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Anabela Mota Ribeiro

Alexandre Farto aka Vhils

14.09.13

Alexandre Farto aka Vhils: Artista plural, gesto abrasivo e poético (as palavras são dele), trabalha sobre materiais negligenciados, pobres (que é dizer mais do que dizer não-nobres). No mundo todo, com o corpo todo (e não apenas a mão). Entre outras coisas, quis ser um inventor – ter ideias e executá-las. O que faz não anda longe disto. No seu trabalho está a cara da gente na cara do mundo.

Esta entrevista foi feita propositadamente para este blog, e partiu de uma série de perguntas enviadas por email. Os caminhos que usámos para a concretizar são os mesmos de que agora partimos para a divulgar.

 

O que se aprende nos livros e nos discos e na arte é muito diferente do que se aprende na vida?

Na minha opinião, depende, naturalmente, dos livros, dos discos e da arte. De um modo geral todas as artes reflectem a vida. O que a arte nos permite é o acesso a outra perspectiva, a possibilidade de sentir ou experienciar um pouco mais do que aquilo que sentimos, vemos e ouvimos. Quer concordemos ou não com essa perspectiva, com essa reprodução interpretativa da realidade, creio que ela é sempre enriquecedora.

 

O seu percurso artístico tem uma dimensão no estrangeiro muito significativa. Também em Portugal. Quando trabalha, pensa sem fronteiras e sem barreiras?

Sim, sempre, e em vários sentidos. Embora também pense nas barreiras como metas a serem ultrapassadas, não ignoro a sua existência; procuro ignorar, sim, as impossibilidades que visam impor.

Em termos culturais e geográficos cresci num subúrbio de Lisboa, na Margem Sul do Tejo. Aquilo que presenciei, aquilo que me rodeou durante esse processo de crescimento, fez-me ter noção de um fenómeno de natureza urbanística e económica (com consequências sociais relevantes) que nessa altura pensava ser especificamente local. Mais tarde, quando comecei a ter noção do que era o mundo além fronteiras, entendi que afinal esse fenómeno se estava a replicar globalmente.

 

Isso repercute-se no seu trabalho?

Sim, esta noção de homogeneização em termos culturais, sociais e económicos tem tido um enorme impacto no meu trabalho. As minhas intervenções procuram encetar tanto uma reflexão especificamente local como, ao mesmo tempo, oferecer outra de carácter global. A minha prática, aliás, tem ido no sentido de ignorar, quebrar ou questionar barreiras em várias frentes.

 

Para já, nas artes visuais não há a barreira da língua...

A própria natureza das artes visuais, sendo a única linguagem puramente universal – uma linguagem bem mais ancestral do que qualquer outra utilizada no mundo –, possibilita que um trabalho nesta área possa ser interpretado, ou visto, e relacionar-se com um grande número de pessoas.

 

Quer falar mais das barreiras que teve de derrubar?

O facto de ter começado a desenvolver o meu trabalho numa prática marginal e ilegal, que era vista de forma hostil pela sociedade em geral, o facto de ter vindo de uma zona suburbana, mas também, em termos internacionais, o facto de ter vindo de um país periférico como Portugal, criou muitas resistências. Logo à partida as expectativas não eram as maiores... Mas quebrar essas barreiras e preconceitos foi precisamente uma das maiores motivações que tive. (Falo de mim, mas poderia referir inúmeros artistas deste meio que se têm deparado com preconceitos iguais.) Gosto também de quebrar barreiras em termos materiais e formais.

 

Refere-se à experimentação, ao risco?

Gosto muito da experimentação pura, de desbastar os preconceitos de utilizar materiais que não são tidos como nobres, ou recorrer a processos que não são valorizados. O meu trabalho tem uma dimensão destrutiva e abrasiva muito forte, embora esta seja essencialmente processual, metodológica.

 

Destrutiva?, abrasiva? Criar e destruir ao mesmo tempo?

O objectivo é, essencialmente, o de criar através de processos destrutivos. Isto tem uma vertente simbólica muito grande. Gosto de atingir resultados poéticos através destes meios destrutivos. Gosto também de reflectir e levantar questões sobre a valorização do que chamamos arte, sobretudo no que se refere ao processo de selecção e apresentação, ao seu contexto expositivo.

