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Anabela Mota Ribeiro

Diana, ópio do povo

17.08.22

«E então, ela viu a minha bicicleta contra a parede, montou-a e pôs-se a andar às voltas, e a tocar à campainha, a tocar, a tocar, e cantava: “Amanhã vou casar com o Príncipe Carlos, amanhã vou casar com o Príncipe Carlos”. Consigo ouvir a campainha daquela bicicleta agora... Ela era uma criança, sabe?, uma menina». O mais antigo pajem da Rainha Mãe, William Tallon, conta este seu encontro com Diana na véspera do casamento no livro de Tina Brown “The Diana Chronicles”. Primeiro invade-nos uma sensação de inverosimilhança. Depois, passamos, como ele, a ouvir a campainha, a visualizar a cena, os movimentos circulares da bicicleta, as calças de peito que ela estaria a usar, a face corada de excitação, o cabelo suado nas têmporas. Visualizamos a cena como se a tivéssemos presenciado. E não acreditamos completamente que essa menina pequena vai ser vista no dia seguinte por 750 milhões de pessoas a dizer “sim” na Catedral de S. Paulo.

Diana não fala deste contentamento juvenil no livro de Andrew Morton “In her own words”. Fala de uma descida ao frigorífico, onde comeu tudo o que lhe apareceu pela frente, para vomitar logo a seguir. A bulimia nervosa, que Carlos e a Rainha consideraram ser desestruturante do casamento, começa aí, quando o conto de fadas estava prestes a ser selado.

A noiva já se tinha mudado para o Palácio de Buckingham, para fugir ao assédio dos fotógrafos, e abandonado a casa de Sloane Square que partilhava com três amigas. Nos dias que antecederam a cerimónia, ela encontrou entre os presentes, que se amontoavam na sala do secretário, uma caixa que lhe pareceu invulgar. Lá dentro estava uma pulseira com dedicatória que o noivo tinha escolhido para a amante de longa data, Camila. Muitas lágrimas e suspiros depois, Diana confessa à irmã Sarah, (que no passado namorara com o dito noivo, futuro rei de Inglaterra), que talvez não pudesse casar com ele se ele amava outra pessoa... E a irmã, menos dada a delírios sentimentais, repô-la no caminho do negócio: «A tua cara está estampada nas toalhas e nos serviços de chá... Talvez seja um pouco tarde para te pores a andar» (a acreditar que as aristocratas inglesas usam expressões como esta).

Porque é que instintivamente preferimos a primeira versão à segunda? E porque é que, assim que pegamos nestes personagens, temos a noção de submergir num melodrama de quinta categoria? Pela sensação de vizinhança, talvez. Todos já tivemos, na nossa vida, momentos de melodrama de quinta categoria. Enfim, menos glamorosos e a render menos páginas de jornal. Mas tivemos. Vivemo-los dentro de portas ou na casa de uma tia quando, em pequenos, assistimos a uma discussão conjugal, entre uma madalena e um copo de leite.

Se não se entender esta identificação, não se entende porque razão esta criança loura que canta que vai casar com o Príncipe Carlos se transformou na pessoa mais famosa do mundo. Diana conquistou o planeta por ser uma rapariga normal. Ela foi como as colegas que tivemos no liceu de quem não lembramos o tom de voz. Demasiado apagadas, sem brilho, até sem tiques irritantes. Sem nada que nos faça lembrar a sua existência. É verdade que Diana era demasiado bonita para passar tão despercebida. Mas não era boa em nada, coisa que, aliás, sabia e usava em proveito próprio. Esclarecia que era “estúpida como uma porta”, e com este anúncio reduzia drasticamente as expectativas e inibia comentários sobre a sua prestação. Os resultados escolares eram um zero à esquerda, e ficaram arrumados com três meses titubeantes na Suíça. Um semestre ocupado a escrever cartas e a pensar que era chocante o dinheiro que investiam nela e os resultados que estava disposta a alcançar. 

Como Tina Brown nota, já não se usa as meninas “upper class” terem uma educação tão despreocupada. O exemplo é Kate Midleton, que conheceu  Príncipe Williams quando partilharam casa, na universidade. Diana pertence à última geração de mulheres de certo extracto social cujo propósito é casar e ter uma família. Mas ela nasceu para viver um conto de fadas, que é muito mais do que, simplesmente, casar e ter uma família. Basta olhar para a sua cara de felicidade, dentro de um coche de Cinderela, com um vestido tufado nas mangas e uma cauda infindável, para perceber qual era o sonho da sua vida. A tiara era a prova material dessa conquista: Diana era uma princesa de verdade, e não uma leitora de contos de fada. O que não podia supor é que os seus sonhos de Gata Borralheira acabariam gorados: não foram felizes para sempre.

