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Anabela Mota Ribeiro

Martin Essayan

24.03.19

“Beija a mão que não te atreves a morder” era uma das frases preferidas de Calouste Gulbenkian. O compromisso estava-lhe no sangue. Mas havia outras: “Confere, confere, confere”, e “Nada escapa à minha atenção”. Ambas vêm citadas no livro “O Senhor Cinco por Cento”, que Ralph Hewins escreveu em 1957, com a colaboração do filho de Gulbenkian, Nubar. O livro foi recentemente editado em Portugal e na primeira página estimula-se o voyeurismo do leitor: “O meu pai não era um santo, não quero uma biografia branqueada”.

O que se fica a saber do milionário misterioso? Muito. Da importância de ser um arménio ao exílio em Portugal. Da sua natureza, rotinas, ascensão. Dos negócios e do dinheiro. Da colecção de arte e da filantropia. De um sonho na juventude: ser professor de física. Que o pai considerou um projecto disparatado.

O livro foi o ponto de partida para falar com Martin Essayan, o seu bisneto. Um homem que gozou de outra liberdade e se formou em engenharia. Um profissional que não foi forçado a trabalhar na Fundação, mas que acabou por integrar o seu conselho de administração.

Martin Essayan: que nome é este? Quem são os Essayan? Porque é que não é Gulbenkian? Porque é que a história das duas famílias estão ligadas? Em que é que esta família é igual a todas as famílias?

Em duas horas de conversa, em Lisboa, onde vem regularmente, contou a sua história.

 

Como soube quem era Calouste Gulbenkian?

Sempre esteve presente na minha vida. Desde criança que ouvia falar dele. Os meus pais foram cuidadosos; aperceberam-se do risco que seria crescer sentindo-me privilegiado. Deixaram claro que quase todo o dinheiro de Calouste Gulbenkian tinha sido deixado a uma Fundação, e que eu teria de trabalhar, como o meu pai fez. A minha avó, Rita Essayan, era filha de Calouste Gulbenkian. Os meus avós interessaram-se por nós (a minha irmã e eu) mais na adolescência do que na infância, e contaram-nos muitas histórias. Eu teria 14, 15 anos.

 

Tão crescido? Foi uma maneira de o proteger?

Grandes quantidades de dinheiro a circular numa família, muitas vezes, destroem as gerações mais novas. Os meus pais acharam que tinham de me proteger disso. Deram-me uma excelente educação, mas com o sentimento de que um dia ficaria por minha conta. Estou-lhes imensamente grato.

 

O que sabemos de Gulbenkian tem muito de ficção colectiva. A sua biografia é uma espécie de epopeia. Mas aquele de que ouviu falar é uma pessoa da sua família – isso muda tudo.

Acho que sim. Eu vi-o sobretudo através dos olhos do meu pai, que foi quem mais me falou sobre ele. E eram os olhos de um homem novo – o meu pai teria perto de 30 anos quando Gulbenkian morreu. Ele tinha imenso medo de Calouste, como os outros membros da família.

 

Fascínio e medo?

Fascínio e medo. Falou-me da enorme força moral que Calouste tinha. Contou-me da sua capacidade de ser um negociador formidável. Mas acho que tem razão: obtêm-se olhares diferentes, de pessoas diferentes, sobre a mesma pessoa.

 

O que significava para si, quando era criança, ser um Essayan e um Gulbenkian?

Eu nasci em Inglaterra. Essayan era um nome estrangeiro que ninguém conseguia pronunciar. Era uma maneira de ser diferente das outras pessoas, e na escola não queremos ser diferentes das outras pessoas. Eu não tenho o nome Gulbenkian. Não havia muita gente que conhecesse o nome em Inglaterra. Não é como em Portugal, onde toda a gente o conhece.

 

Por que é que decidiu não falar sobre a sua genealogia?

Queria que o meu percurso se fizesse pelo meu talento e não por outra razão qualquer. E porque as reacções das pessoas que souberam não ajudaram: estavam mais interessadas no Calouste Gulbenkian do que em mim. Uma das maiores mudanças em mim foi quando há uns anos comecei a trabalhar na Fundação e tornei-me responsável pelo Serviço das Comunidades Arménias. Redescobri a minha herança arménia, comecei a ler sobre a história da Arménia. Descobri muitas coisas sobre a minha família, li sobre Gulbenkian. Tinha quarenta e tal anos, foi uma perspectiva da maturidade.

