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Anabela Mota Ribeiro

Foi muito bonita a festa, pá!

11.03.24

1.

Salgueiro Maia exigiu ser sepultado em campa rasa e sem honras de Estado. Maia comandou a coluna de tanques que saiu de Santarém e que teve a delicadeza, o civismo, o sonho de parar num semáforo antes de derrubar a mais longa ditadura da Europa. Primeira imagem do 25 de Abril: a cara de menino de Salgueiro Maia. Primeiro gesto da dimensão do irreal: respeitar o vermelho, olhos postos no verde, numa noite ainda escura.

Poderia Salgueiro Maia adivinhar que passados 22 anos sobre a sua morte, e rentes aos 40 anos desse dia inaugural, falaríamos da trasladação dos seus restos mortais para o Panteão? Porque foi tão explícita e veemente a decisão no seu testamento? Campa rasa e sem honras de Estado. Como quem quer deixar o Estado de fora disto. Ele que comandou no terreno uma operação genial para mudar o Estado e torná-lo, de novo, parte disto. E, sobretudo, a campa rasa, sem os arrebiques e salamaleques que também acompanham a morte, algumas mortes.

Uma campa de pessoa do povo. Maia tinha orgulho em ser povo. Foi por ele, povo, que disse as famosas palavras: “Como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos.”

Correram os anos. Maia recusou cargos e honrarias, o Estado recusou pensão à sua família. Estudou Ciências Políticas. Desiludiu-se com o outro estado a que chegámos, depois de tudo se ter levantado de uma folha branca, e ainda tão longe deste estado a que chegámos.

Mas os estados não podem senão mudar, e levar-nos na enxurrada da desilusão.

Não é crível que tenha lamentado por um momento os passos daquele dia longo em que era capitão. Nas fotografias parece um rapaz de uma sensatez de aço, elegante como um cavaleiro.

Maia é o povo, o povo que está no coração da História e que é herói. Qual é o lugar dos heróis? E qual é a sua, a nossa, a definição de herói?

Agora o povo está zangado. Com o péssimo que isto está, com o que fica por punir, com o que apanha no ar e não consta nas estatísticas. Zangado e com uma granada no lugar do peito que se chama injustiça. Qual foi o estado a que chegámos? Foi mesmo bonita a festa, pá?*

 

* Foi Bonita a Festa, Pá – de Tanto Mar, tema composto por Chico Buarque para a revolução dos cravos (primeira versão em 1975, segunda em 78).

 

2.

Vejamos as fotografias. A euforia que faz levitar é a do primeiro de Maio, dissipadas as dúvidas. Numa semana, o mundo parecia edificado em certezas.

Uma semana. O tempo que mediou o noivado e o casamento. Todos assistiram à festa. Uma gaivota voava, voava. Um milhão de pessoas na Alameda. Só não estavam os fascistas. Também já tinha diminuído drasticamente o número de fascistas. Porque no dia seguinte todos tinham sido opositores a Salazar, todos tinham sido perseguidos ou presos. A efabulação (de que Adelino Gomes fala numa entrevista com Alfredo Cunha ao PÚBLICO) tinha começado e era transversal. A memória colectiva, inevitavelmente reconstruída, tinha incorporado distorções, inexactidões. Mas eram boas memórias. E aquilo foi uma festa.

Agora lemos o que dizem Os Rapazes dos Tanques sobre o que está pior, e lemos sobre o abismo entre a classe política e o povo. A classe política dos últimos vinte anos. Lemos sobre “a cambada que nos está a dirigir”, “o descrédito da classe política”, “os governos que deram cabo disto, e o caraças”, a “a classe política mais ordinária da Europa”, “uma classe política sem nível e sem sentido de Estado”. Não só isto, mas constantemente isto. Não só isto porque, apesar disto, isto é melhor do que o que havia. Globalmente de acordo em relação a isto. Comprova-o uma sondagem do Instituto de Ciências Sociais (ICS). 58% dos inquiridos consideram o 25 de Abril mais positivo do que negativo. Da esquerda à direita.

Diz o então cabo apontador Vítor Ribeiro Costa no livro de Adelino Gomes e Alfredo Cunha: “O 25 de Abril não trouxe nada de pior. Para a maioria das pessoas, o pior que temos hoje é melhor do que tivemos com Salazar e Marcelo”.

Quando é que começou a aparecer o ponto de interrogação e, repetindo os versos de Chico Buarque, se procurou o restinho de alecrim, a semente esquecida nalgum canto do jardim?

 

3. 

- Quando é que o senhor começou a trabalhar?

- Aos 12 anos.

- Os seus filhos, quando é que começaram a trabalhar?

- Depois da faculdade, fez tudo a faculdade.

- E diz que antigamente é que era melhor?

Irene Flunser Pimentel (1950) travou esta conversa com um taxista, recentemente, em Lisboa. O discurso saudosista do antigamente é uma praga com que a historiadora (de esquerda) lida amiúde. “É verdade que hoje podem ir para a faculdade e ficar desempregados ou ter que emigrar. Mas é outra situação.”

Quão outra situação? Números. Em 1974, estavam inscritos no ensino superior 50 mil alunos, 7% daqueles que estavam em idade de o fazer. Tem-se noção da explosão quando comparamos com os dados de 94. Número de inscritos: 270 mil, 30% dos que tinham entre 18 e 22 anos. (Fonte: A Situação Social em Portugal, 1960-95, organização de António Barreto) Em 2000, eram 350 mil inscritos, 53% dos que tinham entre 18 e 22 anos.

Há um cifra que diz respeito à totalidade da população e que esmaga. Em 1981, quase metade da população com mais de 30 anos não tinha a quarta classe, e 28% não sabiam ler nem escrever. Já a revolução tinha sido e o caminho começado. E no bilhete de identidade carimbava-se “não sabe assinar”. E atestava-se que aquela pessoa era aquela pessoa pela impressão digital. Quase sempre um dedo grosso, pesado. Mão de quem trabalha. Do povo.

Não é novidade para ninguém quem é que ia à escola, quem é que prosseguia a escola, quem é que chegava à universidade. E por isso o 25 de Abril representa a ruptura com o “fatal como o destino”, permite “sair da cepa torta”.

