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Anabela Mota Ribeiro

Curso de Cultura Geral (29 Jan 2017)

29.01.17

Para recorrer a uma imagem poética de Ana Luísa Amaral, podemos dizer que o mundo e as pessoas, como as cebolas, são feitos de camadas. Que se complementam, contradizem, enriquecem. O que fica, da vida que vamos fazendo, dos encontros, das descobertas, é um rasto, um caminho de pontos para ligar. Neste programa, seguimos o rasto, os caminhos de uma professora e poeta, de um antropólogo, de uma artista plástica. E se apresentá-los assim é só mostrar uma das camadas, a que está mais à superfície, isso dá um primeiro mapa do mundo cultural destas pessoas. Ser culto é ter lido Shakespeare? Como é que o encontro com uma família judia, americana, pode ampliar o mundo e as possibilidades? E como é que os filmes de Truffaut podem constituir uma experiência tão singular e produzir um estado febril? 

 

A lista de Adriana Molder, artista plástica

1- A retrospectiva do Edvard Munch no MoMA, por causa do meio do caminho;

2- Ouvir o "Rio Line" dos Pop Dell'Arte (1987) na Rádio Universidade Tejo aos 12 ou 13 e entrar na adolescência;

3- Ver documentários sobre o Richard Serra e ouvir o Richard Serra a falar na Gulbenkian;

4- Ler A Paixão de Jane Eyre (de Charlotte Bronte, 1847) a ouvir os Durutti Column, estando doente com febre;

5- Todos o anos rever o The Ghost and Mrs. Muir (de 1947) do Mankiewicz;

6- Ver e rever a pintura de Carpaccio (1465/ 1525), em Veneza (Scuola di San Giorgio degli Schiavoni), em Madrid (Museu Thyssen-Bornemisza) e em Berlim (Gemaelde Galerie);

7- Acho que já vi o Shining do Kubrick (1980) para aí umas 50 vezes...;

8- Ficar doente depois de ver certos filmes do Truffaut;

9- Retrospectiva do (Odilon) Redon (1840-1916, o mais importante pintor do Simbolismo) no Grand Palais (2011);

10- Andar a pé sem destino e não fazer nada durante dias seguidos.

 

A lista de Ana Luísa Amaral, poeta e professora universitária

1- O cavaleiro da Dinamarca, de Sophia de Mello Breyner (1964);

2- Toda a poesia de Emily Dickinson;

3- Sétimo Céu, peça da dramaturga britânica Caryl Churchill (1979);

4- As peças (quase todas) e os sonetos de William Shakespeare;

5- Viagem a Manaus;

6- A poesia toda de William Blake;

7- Novas Cartas Portuguesas (1972), de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa;

8- O acto “O coro dos escravos hebreus”, da ópera Nabucco (1842), de Verdi;

9- A tapeçaria A Dama e o Unicórnio;

10- O filme Tempos Modernos, de Charlie Chaplin (1936).

 

A lista-texto de Miguel Vale de Almeida, antropólogo

1- Talvez por ser antropólogo, não consigo levar muito a sério a distinção entre cultura 1, no sentido letrado e erudito, e cultura 2, no sentido antropológico. Nem a distinção entre cultura 1 e o que hoje se designa por cultura popular (“pop culture”), uma cultura 3;

2- O prazer puro de usar a semanada para ir à papelaria da esquina comprar a revista Tintim da semana. E, nas férias de Verão, aos nove anos, montava uma biblioteca com todos os livros da casa de férias, atrás duma tábua de engomar. Alugava-os à família, excepto “Os Cinco”, que devorava eu próprio;

3- Acho que a experiência cultural por excelência talvez tenha sido o 25 de Abril. Aos 15 anos estava na UEC, namorava a filha de um conhecido pintor do PCP, um ambiente que me expôs a uma noção de beleza e cultura como algo simultaneamente democrático e engajado em mudar o mundo. Com o meu grupo de amigos, pedimos ao José Gomes Ferreira para irmos a casa dele e bebemos as suas palavras como iniciandos perante um mestre. Escrevíamos e desenhávamos, entusiasmávamo-nos com livros e, ao mesmo tempo, fazíamos campanhas de alfabetização. O resto, o estritamente político-partidário, pouco interessava, tanto que acabou depressa;

4- Os ciclos de cinema da Gulbenkian – ver todo o Hitchcock e todo o Visconti;

5- Em 1977-78 fui fazer o 12º ano nos EUA e a minha vida lá, com uma família judia praticante, foi decisiva para a minha (re)formação/formulação cultural: aprendi que poderia ter sido outra pessoa, de outra cultura, ganhei distância saudável em relação a Portugal (nunca a perdi), o meu mundo passou a falar-se também em Inglês, e foi decisivo para depois encontrar a antropologia como gosto e vocação: descobri na biblioteca da minha família americana Letters from the field de Margaret Mead; 

6- Viajar. Interail. Descobrir tudo o que não havia em Portugal – museus decentes, pintura, flanar. Beber Picasso em Barcelona, correr o Prado e deixar-me parar quando alguma coisa me interpelava. O mesmo em Washington, em Londres, em Paris;

7- O curso de formação artística da SNBA – as aulas de História da Arte do Rui Mário Gonçalves. O curso do AR.CO. Perceber arte era praticá-la, incorporá-la;

8- Retiros na zona saloia, em Porto Covo, etc., com o meu melhor amigo (hoje escritor consagrado) em que simplesmente “íamos escrever”. Contos, novelas, o que fosse. Era uma actividade lúdica. Nem me passava pela cabeça publicar (ou expor, no caso da pintura);

9- Quem me ajudou [no coming out], e a politizar a coisa desde o início, foi a banda The Communards. Isto é, foi a dançar e a sentir a batida, o lamento, a revolta, a esperança. Felizmente também apanhei os anos 80 lisboetas, o Bairro Alto, a revolta pela criatividade pop. Não queria uma identidade homossexual baseada em sofrimento ou em exemplos literários de classe alta e alta cultura;

10- As primeiras experiências de trabalho de campo, ainda na licenciatura: festas dos rapazes e de Santo Estêvão no Inverno nevado duma aldeia transmontana, e os últimos caçadores de baleia nos Açores.

