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Anabela Mota Ribeiro

João Galamba

05.01.14

“A minha persona pública existe, em grande parte, devido aos blogues”. João Galamba é bloguer, é deputado. Nasceu em liberdade. O mundo que ele conhece já não é o do seu pai. A sua luta não é a mesma, e as armas também não. 

Com o que é que sonha esta geração. Como é que vive com o seu passado, (o seu, o dos pais, o do país). Como é que articula isso com um mundo em mutação acelerada. Com novas influências, inesgotáveis possibilidades, com diferentes fantasmas. Como são, como estão. O que lêem, o que escrevem. Como é que passam do uso privado para o uso público da literatura.

Um exemplo: “Eu sabia que o Baudelaire e o Flaubert eram autores fundamentais no cânone da literatura do séc. XIX. Depois de ler certos filósofos percebi porquê. Aquilo que seria uma experiência privada e puramente estética, ganhou uma dimensão de política e crítica da sociedade que não tinha ideia que existia nesses autores”.

Esta geração vive fora, estuda fora, trabalha fora. Viaja. Fala inglês. Usa o skype. Está nas redes sociais. Tem novas formas de se dar com os outros, de dizer coisas. “Há pessoas que escrevem melhor sobre si do que sobre a realidade, e outras ao contrário; encaixo-me nessa segunda categoria”. Ele escreve sobre política, sobre a realidade, e essa é uma forma de intervir politicamente. Desde as últimas eleições legislativas, ser deputado é outra.  

Epítome desta geração, João Galamba nasceu em 1976. É licenciado em Economia na Universidade Nova. É doutorando da London School of Economics. Trabalhou como consultor. Regressou a Lisboa no final de 2006. Trabalhou na Direcção Geral dos Assuntos Técnicos e Económicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros durante a presidência portuguesa da União Europeia. A partir do Verão de 2008, trabalhou na Unidade de Missão dos Cuidados Continuados Integrados (UMCCI).

No Outono do ano passado, casou com uma mulher de direita.

 

Fez-se adulto já no “Fim da História”, para usar a expressão de Fukuyama; ou seja, depois de 1989. Houve uma cisão à qual não assistiu, um mundo que não conheceu. É o resultado destes dois mundos?

Estudei Economia numa faculdade muito liberal onde o discurso de Fukuyama fazia sentido. E havia uma dissonância entre isso e um conjunto de instintos adquiridos na infância, por influência do meu pai (que tem um passado político activo, esteve preso em Peniche e fez parte de todos os movimentos esquerdistas antes do 25 de Abril). Isto não terá marcado toda a minha geração, que é plural; mas comigo aconteceu. Até Londres, vivia um bocadinho frustrado: uma parte de mim não queria concordar, mas não sabia como. Não tinha o arsenal de conceitos e de autores que me permitiram contestar o que Fukuyama dizia.

 

A London School of Economics, onde estudou, é uma escola que não tem que ver com o PS, ou com o seu pai, ou com Peniche. Foi um encontro explosivo?

A LSE surgiu como um gesto de desespero. Desde sempre tive dificuldade em imaginar-me a trabalhar. Fui para a Faculdade de Economia sem pensar verdadeiramente na opção que estava a tomar. Tinha jeito para Matemática, e os pais tinham a preocupação de que fosse para um curso com elevada empregabilidade.

 

Qual é o seu percurso profissional?

Trabalhei no Banco Santander de Negócios, e depois trabalhei numa consultora chamada Cluster Consulting, que actuava na área das novas tecnologias. Mas nunca me revi verdadeiramente no trabalho que fazia. (Há pessoas, como o João Constâncio, que não percebem porque é que temos de nos rever no trabalho que fazemos, que a realização se faça através do trabalho). Tinha interesse em Ciência Política e em Filosofia e o programa de doutoramento na LSE era suficientemente abrangente para responder a esta minha insatisfação.

 

Quanto tempo passou entre o fim do curso e a ida para Londres?