 

Como assim?

É muito interessante, por exemplo, poder retirar um pedaço de parede do seu contexto normal, do espaço público, expô-lo numa galeria e observar o modo como passa a ser visto como tendo um valor muito mais elevado do que tinha. Deixa de ser um bocado de parede porque se está a trabalhar sobre ele e se está a evidenciar algo sobre ele. Gosto desta valorização do que foi descartado, deixado ao abandono, negligenciado.

 

Esses são os seus materiais primordiais e principais.

Sim, gosto muito de trabalhar com estes materiais rejeitados, de reaproveitar e reutilizar as sobras de uma sociedade excessivamente materialista, assim como gosto de trabalhar com o resultado do caos e do acaso que o meio urbano nos dá.

 

Existe muitas vezes uma descoincidência entre a imagem que os outros têm de nós e a imagem que nós temos de nós. Mas também não é líquido que sejamos mesmo aquilo que pensamos ser, ou gostaríamos de ser... A partir destes enunciados (quem pensam que somos, quem pensamos que somos, quem somos, quem gostaríamos de ser), diga-me quem é, estabelecendo contrastes e revelando subtilezas.

Acho que nunca me preocupei muito com aquilo que projecto em termos pessoais. Sempre quis que o foco estivesse no meu trabalho, não em mim enquanto pessoa. O facto de usar o nome Vhils – que foi um nome que comecei a usar quando pintava graffiti e que expressa precisamente esse carácter anónimo – tem-me permitido projectar a imagem de uma pessoa que quer colocar a ênfase nos assuntos que o seu trabalho aborda.

 

Portanto esta é uma entrevista ao Vhils, e não ao Alexandre...

Não sei ao certo o que sou, acho que ainda está em formação e irá sempre estar. Todos somos o resultado de todos os estímulos e encontros que vamos tendo. Tento ser alguém que é honesto com o trabalho que faz e que através desse trabalho tenta estimular a reflexão sobre determinados temas que considero importantes, levantando questões sobre aquilo que considero não estar bem, não ser correcto ou não ser justo nas sociedades em que vivemos. Creio ser este o meu contributo para o mundo que me rodeia.

 

Levantar questões é, também, um modo de dar respostas?

Não tenho a ambição nem a pretensão de ter respostas para muitas destas questões. Mesmo assim acho importante levantá-las, despertar a atenção para a sua existência.

Neste processo não me preocupo em pensar no modo como os outros me vêem. Não me faz alterar a maneira como faço as coisas. Claro que é reconfortante e gratificante as pessoas gostarem do meu trabalho, mas não influencia aquilo que faço. Por vezes é até o oposto que acaba por funcionar como catalisador.

 

Que encontros (com pessoas) foram essenciais na sua vida? Quem foram essas pessoas?

Não me sinto capaz de evidenciar umas em detrimento de outras. Não seria justo. Todas as pessoas com quem nos cruzamos acabam por ter, de uma forma ou de outra, directa ou indirectamente, um papel fundamental na nossa vida. Seja ou não aparente. Mesmo para chegarmos a pessoas que consideramos fundamentais já passámos por encontros com outras que nos levaram até elas. Depois também há as pessoas que tiveram um impacto negativo, e que são geralmente esquecidas. Eu gosto de as valorizar, tal qual gosto de valorizar o erro e o inesperado no meu trabalho.

 

Porquê?

Não suporto esta negatividade, mas em vez de me condicionar, só me dá força para continuar, para progredir.

 

Imagine uma sucessão de bifurcações. Em que momentos sentiu que estava a “traçar” o seu caminho?

Tenho tido vários, muitos, que me foram apontando o caminho. O momento em que pintei a primeira parede, o momento em que pintei o primeiro comboio sozinho, a primeira parede que pintei de forma legal, a primeira exposição individual, a primeira parede que eu esculpi, a primeira presença numa exposição num museu...

 

Continuemos no domínio da escolha. No seu caso, é mais vezes escolhido pela vida, pelos outros, pelo acaso? Ou prepara, persegue e investe nas circunstâncias que deseja?