Maria de Lurdes Rodrigues (1956), ex-ministra da Educação (2005/2009) e autora e coordenadora, entre outros títulos, de Políticas Públicas em Portugal (2012, com Pedro Adão e Silva): “O insucesso escolar, como conceito, não existia. A confirmação do acesso à escola como um direito de todos propicia a ascensão social. Numa sociedade estratificada como a portuguesa, onde as pessoas terminavam no ponto onde tinham começado, o conhecimento começou a contar como factor de mobilidade social.”

O taxista que transportava Irene Flunser Pimental falava com orgulho e zanga. Orgulho no esforço que fez para que os seus filhos conseguissem. Orgulho no que os filhos conseguiram. Talvez tenha esquecido o que o Estado fez para que os filhos tenham conseguido.

A educação, o acesso universal à educação, faz parte daquilo a que Tony Judt chamou a “banalidade do bem”, explica Irene Flunser Pimentel. A expressão de Judt é uma forma não poética, mas concreta de falar do Estado Social, conquista da Europa que se ergueu sobre as ruínas da Segunda Guerra e que em Portugal se cimentou no pós-revolução.

O Estado Social é a jóia que ninguém quer empenhar, quanto mais perder. É o anel que resta quando, a alguns, não resta a certeza de haver dedo. E é o anel que os mais jovens se habituaram a ter como uma espécie de sexto dedo.

Houve mesmo um tempo em que os nossos pais, os nossos avós não iam à escola ou começavam a trabalhar depois da quarta classe, a alombar madeira, pedra, por meia dúzia de escudos? Isto com dez, 14 anos. Parece um tempo tão longínquo como o tempo dos reis de Portugal.

O cientista político Pedro Magalhães (1970) contou aos filhos que o seu pai fazia cinco quilómetros a pé, todos os dias, para ir à escola. No profundo Trás-os-Montes. Cinco quilómetros, sob o sol, a chuva, o frio que se entranha nos ossos. “A sério?, mesmo com neve?” Miúdos incrédulos. Zero de atitude prosélita, zero do sermão “e têm muita sorte por não terem as mesmas dificuldades”. Foi só uma história espantosa para um coração esperançado (como deve ser o das crianças de dez anos). Em duas gerações, andou-se isto.

O Estado Social é o que podemos apontar quando nos perguntamos pelo que correu bem. Ramalho Eanes, Mário Soares e Jorge Sampaio defenderam-no numa conferência na Gulbenkian sobre os 40 anos do 25 de Abril. No mesmo dia, na celebração organizada pelo Expresso, SIC e ICS, uma sondagem indicava que o povo – o povo-Salgueiro Maia que percebe muito bem o estado a que vamos chegando – considera que estamos melhor na assistência médica, na educação (70%) e na segurança social (46%). Melhor agora do que no antigo regime.

“A educação e a saúde foram as grandes conquistas da democracia. Não tem grande importância que o Estado Social esteja falido. Está em toda a parte”, afirma André Gonçalves Pereira (1936), advogado e ex-ministro dos Negócios Estrangeiros (1981/83). “É melhor ter um Estado Social falido do que não ter Estado Social nenhum, obviamente”.

O programa estava no essencial escrito numa canção de Sérgio Godinho de 1972. “A paz, o pão, educação, saúde, habitação”. Arranque a seco, grito no refrão: “Só há liberdade a sério quando houver...”. O programa estava no texto (1942) de William Beveridge que serviu de matriz à criação do Estado Social na Europa. O economista apontou os núcleos: ensino, protecção na doença, protecção na velhice, protecção no desemprego e habitação.

Com isto fazia-se O Portugal Futuro do poema de Ruy Belo “aonde o puro pássaro é possível/ e sobre o leito negro do asfalto da estrada/as profundas crianças desenharão a giz (...) Mas desenhem elas o que desenharem/ é essa a forma do meu país/ e chamem elas o que lhe chamarem/ Portugal será e lá serei feliz”.

O poema de 1972 de Ruy Belo desenha uma ideia de felicidade, adivinha a cara que as pessoas vão ter em Abril de 74, a confiança ilimitada no futuro, o sorriso. Está tudo nas fotografias daquele tempo. Era uma vez um país.

 

4.

Toca a fazer. A partir daquele “dia inicial inteiro e limpo/onde emergimos da noite e do silêncio”, versos-síntese de Sophia de Mello Breyner, toca a fazer. Até porque “Quem não faz, não vive, apenas dura”, disse outro português (Padre António Vieira).

E outro disse “Quanto faças, supremamente faz” (Fernando Pessoa). Toca a fazer. Supremamente. Mas como se faz um país livre?, como se concretizam projectos díspares, contraditórios, o meu 25 de Abril e o teu 25 de Abril? Os caminhos do fazer dividem-nos.

Entretanto os soldados regressaram a casa. Não foi “nem mais um só soldado para as colónias” (frase do MRPP). Foi (acima de tudo) para acabar com esse estado de coisas – a guerra – que se fez esta revolução. O meu pai regressou a casa, o que não interessa senão para a minha história e a da minha família. Muitos pais regressaram a casa, o que interessa para as histórias de muitas famílias. O meu pai, que não tinha estado quando comecei a andar ou a falar, regressava. Os nossos pais, os da geração a que pertenço, nascida na década de 70, regressaram dos cus de judas marcados pela guerra. Muitos mais não chegaram a ir. No dia 25 de Abril acabou-se com a ditadura, acabou-se com a guerra. No dia 1 de Maio não se combatia. O meu pai contou-me que a 10 de Junho fizeram uma festa na messe em Angola, cantaram canções de Zeca Afonso. Regressou daí a cinco dias.

Entretanto os políticos e o povo gizaram no asfalto as grandes linhas do puro pássaro, respondendo ao momento.

 

5.

- Quais foram os momentos fracturantes destes 40 anos de democracia?

- As nacionalizações de 11 de Março de 75, as eleições para a Constituinte no dia 25 de Abril de 75, a chegada de meio milhão de retornados entre Abril e Novembro de 75, o 25 de Novembro de 75, a Constituição de 2 de Abril de 76, a revisão do Código Civil em 77, a extinção do Conselho da Revolução em 1982, a abertura do mercado bancário à iniciativa privada em 84, a entrada na CEE em 86, as privatizações a partir de 90, o Euro em circulação a 1 de Janeiro de 2002, a crise mundial de 2008.