Dois anos e pouco. Queria disciplinar-me. Quis obrigar-me a trabalhar e a ganhar uma certa independência financeira. Para provar a mim próprio que não andava de insatisfação em insatisfação. (Antes de fazer Economia, na Universidade Nova de Lisboa, andei um bocado perdido, sem saber muito bem o que havia de fazer).

 

Consegue dissecar isso? Por um lado não se revê no trabalho, e por outro lado, como diz o João Constâncio, porque é que tem de se rever no trabalho?

Porque, como já não há aristocratas, não há outra forma de nos realizarmos e participarmos na vida em sociedade se não for através do trabalho. É uma inevitabilidade histórica. Hoje em dia, a maioria dos meus colegas de faculdade ganha o quádruplo do que eu ganho. Com alguma oposição dos meus pais, dei um salto no escuro. Ainda não acabei a tese, suspendi-a porque estou no Parlamento e não tenho tempo nem disponibilidade mental. Ao contrário do que as pessoas dizem, no Parlamento trabalha-se bastante.  

 

Em Londres, chegou mais perto daquilo que o realizava?

Vivemos em insatisfação permanente. Se por um lado realizei um sonho, (fazer o doutoramento na LSE, nas áreas que me interessavam), a certa altura já pensava que aquela não era a faculdade mais indicada para mim; porque os meus interesses, que se foram desenvolvendo ao longo do meu percurso na LSE, eram divergentes do departamento onde estava. Aquilo que me teria parecido um paraíso, já não o era. Mas acho que isto acontece com quaisquer aspirações e quaisquer sonhos. Uma vez atingidos, surgem outros, e insatisfações que antes não podíamos prever.

 

Porquê o sonho do doutoramento? No fundo, estou a perguntar pela sua forma de afirmação.

Nunca tive grande sentido prático das coisas. Daí a minha dificuldade em encaixar-me no mundo tradicional do trabalho. Sem saber bem o que era o doutoramento, idealizei a vida académica. Parecia-me um caminho inevitável para alguém que tinha tido boas notas. Fui um dos melhores alunos, com média de 17.

 

Conte-me a história do seu pai, no sentido em que ela interfere na sua vida e com quem é.

A experiência de vida do meu pai antes do 25 de Abril influenciou-me imenso. O meu pai deu um colorido diferente a um conjunto de histórias que todos, na nossa geração, ouvimos. Tive em casa o relato na primeira pessoa. O que disse no início [da entrevista], (de ter um conjunto de instintos de esquerda, para os quais não encontrava correspondência na minha formação intelectual até certo ponto da minha vida), levaram a uma enorme proximidade com o meu pai e ao mesmo tempo a um conflito. Um conflito que hoje se encontra esbatido.

 

Que idade tinha o seu pai quando nasceu?

Tinha 36 anos, a minha mãe tinha 22. Tenho uma irmã quatro anos mais nova. O meu pai não é autoritário, mas a relação que estabelecia com os filhos, ou pelo menos comigo, era muito mais a relação de um pai que tinha passado por uma experiência que partilhava com o filho, do que propriamente um pai com uma relação emocional directa com o filho. A afectividade do meu pai manifestava-se de forma indirecta: ele partilhava comigo um conjunto de experiências.

 

Quando é que ouviu essa história? Quando é que teve consciência dela?

Estudei numa escola chamada Árvore, que era um meio de classe média, média/alta, de esquerda. Este caldo cultural sempre existiu na minha vida. Desde pequeno que me lembro de falarem na PIDE e no Salazar, tudo filtrado pela experiência pessoal do meu pai e dos amigos.

 

O seu pai partilhar consigo o que tinha vivido, era também uma maneira de o tratar como um igual?

Sim e não. Qualquer partilha implica um reconhecimento do outro como um igual, ou potencial igual. Mas com o meu pai havia uma unilateralidade na partilha. O meu pai partilhava as experiências comigo, mas eu tinha que as aceitar como absolutamente válidas. Tive uma relação relativamente conflituosa com ele por causa disso.

