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Anabela Mota Ribeiro

Daniel Sampaio

18.12.21

Do irmão diz: “De forma semelhante ao meu pai, o meu irmão é uma pessoa antes do tempo.”

O pai era um homem objectivamente bonito, que encantava pela maneira como estava. Infatigável, com um fio depressivo. Nunca se doutorou. A mãe encharcou dois lenços na cerimónia de doutoramento de Daniel (Jorge não se lembra de ver a mãe chorar). Era uma mulher determinada, cheia de força.

Há ainda a avó Sara e o primo Filipe, fulcrais no cenário da sua infância e adolescência. E depois a família que constituiu, e que em muitos aspectos é o oposto do que conhecia. Daniel Sampaio é casado, tem três filhos e netos. É psiquiatra.

Foram educados para não falhar. O fracasso era uma espécie de anátema na casa dos Sampaio. Não por acaso, Jorge e Daniel (posto pela ordem pela qual nasceram), destacaram-se na vida pública.

Os Sampaio são também Bensaude. Quer dizer, a família da mãe, de ascendência judia, teve uma enorme importância na estruturação das suas vidas, nas pessoas que hoje são. A mãe era aquela que dizia ao pai: “Não desistas”. O pai era aquele que nunca se lembrava de ter férias. Homem carismático.

Durante muito tempo, o Daniel era o irmão do Jorge. Conquistou o seu espaço. Rebelou-se na adolescência, como é próprio. Fez da família o tema central do seu estudo e trabalho. Jorge sempre foi “correctozinho”. Foi presidente da República. O pai não assistiu. Faleceu em 1984. A mãe, sim. Faleceu em 2000.

Será possível compreender os filhos sem saber quem foram os progenitores, que tramas foram as do seu enredo familiar? As pessoas são quem são e são, além das suas circunstâncias, uma história de família.

 

Se lhe pedir que conte uma história sua com o seu irmão, qual é a primeira que lhe ocorre?

Ele tem mais sete anos que eu, e isso marcou muito a nossa infância e adolescência. Quando entrei para o liceu, o Jorge estava a entrar para faculdade, quando entrei para faculdade, ele era advogado. Não brincámos muito juntos. De qualquer forma, havia a tradição de fazermos coisas na quinta de Sintra, com o nosso primo Filipe. As primeiras recordações que tenho são dos meus quatro anos, o meu primo com nove e o Jorge com 11. Fazíamos aventuras.

 

A quinta era dos avós ou era a vossa casa?

Vivemos lá até aos 15 anos, excepto um período em que vivemos em casa da minha avó em Campo de Ourique. O meu pai tinha a ideia de que tínhamos de estar numa boa escola, que fosse laica. Quando chegávamos ao actual 5º ano íamos para casa da minha avó. Estive lá entre os dez e os 13. Os fins-de-semana e as férias eram sempre passados nesta quinta de Sintra, até virmos definitivamente para Lisboa.

 

Porque é que esse seu primo era importante para si? Para fazer a ponte com o seu irmão? Em termos de idade, está mais ou menos no meio dos dois.

Não, porque havia espírito de família. A minha avó fomentava muito [a relação entre] os três netos. O meu pai era de Guimarães e sempre nos demos menos com a família do norte. A família da minha mãe, Bensaude, era preponderante, com valores culturais muito fortes. A minha avó era uma senhora judia, Sara Bensaude, e foi o sogro dela que fez a casa de Sintra.

 

No começo das duas entrevistas, fiz a mesma pergunta. Os dois sublinharam o facto de haver sete anos de diferença. Agora não é importante, às vezes perguntam qual é que é mais velho [riso]. Ele tem mais cabelo que eu. O Jorge diz sempre: “O que é que interessa que pareça mais novo do que sou? O que conta é o bilhete de identidade”. Actualmente, não é muito importante; ainda por cima porque ele está muito activo com 70 anos. Mas entre os dez e os 17 há um mundo, entre os três e os dez há outro mundo.

 

Essa diferença fez com que se sentisse filho único?

Não. Afectou sobretudo a proximidade com o meu irmão na infância e na adolescência. A nossa relação nunca foi muito íntima nessa altura. Foi uma relação de grande afecto, mas de um afecto não-íntimo. Agora não. Temos a tradição de nos encontrarmos ao sábado de manhã, tomamos o pequeno-almoço numa pastelaria aqui ao pé [de casa].

 

Só os dois?

As famílias nunca aparecem. Às vezes aparece o Francisco George, o actual director-geral da saúde que é meu amigo desde os 17 anos e se tornou muito amigo do Jorge.

 

Frequentemente, os encontros em família envolvem todo o agregado. No vosso caso é uma decisão de se encontrarem a dois, de cimentar a relação a dois.