As grandes fracturas que não têm data de ratificação: a criação do Estado Social, o desenvolvimento do país, o estatuto da mulher, a eclosão da classe média que solidifica a democracia.

A primeira de todas: o 25 de Abril, que permitiu liberdade de expressão, liberdade de associação, eleições livres, direitos e garantias consagrados. Falar sem ter medo. Falar sem procurar escutas debaixo da mesa. Andar na rua sem procurar a sombra que vigia e delata. Poder espichar numa parede O Povo Unido Jamais Será Vencido. Ter voto na matéria, qualquer matéria.

Acreditar.

 

6.

As nacionalizações, pela historiadora (de direita, então feroz esquerdista) Maria de Fátima Bonifácio (1948). “Foi uma devastação da nossa economia. Custaram anos de atraso ao país. Não foi só a banca, e a banca foi um disparate. Nacionalizaram-se vãos de escada. Era jornalista. Cheguei a fazer a cobertura de uma tinturaria que tinha sido nacionalizada. A ideia de que no Alentejo se nacionalizaram grandes herdades abandonadas é falsa. Estabeleceu-se um método de calcular o valor das herdades através de uma pontuação que valorizava tudo o que era regadio, maquinaria, gado; e foram essas explorações, que estavam a ser bem exploradas, que foram nacionalizadas. O que não se nacionalizou foi o que estava ao abandono.”

Do outro lado: a terra a quem a trabalha, as fábricas a quem lá produz. Vamos corrigir o sofrimento e a injustiça. Socialismo aqui e já.

 

7.

As eleições, um ano depois da revolução. O cumprimento do D de Democracia. Filas intermináveis para votar. Afluência às urnas de 90%. Irene Flunser Pimentel: “É admirável que pessoas que estiveram tantos anos afastadas da política, debaixo de um regime ditatorial, votem em massa de forma entusiástica e organizada. Traduz uma aprendizagem da política muito repentina”.

Homens e mulheres. Agora também mulheres, quaisquer mulheres, e não apenas chefes de família e licenciadas. A emancipação começava. Mas do movimento tectónico que o 25 de Abril representou na vida da mulher fala-se mais à frente.

 

8.

“Então a metrópole afinal é isto” – escreveu Dulce Maria Cardoso no livro O Retorno.

Entre Abril e Novembro de 1975 chegaram 400 mil “retornados”, “a falar das coisas de lá, a minha casa isto a minha casa aquilo, deixei lá isto e aquilo, os tiros isto os morteiros aquilo”.

A grande equação desse tempo e do tempo futuro: e agora? Como se refaz a vida, como se lida com a perda? Uma mão à frente e outra atrás.

Descolonizar, o outro D, por André Gonçalves Pereira: “Muitas pessoas consideram que a descolonização foi o que correu pior. Não concordo inteiramente. A descolonização correu mal como não podia deixar de correr. Foi a descolonização possível, que começou com 15 anos de atraso”.

Quinze anos antes, a guerra.

Para muitos não era um retorno uma vez que nunca aqui, na metrópole, haviam estado. Era em todo o caso um exercício hercúleo para milhares de “desterrados”. É assim que Dulce Maria Cardoso lhes chama, é a eles que dedica o livro. “Três malas e vinte contos é tudo o que temos até resolvermos a vida. Resolver a vida é o que mais se ouve entre os retornados”.

Rui Pena Pires (1955), especialista em movimentos migratórios, chegou de Angola em Setembro de 75. Olha para o fenómeno com olhos de sociólogo. “Os retornados voltam ao seu ponto de origem, espalham-se pelo país. É o contrário do que acontece em França, com os pied noir a concentrarem-se em Marselha. A dispersão transforma o fenómeno num fenómeno nacional. Os retornados são em média mais qualificados, empreendedores. Houve um período em que um terço dos patrões (de indústria, comércio e serviços) em Trás-os-Montes eram retornados. Trazem diversidade religiosa (aparecem os primeiros grupos de muçulmanos). Quebram o grau de homogeneidade que havia (chegam mestiços). Constituem uma população maioritariamente de direita, furiosa com a descolonização. Mário Soares centraliza ódios.”

Ah, e os retornados aprenderam o que são frieiras e cieiro, lê-se em O Retorno. Trouxeram mini-saias, roupa descapotável, a liberalização dos costumes, a ideia de uma vida livre, com espaço a perder de vista, que tinham nas colónias. Uma certa forma de calor.

Integraram-se sem rupturas e convulsões sociais. Um êxito, também do novo poder local.

 

9.

O golpe militar contra-revolucionário de 25 de Novembro por Henrique Granadeiro (1943). “Foi o realinhar das coisas em conformidade com o projecto inicial. Havia um desvio que defraudava a generalidade das pessoas, que não queriam substituir uma ditadura por outra. A tentativa de implementação de uma sociedade socialista já tinha aspectos evidentes. Cartilhas, saneamento, violência.”

O que houve entre 25 de Abril de 74 e 25 de Novembro de 75? Num ano e meio fez-se a revolução, começou um novo calendário, e com ele a corrupção do sonho. As dificuldades típicas do momento em que a minha liberdade começa a ocupar o espaço da tua. As dificuldades típicas do momento em que a revolução é minha e faço com ela o que eu acho que deve ser feito. Eu e o meu grupo político. E toda a gente tinha um grupo político.

Ramalho Eanes foi o responsável pelo plano de operações do golpe, não deu espaço às pressões dos radicais. Rematou-se um Verão Quente. O PC saiu derrotado. Ideologicamente foi um marco.

Henrique Granadeiro foi chefe da Casa Civil de Eanes entre 1976/79. O seu discurso é o dos vencedores do 25 de Novembro.

O historiador Pacheco Pereira, que organizou na Assembleia da República uma exposição que comemora os 40 anos da democracia, considera que foi nesse período que nasceu a democracia. “Quem pena com os excessos do PREC é quem não gostou do 25 de Abril. O PREC teve excessos e houve mortos e gente que mandou matar, mas a verdade é que foi naqueles anos turbulentos que nasceu a democracia portuguesa”, disse numa entrevista recente ao jornal i.

 

10. 