 

Outra luz.

Outra luz. O livro, [“O Senhor Cinco por Cento”], só o li há uns quatro ou cinco anos. A versão inglesa foi publicada 1957. Esteve sempre na prateleira, já o tinha aberto, mas nunca o tinha lido até assumir o cargo na Fundação.

                   

Falar dos Essayan é falar da sua bisavó, Nevarte, que casou com Gulbenkian. Foi aí que começou a história dos Essayan e dos Gulbenkian.

Na verdade, começa antes, com o pai e o tio dela. Conseguimos chegar até antes disso, quando os Essayan e os Gulbenkian eram vizinhos em Talas, na Cesareia. As duas famílias juntam-se com Nevarte.

 

Teve mais curiosidade sobre esta parte da família porque o nome do seu pai é Essayan?

Acho que tem razão. A Fundação tem uma vasta bibliografia sobre Gulbenkian. Sabemos a história da família nos últimos 1500 anos. Não sabemos isso sobre os Essayans, há mais mistério. Mas sinto-me uma mistura dos dois. Não foi só Nevarte que se casou com Calouste Gulbenkian. Na geração seguinte, Kevork Essayan, casou-se com a sua prima Rita. As duas famílias estão ligadas.

 

Há alguma consanguinidade.

Eles eram segundos primos, era legal [riso]. E era tradição nas famílias arménias, que tendiam a casar dentro da comunidade.

 

Li que o pai de Nevarte aceitou Gulbenkian porque era arménio, e era da região de onde vêm os melhores: da Cesareia.

Eles eram da mesma aldeia.

 

Sente que pertence a esse lugar?

Não. Quando entrei para a Fundação, gostaria de ter sentido essa pertença. Mas percebi que estava iludido. Não cresci como arménio. O meu pai não falava sequer a língua e educou-me como uma pessoa inglesa. Cresci como um outsider, estou a meio caminho, não sou nada, sou internacional. A minha mulher é americana, a minha família é de todo o mundo, ninguém é de um país em particular.

 

O que é que reconhece como casa?

Onde está a minha mulher, onde estão os meus filhos, onde estão os meus pais, a minha irmã. Sinto-me muito bem em Londres, mas não é o que me define. O que me define é a minha família.

 

Conte-me a história da sua vida.

Nasci em Londres, num dos melhores hospitais. Sou o segundo filho; a minha irmã nasceu em 1958, eu nasci em 59. Fui educado em casa. Quando tinha sete anos, fui enviado para um colégio interno fora de Londres. Antes disso, andava numa escola pequena perto de casa.

 

Tem memórias desse período? Nesse período não é um Essayan ou um Gulbenkian, é apenas o Martin.

É isso. Lembro-me de uma festa de aniversário, com crianças, nannies. Lembro-me do jardim, da cozinha. Lembro-me de acontecimentos traumáticos. Eu era daquelas crianças que estão sempre a partir coisas; parti uma lâmpada, agarrei os filamentos e apanhei um choque, queimei a mão. Lembro-me de ser levado pela minha mãe pelas escadas, a gritar. As outras coisas foram coisas de que me falaram ou que vi nos filmes. Havia uma au-pair francesa que me vestia os soutiens dela e punha bolas de ténis lá dentro! Há fotografias disso. Isso provocava um efeito nos adultos, chamava a atenção.

 

Precisava de atenção?

Sim. Estava sempre a chamar a atenção, a tentar dizer a coisa mais inteligente. Talvez não estivesse satisfeito com a atenção que tinha, talvez fosse genético. O meu pai também era assim. Quando andava na escola tentava chamar a atenção e isso não corria bem com os professores... Talvez tenha aprendido a controlar esse meu lado.

 

Procurava captar a atenção através de coisas engraçadas? Através de coisas inteligentes? O resultado é diferente.

Sim, é diferente. Fazia ambas. E ambas podem ser prejudiciais.

 

Estávamos na sua primeira fotografia, com o soutien da au-pair francesa. E depois?