 

O seu pai não admitia facilmente a contestação?

Há uma coerência na sua experiência de que não está disposto a abdicar. Não posso destruir nem questionar parte do imaginário que formou o meu pai. O meu pai ainda tem, por exemplo, uma visão maniqueísta de esquerda e direita. Tem uma diabolização da direita que é produto da experiência dele. Olha-a com os olhos de quem viveu a ditadura e sofreu com ela. Esta dicotomia nítida, sobretudo quando entrei na faculdade, tornou-se difícil de gerir. Não quero convencer o meu pai de que nem toda a gente de direita é salazarenta. Há uma cisão enorme entre gerações. Ele agora tem 70 anos. Quem sou eu para destruir o mundo que ele criou?

 

Como é que, ainda pequeno, não adere completamente ao pai-herói e às suas experiências de coragem e resistência?

No início, a ideia de o meu pai ter estado preso fez-me confusão. Quando percebi o contexto em que esteve preso, houve uma enorme idealização da experiência dele. Se todos os filhos tendem a idealizar a figura paterna, um filho que tem um pai que passou por tudo isto, ainda mais. Quem é que não gosta de ter um pai que planeou assaltos a prisões para libertar pessoas, que passava clandestinamente pessoas para o outro lado da fronteira? Há todo este universo, muito real mas também mítico, que me deu uma imagem heróica do meu pai.

 

Quando é que começou a contestá-lo?

Na adolescência. As minhas referências passam a ser as minhas referências.

 

Quando está na adolescência, está Cavaco no poder. Não a direita que o seu pai conheceu, mas ainda assim a direita.

Fui uma pessoa pouco politizada nos anos 80. Com 14, 15 anos olhava para a actualidade de uma forma simplista, através dos olhos do meu pai. Não gostava do PSD. Se alguém perguntasse porquê não sabia bem dizer. E era do PS de forma clubista.

 

Era uma coisa afectiva.

Sim. Como não passei por juventudes partidárias nem por nenhuma associação de estudantes, até aos 18, 20 anos não era muito politizado. Fazia bodyboard na Figueira da Foz, andava a viajar pelo mundo. A experiência traumática do cavaquismo, vivi-a um pouco à distância, comparando com pessoas da minha idade que hoje estão em contextos semelhantes aos meus.

 

Isso entristecia o seu pai? O bodyboard está nos antípodas do que se espera do filho de um opositor político.

Aquilo pelo qual o meu pai se tinha batido era um dado adquirido. Eu podia dar-me ao luxo de uma certa irresponsabilidade. Sempre com alguma má consciência, devo dizê-lo. Estava relativamente informado, mas não achava – defeito meu – que houvesse causas políticas pelas quais valesse a pena bater-me. Tive uma adolescência significativamente hedonista, no sentido irresponsável do termo.

 

Isso talvez fosse o verdadeiro conflito com o seu pai: uma concepção hedonista da vida por oposição a uma atitude politicamente empenhada.  

Há aqui um dado importante: todas as histórias políticas surgiam no passado. O meu próprio pai não tinha uma militância activa durante a minha adolescência. Trabalhava em jornais. De alguma forma isso legitimava a minha irresponsabilidade presente. Não estava a trair nada. Enquanto não houvesse nenhum Salazar, estava tudo bem. E como não havia, podia ir à minha vida. Não tinha inquietações metafísicas. Se as tinha, eram tão inconscientes que não me apercebia delas.

 

Essas inquietações metafísicas, surgiram como?

Com os livros, os livros são terríveis! [risos] São cavalos de Tróia. A certa altura despertam em nós um conjunto de coisas que não sabíamos que existiam. Depois, quando olhamos em retrospectiva, vemos que algumas coisas já lá estavam. [Houve] uma reinterpretação do final dos anos 80 e da primeira metade dos anos 90. Ganhei uma consciência das coisas que não tinha quando as vivi.