Alguém diria, revendo as imagens, que a recém casada vomitara tudo o que comera na noite anterior? Que comera por insaciedade, insatisfação, infelicidade. Solidão. Depois vomitara por nojo e fastio. Ninguém viu. Novamente solidão. (Diana sempre descreveu a sensação posterior como sendo de “calma e limpeza”. Por momentos aquietada). Tudo isto é um pouco repugnante, sim, mas Diana era demasiado poderosa para que estas minudências sejam consideradas insignificantes.

Preferimos a versão do pajem àquela que ela mesma contou a Morton porque gostamos de pensar que foi uma criança que acreditou no seu sonho. A candura comove sempre. O sonho foi esculpido sobre a história da sua família e alimentado nos livros de Barbara Cartland – são romances delicodoces que fazem apodrecer o espírito. Consta que foram os únicos livros que leu na vida, e não lhe fizeram bem. Exaltaram o seu lado fantasista, não a deixaram amadurecer emocionalmente. Diana disse a um político inglês na primeira vez que o viu: «Nos romances de Barbara Cartland encontrei todas as pessoas com quem sonhei, e tudo aquilo por que esperei». Um reino de fantasia que colidiu no confronto com a realidade. Como sempre acontece. A mesma Barbara Cartland embaraçava Diana terrivelmente: gaiteira, o cabelo arrumado numa bola de algodão doce, o baton rosa choque por fora dos lábios. Risível. Também se distinguia por dizer enormidades nos jornais. Como a linha com que resumiu o falhanço do casamento: “Ela não estaria disposta a fazer sexo oral!”. Ninguém a levou a sério. Os súbditos não querem acreditar que os seus soberanos têm vida sexual, como não querem pensar na vida sexual dos seus pais.

Sucede a circunstância cómico-irónica de Cartland ser a mãe de Raine, a madrasta de Diana. Odiada, evidentemente, como na Cinderela. Quando Diana casou, escreveu-se nos jornais sobre a possibilidade de banir da cerimónia semelhante criatura. Mas a rainha dos romances rosa foi escondida atrás de uma coluna na catedral.

Como vai sendo óbvio, nada disto é “fait divers”, ainda que, aparentemente, tudo na vida de Diana seja um cliché que não tem interesse nenhum. Se a mãe da madrasta tem mais importância do que a madrasta, (na construção do imaginário), a madrasta foi a mulher horrível que, mais do que substituir a mãe, lhe roubou o pai! Freud explica este rancor em sucessivas páginas...

Desde a separação dos pais, Diana vivia com o pai e o irmão mais novo; as duas irmãs mais velhas estudavam fora. E Diana tentava fazer de filha, de mulher e de amiga: passava a ferro, batia bolos, afagava o irmão quando este chorava a ausência da mãe, confortava o pai nos momentos de solidão. O desaparecimento da mãe tem que ver com um banal caso de infidelidade. Apaixonou-se, foi à sua vida, o marido conseguiu a custódia dos filhos.

Filha de uma aristocracia bem relacionada, Diana cresceu com uma mãe a chorar. A separação dos pais foi, nas suas plavras, «o mais disruptivo dos acontecimentos». No essencial, pela vida fora, reproduziu o comportamento da mãe. Chorou, chorou, chorou. Não é fácil gostar de uma mulher chorona e melodramática, e o princípe Carlos queixava-se de um soluçar inesgotável. Terá sido isso que o levou de volta aos braços de Camila? Diana indignar-se-ia perante esta possibilidade: sentia-se uma vítima e clamava, no programa Panorama da BBC, que nenhum casamento pode funcionar com três pessoas. Mas segundo Tina Brown, há pelo menos mais um elemento na relação: os media. Também há os amantes da “pobre” Diana e a hostilidade da monarquia inglesa – para nomear os mais sonantes. 