 

Miguel Vale de Almeida

29.01.17

Miguel Vale de Almeida é antropólogo, professor do ISCTE, ex-deputado independente do PS quando da aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Pesquisador nas áreas do género e sexualidade, e dos estudos pós-coloniais, o seu último livro é “A Chave do Armário: Homossexualidade, Casamento, Família”.

  

Foram quatro anos em que as pessoas e o país empobreceram, a dívida aumentou, o número de emigrantes chegou quase ao meio milhão, o tecido social se alterou. Mas o impensável não há muitos meses aconteceu e Passos Coelho e Paulo Portas obtiveram mais votos do que Costa. Estes resultados são uma legitimação das políticas dos últimos quatro anos? 

Não são, porque a direita perdeu muitíssimos votos e deputados e porque o que genericamente se designa como esquerda obteve a maioria. São, sim, em parte, o convencimento da teoria do “não há alternativa” e do medo. Mas o agregado PS, CDU, BE é a prova do descontentamento.

 

Foi a coligação que ganhou ou foi o PS que perdeu? Quem ganhou? O Bloco? Ganhou o medo?, o medo atávico dos pobres e pensionistas de perder o pouco que têm?

Não houve vencedores claros. Tanto a coligação como o PS perderam, e as subidas à esquerda do PS não são vitórias no sentido rigoroso do termo.

 

Faz o sentido que se ouviu, sobretudo nas redes sociais, vindo da esquerda: que o povo acordou com síndrome de Estocolmo (em que a vítima passa a ter simpatia pelo agressor) ou isto quer dizer que o PS não se renovou e continua a ser lido como o partido de Sócrates e da bancarrota? 

Não há dúvida de que o PS sofreu com os factos, por um lado, e com a campanha mediática e populista, por outro (sendo mais relevante a segunda), em torno da governação anterior e do caso Sócrates. Como não há dúvida de que a “crise” e a sua gestão empurram as pessoas para reações de medo muito facilmente manipuláveis.

 

O PS foi o mais fragilizado da noite eleitoral? Dizer o PS é o mesmo que dizer António Costa? O problema principal do PS foi qual?, a campanha, o não se afirmar como alternativa, as fracturas internas, o peso do passado?

A campanha do PS não foi boa, no sentido em que se deixou cair na armadilha de prestar contas em vez de as exigir ao governo. Ou, dito de outra forma mais exacta, a campanha da coligação foi perversamente boa, conseguindo evitar ser ela a ser submetida ao escrutínio.

 

Passos Coelho foi subestimado? Fez um bom trabalho nestes quatro anos? Teremos passistão (depois do percurso como primeiro-ministro, a presidência)? Quais são as grandes qualidades de Passos? E de Portas?

Não lhes vejo quaisquer qualidades. Não subscrevo a ideia de que as pessoas e os políticos tenham qualidades intrínsecas, que não sejam sempre e desde logo qualidades éticas, de valores e comportamento. Passe o exagero – não pretendo comparações – é como dizer que Hitler tinha grandes qualidades como ditador.

 

O PS tem a possibilidade de fazer uma maioria estável com a esquerda? Ou instável? E pode fazer um compromisso eventual com a direita sem trair o seu eleitorado? Qual é o cenário mais provável? Um acordo possível (solução a prazo) até à próxima hecatombe? Novas eleições para quando?

O PS vai definir-se como o partido do centro, com a coligação e o governo minoritário de direita de um lado, e o bloco BE/CDU do outro. Costa será a pessoa certa para jogar o equilíbrio e evitar que as eleições antecipadas, que certamente acontecerão, dêem maioria absoluta à direita através da vitimização. Um governo de esquerda só é viável com uma plataforma e um compromisso negociados e assumidos com tempo, algo que não aconteceu na fase pré-eleitoral, mas poderá acontecer ao longo dos próximos meses em função de eleições antecipadas.

 

Este pode ser o começo de uma nova maneira de fazer política?

 

É muito cedo para o dizer, mas com Costa, com o reforço de BE/CDU e com a fragilização da direita, poderemos ter uma oportunidade para maiores e melhores definições. O novo parlamento poderá evitar políticas de austeridade, defender o Estado Social, revogar leis iníquas do anterior governo e avançar com os direitos, nomeadamente das mulheres e LGBT. Graças ao juntar de forças PS, BE e CDU. Já no campo do Euro e do Tratado Orçamental, o PS distingue-se dos partidos à sua esquerda, claro. Este sistema tripartido ficará mais claro agora, goste-se ou não.

 

Como é que este novo quadro político vai contaminar as presidenciais?

Sou apoiante da candidatura de Sampaio da Nóvoa. Para ela sobreviver e crescer, precisa do apoio do PS e de outros partidos. Se isso acontecer, as presidenciais poderão ser mobilizadoras de uma esquerda alargada. Se isso não acontecer, está aberto o caminho para o triunfo de um fenómeno televisivo e para o reforço simbólico da direita... Nunca apoiaria Maria de Belém pelo seu comportamento político em questões de género e sexualidade.