Lembro-me também de sair de dentro do cesto da roupa suja, através da roupa. São memórias que não se apagam, não sei porquê.

 

São memórias triviais, de cenas domésticas, não são memórias de eventos sociais.

È verdade. Lembro-me de me sentar ao colo da minha mãe a ouvir música. São sobretudo relações, não são objectos as coisas de que me lembro. Não me lembro dos meus brinquedos.

 

Os pobres imaginam que os ricos têm tudo o que querem.

Nós não éramos assim tão ricos. Calouste Gulbenkian deixou uma quantia suficiente aos seus dois filhos para que pudessem viver as suas vidas. O dinheiro era suficiente, se procurássemos estava lá.

 

Para a educação; e para que mais?

A educação veio do meu pai, que era um advogado de sucesso. O meu pai trabalhava muito, e era o resultado disso que pagava a minha educação, as nossas férias. Não éramos pobres, tínhamos uma vida que 99% do resto do mundo não tem. Mandaram-me para as melhores escolas. Para Summerfield, que era um jardim de infância, e depois para Eton, que era excelente.

 

Eton é uma escola onde se educam reis.

Mas muito recentemente.

 

É onde as pessoas estabelecem relações para uma vida inteira. Ainda tem ligações desse período?

Mantenho algumas. Tenho mais amigos de Cambridge do que de Eton. Em Eton sentia-me ligeiramente à margem. Mantenho três ou quatro amigos – não é um número grande.

 

Gulbenkian tinha uma extraordinária rede de relações. Não é uma coisa que se possa pôr de lado e considerar menos importante.

Para Calouste, foi essencial. Teve a sorte de ser filho de alguém que estava no negócio do petróleo, teve a sorte de ser arménio. Depois, devido à sua determinação e tendência para o sucesso, estabeleceu mais ligações. Casou-se com Nevarte, em parte por amor, mas também porque era mais um passo.

 

Ele não era um partido suficientemente bom para ela – dizia o irmão de Nevarte.

Não sei se isso não seria o que diz qualquer irmão a uma irmã...

 

É um comentário ciumento.

Acho que sim. A maior parte dos arménios, quando deixaram a Arménia depois do genocídio, como a família de Calouste, perderam tudo. Calouste conseguiu recuperar. A família Essayan ficou muito mais pobre do que Calouste. Essa relação, que é uma relação de poder, causou ressentimento nos outros. Pode ver-se neste livro o ressentimento por parte de Atvarte em relação a Calouste. Ele diz que 95% do sucesso de Calouste se deve à mulher.

 

Não era o único. A mulher de Deterding, que foi sócio de Gulbenkian 25 anos, corrobora: “O meu marido costuma dizer que Calouste Gulbenkian era um homem que fez um excelente casamento”. Não o define como um génio.

Não penso que seja correcto. Se falasse com outros do núcleo duro, como Radcliffe, que era um excelente advogado da sua geração, ele diria que Calouste era um homem excepcional, com um intelecto excepcional. Calouste Gulbenkian era um gigante e admiro-o muito. Também acho que se casou muito bem, porque a mulher era mais sociável do que ele.

 

Era um misantropo, em certa medida?

Não era sociável, detestava eventos sociais, e não se preocupava em ser popular.

 

Neste livro, a expressão usada é: Calouste detestava pessoas.

É uma forma exagerada de colocar a questão. Ele não se sentia socialmente confortável. Era muito exigente, mas não acho que detestasse pessoas. Não conheci a sua mulher, Nevarte. Conheci a minha avó, Rita, que me disseram que era parecida com ela. Uma pessoa com muita vivacidade, apaixonada. Adorava festas.

 

Que tipo de festas? Jantares? Receber em casa?

Era muito restritiva em relação às pessoas que eram admitidas. Calouste definia quem era admitido em casa. E isso acontecia também com Nubar [o filho de Calouste e Nevarte]. A minha avó escapava-se de casa para se dar com outras pessoas. Era uma senhora audaz, que saía para beber e divertir-se. Nubar também gostava de sair para ver outras pessoas e divertir-se. Às vezes podia fazê-lo, outras vezes não.

 

Calouste nunca mais foi o mesmo depois da morte de Nevarte. Isso quer dizer alguma coisa.