Sem dúvida. Depois temos encontros nos aniversários, no Natal, com toda a família.

 

Explique-me o que era esse afecto não íntimo.

Em primeiro lugar é uma característica da família. Os Sampaio não são muito exuberantes em manifestações de alegria, de grande afecto para com os outros. Isso vem sobretudo do meu pai. As pessoas às vezes dizem que somos distantes, mas esse não é o termo certo: somos contidos. Depois, os sete anos criaram um bocadinho de cerimónia, que foi marcante nesse período, mas depois ultrapassada.

 

Como é que olhava para o seu irmão?

Tinha uma grande admiração. Penso que todas as crianças têm essa ideia do irmão mais velho: uma espécie de herói, aquele que aponta o caminho, aquele que ajuda os pais a lidar com o mais novo. Ele era uma pessoa marcante em tudo o que fazia. Na faculdade de Direito foi líder associativo; eu estava no liceu e observava-o a dirigir os plenários da reunião inter-associações. Toda a militância política dele, o facto de a polícia política aparecer lá em casa... Mas a admiração não é um sentimento de intimidade.

 

As descrições do seu pai são de um homem extremamente carismático. Imaginei-o efusivo, expansivo.

Não. Era uma pessoa completamente antes do tempo. Escreveu coisas nos anos 70 sobre o Serviço Nacional de Saúde que são actuais. Era cordial, atento, mas não era o género de pessoa de contar piadas. Essa faceta não é característica dos Sampaio: temos sentido de humor mas não temos graça. Encontrei na família da minha mulher o contraste.

 

Encontrou ou procurou.

Sim, podemos discutir isso mais adiante. A família dela é o oposto, passam a vida a fazer festas, a encontrar-se, telefonam-se. A minha mãe era menos contida do que o meu pai.

 

Na infância, existiu inveja e competição, como frequentemente existe entre irmãos? Os sete anos de intervalo diluíram isso?

Isso não existe entre nós. Podemos ter sentido ciúmes dos pais, achar que os pais estão mais próximos de um do que de outro. Houve uma altura em que achava que o meu pai era muito mais próximo do meu irmão do que de mim. Houve momentos em que estava mais próximo da minha mãe e o Jorge poderá ter sentido o mesmo. Mas não somos nada invejosos. Acho que ele me considera pelo que faço e me reconhece com algum valor. E eu reconheço-o com muito valor e apreço. Nos últimos anos não houve nenhum político como ele.

De forma semelhante ao meu pai, o meu irmão é uma pessoa antes do tempo. Temos em comum a intervenção social, mas eu nunca quis ter uma militância política activa. Tive um bocadinho com o Manuel Maria Carrilho, e agora vou ter com o Manuel Alegre. O Jorge é um político desde 1958, tinha eu 12 anos e ele explicava-me quem era o Humberto Delgado. Toda a vida foi um político.

 

Mas o Daniel é que é o médico, como o vosso pai.

Sim, mas não sei se fui para Medicina por influência do meu pai. Fui por influência de uma professora de Filosofia do liceu Pedro Nunes, a Maria Luísa Guerra. Essa senhora gostava muito de mim, sempre disse que devia ir para Psicologia, que esse é que era o meu caminho – a vida interior, falar com as pessoas. Ainda hoje tem influência em mim. Tem 80 e tal anos e continua a telefonar-me e a pronunciar-se sobre o que digo e escrevo. Continuo a tratá-la por Sra. Dra., e ela por menino.

 

Contudo é psiquiatra, e não psicólogo.

Talvez tenha escolhido Medicina um pouco pelo meu pai, mas a área da saúde mental é a que sempre quis. Nunca tive um instante de dúvida sobre isso. Se os cursos de Psicologia, em 1964, estivessem mais desenvolvidos, podia ter ido para Psicologia. Lia muito e gostava de ouvir as pessoas. Eram as duas coisas que mais gostava de fazer com 15 anos.

 

Porquê ouvir?

Sempre fui bom ouvinte. Já na escola primária ouvia muito. É um traço de personalidade. Não falo muito; aí sou diferente do Jorge que fala muito mais e numa reunião social é muito mais participativo.

 

Era por acanhamento que na infância era assim?

Sou tímido. Sou introspectivo, gosto de sossego, de estar a ler e a ouvir música, não gosto de reuniões sociais. Depois supero isso, fiz teatro amador, não falo mal, desembaraço-me bem, não me atrapalho perante uma audiência. As recordações de que gosto mais são dessa quinta de Sintra, a ler e a passear, a inventar histórias. Já escrevia umas coisas, no Diário Juvenil.  