 

Acredita deveras que será um novo ciclo, o que aí vem? Parecemos esgotados, desmobilizados. Ou não, e isto é uma visão pessimista?

O novo ciclo já começou há quatro anos. A destruição do tecido e do contrato sociais em que vivíamos foi uma autêntica revolução. A transmissão da ideia de que é assim e só pode ser assim triunfou em larga medida. Desejo que a nova correlacção de forças mude isso.

 

Quais são os grandes desafios da próxima legislatura?

A ruptura com a “síndrome 25 de Novembro”. Até agora só a esquerda do PS e o universo do Livre/Tempo de Avançar demonstraram vontade de o fazer.

Outras prioridades: o emprego, a recuperação do Estado Social, a garantia dos direitos humanos plenos no plano do género e da sexualidade. É nas relações interpessoais, afectivas, familiares e de parentalidade que se resolve grande parte da questão da liberdade e da responsabilidade, e da igualdade de oportunidades como garantia de uma sociedade decente.

  

Uma esmagadora maioria dos portugueses perdeu parte dos salários, reformas, rendimento, conforto. Foram anos em que o pais empobreceu. Qual é a sua definição de pobre na conjuntura actual?

O massacre social e económico a que os portugueses foram sujeitos alargou as percepções de pobreza e provavelmente vai levar a novas distinções: “miserável”, “excluído”, “pobre”, “remediado”. É óbvio que a pobreza extrema afecta sobretudo velhos, mulheres e minorias étnicas, o que “ajuda” a que haja uma cegueira generalizada, devido ao preconceito face a estes grupos. É urgente resolver isso. Nunca percebi como um país europeu de apenas 10 milhões pode ter tanta desigualdade e baixa qualidade de vida.

 

Para além dos números, o que mudou na sociedade portuguesa nos últimos anos? Mais medo, mais contenção, mais apatia?

O grande triunfo da direita, com o apoio óbvio de grandes interesses económicos e de muita comunicação social por eles dominada, foi ter produzido um efeito de hegemonia, em que quem é vítima das políticas implementadas acaba por as defender como a ordem natural das coisas, alterando a sua capacidade cognitiva sobre a realidade e as causas das suas condições de vida.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Outubro de 2015 

 

 

Curso de Cultura Geral (22 Jan 2017)

23.01.17

Pensar em objectos e experiências de cultura que nos tocaram, que nos formaram, é uma maneira de pensar nas nossas coisas preferidas, nas nossas favorite things, como no filme "Música no Coração". São essas que aparecem quando precisamos de nos confortar, salvar. Matilde Campilho, uma das convidadas deste programa, falou-me deste título e desta relação entre as coisas que cultivam e as coisas que salvam. A cultura salva? Pedro Mexia, outro poeta, apontou na sua lista de 10 favorite things mundos aparentemente inconciliáveis: o dos The Smiths e o de Holderlin. Frederico Lourenço considera que toda a música de Bach é sobre Deus, e agora que se dedica à tarefa de tradução da Bíblia, e está cada vez mais envolvido com aquelas palavras, pessoas, enredos, a Bíblia surge-lhe como o livro dos livros. 

 

A lista de Frederico Lourenço, tradutor e professor universitário:

1. O primeiro objecto de cultura da minha vida foi o piano;

2. A seguir ao piano veio o cravo, que ainda hoje é o meu instrumento;

3. O meu artefacto cultural de eleição é o «Cravo Bem Temperado» de Bach. Acho que toda a música de Bach é sobre Deus;

4. O estudo do Grego, há 32 anos. Sou professor de Grego há 27 anos. O Grego é a minha vida;

5. Homero, Platão;

6. Obra poética de Sophia de Mello Breyner Andresen;

7. Obra poética de António Franco Alexandre;

8. Nicolas Poussin e Claude Lorrain: dois pintores franceses que desenvolveram a sua estética em Itália;

9. O trabalho que estou actualmente a fazer - a tradução do Antigo Testamento - fez nascer uma nova paixão: a língua hebraica;

10. A Bíblia: trata-se do Livro dos Livros.

 

A lista de Matilde Campilho, poeta:

1. O discurso do Leonard Cohen em 2011, quando foi receber o prémio Príncipe de Asturias de Las Letras;

2. As fotografias do italiano Luigi Ghirri, em especial a série Kodachrome;

3. O filme Paris, Texas do Wim Wenders;

4. Um dos poemas que mais repito é do Arsenii Tarkovsky: “Nenhum mal se perdeu,/ Nenhum bem foi em vão,/ À luz clara tudo arde/ Mas não pode ser só isto.”;

5. A canção “Thunder Road” do Bruce Springsteen;

6. A primeira vez que vi uma pintura do Jackson Pollock, devia ter uns 12 ou 13 anos. Foi em Londres e foi a minha avó quem me deixou ir à rua sozinha;

7. A minha avó. Tudo o que ela me contou durante 32 anos:

8. Aquele excerto dos “Cuadernos de Africa” do pintor Miquel Barceló em que ele diz: 'Qué fácil es vivir sin críticos de arte. Ni fútbol los domingos. Ni misas, ni periódicos. Solo con la vida mismo’;

9. A pintura do Cy Twombly. O poema e a pintura como uma coisa só: que beleza;

10. A rua. A vida lá fora. Os passeios que faço sozinha. Ou que fiz com o poeta Carlito Azevedo pelas ruas do centro do Rio de Janeiro.

