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Anabela Mota Ribeiro

Júlio Pomar

30.07.20

Desgrenhado, silencioso, mordaz, desconcertante. Fala do barulho dos eléctricos da sua infância. Da impossibilidade de se ter cruzado com Pessoa numa rua da Baixa, ainda que se movimentassem no mesmo perímetro; porque figuras como a de Pessoa eram figuras de outro Planeta. Como Picasso, que não conheceu, em Paris. À sua volta, no atelier, há a comicidade de Charlie Chaplin, a carne esventrada de Francis Bacon, as «Vivien Girls» de Paula Rego – bonecada, portanto.

Ele fazia bonecos, e soube sempre que a sua forma mais instintiva e pulsional se harmonizava com o exterior sob a forma do desenho. O tio Bernardino alimentou o ímpeto. Fez-se pintor. Almada, o mítico, comprou-lhe o primeiro quadro. Foi companheiro de cela de Mário Soares e aí prognosticaram o futuro: um seria pintor e outro presidente da república – uma história muito estafada... Fez o retrato do General Norton de Matos porque não podia não o fazer – uma contingência, como o Tejo ser o rio que corre em Lisboa.

Vive desde há anos entre Paris e Lisboa. Júlio Pomar, o pintor que toma o gozo por propósito, inaugura daqui a uma semana «A Comédia Humana» no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Esta entrevista, que recupera algumas cenas do seu teatro privado, ocorreu em dois momentos, na sala lá de casa, debaixo de um desenho com tartarugas algo tontas... Ele ria-se.

 

Podemos começar por falar da escolha? 

Quando desenho, trabalho por aproximações. A ideia inicial é nebulosa, vaga, e vai-se definindo através de escolhas sucessivas. Esse trabalho de procura e selecção, de escolha, é muito visível nos desenhos do Giacometti. Quando ele desenha, vai seguindo o caminho de uma ideia, do traço muito geral à particularização, à descoberta. É todo um percurso em que as coisas se vão fazendo quase naturalmente e em que nada é posto de parte. Estão lá, são visíveis, o primeiro traço, o «a ver como é»...

 

O processo de escolha segue que linha? É suscitado por quê?

Não é uma linha. Uma linha dá a ideia de um percurso único. Neste caso, o que se passa é uma simultaneidade de opções, tentativas, das quais se vai apurar qual é que passa ao estádio seguinte. Como as ovelhinhas na entrada do cercado: vão encostar-se, esperar a sua vez, tentar passar uma à frente da outra. Entre a minha maneira de trabalhar e a do Giacometti a diferença não é muita (refiro-me sobretudo aos desenhos), embora com ele fique tudo à vista. Eu tenho tendência a dar a ver o que pode ser identificado com uma sigla do que quero mostrar.

 

Os seus quadros são cada vez mais nebulosos. Nas suas obras de há 40, 50 anos havia um rigor no traço e uma definição do que dava a ver. E agora, ao contrário...

Parece que a forma estoirou.

 

É como se a forma estivesse estilhaçada e houvesse vestígios disso pelo quadro inteiro.

Há uma palpitação vinda de dentro da forma que torna indefinido o seu contorno. Nas minhas primeiras coisas o contorno era definido, e nos anos 50 e 60 o contorno era quase cortado à tesoura – influências dos recortes do Matisse. Contudo, nos grandes recortes do Matisse, o tratamento do perfil nunca é rigoroso, no sentido de geometria elementar, como no Ingres. Podemos seguir com o nosso dedo o contorno das personagens do Ingres, e esse contorno tende sempre a uma geometria clara; a forma é de grande significação, não há hesitação, nem trepidação nessa aparência exterior. No Matisse, pelo contrário, há uma irregularidade. É como se houvesse um fôlego interior que fizesse dilatar a forma e essa vibração vai desfazer o rigor geométrico do contorno. Já estamos aqui perante duas escolhas, a escolha do rigor geométrico... Estamos a tocar num problema essencial na nossa civilização, que é a oportunidade dada à escolha e o próprio conceito de escolha. Um quadro é o resultado de imensas operações de síntese, de uma preponderância afectiva que nos leva a, quando nos interessamos por um objecto, esquecer o que está à volta. Quando estou a olhar para aquele cinzeiro, aquele cilindro metálico, a minha atenção apaga, não considera a mesa ou a parede que estão à volta.

 

Não teve de escolher o que ia fazer à vida.

Quando comecei a querer fazer destas coisas, fazer destas coisas não era tido como profissão da qual se pudesse viver. Na minha geração, o Vespeira, o Fernando de Azevedo, rapidamente entraram num mundo onde nunca consegui entrar, porque não era dotado.

 

Era o mundo da publicidade, não era?