Talvez seja uma mescla de ambos. Por um lado, sinto-me com frequência a ser escolhido pela vida e pelos outros e pelo acaso. Gosto muito do acaso e de conseguir jogar com ele, sobretudo no trabalho. Estimula-me muito essa dimensão do desconhecido, daquilo sobre o qual não temos controlo, que no fundo é a vida, a natureza em si. Por outro lado, tenho um lado de determinação, de muito trabalho, de preparação, de investimento.

 

Como escolhe? Como decide traçar este caminho e não aquele. Fazer isto e não aquilo. Rodear-se de umas pessoas e não de outras.

Há escolhas e escolhas. Umas são contempladas e racionais, outras emocionais e outras ainda fruto das circunstâncias. Depende muito do contexto. Faço as minhas escolhas de acordo com o que o acaso e o caos da vida me dão.

 

Bem sei que se fala de tudo com toda a gente..., mas queria tentar perceber quais são os assuntos mais recorrentes, na sua vida mental e social. Quais são os assuntos em que se descobre a pensar com recorrência? E de que assuntos fala com outros? Relações pessoais? Relações de trabalho? Trabalho? Banalidades? Música? O que se viu e ouviu? Política? Notícias?

Nunca pensei muito sobre isso, mas de tudo um pouco. Com as pessoas que me rodeiam falo de tudo um pouco. É difícil especificar.

 

A vida que tem agora coincide com aquela que imaginou para si? A partir de que momento escolheu esta vida? Na adolescência, (ou infância), quando tudo se decide, já sabia que a sua vida ia ser esta? Acha que é na adolescência ou na infância que tudo se decide?

Nunca tinha imaginado nenhuma vida em particular para mim. Não sou o tipo de pessoa que tinha um plano traçado, as coisas foram acontecendo. A infância e a adolescência são fundamentais no nosso processo de moldagem. Devemos-lhe muito daquilo que somos enquanto adultos, mas não creio serem necessariamente determinantes em termos absolutos. Ou não o são para todos. Na minha infância, por exemplo, nunca pensei em ser artista.

 

O que é que quis ser?

Tive uma fase em que queria ser o clássico astronauta, outra em que queria ser político, outra ainda em que queria ser inventor – ter ideias e executá-las. Talvez seja o mais parecido com aquilo que faço hoje. Foi durante o início da adolescência que comecei a pintar graffiti, e isso revelou ser determinante para o que faço hoje. Mas não fez parte de um plano concreto.

 

É especialmente sensível ao talento? E ao esforço? As pessoas que estão à sua volta são muito particulares ou são pessoas comuns? Ou são pessoas comuns em quem descobriu particularidades?

As pessoas que estão à minha volta são pessoas comuns que, como todas as pessoas no mundo, têm as suas particularidades. A minha vida pessoal e profissional muitas vezes mistura-se, pelo que com muitas delas partilho estas duas dimensões. Tenho a sorte de trabalhar hoje em dia com uma equipa esforçada, talentosa e versátil. Sou sensível ao talento e esforço, mas não é isso que determina por inteiro uma amizade ou relação de trabalho. Penso que são bem sucedidas; mas o que mede esse sucesso? O que é ser bem sucedido?

 

Como resumiria a sua relação com a internet, as redes sociais, estes canais onde agora se circula?

Uma relação forte. Faço parte desta geração que cresceu com uma forte presença destas tecnologias. É sem duvida uma das razões pelas quais o meu trabalho ganhou uma grande projecção internacional. A internet revolucionou quase todos os campos artísticos, sejam eles quais forem. Democratizou, criou a possibilidade do nosso trabalho chegar a todos os cantos do mundo de forma directa. Foi algo que revolucionou completamente os canais de edição e publicação que até então detinham controlo sobre a produção de conteúdos. Quebrou uma série de barreiras, colocou o mundo em contacto directo, retirando o controlo que era exercido por uma pequena elite. Uma elite que era favorecida no acesso à informação e que, por esse motivo, detinha o poder sobre o conhecimento, detinha o poder económico e social.

 

 

Entrevista original, feita propositadamente para este blog.