 

A lista de Pedro Mexia, poeta e crítico literário: 

1. Paris, Texas, Wim Wenders;

2. A integral Robert Bresson na Cinemateca;

3. Brideshead Revisited na TV;

4. O diário de Pavese;

5. A poesia de Holderlin;

6. Krapp's Last Tape, de Samuel Beckett, com Michael Gambon;

7. Songs of Love and Hate, Leonard Cohen;

8. The Smiths, a discografia completa;

9. A Viagem de Inverno, Schubert; 

10. Mark Rothko na Tate Modern.

 

Ler no Chiado (28 Jan)

21.01.17

Ana Kiffer é professora de literatura da PUC-Rio, fez doutoramento sobre Artaud, gosta de trabalhar sobre cadernos, a rasura, o transbordamento. 

Maria Ribeiro é actriz e realizadora e, segundo Gregorio Duvivier, "escreve como conversa e conversa como ninguém". O seu livro de crónicas "Trinta e Oito e Meio", que foi um êxito no Brasil, está já editado em Portugal. 

O Valter Hugo Mãe, o Valter, dispensa apresentações. Escreveu recentemente sobre "Homens imprudentemente poéticos". 
Vou conversar com eles no dia 28 de Janeiro, às 16h, na Bertrand do Chiado, sobre livros, claro, os deles, os dos outros. É um sábado e seria bom rir e pensar juntos, numa ponte atlântica Lisboa-Rio. 
Ler no Chiado é uma iniciativa da revista Ler e da Bertrand, todos os meses, com organização e moderação de Anabela Mota Ribeiro. Entrada livre. 
 

Inauguration de Obama (2009)

19.01.17

1.

Quando esta manhã saí para a rua, perguntei-me o que estaria a fazer naquele instante Barack Obama. Estaria a ver a mesma neve que caía num movimento oblíquo? Os carros com camadas intactas onde se podia escrever com o dedo Hope ou Change ou Yes, We Can. Os jornais amontoados à porta de lojas de esquina, protegidos por um plástico grosso e baço. As publicações que o trazem na capa, com aquele sorriso que passa a ser um sorriso à Obama – ou seja, um sorriso de quem acredita que é possível e tem a decência written all over him.

Era cedo, menos cinco horas que em Portugal. Eram cinco da manhã, em NY, quando pela primeira vez vi a neve a cair. O mais certo é que Obama estivesse a dormir o sono dos justos. Eu estava jet-legada, mas ficar em casa era a última coisa que me ocorreria. Assim que ficou claro, fui ver o bairro a acordar.

Quando cheguei, sábado à tarde, ele estava já a caminho de Washington DC. Tinha iniciado um prelúdio de três dias para a tomada de posse – a que chamam inauguration. O que é que é inaugurado? Um mundo novo, novo em folha, querem acreditar milhões de pessoas que depositam nele uma expectativa ilimitada. Um mundo novo para a Sasha e a Malia. Um mundo novo para a Margarida e o Francisco, os filhos da Jwana e do Domingos, que vieram celebrar de perto esse dia em que um afro-americano é investido presidente dos Estados Unidos.

Margarida, de quase três anos, já sabe quem é Obama!, O-ba-ma.

Eu estava num avião quando ele largou de Filadélfia, às 11 e meia da manhã, num comboio vintage. Um comboio que foi construído, provavelmente, por negros como ele. Foi, isso é certo, um comboio construído numa altura em que a ascensão de um negro à Casa Branca era impossível.

Perdi o arranque da viagem. Mas no aeroporto, enquanto fazia fila para mostrar o passaporte, as televisões estavam sintonizadas na CNN e mostravam as centenas de pessoas que tinham feito fila junto às linhas de caminho de ferro. Aqueles que suportavam estoicamente um frio de rachar para ver passar o comboio. Estavam menos oito, menos dez graus em NY, devia estar o mesmo nesse caminho por onde passa a esperança. Essa era a única razão pela qual se estava horas junto ao caminho de ferro: para acenar a um ícone, para depositar nele toda a esperança num mundo melhor.

Foi só no dia seguinte, hoje, domingo, agora, que li nos jornais o que ele e o seu vice-presidente disseram durante a viagem. Biden disse: “Às vezes, é difícil acreditar que vamos voltar a ver a Primavera. Mas vou dizer-lhes: a Primavera está a caminho com esta nova Administração”. Obama citou Lincoln, sem citar, quando falou de um apelo aos nossos “melhores anjos” (uma expressão do 16º presidente americano). Para nos ajudarem a lutar contra o preconceito, a enfrentar os dias de dificuldade que temos pela frente.

A odisseia de Obama é a nossa odisseia. É a minha. Ele usou o plural: we can. A vitória dele devolveu-nos a certeza de podermos acreditar.

Domingos e Jwana nasceram quando, em Portugal, se acreditou num mundo novo. Domingos nasceu uns dias antes de 25 de Abril de 74 – a mãe, que embarcou também nesta aventura, dizia que o filho era o arauto da revolução. Perguntar-lhe desde quando tem uma consciência política, é o mesmo que perguntar-lhe desde quando tem consciência de si. Distribuía panfletos com três anos em plena reforma agrária, e transitava da Voz do Operário para a Soeiro Pereira Gomes todos os dias, com a facilidade de quem vai para casa depois da escola. Jwana nasceu poucos meses depois, no Canadá, filha de uma canadiana e de um português. Mais do que consciência política, talvez tenha tido, desde que se lembra de si, a impressão de ser estrangeira, e de o mundo inteiro ser o seu mundo. As canções infantis, que agora reproduz ao ouvido da filha de três anos, eram canções em inglês; a manteiga de amendoim, com que barra a torrada do pequeno-almoço, é uma memória longínqua e quente do tempo em que era pequena. “Isto” é também a sua casa.