Estaria ele apaixonado? Acho que sim. Se não estava, havia um respeito profundo. A mulher, a mãe, na família arménia, é uma figura importantíssima. Significa estabilidade para toda a família. O homem é dominante fora de casa. Ela deu-lhe estabilidade, era como uma âncora. E foi a única a acompanhá-lo nesta viagem incrível. Quando Nevarte morreu, Calouste perdeu isso. Mudou o testamento depois da sua morte. Antes de ela morrer, ele queria que a família gerisse a Fundação.

 

Mas depois não quis dar seguimento a um ponto que constava do testamento dela...

Fazer um orfanato.

 

Pensei que, como manifestação de amor e respeito, pudesse concretizar esse desígnio. Como é que vê isso?

Posso perceber. Era uma enorme quantia de dinheiro para ele. O pedido dela era muito informal, era uma anotação num pedaço de papel. Pode não ter sido claro para ele o que significava para ela. No livro [“O Senhor Cinco por Cento”], este incidente aparece como o motivo pelo qual Nubar se afasta do pai. Havia outras razões, eles vinham a dar-se mal desde há vários anos. Mas finalmente fomos ao encontro dos desejos de Nevarte: originalmente houve uma escola fundada no Irão, com esse dinheiro, e a Fundação também aplicou uma grande quantia de dinheiro na construção de uma escola em França. Portanto, cumprimos o seu desejo, ainda que Calouste não o tenha feito em vida.

 

Segundo “O Senhor Cinco por Cento”, o incumprimento do desejo da mãe ditou a primeira grande zanga entre pai e filho. Mas houve muitas.

Nubar foi completamente dependente em termos financeiros de Calouste em grande parte da sua vida. Acho até que era uma das coisas que davam cabo dele, que isso o destruía como pessoa.

 

Acima de tudo, Calouste Gulbenkian admirava as pessoas que o enfrentavam. Eram raras.

Talvez ele as respeitasse. Mas era difícil fazê-lo, porque era assustador.

 

Ouviu histórias contadas pelos seus avós sobre estes conflitos?

Entre Nubar e Calouste. Entre Rita e Calouste.

Para Rita, as coisas não eram fáceis. Calouste tinha um filho e uma outra criança. Ela sempre representou um papel secundário face a Nubar. No entanto, Calouste era muito dominador relativamente a ela, controlava quem podia e não podia ver. Era o mesmo com o meu pai, que era o seu neto: tinha sempre de fazer tudo muito bem, ser academicamente bem sucedido. Calouste era muito exigente consigo próprio; parecia ser comandado por esta necessidade de se colocar entre os melhores do mundo e ganhar. Inculcou isso nos que o rodeavam: tinham de competir com os melhores e sair com sucesso.

 

Essa filosofia continua na sua geração e educação. Foi enviado para Eton com o mesmo objectivo. Foi feliz lá?

Mais feliz do que na escola anterior. Era infeliz por ser diferente dos outros – por causa do meu nome e por a minha pele ser mais escura. Eton era mais cosmopolita. Academicamente era mais estimulante.

 

Tentou ser o melhor da turma?

Só no fim. Demorei um pouco a assentar, concentrar-me e trabalhar arduamente. Podia ser uma reacção à família: se não posso escolher o que me ensinam, não me vou esforçar. Mas as raízes da minha auto-estima residem no facto de os meus pais gostarem muito de nós, de sentir que eu e a minha irmã éramos as coisas mais importantes da vida deles. Isso esteve sempre atrás de mim e deu-me uma força enorme. Agora que tenho filhos, acho que comunicar o amor incondicional (sem estar sempre a dizê-lo), e ao mesmo tempo tentar estruturá-los, é muito importante.

 

Uma coisa é uma criança ser amada pelos pais, outra coisa diferente é sentir-se amada.

Eu senti-me amado e senti-me apoiado. Viajei num autocarro de dois andares de Londres até à Turquia, Israel, Iraque, Irão, Afeganistão e depois Índia. Sozinho. Senti-me só, mas sempre soube que, se alguma coisa corresse mal, os meus pais iam salvar-me. É um enorme suporte para se poder correr riscos. Não fiz nada que os obrigasse a salvarem-me, mas sabia que estavam lá.