Fiz várias experiências, várias tentativas; diziam-me: «Tenho muita pena, mas você não é suficientemente despachado». Na altura estes resultados eram-me desagradáveis, mas a la longue foram óptimos. As coisas vão-se fazendo, para o bem e para o mal. Se eu tiver uma pedra no sapato, entre o sapato e o pé, primeiro o meu pé fica desagradado, depois vai-se desagradando cada vez menos, e acaba por ser um hábito, ter a pedra. As pessoas vão-se moldando às coisas. Se não tenho tido uma sorte negativa do ponto de vista prático talvez fosse um modesto funcionário, em qualquer repartição pública, talvez continuasse a divertir-me a fazer bonecos aos domingos.

 

Penso nisso? No poder ter tido uma vida completamente diferente.

Um dos homens mais interessantes do modernismo português era um homem que dizia pouquíssimas coisas, e a certa altura deixou pura e simplesmente de trabalhar. Não me lembro do nome dele. Viva como o Almada, como o Botelho, e, como toda essa gente, vivia dos jornais e do dia-a-dia.

 

É possível, perante a adversidade, assumir uma atitude de resignação e derrota. E é possível capitalizar a dificuldade e convertê-la em vantagem, investindo nela. A sua má sorte produziu bons resultados.

Acho que sim. As mães diziam: ai, ele não se entretém com nada. As coisas que me entretinham eram muito poucas.

 

Eram o quê?

Desenhar, fundamentalmente.

 

Conta-se que quando se mudou com a sua mãe e as suas irmãs para casa dos seus tios, levou consigo uma caixa de aguarelas roxa. É uma imagem muito bela: um menino com o seu estojo debaixo do braço, como quem leva um tesouro. É claro que também é uma imagem muito romanceada...

É, porque essa caixa me foi dada depois. As coisas correm de boca em boca sem que a intenção seja má, e o pequeno detalhe é deslocado. Tenho pena que não tenha acontecido. Essa caixa de aguarelas foi um acontecimento grande na minha vida.

 

Porquê?

Foi um tio meu, (que é um personagem fundamental, foi para casa dele que fui viver com a minha mãe e as minhas irmãs), que me disse: «Vai à loja e compra uma caixa de aguarelas». Uma grande caixa.

 

Foi lá escolher? Foi sozinho ou acompanhado?

Fui sozinho.

 

Porque é que ele lhe deu a caixa de aguarela?

Foi um estímulo. Ele não tinha filhos e vivia muito daquilo que as crianças que viviam com ele manifestavam. A minha particularidade era desenhar, fazer bonecos. Há um episódio capital: ele dava-se muito com republicanos antigos e num dos movimentos republicanos, um dos elementos, depois de o movimento ter abortado, refugiou-se em casa do meu tio; a polícia vai lá a casa e embarca o tal senhor, o meu tio e o porteiro que abriu a porta! Foi tudo, como se dizia na altura, deportado para Timor. Entre os deportados estava o escultor Costa Mota, com o qual ele se ligou de amizade; nas tertúlias e cafés que frequentavam, o meu tio dizia «o rapaz está sempre a desenhar, a fazer bonecos», e o Costa Mota terá dito: «manda lá o rapaz para a António Arroio». E com oito anos, antes mesmo de ter terminado a instrução primária, fui para lá, só para a aula desse senhor, e fiz muito gesso.

 

Como foi feita a sua instrução primária?

Fiz a primária em casa, foi a minha mãe e as minhas irmãs que me ensinaram. Era o mais novo e só fui fazer o que se chamava o Exame da Quarta Classe. Vou para a Escola de S. Sebastião da Pedreira, sentadinho num banco, com um carvão e um papel nas mãos a desenhar. Era uma escola pública e eu era o único menino que tinha sapatos, alpergatas, os outros meninos iam descalços.

 

Não era muito comum, à época, a mãe ter estudos.

A minha mãe pertencia a uma pequena burguesia. Menina e moça, tinha aprendido francês e piano. Casa, tem filhos e depois, coisa muito corrente, o marido fica tuberculoso e morre. O meu pai era engenheiro, foi um dos homens que instalou o telégrafo em Portugal, andou a percorrer o país. Lembro-me de a minha mãe ter muitas recordações dos diferentes sítios, uma colecção de postais que ele mandava.

 

Tem ainda esses postais?

Não, estão na cabeça. Eram uma espécie de tesouro que guardava religiosamente. Eu estava muitas vezes doente, na cama, e uma das coisas que me eram dadas como consolo era o folhear esses postais. Quando, há uns 10 anos atrás, ou 15, entro em Ouro Preto, vejo ao vivo as fotografias de Ouro Preto do Portugal dessa altura, das cidades da província, foi uma impressão muito forte. O piano, à minha, mãe não lhe deu jeito nenhum, mas o francês deu-lhe para entrar para secretária de um senhor judeu, polaco, com escritório na Rua de São Nicolau. Às vezes ia com a minha mãe para o escritório. Da Rua de S. Nicolau ao Bernardo Soares é um passo, é a Lisboa desse tempo. Quando mais tarde, já crescidote, vim a descobrir as coisas do Fernando Pessoa, na biblioteca nacional...