Amanhã, se tudo correr como previsto, estaremos com um bebé de colo, que é preciso amamentar de xis em xis horas, a caminho de DC. Estaremos numa motor house, mais conhecida por caravana. Seremos uns tugas sem farnel que vão para Washington de roulotte dizer que este futuro também nos pertence. Seremos mais uns entre os dois ou três milhões que são esperados, e que esgotaram todos os hotéis num raio de 150km. Também poderemos estar numa excursão organizada por chineses, a 30 dólares por cabeça, para sermos testemunhas oculares (o que quer que queira dizer oculares quando se está numa praça gigante com uma parada lá muito ao fundo) desse dia em que a Mudança começou (dirá a Jwana), em que a Esperança tem cabimento (dirá o Domingos).

Quando saímos do aeroporto, um retrato de George W. Bush estava dependurado na última parede, antes da saída. Uma fotografia de dimensões reduzidas, pouco maior que A4, com uma moldura dourada. Mr. Ex-Presidente aparece sorridente, com um ar um pouco silly – o que se pode dizer de um presidente que sofreu o vexame supremo de levar com um sapato na tola. (E isto é um diário, não é uma notícia, e sim, estou a ser facciosa). Gosto de pensar que quando regressar, daqui a uns dias, a última imagem que vejo, e que levo da América, será a de Barack Obama.

 

2. 

Um dia, minha filha, vais agradecer-me que te tenha acordado de madrugada, que te tenha exposto a temperaturas negativas, que te tenha apertado entre os dois milhões de pessoas que, como nós, estiveram na tomada de posse de Barack Obama, no dia 20 de Janeiro de 2009. Vais poder dizer: “Eu estive lá”. Mesmo que disso não tenhas consciência, vais poder dizer: “Eu estive lá”; e os nossos relatos vão ser tão vívidos e emocionantes que parecerão os teus, parecerão uma memória longínqua.

O meu amigo Domingos respondeu assim quando a mãe lhe perguntou porque levava a criança nesta viagem a Washington. E este podia ser o arranque de uma carta que ele e a mulher, Jwana, escreveriam à filha para lhe explicar porque estão aqui. (Aqui: dizer que é na Terra do Tio Sam seria uma saloiice pegada; se é preciso recorrer a um cliché, que se diga na Terra do Fellow Obama).

O assunto da carta que Obama escreveu às filhas foi abordado ao almoço. Uma carta comovente, em que lhes pede perdão pela ausência, e em que recorda o momento em que ele era da idade delas e a mãe lhe leu a Declaração dos Direitos do Homem. Obama, o pai, o político, está a lutar para que a Declaração seja efectiva (e isto já inclui que um homem como ele, ou seja, um negro, seja o presidente dos Estados Unidos da América. Apesar de ele ter dito repetidamente: “Esqueçam a América negra, a América branca, a América hispânica; só existem os Estados Unidos da América”. Apesar de a questão da raça não ter sido central durante a corrida eleitoral).

Enquanto Barack Obama se empenhava, se empenha, na efectivação da Carta, Michelle, a mulher, perguntava, pergunta: como é que isso afecta a vida das nossas filhas? E quem é que as vai buscar ao colégio e dar-lhes banho, e acompanhá-las na descoberta, dia após dia.

A questão podia ser levantada por todas as mulheres que conheço (cujos maridos tenham ou não ambições políticas…). As mulheres, como eu, que gostariam de ler Tocquille sobre o que é a democracia americana para se prepararem para esta viagem, e que acabam preocupadas com a gestão doméstica. Com coisas tão comezinhas quanto terem-me palmado a carteira no Starbucks, ter um telemóvel abaixo de cão que não funciona, sobre ter ficado sem chave porque com os meus dólares, na mesma carteira roubada, estava a chave de casa (o que não me ocorreu senão quando fiquei à porta de casa, às onze da noite, com uma chuva de neve a bater-me na cara. Tocque quê?

Talvez o dia de ontem, com todos estes acidentes domésticos, tenha sido uma excursão à nossa senhora da asneira. Mas Michelle tem razão: quem é que vai chamar os bombeiros? Quem é que vai carregar com os carrinhos escada acima, escada abaixo, porque o metro de NY, simplesmente, não tem elevador, e, para compensar, tem degraus com fartura? O carisma de Michelle tem que ver com isso? Ser uma como nós? Para quem o bem estar da família vem primeiro. Que é uma forma que dizer que o futuro é agora, começa a ser feito agora.

Discutíamos à mesa a carta de Obama. Discutíamos sobre a sua publicação. Discutíamos sobre a ida a Washington. Uma dúvida instalou-se de modo quase intransponível: onde é que vamos estacionar a caravana, amanhã de manhã? E quantas horas mais vamos demorar (um atrelado pesa…) além das três horas que, em condições normais, separam NY de DC? Para não falar na neve e na multidão. Para não falar dos ritmos das crianças e das paragens obrigatórias. O futuro é laborioso, como sabemos. Mas disso, gostamos! (Aparece um sorriso no texto.) Disso e do resto.