Diana podia ser “estúpida como uma porta”, mas numa coisa era genial: na relação com os media. Também, na verdade, com os desvalidos, os doentes, os desfavorecidos. Os que eram ou se sentiam, como ela, humilhados e ofendidos. « Há [entre mim e o povo] um entendimento incrível. “Top of the Pops”, “Coronation Street”, todas as telenovelas. Diga uma!, eu segui-a. A razão pela qual as vejo ainda, não é tanto pelo interesso que tenho nelas, mas é porque, se vou para fora, seja Birmingham, Liverpool ou Dorset, falo de um programa de televisão e estamos no mesmo nível. Decidi isto sozinha. Funciona tão bem! Toda a gente as vê. E se eu digo: “Viu isto e aquilo? Não foi engraçado quando aquilo ou aqueloutro aconteceu?”, fico imediatamente no mesmo nível. Não sou a princesa e eles o povo: é o mesmo nível». Smart, ah? E não há dúvida de que funciona!

A osmose funciona melhor que qualquer livro cujo título é “Como ser popular no emprego”. Melhor que todas as lições de damas de companhia e secretários e especialistas em media. Tony Blair parece ter aprendido isso muito bem e adaptou a táctica ao longo dos dez anos em que foi primeiro ministro do Reino Unido. Blair, que entra em cena pouco antes da morte de Diana, tinha grandes planos para a Princesa do Povo. Segundo Tina Brown, que foi recebida durante a pesquisa que fez para o livro, este contou-lhe que pensava usar Diana como “embaixadora” junto das grandes causas humanitárias. E Tina conta isto, como outras coisas, para dar provas sistemáticas de um trabalho de casa bem feito, e de uma rede de contactos poderosa.

Diana a ver telenovela à hora de jantar. Bom, já não é tão sensacional depois de vermos o filme “A Rainha” e sabermos que também Isabel de Inglaterra pode comer com um tabuleiro no colo e botija de água quente nos pés. Mas Isabel é a uma monarca à moda antiga e a lamechice causa-lhe urticária. A televisão que ela vê, aposto com segurança, resume-se a noticiários e a “séries de qualidade”. Alguém que usou aqueles sapatos a vida toda não pode rever-se, ou sequer entender, os sapatos Jimmy Choo (Brown também falou com ele...) e os gritinhos histéricos que abundam nas televisões. Mas Diana, que deve ter começado por sapatos ingleses de qualidade, conformes e discretos, cedo percebeu o poder apelativo de uns Manolos (Brown também falou com o designer). E ficou a ganhar.

Mudam-se os tempos, mudam-se os valores. A Rainha, que trabalhou como mecânica durante a Segunda Guerra, aprendeu que o Dever vem primeiro, e que não podia ser outra coisa que não um “role model”. Não pode saber-se onde fica a identidade de alguém que foi educado para ser Rei ou Rainha – algures estropiada pelo caminho... – porque o “dever ser” abafa qualquer surto de espontaneidade. A manifestação de sentimentos cai tão mal que há uma expressão idiomática para isso: “You dont wear your feelings in your sleeves” [“Não se usam os sentimentos nas mangas da camisa”, numa tradução livre].

Diana era o oposto da instituição que é a realeza, imersa em naftalina, acompanhada por árias famosas . Ela usava perfumes Versace e ouvia a pop de todos os dias de Elton John. Trabalhou a relação com os súbditos e a imprensa de um modo nunca visto. Eles eram, simultaneamente, seus aliados e confessores. Amavam-na e deixavam que ela os amasse. Queriam tocá-la e ela queria ser tocada. Carlos acenava de longe. Andava entretido com o polo e com a eterna Camila. A Monarquia andava entretida com assuntos de suma importância (?), porque haveria de perder tempo com uma loura frívola? Ela andava entretida com a sua infelicidade e os seus gritos de socorro. Tentativas de suicídio, bulimia desenfreada, solidão atroz. «Atirei-me pelas escadas abaixo quando estava grávida de quatro meses do Williams, para tentar obter a atenção do meu marido, para que ele me ouvisse». Uma tristeza. Sobretudo quando pensamos no desfecho.     

Faces diferentes da mesma moeda, a relação com o povo e o culto da celebridade fizeram dela um fenómeno ímpar. Tina Brown escreve que Lady Diana percebeu cedo que nos dias que correm a aristocracia que vale a pena é a da celebridade. Ela foi uma catástrofe natural que fez tanta mossa na Casa de Windsor como o terramoto fez à antiga cidade de Pompeia. Quase deitou tudo por terra. E por aqui se vê o seu poder. Diana passou a ser nome de princesa, como Camila passou a ser nome de amante do rei. Mas até que isso fosse possível, até que o génio saísse da lâmpada e se espraiasse com plenos poderes, passaram uns anos.