 

Como é que lá foi dar?

Eram coisas que corriam.

 

O baú já corria?

Não se falava no baú. O que se falava era nas publicações. A Orpheu, a Atena (por acaso a Atena li na biblioteca do meu tio, em casa). Do Bernardo Soares foram publicados excertos na Presença. Como o dito Fernando Pessoa tinha uma visão lúcida sobre a sua obra, publicou o essencial dela.

 

Quando leu Pessoa, anos mais tarde, perguntou-se se alguma vez se terá cruzado com ele na Baixa, se terão feito percursos coincidentes?

Durante muito tempo as grandes figuras, de um Picasso a um Fernando Pessoa, não eram seres que andassem aqui. Quando eu sabia de personagens que tinham outra dimensão, era como se eles pertencessem a outro planeta, a outro país. Havia com certeza um sentimento de exclusão que eu tinha. Naquele tempo em que eu vivia, coitadinho de mim, era um outro.

 

Acha que eles não se preocupavam, que não tinham vidinha?

Não, não eram desumanizados. Era como se vivessem todos num país a que a gente não tinha acesso. Lembre-se que era a altura da guerra, a comunicação não era o que é hoje. O primeiro amigo meu que depois da guerra foi a Paris, os amigos foram todos esperá-lo à volta do comboio. Esse parcelamento é muito difícil de entender hoje. A própria situação portuguesa levava a considerarmo-nos fora do mundo. Esta grande gente eram os outros que não andavam neste planeta. Na melhor das hipóteses vinha-se depois a descobrir que uns senhores que subiam e desciam o Chiado tinham conhecido esses semi-deuses. Mas mesmo assim, eram elementos intermediários. 

 

Recuemos no tempo. Gostava de imaginá-lo a desenhar e a descobrir nisso a vocação, o caminho. 

Era o que me sentia bem a fazer.

 

Era um menino solitário que desenhava? Estava sozinho entre a mãe a as irmãs?, o interlocutor masculino era o tio Bernardino?

O tio Bernardino era o personagem masculino deste agregado. Mas era exterior, não estava em casa nunca, vinha à noite, à hora do jantar, depois saía para ir ter com os seus amigos ao Nicola e ao Chave D’Ouro. Gostava de me levar e eu tinha um sono tremendo. Não era todos os dias, uma vez por outra...

 

Ficava a assistir às conversas dos adultos?

Eu olhava, via as pessoas.

 

O que é que retém daí? O barulho, o fumo, a movimentação própria de um café.

Se fala em barulho, havia um ruído muito característico da Lisboa que conheci, que era o ruído dos eléctricos. Havia poucos carros, o tlim, tlim dos eléctricos era uma coisa constante. À noite, sentir os eléctricos que passavam era um acontecimento para quem não vivesse numa rua onde passassem os eléctricos. Era um país diferente. Quando se vai a pé, pode olhar-se para as paredes devagarinho. Dentro do eléctrico, que tinha uma velocidade inimaginável na altura, as paredes fugiam, quando se queria atentar em qualquer coisa, ela desaparecia rapidamente.

 

É uma descrição da infância: queremos agarrar uma coisa e ela passa a correr.

No fundo, é o que faço todos os dias, embora a coisa que passa a correr, como eu não trabalho com modelo, normalmente, esteja já interiorizada. Mas mesmo interiorizada, quando a gente tenta agarrá-la ou defini-la, se ela está viva passa a correr.

 

Se está viva passa a correr?

Se está viva passa a correr, então é preciso voltar.

 

Para a agarrar.

Sim, para estar com ela.

 

Tudo isto decorre das idas ao café com o tio Bernardino. Mas até onde interveio isto na sua construção? Voltemos à escolha: o que é que faz que uma pessoa seja uma coisa? Se seguirmos a sua pulsão interior, percebemos onde é que ela radica, o que é que define a escolha?

Estaria tentado a dizer que não se escolhe. Isto é tão verdadeiro ou tão errado quanto a escolha ser cem por cento voluntária, que não é. Trata-se de um acordo, que ou existe ou não existe, que pode ser procurado com acerto ou sem acerto. Posso exercer num bom sentido, posso exercer num mau sentido. Se teimar em correr agora os cem metros, posso determinar-me a isso, mas estou a fazer um grande disparate, a desbaratar o pouco tempo que me resta para viver. A realidade das pessoas é muitas vezes isso mesmo: determinarem-se a coisas para as quais não estão vocacionadas e que lhes liquida o gosto que podem ter em viver.

 

Já falou várias vezes em gosto, entreter-se, prazer. Parece que isto é uma dimensão essencial em si: que a forma seja consentânea com a sua natureza, que não o violente e que descubra aí prazer.

Acho que sim. Evidentemente que o esforço pode representar um prazer. A relação do dentro com o fora, o estar bem, o tirar prazer de, não é uma coisa que aconteça sozinha. É uma coisa que se procura e encontra, ou não. Esta incomodidade é uma incomodidade de todos os dias, uma batalha.