Tarde de domingo. Fazemos coisas “americanas”. Visitar a Frick Collection, comprar camisolas na Donna Karan, beber capuccinos num cup de cartão, ouvir a Anita Baker e o Stevie Wonder. Fico um pouco desapontada por não sentir nas ruas a euforia que julgava encontrar. NY parece-se com NY, e não com uma cidade em vésperas da tomada de posse do seu 44º presidente. Não se vislumbram festas espontâneas, cartazes nas paredes, bandeiras em espaços públicos – só as habituais, nas flagship stores das grandes marcas. Não se vê o que se vê pelas televisões, nos parques e praças de Washington, as multidões que chegam para guardar lugar, enroladas em cachecóis e mantas, aquelas que fazem com que excitment seja a palavra mais pronunciada nos media. Mas amanhã faremos parte desse grupo!

Tanto quanto é possível prever, que por aqui os planos mudam bastante, partiremos cedo. Sete no máximo. Talvez numa excursão com americanos, se encontrarmos a excursão certa. Em Portugal será meio dia. Partir cedo deixa-nos com tempo para procurar um canto a partir do qual possamos ver a festa. Já que não vemos Obama, vemos a festa. Fazemos a festa. Afinal, foi para isso que viemos. Estamos aqui looking for Obama.

 

3.

Escrevo este texto num banco de madeira, e convém que seja rápida, antes que os dedos fiquem enregelados. O Capitólio está à minha esquerda, imponente, bolo de noiva. De um tom marmóreo que parece falso, por ser tão puro. Pessoas vão e vêm, pessoas posicionam-se, pessoas trazem bandeiras. Pessoas que fazem parte do We, The People, a que Obama se referiu no seu discurso de tomada de posse.

No cimo dos edifícios há atiradores, pontiagudos. Como num filme. Como nas fotografias dos grandes momentos. Helicópteros sobrevoam a área. A área é toda a cidade. É sobretudo a área adjacente à Casa Branca, para onde hoje convergem milhões de pessoas. Os dois ou três que cá estão, mais os milhões que seguem o que aqui se passa pela televisão. O céu está azul e resvala para o cinza. Só o confirmo agora, mas há segundos era capaz de jurar que era claro, de um azul brilhante. Estou, estamos, perante uma epifania.

Daqui a pouco, bem ao meu lado, será a parada. Obama e acenos. Uma celebração.

Jwana e Domingos estão com as crianças, Francisco, Margarida. Quinhentos metros lá atrás, quando nos mandam abrir os casacos, abrem a mala e passam revista, disseram-nos que os carrinhos de bebé não eram permitidos. Francisco tem seis meses, Margarida vai fazer três na Páscoa. Os que seguem este diário desde segunda feira sabem que estamos aqui para assistir à tomada de posse de Obama, e que para os meus amigos hoje inaugura-se um mundo novo que querem construir para os seus filhos. E querem que um dia possam dizer o que ainda há pouco vi numa tshirt: I was there.

Mas agora foi preciso voltar ao carro, afinal viemos num carro ou jipe a atirar para a caravana (que era a nossa ideia inicial), uma coisa que funcionou como a nossa motor house. Desde esta manhã, mudou-se a fralda da criança mais nova, deu-se de comer às duas, atirou-se roupa e sacos com pão biológico para um canto, o computador estava no chão, como se estivesse no chão da sala. Mas agora foi preciso voltar ao carro, carrinhos não são permitidos, e depois fazer uma distância considerável com dois meninos ao colo. Vai valer a pena. Já vale a pena.

Estou sentada num banco de madeira, com os dedos enregelados, e daqui a minutos a festa prossegue.

Quando a festa estava no auge, quando Obama disse, com aquela voz e com aquela entoação, We, The People, nós acreditámos. “Isto era tudo o que eu queria ouvir num discurso de um presidente. Ele disse o que queremos ouvir”. Domingos. “As palavras, a atitude são completamente diferentes”. Jwana. Chegámos a Washington no momento em que o discurso estava a terminar. O mundo inteiro estava a ver, e nós ouvimos no rádio, numa estrada desimpedida, quando já não faziam sentido os avisos electrónicos que alertavam para os grandes atrasos nas estradas que iam dar a DC. Ouvimo-lo, e não pude ver na cara de Obama a sua emoção. Mas ouvi-a, ou quis ouvi-la, na voz.

Saímos de NY bem cedo, mas não o suficiente. Pela estrada fora. Domingos lançou um grito de guerra ao bater com a porta: “Então vá, yes we can”. E no GPS do carro quisemos introduzir simplesmente o seguinte quando nos pediram a morada: White House.

Eu anotei a seqüência de árvores, os galhos finos, como numa pintura japonesa. Os nomes que conheço de um quadro que ontem vi do Jasper Johns: North Carolina, Maryland, Columbia. As mensagens dos amigos em Portugal. Os que, por nosso meio, também estavam aqui, com os seus filhos e o seu futuro. Os que telefonavam para tratar de negócios, e se despediam com abraços pró Obama. Lembranças deste e daquele. Passámos por uma estação de serviço chamada Walt Whitman. Juro que a Jwana e o Domingos comeram do Burger King (e isso inclui batatas fritas e coca cola) às dez e meia da manhã. Na América sê americano. “Mr. Obama goes to Washington”, Mr. Obama já está em Washington. E nós estamos quase lá. De que falamos quando falamos de Obama? Nunca os autores americanos me fizeram tanto sentido.

Aretha Franklin canta perante a multidão. Que bom pensar que, de certo modo, nos livrámos da country music... Onde estamos nós? Margarida sabe: Já chegámos ao Obama!    

 

4.