 

Que livros é que detonaram isso?

O Pacheco Pereira foi uma figura intelectual importante na minha juventude. Mesmo no meio do bodyboard, via quase religiosamente o Flashback, o programa que ele tinha com o Miguel Sousa Tavares [e o António Barreto]. Concordo com Richard Rorty, que diz que há dois tipos de literatura: para uso privado e para uso público. A literatura para uso privado, sempre a tive. Mas só mais tarde percebi que a literatura tem uma importância ética e política fundamental. Só mais tarde é que percebi, por exemplo, a denúncia do Memorial do convento, (a monarquia opressiva, os miseráveis que ajudaram a construir um monumento por capricho do rei).

 

Quem é que lhe pôs essas coisas no caminho? Como é que tropeçou nelas?

Tropecei, literalmente. São portas que se vão abrindo. Recomendaram-me um livro do Charles Taylor, que se chama Sources of the self. É um livro sobre a construção do eu desde Platão até aos nossos dias. É fascinante porque nos conta a nossa história, a história da construção da nossa identidade, à luz da literatura. Grande parte do meu cânone literário dos últimos anos deve-se a esse autor.

 

É sobretudo um observador e leitor da realidade? Não é, ou pelo menos não o revelou, um extraordinário narrador de si e da sua experiência situada nesta corrente histórica. É defensivo?

Não sei, se calhar é por não estar habituado a fazê-lo. Falar de nós próprios é uma coisa que se aprende. Tenho alguma dificuldade em escrever sobre mim próprio. Não sei se por timidez, se por achar que sou incapaz de fazê-lo, se por achar que sou melhor espectador do que narrador. No momento em que posso escolher escrever sobre duas coisas, opto por aquela que não me envolve directamente.

 

Num post recente citava Paul Ricoeur: “A palavra é o meu reino e não tenho vergonha disso”. Porquê?

É a palavra como promessa e como alternativa à violência – é isso que Ricoeur quer dizer. Nisso sou um idealista compulsivo. Por muito que a realidade teime em dizer não, a palavra é uma promessa e pode transpor oposições que parecem irredutíveis. A palavra é o que nos distingue dos animais. A única alternativa à violência e à guerra é a palavra. Sou ateu, não sou baptizado e a religião não teve nenhuma presença na minha infância. Mas tanto no Charles Taylor como no Paul Ricouer, dois pensadores, um católico e outro protestante, há esta esperança. Que é uma esperança activa, que é a nossa única esperança, sobretudo esperança política. Ricoeur não ter vergonha de uma certa ingenuidade.

 

Ingenuidade?

É uma ingenuidade necessária. Sem ela a vida, sobretudo a vida política, torna-se um inferno. Sou um anti-cínico militante. Não suporto aquelas ideias quase agostinianas de que somos seres corrompidos, de que a natureza humana é assim. A palavra é sempre a coisa que vai para além de tudo o que é.

 

No Parlamento, a palavra é a moeda essencial? Como é que vive, isso que acabou de dizer, no Parlamento?

Há uma coisa na experiência do Parlamento que é bastante traumatizante, que é representar sempre o adversário como um inimigo. Mais do que debater, fazem-se proclamações unilaterais. Percebi que é muito difícil sair deste círculo vicioso, em que a palavra serve para atacar.

 

Não é possível sair da disputa retórica? Trata-se de uma contenda, onde o que importa é ter razão, e menos ouvir o outro e ser verdadeiramente tocado pelo que diz?

Sim, de facto é uma disputa de galos. Sabia que era assim, mas tinha a ilusão de que podia ser diferente. Uma vez, o Miguel Vale de Almeida disse-me que queria chegar ao Parlamento e surpreender aquelas pessoas, mudar de registo. Mas depois uma pessoa apercebe-se de que é impossível. Acreditar na palavra torna-se quase uma utopia privada. Acredita que é possível, mas não tem a autonomia que pensava que tinha. De repente a pessoa é sugada para aquele jogo e tem que jogá-lo.

