocar.

 

Tinha curiosidade em saber como é que se lida com a circunstância de estar em casa a lanchar com o namorado da filha.

Nunca tive essa experiência. Mas já tive a experiência de o fazer com a namorada do meu filho, e é uma coisa perfeitamente natural.

 

A Mariana é uma menina.

Ser menina corresponde a uma forma de ver as coisas que vai estando ultrapassada.

 

Como é que falou à sua família e amigos de uma nova relação na sua vida?

Limitei-me a contar e a reacção foi de naturalidade.

 

A sua mulher deu uma entrevista recentemente na qual dizia que os familiares e amigos se riram quando lhes contou que namorava consigo. O que acha disto?

Também natural. O que é essencial é a relação entre as duas pessoas e a maneira como a relação é investida e vivida. O resto é colateral. 

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2002