 

Isso é diferente de admiração. Se o mandam para Eton, esperam alguma coisa de si. Podem amá-lo, mas isso é diferente de corresponder às expectativas que têm em si.

Frustei-lhes tanto as expectativas no início que ficaram enormemente gratos com as coisas que fiz depois. O segredo é começar por desapontá-los! Estive interno durante cinco anos; depois houve uma pausa entre Eton e a faculdade. Fui esquiar para a Escócia. E depois fiz essa viagem. Vi o mundo com os meus olhos.

 

Vivia numa redoma.

Até Eton, estava bastante protegido. Senti que tinha alguma coisa em comum com as pessoas que encontrava. Uma coisa boa nos países árabes é que há sempre gente nas ruas que quer praticar o inglês. E eu parecia-me com eles – para as pessoas altas e louras deve ser mais difícil... Na Índia saí do autocarro e fiquei por minha conta.

 

Foi a primeira vez que sentiu que podia fazer o que quisesse?

Sim. Foi um período de dois ou três meses em que estive completamente incontactável, absolutamente livre. Adorei isso. Depois fui para Cambridge.

 

Por que é que decidiu estudar engenharia?

Por duas razões. A primeira é porque sempre gostei de desmontar coisas. A segunda foi porque as minhas disciplinas preferidas eram matemática e física. Há uma terceira razão: engenharia é uma ciência muito prática e eu queria trabalhar em negócios. A engenharia é um bom caminho para isso. Quando saí da faculdade e decidi que não queria ser um engenheiro puro, fui trabalhar para a IBM, na venda de computadores em larga escala. Eles tinham a melhor formação em vendas e decidi frequentá-la. Foi uma decisão importantíssima para entrar no mundo dos negócios e para as decisões que tomei a seguir. Sou um problem solver.

 

Depois dos 40 anos, decidiu trabalhar na Fundação.

Eu era ambicioso, havia coisas que queria atingir. Consegui algumas delas, mas não todas. Fundei a minha própria empresa, mas o meu pai sempre quis que eu viesse para a Fundação.

 

Porquê?

Era preciso alguém que tomasse conta da delegação do Reino Unido e do Serviço das Comunidades Arménias. Ele confiava em mim e achava que se eu cá estivesse, a delegação e este serviço estariam em boas mãos. A minha família esteve envolvida nesta Fundação desde o início e houve apenas um curtíssimo período em que não havia nenhum membro da família na administração. Acho que havia o desejo de manter essa tradição familiar.

 

É uma decisão profissional, mas antes de mais é um compromisso pessoal.

É um compromisso muito emocional.

 

Em termos emocionais, o que é que significa para si, o que significou para o seu pai?

A minha situação foi muito diferente. A família esteve sob o domínio de Calouste durante muito tempo. Quando ele morreu, houve um certo alívio. As pessoas sentiram que podiam fazer o que quisessem. O meu pai escolheu não trabalhar com Calouste, fazer a sua própria carreira. Resistia-lhe imenso e Calouste não gostava disso. Na verdade, obrigou o meu pai a trabalhar na Iraq Petroleum Company, em Londres e no Médio Oriente. O meu pai permaneceu na empresa cinco anos, o que lhe atrasou a carreira jurídica. Mas a alternativa seria trabalhar no escritório de Calouste Gulbenkian em Londres – seria ainda pior.

 

Ele controlava todos como marionetas?

Marionetas, talvez seja demais. Tinha uma enorme tendência para dominar acontecimentos e pessoas, o que fazia dele grande, mas também muito difícil.

 

Nubar diz: «O meu pai amava-me muito, mas eu e a minha mãe não tínhamos o nosso próprio dinheiro. Tínhamos de pedir». É uma relação de subalternidade.

Sim. Não acho que o fizesse em proveito próprio, mas era uma pessoa muito controladora. Calouste pensava que sabia o que é que estava certo. Era um visionário. Estava certo acerca de muitas coisas. Antecipou a importância do petróleo, percebeu que era importante que as nações trabalhassem juntas e não competissem. Conseguiu muito apenas com a sua vontade.

 

Voltemos à sua decisão de integrar a Fundação.