“Observo Obama. Observo os seus gestos de vadio magnífico cruzado de King of America. Torno a pensar no artigo em que li: Barack, em swahili, quer dizer bendito. E sinto que alguma coisa, o que quer que ele diga, se joga nessa distância assumida em relação a todas as comunidades. O primeiro negro que compreendeu que já não é necessário apostar na culpabilidade mas na sedução? O primeiro a querer ser, não a censura da América, mas a sua promessa?”. Muito do que se viu ontem em Washington estava enunciado no texto que Bernard-Henri Lévy dedicou a Barack Obama. Um vadio magnífico cruzado de King of América?

Let’s see. Ontem, no imenso campo em frente ao Capitólio, um milhão de pessoas assistiu ao discurso de um homem que, de momento, personifica a esperança e a mudança. Ouviu silenciosa, atenta, como se ouvisse as palavras de um messias.

Não foi exactamente esta a palavra que foi usada por um politólogo que ouvi no rádio quando regressava de DC, mas, como este dizia, no futuro, Obama poderá lamentar tudo, menos ter sido subestimado. Obama, o sedutor, goza de uma indulgência de que nenhum outro presidente gozou. Aquelas pessoas, nós, queremos acreditar que isto pode ser melhor. Há qualquer coisa de messiânico em Obama. No modo como olhamos para ele, quero dizer.

Deve ter sido também por isso que a Jwana e o Domingos receberam mensagens dos amigos em Portugal – eu devo ter algumas, mas como o dito objecto não funciona, só em Lisboa posso conferir isso. As mensagens incluíam citações de Martin Luther King, de um jogador de basquetebol que dizia qualquer coisa como: “Com Obama podemos correr, com Luther King pudemos andar”; e mensagens que poderiam ser enviadas a alguém que vai correr uma maratona (que nós gostaríamos de correr mas não o podemos fazer).

Gostaria de ter estado no grupo que assistiu ao discurso de Obama. Ou seja: gostaria de estar nesse grupo que o vê de perto, que sente a vibração, a energia. Que pode ligar o discurso aos movimentos labiais. Que o vê inteiramente.

Mas a proximidade talvez seja quase tudo. E fez para mim uma enorme diferença ouvi-lo no rádio a dois passos do Capitólio, do que vê-lo em casa, pela televisão. A principal diferença é do domínio do simbólico. Mas não é só isso. É que o sítio onde eu estava, a circunstância em que o ouvi, derivou de uma escolha. Eu pude escolher ir à América, fazer esta peregrinação, juntar-me a dois amigos que trouxeram os filhos pequenos para celebrar the inauguration.   

Ao fim do dia, de regresso a NY, digeríamos no carro a força do discurso, as ideias que individualmente mais nos haviam tocado. E todos concordámos quando Mr. President falou de responsabilidade, de este ser um compromisso que nos envolve colectivamente e individualmente. E quando falou da confiança da América em si própria, treslemos de propósito, e discutimos a confiança do indivíduo em si próprio.

Ouvimos com comoção Aretha Franklin, o quarteto com músicos de excelência que veio do mundo todo. Ouvimos a voz delicada de Elizabeth Alexander a recitar poesia, aplaudimos o verso que diz que os alunos pegam nos seus lápis e canetas (estou a dizer de modo impreciso, mas a ideia é essa); e ligámos isso à passagem do discurso de Obama em que este nos incita a fazer, a fazer empenhadamente, para construir, peça a peça, a nação americana, ou a nossa vida de todos os dias.

Assistimos à inauguração de um novo mundo. Não comprámos tshirts ou ímanes para o frigorífico onde se lia: I was there. Não foi preciso, ou não foi possível.

A cidade estava remexida e desordenada. A organização das ruas tinha sido subvertida, filas compactas de pessoas circulavam por todo o lado, camiões de experts em bombas do FBI estavam estacionados do outro lado da rua – como se fosse uma coisa banal ver camiões onde se liam palavras como bombs e FBI… O trânsito estava cortado num raio de, talvez, três quilómetros, em linha recta. Negros, negros, negros, e brancos, brancos, brancos exibiam bandeirinhas e bonés Obama. Talvez mais negros que brancos. Famílias inteiras, para que também os seus filhos pudessem presenciar esta mudança de página.

A Margarida e o Francisco, os filhos dos meus amigos, presenciaram. O Francisco não pode sabê-lo (tem seis meses), mas a Margarida aderiu à euforia colectiva. Passou a declinar a palavra Barack da seguinte maneira: BarackMãe, Barackabela (sou eu), BarackPai. E Barack Obama, claro, dito em repeat, como se fosse uma canção. Será que o esquecerá? Bom, há sempre estes relatos para que possa, mais tarde, lembrar estes dias em NY e em Washington, com os olhos postos em Obama. Mas gostaríamos de acreditar, os pais e eu, que a emoção deste dia ficará.

 

PS: como estacionámos o carro no dia em que o novo presidente tomou posse? No centro da cidade, vimos um parque a céu aberto, delimitado por um arame farpado. Havia três ou quatro carros estacionados e uns 50 lugares livres. Uma tabuleta indicava o preço: 20 dólares. Entrámos. Mas é claro que era fácil de mais, bom de mais… O segurança veio ter connosco. Aquele era um parque, sim, mas não estava aberto, não. Era um parque reservado para o FBI. Ah, nós queríamos parar o carro só umas duas horas? Ok, mas isso ia custar… 30 dólares!

E foi assim, com 30 dólares debaixo da mesa, que estacionámos o carro no centro de Washington. Inbelievible! Mas podem acreditar que é verdade.