 

Quando é que percebeu isso?

Quando estava a falar com um colega meu, deputado, e lhe disse que ia começar a minha intervenção reconhecendo razão ao Bloco de Esquerda. Eu achava que isso ia dar força ao meu argumento, para não ser sempre aquela diabolização do outro, aquela irredutibilidade nós/eles. Disseram-me para não fazer isso, porque não tinha eficácia. O que importa é aquilo que é eficaz. O que ia dizer pode fazer sentido numa conversa de café, mas naquele fórum não nos podemos dar a esse luxo. E os media tornam isto muito difícil. Imagine o que é uma pessoa começar uma intervenção com um elogio ao adversário e alguém retirar só essa frase e colocar no jornal: “deputado do PS elogia BE”.

 

Quais são os riscos, verdadeiramente?

Não pode quebrar um certo círculo de proclamações e de guerra, porque aquilo é de facto um combate. Ao tentar ir para além desta lógica, e ao expor-se, torna-se vulnerável. É melhor nem arriscar.

 

Personifica uma nova geração que está na política, de quem se espera uma outra maneira de fazer política. Sente essa pressão?

Não faz grande sentido pensar que pode ser outra coisa, como se houvesse uma ruptura. Essa ideia de ruptura é perigosa, porque olha para o que existe como uma podridão generalizada que precisa de uma força regeneradora. Não aceito isso. As mudanças fazem-se pouco a pouco, aproveitando pequenas oportunidades onde elas existem. O mais importante é não nos deixarmos contaminar absolutamente pelo que existe, nem fascinar pelo que pode existir, como se não houvesse uma mediação entre as duas.

 

Isso não parece o discurso de um idealista.

É fácil ser idealista nos blogues. Sou idealista naquilo que escrevo num determinado contexto. Sempre procurei não entrar numa lógica puramente destrutiva. Sempre procurei uma certa dialéctica com aqueles de quem discordo. No Parlamento, é muito mais difícil.

 

É um filho do 25 de Abril. Como é que passou da intervenção nos blogues ao arregaçar as mangas e dizer: “agora é a nossa vez”?

Escrever nos blogues, a posição crítica, é sempre confortável. Apontar o dedo, criticar, sem saber bem como as coisas se passam. Quando me convidaram para deputado, para além de me sentir honrado pelo convite…

 

Quem é que o convidou?

O José Sócrates. Primeiro convidou-me para participar no fórum Novas Fronteiras. Tinha pessoas do PS e independentes; eu sou independente. Depois de ter participado, perguntou-me se estaria interessado em integrar as listas do PS. Disse imediatamente que sim.

 

Porque é que não teve dúvidas?

Porque pela primeira vez em muitos anos achei que estas eleições, e o período económico em que vivemos, representavam uma clara clivagem entre o PSD e o PS. Os partidos nunca foram iguais, mas nunca houve uma diferença tão grande entre os dois projectos políticos. Nunca me identifiquei tanto com um projecto ou achei que era tão importante que aquele projecto político vencesse. E [aceitei] porque tinha idealizado um bocadinho a figura do deputado. Achava que era importante, até para informar parte daquilo que escrevo, ter um conhecimento enquanto participante daquela realidade. Achei que podia ter uma liberdade que algumas pessoas da minha idade, que vêm das juventudes partidárias e que têm um percurso intra-partidário, não teriam.

 

Os blogues podem fazer uma espécie de iniciação, mas mais livre, mais descomprometida?

Sim. Desde que fui eleito deputado, exerço uma auto-censura. Há um conjunto de lealdades que não tinha e passei a ter. A nossa liberdade para o exterior é limitada e certo tipo de críticas devem ser feitas internamente. A lealdade não é uma cedência de qualquer espírito crítico; já critiquei certas opções do Governo no meu blogue depois de ser deputado. Mas as nossas palavras passam a ter outro peso.