Significou muito para mim, mesmo que não me tenha apercebido logo. Vim sem saber bem como seria, trabalhava em part-time, quatro dias. Queria manter a minha empresa para o caso de não resultar. Uma vez tomada a decisão, teve implicações emocionais. Uma das coisas foi a descoberta das minhas raízes arménias. É um ambiente familiar muito forte, porque o meu pai passou por aqui, o meu avô esteve aqui durante 24 anos, o meu bisavô fundou-a. As pessoas não me conheciam como o bisneto do Calouste Gulbenkian e eu não me via assim.

 

Ao mesmo tempo, é uma reconciliação da família com o espírito de Calouste através da Fundação.

Em que sentido?

 

Foram precisas três gerações para uma relação não-conflituosa. O seu pai, o seu avô, estavam demasiado ligados a Calouste e dominados pelo medo que tinham dele. O senhor não está dominado pelo vínculo familiar – sendo da família.

Interessante. Não tinha pensado assim. O meu avô serviu a Fundação sem conflito, era genro de Gulbenkian. Apesar desse medo, ele sempre foi leal a Calouste e transferiu essa lealdade para a Fundação, enquanto a serviu. Com o meu pai foi um pouco diferente, porque apesar de ser educado com Gulbenkian vivo, teve uma vida cheia de sucesso à margem da Fundação. Ele voltou como os independentes a quem se dá crédito. De certa maneira, cada geração torna-se mais distante.

 

Tem pena de não ter conhecido pessoalmente Calouste Gulbenkian?

Gostava de saber mais sobre ele. Não o percebo totalmente, mas acho que sei muito sobre ele. A parte que me parece mais crítica é perceber esse desejo ardente de ser bem-sucedido. Se gostava de o conhecer? Não sei se funcionaria...

 

Teria medo que ele não gostasse de si, que não o estimasse?

Não. Os meus pais fizeram isso por mim. Não sinto Calouste Gulbenkian lá atrás a julgar-me. E seria pouco saudável se sentisse.

 

É por isso que está aqui, sem esse sentimento de estar a obedecer.

Sim. Sinto que estou aqui a tentar fazer o que ele gostaria que fosse feito. Mas não sinto que estou a ser obrigado por um poder do passado.

 

Dinheiro é um tópico obrigatório quando se fala de Gulbenkian. Embora o filho tenha dito que, para ele, o dinheiro era apenas uma recompensa. O mais importante era a negociação.

Acho que Nubar tem razão. As coisas confundem-se. Calouste Gulbenkian detestava desperdício. E era muito controlador. Temos a imagem dele a contar os cêntimos.

 

E a contar os morangos. Isto não era ser forreta. Era não confiar.

O que o motivava era colocar-se entre os melhores, era o desafio. Ele também se descrevia como arquitecto. A história dele é a de quem traz pessoas novas e as insere numa estrutura elegante. Começou por deter 40% na concessão de todas as reservas petrolíferas dentro das fronteiras do Império Otomano. Cedeu 25% à Royal Dutch Shell, reduziu a sua participação para 5% para permitir a entrada da Anglo-Persian Oil Company. Posteriormente trouxe os Franceses por transmissão da posição detida pelos Alemães. Mais tarde deixou entrar os Americanos e tentou ainda incluir os Russos. É um processo criativo, é um processo de dominação. Nunca ouvi histórias sobre sentir-se orgulhoso por ser um dos homens mais ricos do mundo. Tratava-se de poder.

 

Costumava dizer: “A coisa mais preciosa que o dinheiro pode comprar é privacidade”. Porque é que acha que ele não gostava de aparecer?

Era tímido. E acho que há qualquer coisa de arménio nisso. Quando foi educado, os turcos tinham permissão para testar a qualidade da sua espada cortando a cabeça a qualquer arménio que passasse. Teoricamente tinham esse poder. Toda a gente tentava não ser demasiado provocador ou proeminente; de outra maneira, podiam ver a cabeça cortada.

 

E nessa altura, só os bons podiam sobreviver.

E os melhores eram os que tinham mais sorte. Luta-se contra tudo e todos, era uma questão de vida ou morte. Tudo é luta.