No princípio, ela era uma uma menina adorável. E virgem. O “era uma vez” desta história começa quando, num dia frio de Fevereiro, o Príncipe Carlos escolheu um cordeiro, virgem e sacrificial, para resolver o assunto do casamento. Foi assim mesmo que Diana, o cordeiro, classificou a escolha no celebérrimo livro de Andrew Morton. O mundo inteiro viu o passeio dos nubentes nos jardins do palácio, reparou no tailleur azul que ia bem com o anel de noivado, comentou como ele era bem mais velho e feio.

A primeira imagem dela: apoiada no braço do futuro marido, uma flor discreta. A expressão doce, o sorriso cândido, a cabeça baixa, quase submissa. Nada fazia prever que se transformaria na mulher mais fotografada do planeta. Onde estava o seu carisma? Mas então não existia a segurança evidenciada na sessão com Mário Testino, já aliviada dos vestidos sorumbáticos que acompanharam os primeiros anos. O que as fotografias de Testino deixam ver é uma mulher emancipada, quase enamorada de si mesma. Mas essa sessão, publicada originalmente na Vanity Fair, bem como o livro de Morton, aparecem cerca de onze anos depois. E então já todos sabíamos da infelicidade, do equívoco, do infortúnio. Tínhamos todos visto a entrevista ao Panorama, na qual, interpretando magistralmente a mulher traída, confessou também ela o adultério. Por fim veio o esbarramento do carro, com Dodi Al Fayed, num túnel de Paris. Há muito tinha terminado o conto de fadas.

Nesse dia de Fevereiro, quando foi apresentada, já não lhe chamava “sir”. Tinha aceite o pedido de casamento daquele homem e foi-lhe consentido, a partir desse instante, chamar-lhe Charles. Ele regressava de umas férias na Suiça, confessou-lhe que tinha sentido a sua falta; e depois perguntou com sinceridade pomposa: casa comigo? Ela aceitou imediatamente, fez risinhos nervosos e incrédulos, e só mais tarde se interrogou por que razão o futuro rei de Inglaterra a escolhia para sua mulher.

Na verdade, a mulher da vida de Carlos era outra. E essa, tinha “um passado”. Camila era já casada com Parker Bowles e uma reputação maculada. Carlos aceitou que lhe escolhessem uma noiva que não representasse qualquer ameaça e que fosse fácil de manobrar. Ficaria intacta a sua relação com Camila. Quando, ao cabo destes anos, casou com o seu amor de sempre, Carlos deu razão ao que durante anos se chamou a “paranóia ciumenta” de Diana. A sua intuição feminina estava certa: Camila sempre existiu na vida do marido.

Por ora, chega desta fotonovela. Passemos a outra: a da psicanálise barata que Tina Brown faz de Diana. «Diana cresceu a associar a câmara fotográfica com amor». Fica-se estarrecido. Há no livro da ex-directora da New Yorker e Vanity Fair uma descrição “posh” mesmo dos pormenores mais comezinhos. Como escreveu esta semana Sarah Bradford, “expert” da Princesa Diana, não há no livro de Brown casacos velhos... «Pode tirar-se a rapariga da revista, mas não se consegue tirar a revista da rapariga». É bastante previsível que uma “rival” seja demolidora. Afinal, esta pequena fricção só confirma aquilo que Diana sabia sobre as relações entre mulheres, mesmo que ela, excepcionalmente, penetrasse bem junto do público feminino. Junto deste, não há nada mais eficaz do que uma mulher sofrida. Quem é que nunca teve um coração partido?

A câmara: depois da partida da mãe, o pai de Diana passava tardes a filmar e a fotografar a filha mais nova. E ela rodopiava, fazia passos de ballet, sorria e olhava a câmara com uma segurança inesperada. Tina Brown pensa que a fotogenia de Diana e a sua relação com os media encaixam neste modelo de relação com o pai. “Dás-me mimos e atenção (sob a forma de máquina fotográfica) e eu dou-te sorrisos e sou amorosa...”. É uma tradução demasiado básica do Complexo de Édipo para ser levada a sério. Mas o livro de Brown é mais inteligente do que este pedaço sugere.