Constituição de 76. “É o primeiro instrumento organizador do que vamos ser”, sintetiza Maria Manuel Leitão Marques (1952), professora universitária e ex-Secretária de Estado da Modernização Administrativa (2007/11). “Tudo o resto é afinado a partir daí. Há coisas que são muito alteradas nas revisões constitucionais, mais na organização do poder político (sobretudo em 82) e da economia (em 89), menos nos direitos e deveres fundamentais.”

No princípio, nessa magna carta, estava escrito que devíamos caminhar para o socialismo. Que socialismo? Que caminhos? A questão não é despicienda, porque mexe com um entendimento do que a democracia deve ser. E porque, sustenta Pedro Magalhães, “a maioria das pessoas tende a associar – e intensamente – liberdade de expressão, liberdade de associação e eleições livres a justiça social, segurança e prosperidade económica.”

Esta era a promessa, reflectida na Constituição de 76.

Um equívoco, considera Maria de Fátima Bonifácio. “As pessoas habituaram-se a usar democracia e bem estar económico como sinónimos. No meu ponto de vista, democracia [corresponde] a liberdades, direitos, a um Estado de Direito, ao Serviço Nacional de Saúde (que é uma aquisição civilizacional, mesmo que não faça sentido eu pagar o mesmo que a minha empregada por uma radiografia). Mas a democracia não são os ténis da Nike. A democracia pode ser mais redistributiva ou menos, conforme o Governo for mais social democrata, menos social democrata. Em si mesma, não promove o crescimento e o desenvolvimento económico. A prova é que a Europa está em recessão há anos e promete continuar a arrastar os pés.”

Esta associação entre prosperidade, bem estar e liberdades cívicas não é exclusiva de Portugal. “É característica de democracias mais pobres e de democracias mais recentes” especifica Pedro Magalhães. “Os EUA, a Suécia, a Noruega dizem que democracia corresponde a liberdade de expressão, liberdade de associação, eleições livres”.

Esta é uma das pistas para compreender a nossa zanga com a democracia. “As pessoas sentem que ainda não receberam dela o que estava prometido”, diz o cientista político. “As democracias nórdicas, que queremos ser há 40 anos, têm menos corrupção, melhor governo, são menos desiguais, têm nível de vida médio mais elevado. Têm o pacote completo.”

O pacote completo que o povo também quer. Não foi (também) para isso que se fez uma revolução, pá? Portanto porque é que não o temos, grita o povo. “Porque 40 anos é pouco tempo”, conclui Pedro Magalhães.

 

11.

A Revisão do Código Civil em 77 consagra a igualdade constitucional entre homem e mulher em toda a vida familiar.

Era o momento das mulheres. “Os homens ganharam liberdade política. As mulheres ganharam tudo. Ainda me lembro que a minha mãe tinha que pedir autorização ao meu pai quando queria passar férias comigo, em Berkeley. Ou quando quis comprar um carro. A minha mãe era uma alemã que cresceu nos anos 20, em Berlim. Imagine.” Alexandre Quintanilha (1945), cientista. Os pais viviam em Moçambique. Lá como cá, o homem tinha o direito de ver a correspondência da mulher. Um contraste absoluto com o ambiente da baía de São Francisco, onde Quintanilha trabalhava e vivia.

Veio a Portugal em 1979 com o então namorado hoje marido Richard Zimler.

Entretanto a célula da família mudou tanto que é possível escrever banalmente “o então namorado hoje marido”. Como se o casamento homossexual não fosse um tema fracturante (expressão que não se usava e agora se usa).

Entretanto também o sexo deixou de ser um tema fracturante. “Já não passa pela cabeça de ninguém criticar uma mulher por ter tido relações sexuais antes do casamento. Há uns anos, se a mulher não fosse virgem, tinha um nome”, nota Quintanilha.

O casal mudou-se para Portugal em 1990. Casaram em 2010 poucos meses depois da aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas quando vieram juntos pela primeira vez encontraram um país “medieval”.

Não havia jornais estrangeiros, levava-se um dia para chegar a um lugar mais recôndito, esperava-se meses – ou anos – que instalassem o telefone em casa. E ficava-se à mercê das pessoas que se conhecia e que podiam aligeirar o processo. “Eu telefono ao senhor não sei quantos e ele trata disso – diziam-me. Ou éramos ignorados porque ninguém nos conhecia ou éramos tratados como príncipes porque trazíamos recomendação.”

Diagnóstico: arbitrariedade e ineficiência do sistema. Palavra de todos os dias: meter uma cunha. Cunha em modo soft.

Mais à frente, quando o dinheiro começou a ser a sério, meteram-se cunhas a sério. Algumas eram tão a sério que passaram a chamar-se corrupção. Mas isso é mais à frente.

As mulheres, para já. Uma das primeiras manifestações, logo depois do 25 de Abril, teve que ver com a proibição do divórcio dos que eram casados pela igreja – a esmagadora maioria.

Irene Flunser Pimentel: “Fez-se um comício. Pela primeira vez uma mulher foi oradora principal. A questão do divórcio tocou homens e mulheres. Muitos deles tinham amantes, filhos ilegítimos”.

Porque é que isso constituía um drama? Porque homens e mulheres separavam-se e continuavam casados com os antigos maridos e mulheres; porque viviam com outros e continuavam casados com os anteriores; porque tinham filhos das novas relações e não os podiam perfilhar. Numa linha: não era possível dissolver uma família e constituir outra.

Em 1975, o ministro da Justiça Salgado Zenha reviu a Concordata com a Santa Sé. Passou a ser possível o divórcio entre casados pela igreja.

Número de divórcios em 1965: 600. Em 1975, há 1500. Em 1977, há 7700.

A completa igualdade entre filhos e entre homem e mulher, que resulta da Constituição de 76, é incorporada no Código Civil de 77.

 

12.

A extinção do Conselho da Revolução em 82 e a criação do Tribunal Constitucional. Henrique Granadeiro: “Do ponto de vista simbólico, é um grande momento. Do ponto de vista prático, nem tanto. O general Eanes era presidente da República e chefe do Estado Maior das Forças Armadas, era o vértice do encontro do poder militar com o poder civil. Foi enviando a tropa para os quartéis e valorizando a política nas instituições. A extinção do Conselho da Revolução foi a morte natural de um processo que veio a ser conduzido por ele desde o primeiro momento, de forma discreta e sistemática.”

 

13.