 

Lutar é o verbo de Calouste Gulbenkian. Lutar, negociar. O que está a dizer é que a natureza arménia era importante.

A natureza arménia e ter crescido durante o Império Otomano. Antes do Império Otomano, a Arménia foi uma nação entre dois grandes impérios. Os arménios tiveram de aprender a jogar com os dois lados, a falar as duas línguas, e a manter um lugar para si. Há essa tradição: conciliar interesses, não pertencer a uma nação, ser internacional. Lutar. E suspeitar de tudo. Estas qualidades capacitaram as Arménios a serem negociadores internacionais no Império Otomano com grande êxito.

 

 O que é que tem desse espírito? É desconfiado?

De certeza que sim. Os valores de Calouste e os valores da família Essayan são os mesmos: o trabalho, não desperdiçar, não ser extravagante.

 

Ser discreto.
Isso. E é por isso que a família nunca perdoou a Nubar.

 

Que levava uma vida sumptuosa e exibicionista.

Sim. O que tenho desse espírito de desconfiança? O mais importante é não aceitar o valor aparente das coisas, é aprofundar um pouco mais, (se está certo, se é consistente). Aprendi com os negócios que se alguém nos diz uma coisa, devemos perguntar-nos por que é que a diz, qual é o seu interesse.

 

E com as pessoas é a mesma coisa? Além dos negócios continua a pensar: o que é que esta pessoa quer realmente de mim?

Algumas vezes penso isso. Não sobre pessoas que me são próximas, mas sobre pessoas que não conheço. Se fazem o que sempre fizeram, não penso nisso, mas se fazem qualquer coisa diferente, há esse questionamento.

 

Com a sua mulher, com as suas namoradas, pensou em determinados momentos se ela/elas gostavam realmente de si, ou da sua posição e do seu dinheiro?

Nunca pensei nisso. As minhas namoradas nunca souberam, até muito tarde na relação, nada sobre Calouste Gulbenkian.

 

Mas dizer isso apenas em determinado momento revela suspeição.

Tem razão. Não contei à minha mulher tão tarde, mas de certeza que não foi logo à partida. Ela ficou surpreendida, achou que havia algum segredo escondido na família. Não é tanto a questão de saber se os outros nos amam: é a força do hábito. A verdade é que coloquei isso fora da minha cabeça porque não queria viver a minha vida em função disso. Disse à minha mulher: “Não me ocorreu contar-te”. E era verdade. Provavelmente haverá algo de mais profundo nisto. Uma coisa do tipo: quero ser amado pelo que sou.

 

Persiste a dúvida: estou onde estou porque sou bom, ou estou onde estou porque sou bisneto de Calouste?

Não tenho ilusões de que consegui este lugar porque sou bisneto de Calouste. Foi a primeira vez que isto me aconteceu na vida. Não me sentiria confortável se não tivesse tido algum sucesso na minha vida profissional no passado.

 

Quer dizer que só aceitou o lugar na Fundação porque provou a si próprio, no passado, que era capaz?

Sim. Se se obtém alguma coisa por causa da hereditariedade, e não se tem a oportunidade de perceber quais são os seus pontos fortes e os fracos, isso é prejudicial. Não encorajo os meus filhos a fazerem isso.

 

Precisava realmente de lutar ou isto foi uma espécie de ficção que criou para si próprio?

Psicologicamente precisava de lutar. Quando estava na universidade fiz uns testes psicológicos muito complexos; um deles dava como resultado a frase que nos distinguia. A minha era: escalar novos picos.

 

Que significado tem?

Lutar pelo pico, mas também a vista magnífica que se tem do topo. De facto, foi sempre isso que me conduziu. Não lutei pelo dinheiro. Lutei pela necessidade de dar o melhor de mim mesmo, competir com as outras pessoas, ver do que era capaz.

 

Para algumas pessoas, o dinheiro pode comprar liberdade e independência. E no seu caso?

Para a maior parte das pessoas o que o dinheiro compra é comida e abrigo. Para a maior parte da população mundial é disso que se trata. Em países como Portugal e Inglaterra é também assim. O dinheiro é uma questão de sobrevivência. Para mim, não era uma questão de liberdade, era uma questão de segurança e de dar à minha família o que achei que devia dar-lhes. Quando tive filhos – tenho três rapazes – senti que tinha de assegurar uma boa educação ou o dinheiro suficiente para o caso de ficarem doentes. E ter sempre uma almofada de segurança para o caso de as coisas correrem mal.