 

Fiquei muito impressionada quando li numa entrevista antiga que gosta de ver num quadro as marcas do esforço. Isso são os nervos?

Exactamente. Os nervos, a pele. É muito mais bonita uma pele do que a pintura de um manequim. A quantidade de caminhos, de memórias, de sensações que passam numa pele são completamente diferentes desta matéria. Tem os seus encantos, mas é completamente distinta daquilo que a nossa carne acumula.

 

Ainda se sente dominado, enfeitiçado pela cara do humano, esse é ainda o foco?

O rosto é uma síntese, mas não é tudo. Imaginemos que a totalidade do ser humano é um governo e que o rosto é o primeiro-ministro ou o presidente da república... A imagem não é muito feliz, é aproximativa... Não há coisa mais perturbante que um bilhete de identidade, ou um passaporte.

 

Porque se fica enfiado nessa identidade? Não gosta nada de rótulos, pois não?

Tenho horror. A cara não é parecida, é um assassinato.

 

Também se incomoda com todos os rótulos que, enquanto pintor, lhe foram pondo...

Ai, isso não gosto nada.

 

O seu universo pictórico tem três grandes momentos. O primeiro político e exterior. O segundo erótico e íntimo. O terceiro aberto a uma dimensão cultural e ao signo. Ainda que esta delimitação faça sentido, percebo que se incomode com a compartimentação.

É uma espécie de mel, mosquito chato. Infelizmente, está muito espalhado. Uma publicação pretende fazer uma colecção representativa do que de arte se fez em Portugal, e lá está o «neo-realista Júlio Pomar», que teve a pouca sorte de não ter morrido na altura. Isto quer dizer uma grande falta de consideração, já não digo pelo autor do crime, o artista, mas pelo próprio público a quem o livro se destina. Em vez de ser uma aproximação, de dar a entender, e consequentemente tirar algum gozo disso, metem-se noções pré-fabricadas, que não têm nenhuma relação nem com a coisa em si, nem com o prazer que se pode retirar. Essas colecções são qualquer coisa de filatelista ou de funcionário público, qualquer coisa do mais burocrático possível.

 

Essa fruição, o mais desrotulada, o mais despreconceituosa, é aquilo que mais deseja? O seu desejo é remontar a um tempo em que os códigos estão ainda por decifrar?

Ver o que lá está. Se é que isto tem algum sentido. Estou neste momento a dar forma final a um livro que recolhe escritos deste último ano. É uma recolha de anotações ocasionais, mas, na verdade, é um todo e articula-se como tal. Chama-se «Mas não mudaste».

 

Porque é que não foi romancista?

Não se pode ser tudo. É outra maneira.

 

No início do caminho, as duas coisas, ser pintor e ser escritor, eram possíveis e até muito plausíveis.

Pois. Mas vamos lá ver, o romance é uma construção que tem que ser entendida como um mosaico, feito com pedrinhas. O romance passa pela palavra, que é a pedrinha. A pedrinha também funciona na poesia, mas no romance vive das suas relações estruturais. O que caracteriza o romance é o que não está imediatamente à vista, são as tensões que os personagens enfrentam. Neste sentido ele é como o teatro, sendo o teatro muito mais visual e sintético. Nunca me passou pela cabeça escrever um romance, seria incapaz.

 

Tem de si uma memória mais antiga a ler ou a pintar?

Por exemplo, lembro-me perfeitamente dos primeiros Eças, dos primeiros Camilos, dos primeiros Balzacs, mas não me lembro do que estava a fazer na altura.

 

O que estava a pintar na altura, é isso que quer dizer?

Sim, sim.

 

Mas esses desenhos que pintava em menino tratavam do quê?

Sei lá, desde cópias de outros desenhos, fotografias de jornal, cenas que inventava. Fazia aquilo que fazem os miúdos, não era particularmente interessante. Eu, simplesmente, investia. Engraçado..., há o investir do touro e há o investir do Jardim Gonçalves. [Risos]

 

Se a sua vida fosse outra, completamente outra, e fosse um personagem do universo do Jardim Gonçalves ou o próprio Jardim Gonçalves...

Eu acho impossível. Mesmo que me tivessem preparado de pequenino para isso, acho que já tinha morrido há muito tempo.

 

Trata-se da natureza de uma pessoa?

A pessoa vai-se fazendo como se desfaz. Há um pintor mexicano que diz: «Um pintor faz-se ou desfaz-se». É daquelas coisas que me lembro de ter lido algures, e uma outra, que é uma frase do Roger Vaillant, muito lido em Portugal nos anos não sei quantos: «Se se corre sozinho não se ganha a volta à França».

 

Então descreva-me aquele quarto ou atelier na Rua das Flores onde estava com os outros que fizeram que ganhasse a volta à França. Como o Vespeira ou o Cesariny. Apareceu nessa primeira exposição o Almada, que lhe comprou um quadro. E o Mário Dionísio escreveu sobre ela e avançou tratar-se do «início de um grande pintor».