Um não momento: o bloco central liderado por Mário Soares e Mota Pinto pede ajuda ao FMI em 83. Os portugueses habituam-se a ver Teresa Ter-Minassian na televisão. José Mário Branco compõe o disco FMI.

Um não momento porque somos essencialmente os mesmos depois dessa passagem ou da passagem de 77. Ao contrário do que acontece com a presença da Troika desde Abril de 2011.

Então tínhamos moeda própria, inflação e desvalorização. E a Europa era um oásis próximo. José Medeiros Ferreira, sonhador da pertença à Europa e ao mundo, havia feito o pedido de adesão quando era ministro dos Negócios Estrangeiros (1976/78). Esse sim, um momento.

 

14.

Outros gráficos. Taxa de mortalidade infantil: 55 por mil nados-vivos em 1970. Oito por mil em 1994. Três por mil em 2008. A média da UE é superior a quatro por mil.

Número de pensionistas: em 1960 são 56 mil, em 1976 é um milhão. Pensão de sobrevivência: em 1960 são sete mil beneficiários, em 1976 são 125 mil. (Fonte: Eurostat e Pordata)

Em 1980, Cavaco Silva, na pasta das Finanças do Governo Sá Carneiro, faz um alargamento do regime não contributivo. Mulheres que foram domésticas toda a vida, agricultores e outros que nunca tinham contribuído passam a ter protecção social.

 

15.

Nick Racich (1952) chegou a Portugal há 30 anos, quando foram concedidas as primeiras licenças à banca privada. Banqueiro, vice-presidente do banco BIG, estudou na prestigiada Wharton School depois de abandonar um doutoramento em Dom Quixote de la Mancha de Cervantes. Um percurso banal num país como os Estados Unidos, improvável para não dizer impossível num país como Portugal.

Este americano de Filadélfia, trabalhava em Nova Iorque e tudo o que sabia de Portugal era que Lisboa era um jóia. Claro que sabia onde ficava Portugal, mas no banco onde trabalhava, em 1980, “em termos de organização, Portugal e Espanha faziam parte da América Latina. Em todos os bancos americanos era assim. Por causa da língua. Só em 86, quando integraram a Comunidade Económica Europeia, começaram a estar arrumados de outra maneira”.

Nick Racich falava espanhol por causa do cavaleiro da triste figura. Hoje fala um português sem mácula. Tem dupla nacionalidade e diz pá.

“O primeiro sector a ser aberto à iniciativa privada foi o bancário. Foi uma medida inteligente porque a banca é um motor da economia. Não havia mercado monetário, mercado cambial, bolsa, não havia produtos financeiros. Em poucos anos chegámos a ter 17 bancos estrangeiros. Começou a pensar-se na privatização de sectores chave da economia.”

A cerveja não é um sector chave, mas foi com a Unicer em 1989 que começaram as privatizações. Verdadeiramente só em Abril de 1990, com a lei das mesmas, começaram a ser levadas a cabo.

Outra palavra começava a ser usada: empreendedorismo. Com um significado que não coincide com o de um americano: “Empreendedorismo é pegar em capital – nosso, privado – e começar com esse capital, e não esperar patrocínios, dinheiro do Estado ou dívida bancária”.

Mas isto é um americano a falar, com uma aprendizagem diferente da nossa, que vive num país-continente onde é possível recomeçar no dia seguinte, várias vezes. A escala permite-o.  

Em Portugal, a democracia tinha pouco mais de dez anos. E o dinheiro da CEE estava a chegar. O país parecia de mangas arregaçadas, com condições para cumprir o D de desenvolvimento.

 

16.

Bem, não exactamente de mangas arregaçadas.

O que ficou no imaginário colectivo: betão, rotundas, infra-estruturas ruinosas. Recursos malbaratados, fraude com os dinheiros do Fundo Social Europeu e do PEDIP. Uma certa trafulhice e o início do folguedo.

É uma visão injusta, porque parcelar, dos anos que começavam com a adesão de Portugal à CEE. Essa foi a década da emergência da classe média, do alargamento do Sistema Nacional de Saúde, da estabilidade democrática. Mais do que tudo: essa foi a década em que deixámos de ser a choldra e passámos a fazer parte de um clube selecto. Ruy Belo, que parecia saber tudo, e antes do tempo, escreveu no poema Sexta-Feira Sol Dourado: “Agora é que vamos ser felizes (...) Portugal fica em frente.”

O Portugal triste fotografado por Victor Palla, a preto e branco, o português pobre encarnado por Belarmino no filme de Fernando Lopes (1964) pareciam de outro século. Tinham passado apenas 20 anos.

Nenhuma das pessoas ouvidas pelo PÚBLICO para a elaboração deste texto deixou de referir a entrada na CEE como momento chave de 40 anos de democracia.

O fiscalista e professor universitário João Taborda da Gama (1977) chamou-lhe “o mecenas do nosso 25 de Abril. Quer dizer, a Europa permitiu-nos ter o dinheiro para efectivar o 25 de Abril”.

 

17.

Quando é que começámos a ter um Estado gordo? Maria Manuel Leitão Marques: “Eu não sei se temos um Estado gordo. A questão é a de saber que Estado podemos sustentar e onde devemos concentrar a despesa. Mas no final dos anos 80, algumas das reformas nas carreiras da função pública efectuadas por Cavaco Silva, designadamente com a criação de promoções automáticas por tempo de serviço, aumentaram significativamente a despesa com funcionários. Mesmo que a intenção fosse boa, o resultado foi desastroso em termos de progressões não assentes em critérios de mérito e tornou o peso dos salários na administração pública muito elevado.”

Miguel Cadilhe, então ministro das Finanças, discordou e saiu do executivo.

A imagem não era a da grande porca de Bordalo Pinheiro, que serve para a expressão “mamar na teta do Estado”. Essa veio (voltou) mais tarde. A imagem era a de um Estado tentacular que dominava toda a economia (ainda que de 1990 a 95 o sector público tenha sido fortemente diminuído com as privatizações). A imagem era a de um Estado onde cabiam as clientelas políticas, a ineficiência, o manga de alpaca. O Estado dos tachos.

Contudo, as prestações sociais ainda estavam aquém da média europeia. O Estado Social era recente e insuficiente. Continuou necessariamente a crescer, na educação, na saúde, nas pensões. António Guterres fez da educação a sua paixão. Em 2002 Durão Barroso disse que o país estava de tanga.