Tina Brown não foi amiga íntima de Diana, mas cruzou-se profissionalmente com ela. A sua carreira começa, também, no início dos anos 80 quando, aos 25 anos, dirige uma revista que constava das salas de estar dos círculos “upper class” ingleses: a Tatler. Quando se muda para os Estados Unidos, Brown especializa-se no mundo da celebridade e faz do glamour uma prática obrigatória. Quando Tina Brown era uma mulher muito poderosa (ou seja, quando dirigia a New Yorker), era convidada para almoçar com Diana e com Anna Wintour (directora da Vogue americana; é nela que se inspira o filme “O Diabo veste Prada”) quando a princesa se deslocava a Nova Iorque. A descrição da chegada de Diana ao restaurante do Four Seasons é sumptuosa: «A alta e discreta rosa inglesa que conheci na Embaixada americana em 1981 tornou-se tão fosforecente quanto um “cartoon”. Avançava com os seus saltos altos pelo espaço do restaurante como se fosse a Barbarella». Depois fala do bom corte do fato Chanel, da pele de pêssego e aveludada, do bronzeado suave e perfeito. Tina sabe do que fala quando se trata de imagem. E Diana usava essa linguagem como ninguém.

Basta olhar para os vestidos para contar a história da sua vida. Antes de casar, quando vivia com as amigas, à mesa discutiam-se os saldos da Benetton – alguém consegue imaginar a rainha a discutir os saldos da Benetton? Mas é fácil aceitar essa possibilidade se pensamos em Diana – comprava-se na Laura Ashley, usavam-se camisas de quadradinhos, sapatos praticamente rasos. Uma aparência discreta, “comme il faut”.

Folheando o álbum de fotografias, analisando-as à lupa, o que fica desses primeiros anos é uma menina tímida, “shy Di”. As camisas acompanhavam este desempenho: de uma seda antiga, com folhos a cobrirem o colo. Os vestidos: estampados, largos o suficiente para não se adivinhar o corpo que os usava. Demorou tempo até Diana se transformar num ícone “fashion” – parte indubitável do seu sucesso.

Estavam longe os vestidos de Catherine Walker, que marcavam o corpo de mulher madura, cobriam um braço e revelavam o outro, os “caicai” que deixavam perceber os braços, finos e compridos. Ou os fatos de dia, compostos de saia e casaco, uma saia com pequenos pesos nas bainhas para não esvoaçarem com o vento – mas disso, ela não percebia nada, confessa. Confessa para lamentar que ninguém lho tivesse ensinado. Ninguém entre os membros da família real, claro. Nem lhe ensinaram que a bolsa se usa no braço esquerdo e não no direito. Aprendeu sozinha, cedo percebeu que estava sozinha.

Esta é a versão que corre na biografia de Morton. Mas no livro de Brown, a mais antiga aia da Rainha, destacada para acompanhar a recém chegada Diana, desmente que ela tenha sido deixada à sua sorte. Lady Susan Hussey passou muitas horas com Diana nas quais lhe ensinou os passos do protocolo ou como terminar uma conversa com um admirador expansivo. Mas a “noviça” parecia não ouvir nada. Estaria a vaguear nos seus sonhos, com certeza... Aprender regras de protocolo deve ser muito aborrecido. E sobretudo, ela não pensava segui-las. 

Os vestidos: assuntos de senhoras? Experimentem tirar a cabeça à maior parte das fotografias e descobrirão que o mais empedernido dos homens reconhece que pertenceram a Diana. E nem é preciso que façam parte do lote de peças leiloadas na Christies a favor de uma instituição de caridade. Conhecer os vestidos de Diana, (leia-se, a força da imagem de Diana), faz parte da mais elementar cultura popular!

Se se fizesse um jogo (como o Trivial Pursuit) sobre os anos 80 e 90, os vestidos de Diana seriam uma pergunta obrigatória. E de resposta fácil, uma vez que toda a gente os conhece. O vestido preto com que dançou com John Travolta, o vermelho e lilás que usou frente ao Taj Mahal, o verde de lantejoulas, o vermelho com fios de ouro, o cor de areia com que posou nas pirâmedes do Egipto. A imagem de uma princesa não é nunca um assunto despiciendo, e na princesa em questão tornou-se um assunto capital.

A imagem de Diana passou a ser um património colectivo. Ninguém, nem mesmo o Papa, esteve alguma vez sujeito ao escrutínio a que esta mulher esteve. Mesmo para além da morte, aos 36 anos. O sentido da privacidade era-lhe estranho. A desconfiança tornou-se um recurso militante. Sentia-se permanentemente observada. Pelas objectivas dos fotógrafos, seguranças, membros do staff. Uma obsessão tal que a impedia, por exemplo, de tomar duche na piscina onde nadava todas as manhãs. Mudava-se em casa, certa de não ter curiosos a observá-la ou lentes escondidas. Como se transformou ela numa mulher cativa? E antes disso: como compreender o seu carisma?