A casa era um segundo ou terceiro andar, não sei bem. Era uma sala mais pequena do que esta, alugada a quinze mil reis, a que chamávamos pomposamente atelier. Resolvemos forrar as paredes a papel de jornal. Como a memória inventa coisas, há uma versão do Vespeira em que ele diz que as paredes foram forradas com o Diário da Manhã. Mas os jornais na altura não eram tão grandes quanto hoje, e teríamos pouco para comprar o Diário da Manhã em quantidade suficiente para forrar as paredes... Foram na verdade jornais ad-hoc, sem escolha. O jornal era uma coisa com que nessa altura se limpava o rabo – era, por isso, um desafio.

 

A sério?

A sério. Daqui ao desprezo infinito que tínhamos pelos jornais, que culminaria no Diário da Manhã...

 

Era o desprezo pela notícia censurada que vinha escrita no jornal?

Pela própria imagem que o jornal dava do país. Mais ainda: não esquecer que andávamos todos a aprender e os bocados de jornal apareciam nos quadros cubistas, os papiers collés. Outra coisa muito importante (e isto não é desmerecer o mérito cá da rapaziada, atenção): em Lisboa, nessa altura, não se passava rigorosamente nada. As pessoas tinham tempo. As pessoas encontravam-se na Brasileira do Chiado, que era um centro intelectual: o Almada, o Botelho, o Macedo escultor. Gente que era olhada com respeito – não falo dos agentes da polícia política que frequentavam também o café. Havia três possibilidades de frequentar a Brasileira: antes do almoço, após o almoço e ao fim da tarde. Depois do jantar não era fácil encontrar pessoas interessantes, mas nestas três, sim, e algumas estavam nas três.

 

Só homens?

As mulheres eram raras. Uma das mulheres que frequentava a Brasileira era a Sarah Afonso, que vivia com o Almada, e uma outra, Manuela Porto, que tinha sido actriz, fazia recitais de poesia e era casada com um pintor. As pessoas iam para os cafés e algumas ficavam a porta, a olhar, à espera de qualquer coisa, de um D. Sebastião. Esta exposição era para a rapaziada, para os amigos, nunca pensámos convidar senhores crescidos. (Se eu usasse esta linguagem enfiavam-me com um banco na cabeça!, crescidos éramos nós.) O facto é que entre os visitantes apareceu o Almada, que vinha com António da Costa. O facto é que muitos senhores crescidos lá foram.

 

Mas estava nervoso, sabendo que estas estrelas, esta gente crescida ia lá?

Não, eu esses nervos nunca tive propriamente. Fiquei muito contente. Aquela angústia do actor na noite de estreia, que eu sei que existe, nunca a tive, não sei bem porquê, não encontro um conjunto de razões. Para mim, é mais angustioso o dia-a-dia do fazer do que o do mostrar.

 

Mas esse angustioso do dia-a-dia é de si para si.

De mim para mim. Enquanto o destino não está decidido, ali, nos quatro cantos no quatro... Quando se mostra, está acabado, não se pode fazer nada. A minha ideia é que o trabalho já vem antes e vai continuar depois desse acontecimento. E que se as coisas se passarem bem nesse acontecimento, ainda bem. Se passarem mal, paciência, também já passaram por cá muitas coisas más ou assim-assim. Isto não quer dizer que eu tenha uma sensação abastada sobre mim mesmo. Não, eu preciso muito dos outros.

 

Fala disso pela primeira vez. É misterioso para mim o peso dos afectos na sua vida. Não sei até onde o determinam. Quem são as pessoas da sua vida? Os filhos, os netos, a mãe, o tio, o pai ausente?

São várias, são sempre várias.

 

Parece sozinho, desde menino, entretido e auto-suficiente.

Raramente as pessoas não são escolhidas. Quero eu dizer: há uma necessidade de comunicação com o exterior que é comum a toda a gente. Exemplo: pode-se ir para o café (voltamos à Brasileira) sem a ideia precisa de estar com A, B, ou C, e essa indefinição já dá uma resposta, senão a cem por cento, a cinquenta por cento, à necessidade de relação com o exterior. Esta necessidade indiscriminada, se a senti, penso que já não a sinto. A minha necessidade de relação com o mundo, antropofágica, passa por pessoas escolhidas, que conheci, que conheço há muito, que conheço há pouco – não fecho a porta.

 

O que é que faz que as pessoas entrem ou permaneçam no seu círculo?

Porquê círculo? É uma possibilidade de entendimento mínima. Já não quero dizer máxima. É um bocado difícil de definir.

 

Por que é que são essas as pessoas escolhidas?

A escolha é uma coisa que se vai processando e sofrendo, no bom sentido da palavra.

 

Se vai almoçar com o António Lobo Antunes, falam de quê? De que é que falam as suas pessoas?