A resolução do problema não se fez com uma diminuição da despesa nem com reformas estruturais dirigidas ao crescimento, mas com uma reforma da máquina fiscal. Cobraram-se impostos, muitas vezes devidos há anos e anos.

João Taborda da Gama: “É verdade que havia um sentimento de grande impunidade e de corrupção na administração fiscal. O momento marcante foi quando Paulo Macedo assumiu o lugar de Director Geral dos Impostos (2004/2007). Hoje esse sentimento de impunidade não existe.”

A confusão entre despesa com o Estado Social (pensões, educação, saúde) e peso da máquina administrativa é um preconceito antigo. No ano em que Portugal pediu ajuda financeira e a palavra de ordem era cortar nas gorduras do Estado, o nível de despesa pública no PIB era de 48,9%. A média da União a 27 era 49,1% e da Zona Euro 49, 4%. (Fonte: Eurostat). Grande parte da despesa pública estava concentrada em pagamentos de pensões e funcionalismo público – a fatia era de 65, 70%.

Segundo o livro de Emanuel dos Santos, Sem Crescimento Não Há Consolidação Orçamental, em 2011, 47% da despesa pública consistia em redistribuição de recursos que o Estado operava de uns cidadãos para outros, incluindo pensões e outras prestações sociais. As despesas de funcionamento da administração pública (salários mais consumos intermédios) representavam 39% dos gastos totais. Mas como abrangiam a produção de serviços como a educação, a saúde ou a segurança, o custo da máquina burocrática do Estado central ficava-se pelos 15,5% da despesa pública ou 7,2% do PIB. 

 

18.

Uma confusão: despesa pública com o Estado Social e custo da máquina administrativa. Outra confusão: dívida interna e dívida externa. Outra confusão ainda: dívida e crescimento. Para Nick Racich, o problema não é o que devemos, o problema é o que não crescemos. “O endividamento externo português em 83/84 era qualquer coisa como 16 mil milhões de dólares. Em 2011 era 20 vezes superior. E o PIB apenas duplicou. Ou seja, o país produziu o dobro mas pediu emprestado 20 vezes mais.”

O que é que o país fez com o dinheiro que foi buscar? Entre 1998 e 2010, o investimento produtivo feito pelo sector financeiro baixou 20%, o financiamento ao consumo privado aumentou 19%. (Fonte: artigo de opinião de João Pinto e Castro no Jornal de Negócios a partir do livro de Emanuel dos Santos Sem Crescimento Não Há Consolidação Orçamental).

“É um país extremamente endividado. Não mais do que os outros. A diferença está em que alguns conseguem dar a volta rapidamente. Portugal, não”, diz Nick Racich.

De novo gritamos, zangados com o nosso malfadado destino: porque é que não conseguimos dar a volta? Porque é que voltamos a ouvir Júlio César dizer que este é um povo que nem se governa nem se deixa governar? (É a elite ou o povo que não se governa nem se deixa governar?) Porque é que lemos Causas da Decadência dos Povos Peninsulares (1871) de Antero de Quental e o texto nos faz sentido?

“É uma democracia muito nova”, continua o banqueiro. “40 anos é muito pouco. São duas gerações. Ainda temos muitas pessoas vivas que viveram o antes. E antes de décadas de ditadura estão séculos de monarquia, de paternalismo.”

João Constâncio (1971), professor universitário, autor, entre outros, do livro Nietzsche e o Enigma do Mundo, chama igualmente a atenção para este ponto. “Em 40 anos não se substitui a população de um país. A cabeça das pessoas não mudou o suficiente, apesar das transformações económicas e sociais. Em 40 anos não se transforma uma população em grande medida analfabeta numa população instruída.”

Pensemos nisto: quantos dos que estavam vivos em 1974, com uma identidade, um passado, uma raiz fizeram a transição para o Portugal democrático. Quantos dos que eram impreparados, iletrados aprenderam a viver num país novo. E pensemos nos que nasceram depois de 74 e nos filhos desses. Dir-se-ia filhos de um outro país. Contudo, os nossos pais ainda são aqueles.  

 

19.

Problema central: porque não crescemos? A resposta de Henrique Granadeiro: “Existe uma correlação directa entre instabilidade política e desenvolvimento económico. Tivemos 25 governos em 40 anos [seis governos provisórios e 19 governos constitucionais]. Com este vai e vem de governos é impossível gerar políticas de longo prazo. A primeira preocupação do governo seguinte é rectificar o [que considera] disparates do governo anterior. Isso introduz uma precariedade cujo resultado está à vista.”

Segundo dados do Eurostat, os ciclos políticos mais longos e com maior taxa de crescimento correspondem aos X, XI e XII governos (1985/95, governos de Cavaco Silva) com uma taxa de crescimento do PIB de 4,2%. Os XIII e XIV governos (1995/2002, governos de António Guterres) tiveram uma taxa de crescimento de 3%.

Na opinião do presidente da PT, “o sistema constitucional permite, e em certa medida encoraja, a existência de governos minoritários. Um exemplo: o presidente da República empossou um governo minoritário em plena crise mundial (2009). Foi um erro político de Cavaco, que o nomeou, e um erro político de Sócrates, que aceitou.”

O povo volta a perguntar: porque é que não crescemos, porque é que não damos a volta?

Ouçamos de novo as vozes dos Rapazes dos Tanques, das manifestações, dos que agora emigram. Ouçamos a zanga com a classe política, com essa elite. Com a elite que não dá a volta, que não nos faz dar a volta, que não nos deixa dar a volta. Uma elite pequena, pouco capitalizada e dependente do Estado.

O advogado Vasco Vieira de Almeida disse numa entrevista ao Jornal de Negócios (2012): “Em Portugal pertencer a uma elite nunca representou, como devia, uma fonte extra de obrigações, antes uma atribuição anormal de privilégios. O povo foi sempre melhor do que as elites”.

 

20.

Antes do leite derramado, há a Expo 98 e o orgulho numa obra com aquela dimensão, aquela beleza. Não é pouco porque um povo precisa de pão e circo.

Antes ainda privatiza-se a produção de informação. Aparecem as rádios e as televisões privadas. Não muda só a forma de comunicar. Muda, o que é fundamental, a forma de comunicar política e consequentemente a forma de fazer política.