 

Estou a pensar novamente no seu pai. O cenário era diferente e havia um desejo de lutar contra aquele mundo. No seu caso, há também o desejo de mudar o mundo? É isso que o faz intervir? 

Mudar o mundo é demasiado ambicioso. Acredito que a política é fundamental para gradualmente e de forma reformista ir mudando o mundo. Mudar o mundo tem de ser lido com alguma humildade e um realismo qb. No mundo em que vivemos grande parte das mudanças transcendem a realidade política portuguesa.

 

O que é que a internet mudou na sua vida?

Abriu-me as portas para uma noção de espaço público que não tinha. Estava completamente circunscrito aos meus amigos e às pessoas que fui conhecendo.

 

Quando é que nasce para a internet?

Foi em 2004, quando um amigo me perguntou se queria fazer um blogue. Não sabia bem o que é que era, mas aderi. Os blogues são fascinantes porque permitem um espaço público virtual e a criação de amigos que a realidade não-internética não permite. Poder ter uma conversa de café com um tipo que está no Porto e outro que está no Algarve, simultaneamente, não seria possível sem internet. O espaço público, como espaço de exercício de cidadania, tem hoje nos blogues, porventura, a sua expressão mais significativa. É algo importantíssimo para a democracia. Se não tivesse participado nos blogues nunca teria sido convidado para as listas do PS. A minha persona pública existe, em grande parte, devido aos blogues.

 

Existe uma clivagem entre aquele que é no espaço da blogosfera e aquele que é cá fora?

No início, o blogue era uma janelinha onde escrevia umas coisas. Neste momento, é uma sala onde vivo. Os blogues formataram e influenciaram uma parte significativa da minha experiência do dia-a-dia. Acordar de manhã e ir ver o que é que as pessoas que eu sigo escreveram, falar com amigos meus que me contam coisas que apareceram nos jornais.

 

Posso perguntar qual é a sua história com a sua mulher, a advogada Laura Abreu Cravo?

Conheci-a numa festa de bloguers. Foi-me apresentada por uma amiga comum. Tinha lido coisas dela. Foi um acaso, como grande parte dos encontros são.

 

Ela é de direita e você é de esquerda. Como é que resolvem duas maneiras de ver e de estar tão antagónicas?

Somos pessoas tolerantes e curiosas, e não fazemos uma coisa que seria expectável, que seria compartimentar a nossa vida privada e a nossa vida pública. Como se cada um ficasse com as suas ideias. Discutimos bastante política e convivemos bem com isso – o que é um sinal de que a representação do outro como inimigo e adversário não é inevitável. Às vezes, quando um determinado assunto tem uma presença mediática muito prolongada, temos de nos proteger.

 

Como assim?

Na campanha eleitoral, a certa altura tínhamos de preservar o nosso espaço privado e não falar de política um com o outro. Estávamos a deixar contaminar completamente a nossa vida privada com a política. Mas no dia-a-dia acho que mantemos um equilíbrio saudável entre coisas que nos unem e coisas que nos afastam. É uma experiência enriquecedora para os dois.

 

Tenta convencê-la da bondade dos seus pontos de vista e convertê-la para o seu lado, e vice-versa?

Acho que tento convertê-la mais do que ela a mim! Há um proselitismo da esquerda que a direita não tem. [risos] A direita tem mais aquela passividade do “é assim que o mundo é”, a que o meu idealismo não me permite resignar. Modéstia à parte, acho que consegui convencê-la numa ou duas partes.

 

Fora do Parlamento, é mais permeável ao argumento do outro lado?

Sou sempre permeável quando acho que o argumento tem um fundo de razão. Se a mediação for impossível e tiver que escolher um, escolho o meu. Isso acontece no Parlamento e acontece em todo o lado.  

 

Impõem-se as escolhas afectivas, é isso?

Não há posições políticas não-afectivas. No fundo de tudo o que defendemos, há um instinto, transformado depois pelo argumento; mas há uma componente afectiva que nunca desaparece.