Gosto sobretudo de ouvir as pessoas falar. Eu já falei muito. Tem estado caladinha...

 

Sobre o que é que quer que eu fale?

Sei lá, sobre o que quiser.

 

Uma entrevista pressupõe que eu sacie a minha curiosidade e que reporte o resultado disso. Esta relação, instituída à partida, faz que eu esteja caladinha.

É a chamada relação profissional, não é?

 

É.

É uma regra do jogo, deste jogo.

 

Mas eu insisto em perguntar sobre as coisas de fala com o Mário Soares, com a sua mulher, com a sua neta, com a Paula Rêgo, com os seus amigos de outros tempos.

Normalmente não são coisas programadas, é aquele encontro gratuito. Tenho a dizer que me é muito mais grato, repousante, ser um escutador que um falador. Isto pode parecer estanho porque estava a falar de seguida, mas falo quando sou obrigado.

 

Quando está em frente a um quadro, a pintar...

Não falo.

 

Fala consigo.

Falo sem palavras. Falo antes da palavra. A palavra é já uma coisa última antes de chegar ao cá fora.

 

Mas pode fazer essa separação entre a palavra, a formalização, e isso que está sentido? Estava a pensar naquele verso do Pessoa que é tão central em si...

«Em mim sente o que está pensando».

 

... apontando para uma concomitância destes dois planos.

Eu julgo ou imagino que a separação entre o sentir e o pensar é preciosa. Antes de chegar à palavra, o pensamento começa a formular-se, a palavra é já quase uma excrescência.

 

É uma excrescência e ao mesmo tempo é um acto. Impõe uma formatação, uma decisão.

É a criança que vem cá para fora da barriga da mãe, vem crescer.

 

Aquilo que pinta não sai com uma forma total e definitiva; como as palavras, precisa de crescer. Imagino que esteja sempre a sós quando pinta...

Sim.

 

Mas deixou que alguém o visse a pintar? Sem que essa presença incomodasse.

Já tem acontecido. Em princípio não suporto, não gosto de ter audiência

 

É mais um escutador do que um falador. Que coisas gosta de ouvir, o que é que lhe interessa no ser humano?

Tudo. Não posso dizer que todos os seres humanos me interessam... Costumo dizer que não gosto nem de mulheres nem de pinturas.

 

As paixões da sua vida são essas...

A espécie, em si, diz-me pouco. Um museu é muitas vezes uma coisa pavorosa, chata, uma espécie de cemitério.

 

Ou seja, não é o género, são alguns espécimes.

Exactamente. Aí, permita-me a distinção.

 

E o lado cómico destas coisas, das pessoas, das mulheres, das pinturas? A comédia é o vector central da exposição que vai inaugurar no CCB, «A Comédia Humana».

O título é do curator. Toda a comédia humana, com a licença do senhor Balzac, é uma desenvoltura, mais do que uma finta, é um desplante. É preciso ver o que é que se entende por comédia, talvez o mais justo seja dizer o teatro. O teatro como...

 

Uma invenção do mundo?

Uma invenção, uma ponte, uma maneira de entendimento e de participação no mundo. Eu escrevi uma vez, e mantenho, que só o teatro é real.

 

Que é que isso quer dizer?

Que todo o fingimento do teatro é assunção da realidade. Não sei se estou a ser claro, tenho medo das definições assim pesadas.

 

Podemos destilá-las? Não ficam tão concentradas e ficam mais perceptíveis. Como os sumos!

[Risos] Penso que o teatro funciona como um paradigma da vida e vice-versa.

 

Trata-se sempre de uma representação, quer na vida quer no palco.

Representação participante. Quando tentamos exteriorizar a raiva que vai cá por dentro, há uma operação que tem que ver com um fingimento. A assunção do que entre nós se está passando e já um representar, um fingir, sem conotação pejorativa. Quando o Pessoa diz que o poeta é um fingidor, as pessoas não atentam no significado total destas palavras. O que era um fingidor no tempo do Pessoa?

 

O que era?

Nessa altura, e dentro da modéstia dos nossos meios, os mármores eram fingidos. Se tiver o cuidado de procurar na Biblioteca Nacional uma colecção chamada Biblioteca de Instrução Profissional, onde tem tudo, lá vai encontrar o manual do pintor e do pintor fingidor. O Fernando Pessoa, um dia, em casa de um senhor qualquer, viu esta coisa espantosa: uma porta de madeira a fingir madeira. Como o gesso das paredes fingia o mármore. Finge tão completamente, que chega a fingir que é madeira, a madeira que realmente sente. Não é invenção nenhuma, isto. Não é pasmoso? Acho que isto é muito importante para a compreensão das coisas, e não diminui nada o Pessoa, nem a criação poética, pelo contrário.

 

Significa ir ao encontro de uma certa literalidade para depois interpretar mais livremente?