Mudam os protagonistas. O povo aparece na televisão, a sua biografia importa. O povo vê e comenta o povo na televisão, a elite vê o povo na televisão e comenta o Big Brother de Orwell.

Nos anos 90 o mundo era tão estável que a geração nascida na década de 70, ou pouco antes, não sabia o que era o contrário de liberdade.

João Constâncio era um miúdo quando o pai, Vítor Constâncio, foi secretário-geral do Partido Socialista (1986/89). Acompanhava-os nos comícios, no fervilhar da política. Depois fechou-se a estudar. Grego antigo, alemão, Platão. “A minha geração foi a primeira que pôde viver acomodada no tipo de democracia ocidental que resultou do 25 de Abril. A política era uma questão que estava resolvida. Alguém já tinha feito o que era preciso fazer. Mais do que isso: a política tinha-se tornado uma questão burocrática. Não havia nada de heróico nem de decisivo nela. Como costumo dizer, não vivi os anos 90. Como se o mundo não existisse para mim. Eu podia estar alienado, para usar uma linguagem marxista, nas minhas preocupações existenciais.”

O poeta e cirurgião plástico João Luís Barreto Guimarães, nascido em 1967, diz o mesmo num dos poemas do livro Você Está Aqui: “Ninguém da nossa geração esteve na revolução; outros, antes de nós, fizeram as nossas guerras. Quando chegámos aos dias já a guerra havia sido (...) Para nós sobejou outra sorte de batalhas: levantar cada manhã o peso imenso das pálpebras, correr por um lugar na trincheira do balcão”.

O poema traduz um lamento, o individualismo, uma vida por vezes autómata. “Agora luta-se por o ter a casa, o ter o carro, o ter o telemóvel. Coisas concretas destituídas de idealismo”, diz Barreto Guimarães.

Algumas palavras caíram em desuso. Idealismo, por exemplo.

 

21.

Adeus escudo, willkommen Euro. As novas notas apareceram há 12 anos.

A vida subiu de preço. No supermercado e na bomba de gasolina, nos restaurantes e nos centros comerciais. Só uma coisa embarateceu, e muito: o preço do dinheiro. As taxas de juro eram tão baixas que só não tinha casa própria quem não quisesse (dizia-se). E já agora férias na República Dominicana (a crédito). E um segundo carro para a família (ainda a crédito). A banca, de motor da economia, passou a motor do consumo.

Foi o momento em que palavras como spread se começaram a usar todos os dias. E os bancos se sobre-endividaram (além do estabelecido nas regras de Basileia) a curto para emprestar a longo prazo.

O endividamento dos bancos portugueses no estrangeiro passou de 49% do PIB em 1999 para 96% em 2007.

Até que o Lehman Brothers tombou e a torneira estancou.

 

22.

Fomos nós que vivemos acima das nossas possibilidades? João Constâncio rejeita o que considera ser um discurso punitivo que se impôs depois da queda do gigante americano e em especial depois do pedido de resgate do Estado português. “Um discurso que faz as pessoas sentirem que desde a entrada na CEE até 2011 andaram a viver de uma herança de uma tia rica. E que têm de voltar a ser pobres porque Portugal é um país pobre.”

Do outro lado: os povos do sul são preguiçosos, desorganizados, perdulários. Há quem pense que, além destes atributos, são ignaros.

As crianças introduziram no seu léxico uma palavra nova: austeridade. E aprenderam, à força de ouvir os pais, os avós, a televisão, que o futuro podia não ser radioso. Que o mais provável é que não seja radioso.

Centenas de milhares de pessoas manifestaram-se e empunharam cartazes onde se lia: queremos o nosso futuro de volta. Homens, mulheres, crianças, jovens, velhos. Reformados que se transformaram no esteio de milhares de famílias (apesar das pensões cortadas para metade). A classe média que vive no fio (por causa dos cortes para metade). Desempregados. Gerações à rasca. Não estavam as centenas de milhares que nos últimos anos tiveram que emigrar.

João Luís Barreto Guimarães especializou-se em reconstrução mamária de mulheres que tiveram cancro da mama. No hospital, no consultório, assiste a uma degradação rápida da jóia indiscutível que é o SNS, ao empobrecimento do povo. “É preciso saber ler os sinais. As pessoas andam tristes, estão a engordar, a envelhecer, têm sapatos cambados, roupa puída, semblantes zangados. Os doentes dizem: ‘Tenho diabetes, hipertensão arterial e insuficiência cardíaca. Deste três, qual é o menos grave? Porque só tenho dinheiro para comprar medicamentos para dois.’ A vida inteira trabalharam, confiando que o Estado era pessoa de bem e que um dia, quando precisassem da reforma, iam tê-la. O Estado pura e simplesmente está-lhes a falhar. Estica a corda sem introduzir o factor sentimental na regra económica.”

 

23.

- Onde é que falhámos?, o que é que correu mal?

- André Gonçalves Pereira: “Nada correu especialmente mal. A sociedade é o que é. Temos um regime aristocrático medíocre, em que o papel das famílias dominantes é desempenhado pelos partidos políticos. A nova aristocracia são os partidos políticos. É uma aristocracia de posição, não de ideias nem de nascimento.”

- Rui Pena Pires: “O que é que falhou no 25 de Abril? Nada. Nos últimos 40 anos, o que falhou mais foi o facto de continuarmos a ser o país mais desigual da Europa (agora menos do que a Bulgária e a Roménia – não é grande consolo).

- João Luís Barreto Guimarães: “Abril realizou-se? A resposta é não. Não se cumpriram os objectivos da revolução. A sociedade não cresceu como um todo. Aumenta o fosso entre os mais pobres e aqueles que enriquecem na proximidade do poder. Tenho a maior desconfiança da classe política. O pote vai voltar a encher? Temo que o regabofe volte.”

- Maria Manuel Leitão Marques: “Foi-se avançando com as maiorias políticas existentes. Seria bom que tivéssemos tido governos de maioria? Não os tivemos. Porque as pessoas não votaram assim nem obrigaram a que houvesse um pacto entre os principais partidos. Mas devíamos ter tido mais coragem e mais visão para em 1986 fazer reformas dolorosas. Por exemplo, de reestruturação empresarial (e não alimentar com fundos europeus empresas cuja competitividade era duvidosa, e que caíram agora como tordos). Isso tem custos. Há clientelas políticas que se perdem.”