 

A maior parte das suas experiências são experiências que quer traduzir no Twitter ou no blogue? Não pressuporia, a partir do que leio de si na blogosfera, que gosta de artes plásticas e de uma artista como a Helena Almeida.

No último ano houve uma intensificação enorme da minha vida política. É natural que a parte não-política tenha passado para segundo plano. Noutras alturas, escrevi sobre livros que lia, peças que ia ver. São coisas cíclicas. Não há nenhuma razão [para não escrever sobre esses assuntos], senão que não tenho tido cabeça para isso.

 

O que é que aconteceria se amanhã não tivesse a possibilidade de partilhar no Twitter?

Há casos em que o Twitter acompanha o dia-a-dia. Eu escrevo em momentos muito pontuais, em que quero dizer alguma coisa. Tenho uma relação muito utilitária com o Twitter; há um dia em que escrevo bastante e depois posso estar um mês sem lá ir. Das redes sociais, a única em que participo assiduamente é o blogue.

 

É dependente?

Sou muito dependente. À excepção de quando estou a trabalhar, passo lá muito tempo. Uso o blogue e as novas ferramentas de socialização para debate político. Muita gente integra os blogues ou o Twitter na sua vida privada; nisso mantenho alguma fronteira. A intimidade vive-se em carne e osso.

 

Por uma questão de pudor?

Por um pudor natural, por achar que não tenho que partilhar certas coisas da minha vida com o resto do mundo.

 

Em nenhum momento da entrevista apareceu a palavra ambição.

Nunca fui ambicioso. Empenho-me nas coisas, defendo com intensidade aquilo em que acredito, mas ambicioso, no sentido de ter uma estratégia e um plano para o meu futuro, não. Nisso sou bastante relaxado e diletante. Não me programo, nem o que digo ou faço. Tenho uma noção vaga de realização pessoal, mas isto não se traduz numa programação estratégica e táctica da minha forma de estar. Tenho alguma dificuldade em fazer um planeamento inter-temporal da minha existência. Vou respondendo a solicitações.

 

Isso é porque o essencial está adquirido?

Não. As coisas são imprevisíveis, e exigem uma flexibilidade na resposta. Muitas vezes não são compatíveis com uma programação a médio, longo prazo. A minha ideia de ambição não tem um conteúdo concreto que possa especificar.

 

Nunca teve os seus passos cerceados por falta de dinheiro.

É verdade que nunca passei por dificuldades, e quando as tive os meus pais ajudaram-me. Mas a minha opção por abandonar o meu emprego como consultor, onde ganhava muito bem, causou-me angústias. Estou como deputado, onde não ganho uma fortuna, mas ganho bastante bem – não me queixo. Mas sei que há aqui uma enorme volubilidade. Se ficasse sem emprego agora, passaria por dificuldades financeiras. É algo que me angustia ciclicamente, porque não tenho um emprego certo, não tenho uma carreira.

 

Mas não é uma questão determinante, nem nunca foi?

Não. Esta não-necessidade de me programar a médio, longo prazo tem certamente a ver com uma infância e adolescência relativamente desafogadas em termos financeiros. Se tivesse tido outra infância não me teria despedido aos 23 anos e dado um salto no escuro. Uma certa inconsciência, que me permite tomar certas decisões, está alicerçada num mundo seguro onde sempre vivi.

 

Recentemente, num jornal, insinuou-se que o Parlamento era um “tacho”, por ter feito parte do blogue Simplex. O que é que é mais ofensivo para si nisto?

É sobretudo porem em causa o meu bom nome. Sugerirem que posso ter vendido a minha opinião e as minhas ideias a troco de um qualquer apoio é insultuoso. Isto transcende em muito a minha pessoa. Vivemos uma caça às bruxas. Ser um apoiante do Governo actual é uma espécie de crime. Sirvo uma determinada narrativa e sou uma vítima dessa narrativa. O Correio da Manhã não me quis atacar – não sou ninguém, não tenho importância para ser atacado. Mas sofri com isso. É horrível comprar o jornal de manhã e ver o nosso nome na primeira página a dizer que recebemos dinheiro. É horrível para mim e para a minha família.