A palavra é um mil folhas. Muitas vezes aquilo que no mundo parece ser uma qualidade da invenção poética, não é mais do que o destacar da espessura da palavra. É ir ao encontro do que a palavra contém, mas que por uma razão ou por outra não está implícito no discurso que se está a produzir. Fernando Pessoa quando fala do fingidor está a falar da alma, mas falando da alma as pessoas não pensam na realidade concreta, no exemplo da imagem que lhe serviu e que encontrou na rua.

 

Agora estava a pensar em si enquanto pintor-fingidor. O que é que está debaixo da madeira? Qual é a espessura da sua madeira?

Ando à procura dela. Vamos ver..., é um destapar. O que é que está lá por baixo? Muitas vezes estão várias coisas ao mesmo tempo. Como no quadro do fingidor estão várias coisas ao mesmo tempo. Este encontro do quadro da vida é extremamente apaixonante, o ovário da vida.

 

Ovário? As mulheres, estão sempre as mulheres?

Eu diria que é uma parte de um todo, absolutamente necessário. Necessário no sentido de força vital.

 

Quem é que foi a sua primeira paixão?

Está à espera que lhe diga que foi a Greta Garbo?

 

A Greta Garbo?!

Nunca tive assim paixões por imagens míticas ou personagens inacessíveis.

 

Gosta de pessoas de carne e osso?

Sim, sim.

 

A sua primeira paixão.

Não é fácil precisar. As imagens da adolescência são muito indecisas. Há uma participação da invenção, sem dúvida nenhuma. Um engagement.

 

Um comprometimento?

Não há compromisso sem paixão, ou não há paixão sem compromisso. Acho que é uma qualidade de visão, de sentimento, em que a paixão dá cor às coisas, às formas, ilumina. E tenho a impressão de que quando ela não existe a vida é muito chata.

 

Até onde é que se deixa tomar pelas paixões?

Quase chego à conclusão de que não sou um ser apaixonável, na medida em que nunca fiz uma alteração total da minha vida por fruto de uma paixão. Podia ter-me tornado corredor de automóveis ou artista de circo, nunca tal me passou pela cabeça! Nunca a paixão foi a um ponto de apagar a conversa comigo mesmo que é o pintar.

 

Há uma canção Sérgio Godinho que pergunta «Pode alguém ser quem não é?». A paixão nunca fez que deixasse de ser quem é. Isto é, a pintar. 

Isso seria como emudecer.

 

Não estou certa de ter ouvido emudecer ou enlouquecer. As duas seriam válidas.

Exactamente. O emudecer voluntário dá-nos a prova de uma loucura muito adiantada. Um voto de silêncio.

 

 

E o amor pelos filhos e pelos netos, que peso é que têm? 

Tenho que reconhecer que isso é uma pequena parte das minhas preocupações.... Como é que posso dizer? Não sou uma pessoa dedicada, não há um exclusivismo da minha parte. Eu diria que a família é uma paisagem da qual se faz parte.

 

E que nos molda e na qual participamos.

Com certeza. Da paisagem faz-se parte, quer se goste ou não, está-se lá. Pode haver um empenhamento maior ou menor mas, de qualquer modo, faz-se corpo com.

 

A sua família de origem, a sua mãe, as suas irmãs, a ausência seu pai, o seu tio, tiveram uma força muito mais fundadora?

Ai, com certeza. Foram as coordenadas.

 

Quando diz que a sua pintura não pode ser dissociada da sua vida, vamos ao encontro do seu percurso e perguntamos o que é que é determinante.

O que é que foi determinante.

 

Até que altura da sua vida pensou que podia fazer outras coisas, fazer-se noutras coisas?

Produzir artes não era uma actividade merecedora de proveitos... Podia ter sido professor, essas coisas mortais. Uma pequenina banana pode fazer espalhar as pessoas. Claro que eu estava fortemente vocacionado, mas. Parece que estou a desfazer, mas não. É uma tentativa de objectividade, de ter a consciência de que as coisas não são assim tão simples.

 

Recupero a seguinte cena: recebe uma bolsa para ir para Paris, depois dizem-lhe que, afinal, o montante já não é o inicialmente proposto, mas metade. A sua vida enfrentava contingências várias, tinha mulher e filhos, nunca tinha saído, e mesmo assim decidiu recusar, «Assim não vou». É verdade isto?

É a mais pura das verdades.

 

O que é que isto revela? Uma enorme obstinação, uma confiança séria no seu talento, uma coragem desmedida?

Nesse episódio da bolsa, eu já não estava dependente da bolsa. A minha bolsa é muito tardia, tive-a quando já ganhava a minha vida a fazer aquilo que queria. Saí numa altura completamente diferente da altura em que saiu a Lourdes Castro, o Costa Pinheiro, etc, que saíram jovenzinhos. A minha sorte já estava jogada.

 

A sorte estava jogada, ponto e vírgula. Em Paris joga numa outra dimensão. Tem contacto com tudo aquilo a que não podia aceder em Portugal, e isso dá um fôlego extraordinário à sua carreira.