O que fez de Diana a Princesa do Povo foi dar-se com o povo e dar-se ao povo de um modo a que ele não estava habituado. Apertar a mão a leprosos, aconchegar doentes terminais, interessar-se genuinamente pelos seus problemas. Já no fim da “carreira”, veio a campanha anti-minas em Angola – uma das imagens mais conhecidas de todo o século XX.

Vários extras no cocktail: a mulher trocada pelo marido (Diana diz a Camila, quando o baile ia a meio: «Sei o que se passa entre si e o meu marido, não nasci ontem...»), a mulher de bom coração invejada por uma corte de malvados, a vítima da injustiça e incompreensão. Uma como nós, portanto. Com a força, contudo, de mobilizar centenas de fotógrafos, milhões de pessoas. Uma princesa bonita, loura, de olhos azuis, como nas histórias lidas em criança. Mas ciumenta, dada a ataques de choro, que faz fila com os filhos no McDonalds e brinca com eles na EuroDisney. Com sentimentos bem visíveis, nas pregas do vestido (na primeira fase), no bom corte do casaco (na segunda).

Quem era ela, afinal? Uma mártire, ave ferida, humilhada e deixada à sua sorte? Ou uma manipuladora, sem o mínimo sentido de dever e honra, que quer viver livre como um passarinho? Era a educadora de infância, fascinada com palácios e contos de fadas, que decide casar mesmo sabendo que são três na relação? Ou era a loira impreparada que sucumbe à atenção de que é alvo e acaba refém de uma vida que escolheu.

Sentia-se aprisionada – a metáfora da jaula é recorrente – e isolada num mundo que lhe era inóspito: o da realeza. Como foi possível que o mundo não tenha percebido os seus gritos de dor? Como é possível que uma mulher se atire das escadas abaixo grávida de quatro meses, que tente cortar as veias quatro ou cinco vezes, e nas fotografias apareça como a Madre Teresa do Ocidente, de vestidos glamorosos e sorriso irrepreensível? «O lado público era muito diferente do privado. No público, queriam a princesa encantada, que vinha, tocava-os, transformarava tudo em ouro e fazia desaparecer as suas preocupações. Poucos compreendiam que o lado individual estava crucificado, por dentro, porque não acreditava que fosse suficientemente boa» (“In her own words”, livro de Morton). Algo ia mal no reino de Inglaterra.

Quando se soube, já era, claro, tarde de mais. A jaula dourada de Diana mantê-la-ia aprisionada até ao fim dos seus dias. Mas o que é se pode ser depois de quase se ter sido Rainha de Inglaterra? Que homem se vai escolher e sujeitar à invasão feroz da imprensa? Tornou-se um lugar comum dizer que foram “os paparazzi que a mataram” – chacais implacáveis. Mas a verdade é que Diana gostava de ser ver nas fotografias.

Por esses dias, tinha um pretexto adicional: queria estragar a festa de aniversário que Carlos preparava para Camila – voltamos à telenovela, se é que alguma vez saímos dela. E decidiu ofereceu bónus aos fotógrafos: um romance com um playboy da estirpe de Dodi Al Fayed.

Ele tinha os brinquedos todos: um iate onde se ouvia Júlio Iglesias (segundo Tina Brown), a casa em Paris que pertencera aos Duques de Windsor, o Ritz de que o pai era dono, os presentes que escorriam em catadupa: uma bracelete, um relógio, um anel, com as devidas incrustações. «Dodi era o antídoto perfeito: charmoso, sexualmente atencioso, intelectualmente nada ameaçador – e temporário», escreve a ex-directora da New Yorker. Foi com ele que morreu no dia 31 de Agosto de 97, há dez anos. Divorciada, mas nem por isso liberta do voyeurismo colectivo.

Levou uma vida bastante infeliz – infância infeliz, casamento infelicíssimo. Não é fácil percebê-lo nas fotografias. Mas Diana era uma excelente profissional e queria, “quando desligasse a luz antes de dormir, saber que fez o seu melhor”.

Os seus filhos, os príncipes Williams e Harry, promovem um concerto de solidariedade este domingo. Se fosse viva, Diana faria nessa tarde 46 anos. Alguém consegue adivinhar que vida seria a sua?

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007