 

Nas respostas a diferentes jornalistas, disponíveis no blogue Jugular, sobre contratos que lhe foram atribuídos enquanto consultor, dizia que tinha terminado o curso com média de 17 e falava do seu percurso profissional. O que estava a dizer é que não precisava daquilo?

Foi uma resposta táctica e estratégica. As minhas respostas aos outros jornais estão lá e só digo isso ao Correio da Manhã. Tendo em conta as actuais histórias do Rui Pedro Soares e da PT, podia haver a tentação de pôr tudo no mesmo saco, e senti necessidade de me demarcar. Daí ter dito que era independente, que não vinha das estruturas partidárias e que tinha qualificações que não permitiam que eles me associassem a uma narrativa que estavam a tentar construir. No entanto, truncaram parte das minhas respostas e ignoraram outras. E mentiram acerca das datas dos contratos que consideraram suspeitos.

 

Este processo foi para si uma surpresa?

Mais do que a surpresa, tive uma sensação de pânico, de vulnerabilidade. Sempre tive a ideia de que o jornalismo era um vigilante do poder. Sentir que estava completamente nas mãos de um conjunto de jornalistas é uma experiência aterradora. Sentir medo de alguém que é um contra-poder é assustador.

 

Voltando ao miúdo que foi na infância, que tinha um pai-herói. Alguma vez quis para si uma qualquer forma de heroísmo?

Tendo em conta o meu pai e a sua geração, sempre senti mais a impossibilidade de heroísmo do que a ideia de herói. O heroísmo manifesta-se em pequenos momentos do quotidiano. Os nossos tempos exigem humildade e responsabilidade.

 

Não falou da sua mãe. Todo o seu discurso é muito masculino, de certa maneira.

Não vou falar muito da minha mãe, ela tem mais a ver com a minha intimidade. Pelo menos de forma consciente, acho que a minha mãe não teve contributo nas minhas posições políticas.

 

O espaço exterior e o doméstico correspondem…

A uma divisão da qual não abdico.

 

Ao pai e à mãe, ao masculino/feminino.

Ambos foram fundamentais na minha intimidade, na minha formação afectiva e na minha personalidade. A minha mãe não é uma pessoa muito politizada. A minha mãe foi e é uma extraordinária mãe.

 

Um auto-retrato de quem é, do que sente. Sabemos razoavelmente o que pensa, mas não quem é.

O que sou manifesta-se nos meus actos. Vivo intensamente aquilo em que acredito, sou bastante impulsivo e irreflectido nas coisas que faço.

 

Chamou filho da puta a João Gonçalves, por causa do que ele escreveu acerca de João Constâncio. (“Este é filho do outro. Expele exactamente o mesmo estilo de flatulência política do papá”.) Foi um gesto impulsivo e irreflectido?

Quando vi aquilo escrito sobre o João Constâncio, de quem sou amigo, e depois de ter estado até de madrugada a tentar convencê-lo a publicar um texto no blogue, dizendo-lhe que não tinha que temer e que as pessoas eram civilizadas, aquilo causou-me uma enorme indignação. Reagi a quente. Não sei se me arrependo. Aquilo era exactamente o que escrevi: uma filha da putice. Era inaceitável que alguém tivesse aquele tipo de registo num debate político que se quer civilizado. Trazer à luz a condição de alguém ser filho de outro é uma canalhice.

 

Voltando a quem é.

Sou bastante apaixonado, vivo as coisas muito intensamente e sou um diletante emocional. Vou gostando das coisas que em determinado momento me surgem e às quais dedico o meu tempo. E elas vão mudando. Agora é a política. No futuro, não sei.

 

 

Publicada originalmente no Público, em Março de 2010