 

PS2: É claro que me constipei. Eu bem disse que estava com os dedos enregelados… Who cares? Eu não.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Janeiro de 2009

 

Curso de Cultura Geral (15 Jan 2017)

16.01.17

Há uma canção de Caetano Veloso chamada "Livros". Ele escreve: "os livros são objectos transcendentes. São como a radiação de um corpo negro apontando para a expansão do universo". Os livros, a palavra, a cultura, num sentido amplo, é o que pode lançar mundos no mundo. Neste programa, vou aos mundos de Almeida Faria, Jorge Silva Melo, Maria Emília Brederode Santos, ao que os constitui, ao Portugal onde cresceram, ao lá fora onde as coisas mudaram de lugar e se reinventaram: onde eles aprenderam a ser outros. Pedi lhes que elaborassem uma lista de 10 coisas ou experiências de cultura. As listas, como sabemos, são para refazer amiúde. Servem para situar, traçar um mapa genérico. E servem de ponto de partida para a conversa.

 

A lista de Almeida Faria, escritor

  1. Bach, Paixão segundo S. Mateus
  1. Mozart, Don Giovanni 
  1. Eurípides, As Bacantes
  1. Shakespeare
  1. Nietzsche
  1. Joyce, Ulisses
  1. Álvaro de Campos
  1. Eduardo Lourenço 
  1. Bosch
  1. Mário Botas

 

 A lista de Jorge Silva Melo, actor e encenador

  1. Biblioteca da Voz do Operário (a memória anarquista em Lisboa)
  1. Casa da Achada (meu prof. Mário Dionísio)
  1. Teatro Variedades (Parque Mayer)
  1. Museo del Prado (Madrid) e memória da infância
  1. Quintais de Lisboa de Nikias Skapinakis no Centro Manuel de Brito (Algés)
  1. Os "reservados" dos museus (CAM)
  1. O atelier da Sofia Areal: um atelier é o lugar da felicidade
  1. Uma sala de ensaios enquanto decorrem ensaios
  1. O cinema Ideal
  1. O Teatro da Politécnica

 

A lista de Maria Emília Brederode Santos, pedagoga

  1. O Feiticeiro de Oz – Frank Baum, e obras para crianças de Selma Lagerlof e Andersen
  1. Guerra e Paz, Leão Tolstoi
  1. Un Chien Andalou (1929) ou L’Ange Exterminateur (1962) do Buñuel
  1. High Noon (O Comboio Apitou Três Vezes), de Fred Zinnemann (1952)
  1. O Leopardo (1963) ou Senso (1954) do Visconti
  1. Um programa de TV: “O Detective Cantor” e “Uma aldeia Francesa”
  1. “Liberté” do Paul Eluard dito pelo Gérard Philipe
  1. Picasso (a Guernica…). E, por indecifráveis razões do meu inconsciente, “La girafe en flammes” do Dali
  1. Le Deuxième Sexe e outras obras da Simone de Beauvoir
  1. Ainda não acabámos!, filme do Jorge Silva Melo (2016)

 

 

Curso de Cultura Geral (8 Jan 2017)

15.01.17

Quando preparava este programa, ocorreu-me a imagem da edificação de uma casa. É preciso escavar, é preciso pôr alicerces. Antes disso, é preciso ter um projecto. Na nossa formação cultural, há também um longo processo no subterrâneo, que aparece mais à frente, que assume por vezes formas inesperadas. Depois há o que fazemos, o que é visível à superfície. E depois, outra coisa, ainda, há a forma como habitamos a casa quando ela está construída, o modo como, no terreno, percepcionamos uma coisa e ela fica nossa, fica à nossa medida. Como se formaram esta escritora e jornalista, este artista plástico, este arquitecto? Pedi-lhes que pensassem em coisas marcantes na sua construção. Há um cimento, além do mais, que os liga: a amizade. E o encontro, ter um interlocutor, pode ser um desses alicerces. 

 

A lista de Clara Ferreira Alves:
1- Médio-Oriente
2- "Lawrence da Arábia", T.E. Lawrence
3- "Flagelação" de Caravaggio, no museu Capodimonte, Nápoles
4- "Liebestod" da ópera Tristão e Isolda de Wagner; e ária "Non Temere Amato Bene" de Mozart por Barbara Hendricks
5- "O Nó do Problema" de Graham Greene
6- As ruas de Londres
7- "King Lear" de Shakespeare
8- "Tabacaria" de Álvaro de Campos
9- O mar
10- Montanhas do Afeganistão, Vale do Panjshir

 

A lista de João Luís Carrilho da Graça:
1- Plantas topográficas de Lisboa pelo Eng.º Augusto Vieira da Silva. 
2- "A responsabilidade do artista consiste em aperfeiçoar a sua obra até que ela se torne atractivamente desinteressante. […] A própria alma é de tal forma simples que não pode ter acerca de duas coisas mais do que uma ideia de cada vez… Uma Pessoa não pode ter senão mais do que uma atenção." Eckhart in John Cage, Silence: Letters and Writings.
3- Sala de trabalho com tela de Pedro Casqueiro (fotografia de Maria Timóteo)
4 - Sala de trabalho com Blind Image de João Louro (fotografia de Albano da Silva Pereira)
5 - Estudo para um quarteirão da baixa pombalina com escultura de Julião Sarmento (fotografia de Tiago Casanova)
6 - Panteão de Roma
7 - Casa Farnsworth, Illinois; Mies van der Rohe, 1945-1951
8 - “O que se procura na obra de arte?”, Isabelle Graw
9 - “City as Living Laboratory”, Mary Miss
10 - Brilliant Corners, Thelonious Monk, 1957

 

Falta a lista do Julião, que preferiu fazer uma coisa menos sistematizada, mais digressiva,

 

 

 

 

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