- Irene Flunser Pimentel: “Correu-nos mal a Europa, como correu mal a outros países. Não foi a nossa inserção no projecto europeu. Foi o projecto europeu. Não fizemos uma união política europeia. Fomos pela via do dinheiro, e aconteceu o que aconteceu.”

- João Constâncio: “Até 2010, a evolução do país foi muito positiva. O que correu mal foi a resposta da Europa à crise das dívidas soberanas, que afectou em particular certos países da Zona Euro, entre eles Portugal. As coisas podiam ter tomado outro caminho. Um caminho que reconhecesse a assimetria que há desde início entre a periferia e o centro. As principais decisões foram tomadas segundo o princípio “cada um por si”.

- Alexandre Quintanilha: “Grande falhanço: é capaz de ser a justiça. Como se vê. Portugal continua a ser muito individualista e tem dificuldade na interdisciplinaridade. Pomos pessoas da Filosofia a falar com um cientista e há sempre um arrogante que faz troça, que acha que o outro não sabe o que está a dizer. Educação: é mentira que a escola pública seja má. Há de tudo, claro. Mas em todas as turmas que passaram por mim havia pessoas excepcionais.”

- Maria de Fátima Bonifácio: “A democratização do ensino foi calamitosa. Dizer que é a geração mais bem preparada de sempre dá-me vontade de rir. Fui professora universitária de 1980 a 2008. As pessoas podem ter diplomas que atestam a sua escolaridade, mas o nível de ignorância é assustador. Se houver 15% de alunos excelentes, é fantástico.”

- Nick Racich: “A confiança na justiça está abalada. Nos EUA, os Madoff vão para a prisão por 150 anos. Em Portugal, o povo tem a noção de que ao tubarão não acontece nada. Que o tubarão se safa. Os políticos estão a subestimar a importância da confiança na vida das pessoas. O sentimento de injustiça cria zanga, desapontamento.”

- Maria de Lurdes Rodrigues: “As ambições e expectativas vão sendo actualizadas, reajustadas. Todos os estudos apontam para ter sido o sector da justiça aquele em que a mudança falhou.”

- Pedro Magalhães: “É normal o cepticismo em relação à política, é saudável. Onde não vejo tanta saúde é na desconfiança em relação à justiça. Confiam na justiça 28% dos inquiridos. Na Dinamarca, confiam 84%. (Dados de 2010.) Isto é muito grave e preocupante. Tenho de confiar na justiça para resolver os problemas que tenho na relação com os outros, com o Estado. Se não confio na justiça, o que é que sobra? Na sondagem que se apresentou na Gulbenkian, 77% acham que estamos pior agora do que no antigo regime no que diz respeito à corrupção; 81% acham que estamos pior na criminalidade e na segurança.”

- João Taborda da Gama: “O 25 de Abril chega tarde. Se tivéssemos tido uma revolução dez, quinze anos antes tínhamos tido um desenvolvimento mais sustentado. Foi tudo feito muito à pressa porque teve de ser tudo feito muito à pressa. Por causa da Europa (que era o nosso quadro institucional e geoestratégico). Isso vê-se, por exemplo, no desastre urbanístico de Portugal. A marquise é o símbolo desse desenvolvimento.

Outros pés de barros: como povo, como comunidade, não fomos exigentes com o investimento público, as rendas excessivas, as instituições.”

- Henrique Granadeiro: “A classe média, conquista de Abril, está a sair pela porta dos fundos. O ar do tempo é claramente de fim de regime. As pessoas não têm confiança no Governo nem esperam grande coisa da oposição, e não olham para o presidente da República como defensor das instituições. Estamos a viver num puro sistema tecnocrático. Um sistema onde as decisões são tomadas mas onde não há política. Faz-me lembrar a frase que um anarquista mexicano pôs num mural: ‘Basta de realizações, dêem-nos promessas’. As pessoas precisam de um discurso político portador de alguma esperança. E mesmo de alguma ilusão.”

 

24.

Ainda que continuemos a ser Fátima, Fado e Futebol, não somos da mesma maneira Fátima, Fado e Futebol. O Fado é Património Imaterial da Humanidade, Camané, Carminho e Mariza enchem plateias no mundo todo. José Mourinho foi o melhor treinador do mundo, Cristiano Ronaldo é o melhor jogador do mundo. Fátima continua cheia, com uma basílica nova, mas o peso da religião é outro.

João Taborda da Gama foi discípulo de Saldanha Sanches, consultor de Cavaco Silva na presidência, tem cinco filhos. Não recebeu dos pais, Jaime Gama e Alda Taborda, uma educação religiosa. Converteu-se ao catolicismo na universidade. “Hoje a religião é um fenómeno mais reflexivo e menos ritualístico. Há uma queda dos níveis de participação religiosa, há uma secularização da sociedade, como em toda a europa. Mas aqueles que têm uma vivência religiosa têm-na de uma forma menos automática. É uma religião mais vivida, mais espiritual.”

E agora também temos Manoel de Oliveira, Paula Rego, Saramago, Siza projectados no mundo todo, cientistas entre os melhores do mundo. Em muitas disciplinas estamos entre os melhores do mundo.

João Constâncio: “Quando comecei a dar aulas, em 96, fazia o doutoramento quem era professor universitário. Tudo isso mudou imenso. A universidade produz uma elite, que é pequena, mas que apesar de tudo é muito maior do que era, e que tem uma dimensão internacional, está inserida em redes internacionais de investigação.”

 

25.                                                                                                      

O 25 de Abril foi a invenção do dia claro, para glosar o título de Almada Negreiros. Há muito que se perdeu a capacidade de sonhar, o impulso vital da juventude. O povo voltou a cantar Grândola Vila Morena. Lídia Jorge escreve em Os Memoráveis, livro-olhar sobre o 25 de Abril, que precisamos de uma nova canção. Escreve também: “Acha, então, que a mente humana está definitivamente formatada para se esquecer do bem? Para se esquecer dos momentos em que o anjo da alegria passa pelo mundo?”.

É isso. Passou por nós o anjo da alegria. Apesar de tudo, foi muito bonita a festa, pá. Resta saber como vamos cumprir o Portugal que falta.

 

  

Publicado originalmente no Público no dia 25 de Abril de 2014