Naturalmente. Isto é só para dizer que recusar a bolsa não foi determinante. Não era jogar tudo ou nada. Quando aos 18, 20 anos tentava furiosamente arranjar um ganha-pão, que era o que faziam os meus amigos e camaradas, e eu não conseguia, aí é que a coisa podia ser dramática e podia ter orientado a minha vida de outra maneira. «Orientar de outra maneira» é uma expressão horrorosa!

 

Parece uma expressão de funcionário público.

Exactamente.

 

Que idade tinha quando foi preso com o Mário Soares?

Oh, não tinha 20 anos.

 

Mesmo que aí o risco fosse maior, porque tinha de orientar a sua vida, ainda foi fazer o retrato do General Norton de matos. Foi corrido da escola, impedido de dar aulas e acabou preso.

Pois, mas eu achava isso natural. Nunca pensei que não iria fazer o retrato do General Norton de Matos porque corria o risco de ser mais um professor metido na linha!, não me passou pela cabeça.

 

Não mediu as consequências?

Não. Sabia perfeitamente que havia esse perigo.

 

O tio Bernardino tinha-lhe inculcado muito bem os valores republicanos, é isso?

Na determinação, sim.

 

Não podia ser de outro modo?

Não podia ser de outro modo. Era uma fatalidade, como Lisboa estar ao lado do Tejo. Está ao lado do Tejo, toca a andar, não está ao lado do Sena.

 

Tenho uma pergunta para lhe fazer que é um bocadinho delicada. Quando era muito jovem, que relação tinha com a sua imagem? Isto porque o Mário Soares dizia, num texto antigo, que era um rapaz muito feio.

E era.

 

E com bexigas na cara e os óculos que ainda hoje usa. Mas esta “fealdade” determinou a sua vida?

Era assim. Era assim, pronto. Claro que não posso dizer que não contasse em absoluto. Podia ser coxo, marreco, cego. Eu sabia que não tinha o perfil de um galão de cinema...

 

Disse um galão de cinema? Essa foi a sua maneira, o seu artifício, a ironia e a graça, para poder conquistá-las mesmo não sendo um galã de cinema?

É natural. Acho que não andei a fazer cocorocó, como fazem os galos. Essa parada nupcial nunca foi o meu forte. Pelo menos que eu tivesse dado por isso.

 

Não sei se é uma questão tão despicienda quando isso, se as mulheres são uma paixão e se o erotismo é uma pulsão tão forte da sua pintura.

[Silêncio] Viver em Lisboa quando eu era miúdo era perfeitamente infernal. Quando atravessava o rio para visitar uma tia com a minha mãe, o que era o desembarcar em Cacilhas? Há um poema do António Nobre sobre os pobrezinhos nas procissões e nas romarias, pedem tanto, coitadinhos...

 

Esta conversa está a assumir contornos excessivos... Eu só estava a indagar pela relação com a sua imagem. Espero que não seja susceptível... Onde eu queria chegar era ao retrato que fez do Mário Soares, onde ele aparece muito feio, também! Ocorreu-me se não seria uma vingança.

De maneira nenhuma. Vale a pensa dizer que ele também não era propriamente um bonito rapaz, não era propriamente um Adónis, está muito melhor hoje.

 

Tem a sensação de estar sempre a fazer a mesma coisa ainda que de formas distintas?

Não. De resto sou incapaz de fazer a mesma coisa duas vezes. Não tenho a intenção de me copiar, é uma coisa de que sou absolutamente incapaz. Podia fazê-lo, como qualquer pessoa, mas isso seria uma mortificação, uma ausência de gozo.

 

O gozo maior é a invenção?

É descobrir. A gente não inventa nada, vai descobrindo.

 

Invenção no sentido de descoberta.

É como levantar esta almofada e estar ali qualquer coisa, que a gente sabia bem que lá estava, mas não sabia exactamente como era; então, ao levantar, ela aparece. Isto é que faz a verdade das coisas e das pessoas. É um reencontro com um fundo de existência que pode tomar variadíssimas formas. É uma manifestação vital de um existir.

 

Que coisas estão nesse reencontro?

Eu ponho mesmo em questão a veracidade do «re». É um encontro de qualquer coisa cuja existência se suspeitava. Aquilo a que as pessoas chamam invenção, é essa tal plenitude de existência.

 

Tem medo de morrer.

Não gosto de sofrimentos, ai isso não gosto.

 

Não queria assistir-se diminuído. Por ser um amputação do todo.

Tenho horror.

 

É só horror ou é também vergonha de não aparecer inteiro, de aparecer castrado?

Sim, e de não gozar inteiro. Não é só para os outros.

 

Já sei: não é um fingidor, é um gozador! Parece-lhe bem?

Pintor-gozador de seu natural, sim, parece-me bem!

 

 

Publicado originalmente no Diário de Notícias em Setembro de 2004