 

Alguma vez pediu ao seu pai dinheiro para comprar uma casa?

Não. E quando fui para a Business School pedi dinheiro emprestado ao banco. Porquê? Tinham uma boa taxa de juro e sabia que seria fácil liquidar a dívida. Não queria pedir dinheiro aos meus pais. Por orgulho.

 

Lembra-se do seu primeiro salário?

Sim. Mais do que isso: recordo-me do primeiro dinheiro que ganhei quando era instrutor de ski e era pago em dinheiro no fim da semana. Ganhava 70 libras por uma semana inteira e ainda me lembro da sensação de ter o dinheiro, que era absolutamente meu. Eu tinha 18 anos e nunca mais o dinheiro me soube tão bem quanto nessa altura.

 

Porque é que decidiu dar a entrevista em frente ao retrato de Sarkis Gulbenkian?

Sarkis Gulbenkian é o pai de Calouste Gulbenkian e teve uma influência enorme sobre ele. Acho que era um bom homem. Morreu jovem. Nunca conheceu tudo o que Calouste Gulbenkian alcançou. Talvez Sarkis Gulbenkian represente todas as coisas boas de Calouste Gulbenkian. Sem alguns dos defeitos de que falámos.

 

Parece mais sentimental do que Gulbenkian. Queria saber como é que o amor, os sentimentos, estes assuntos foram tratados na sua família.

Sempre houve amor. Acho que havia – pode ser uma coisa britânica – emoções contidas. No meu caso, era o medo de me magoar, e por isso sempre fui cauteloso. A vantagem de se ser casado há 20 anos é criar uma unidade familiar e um ambiente onde a pessoa se sente segura. Eu e a minha mulher amamo-nos muito. E criámos um mundo para as nossas crianças onde é fácil mostrarem as suas emoções. Acho que isto são as coisas que importam realmente. Não respondi à sua pergunta.

 

Acho que respondeu. Vai fazer cinquenta anos. Como vai ser a festa?

Tenho uma velha amiga que conheci em Cambridge que nasceu no mesmo dia que eu. Comemorámos lá o nosso 21º aniversário. Somos ambos casados com americanos, somos próximos, fizemos juntos a festa do nosso 40º aniversário. E vamos fazer a do 50º em Novembro.

 

O que é que gosta que lhe ofereçam?

Não sou muito de receber presentes. Se quero alguma coisa tenho tendência para ir comprá-la. Os presentes de que gosto são aqueles em que a pessoa teve imenso trabalho para pensar no que eu gostaria. Quando fizemos 20 anos de casados, a minha mulher comprou-me uma inscrição de um ano na Royal Horticulture Society. Gosto muito de jardinagem. E gostei do presente porque ela pensou no que eu queria.

 

Uma última questão: o que quer da Fundação?

É um misto entre estratégia (passei quinze anos a trabalhar em estratégia para empresas) e a parte da família. A parte da família é a lealdade para com Calouste. Lealdade porque há uma tentativa de membros da família de fazerem aquilo que acham que ele teria querido. Uma grande fundação internacional. Foi o que discutiu com Radcliffe [advogado e confidente]. Qualquer coisa abaixo disso não é um bom tributo. Ele foi um dos maiores homens de negócios dos últimos 200 anos. A Fundação deve reflectir isso. Vejo um imenso potencial na Fundação, porque estamos instalados, podemos actuar internacionalmente e fizemos muita coisa boa no mundo. Podemos operar com as maiores fundações da Europa; se fizermos parcerias, podemos aprender com elas, podemos aprender mais. Temos um grande futuro. O que eu quero da Fundação é realizar esse sonho. Quero ser uma das pessoas que ajudam a realizar esse sonho.

 

No futuro, quer ser o presidente da Fundação?

Não estou certo de que seja o meu estilo. Sou mais uma pessoa que opera por detrás da cena, uma pessoa que nunca está na linha da frente. Sou a pessoa que está a dar conselhos nos bastidores.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2009