 

Romancista, quis ser?

Nunca me assumi nem penso assumir-me como romancista. Quando me reformar é tarde. Não tenho qualquer mágoa sobre isso. Os meus livros não são de auto-ajuda, não gosto nada que o digam. Tenho coisas próximo da ficção, tenho uma peça de teatro, tenho livros teóricos. Se ler Vagabundos de nós, é uma história de ficção, se ler Tudo o que temos cá dentro, é uma história próxima da ficção. O próximo livro é uma narrativa familiar muitíssimo próxima da ficção. Não vou dizer que é um romance porque entrecruzo sempre algumas reflexões teóricas.

 

Quando decidiu parar um ano na adolescência para ler…

E namorar. Li muito, mas também namorei. E fiz política.

 

Pensei que fosse porque tinha o desejo de ser romancista.

A razão de fundo foi porque precisava de reflectir. Foi em 1962-63, a seguir à crise académica. Tinha actividade política na Junta de Acção Patriótica, um organismo estudantil em que as pessoas de esquerda e contra Salazar distribuíam comunicados, chamavam a atenção para os problemas do regime fascista. E tinha uma militância na comissão pro-associação dos liceus, um movimento liceal que era proibido. Havia um grupo significativo de pessoas, como o Fernando Rosas, de várias escolas, que se reuniam em casa uns dos outros. Andávamos sempre quatro rapazes juntos, eu, o Ruben de Carvalho, o Joaquim Barradas e o Rui Costa Lopes. Comecei a desinteressar-me da escola propriamente dita e não passei.

 

O seu irmão não disse sequer que tinha reprovado. Disse que era um aluno brilhante.

Reprovei porque não fui aos exames. Fui um aluno brilhante em Medicina, e fui um bom aluno até ao 7º ano de liceu, agora 11º. Estava numa fase de perceber quem era como pessoa. Do ponto de vista político, da minha sexualidade, se me devia dedicar mais aos amores ou à política… Estava em casa do Ruben de Carvalho quase todos os dias até às 4 da manhã. A minha mãe telefonava a perguntar por mim e o Ruben dizia: “Sim, sim, D. Fernanda, estamos a cantar canções revolucionárias” [riso]. No ano seguinte, em que fiquei só com três cadeiras, lia um livro por dia. Começava de manhã e acabava à noite. Li tudo o que há de romances, sobretudo americanos e ingleses.

 

Quando é que aconteceu ser o Daniel e não o irmão do Jorge, que tinha presidido à associação de estudantes, que era sete anos mais velho, que tinha todo o envolvimento político que conhecemos?

Isso só foi ultrapassado completamente na Faculdade de Medicina. Em 1964, 1965, no movimento associativo da faculdade, estava referenciado como irmão de Jorge Sampaio, para o bem e para o mal. O Jorge Sampaio era considerado social-democrata e o Partido Comunista criticava-o muito.

 

Se se dava com o Ruben de Carvalho e o Fernando Rosas, deduzo que fosse mais esquerdista do que o seu irmão.

Sempre fui mais esquerdista, militei na UDP a seguir ao 25 de Abril. Fiz um percurso dentro da associação de estudantes, pertenci à direcção, fui delegado de curso. Depois fiz uma escolha. Não se pode ser um bom médico e político. Por um lado, já havia um político na família, destacado. Mas o fundamental foi querer ser um médico destacado. Tive de estudar muito e fazer a pulso a minha carreira. A carreira hospital e a carreira da faculdade. Chegar a professor catedrático não é nada fácil.

 

Ser o irmão do Jorge marcou muito a sua vida? Fale-me mais desse processo de crescimento individual.

No início da faculdade, sim, mas depois seguimos caminhos com muita autonomia, com muito respeito um pelo outro. Trocamos impressões sobre as coisas fundamentais, mas nunca deixámos de fazer uma coisa porque o outro disse para não fazer. Das decisões que tomou, apoiei todas menos uma – a nomeação de Santana Lopes. Manifestei a minha discordância. Mas depois cheguei à conclusão de que ele tinha razão; ser presidente da República não é fazer o que a pessoa entende que está certo ou errado, é interpretar a Constituição. Ele terá discordado de algumas opções em relação a coisas que fiz ou escrevi. Houve sempre uma grande liberdade. O lema do meu pai era “liberdade com responsabilidade”.

 

Quando é que sentiu que ele o admirou e pediu a sua opinião?

O facto mais significativo, que me recorde, foi a candidatura à câmara de Lisboa.

 

Já adultos.

Não sei quando é que foi, temos de fazer as contas.

 

Foi em 1989.

Muito adultos [riso]. Foi a primeira vez que me chamou de urgência para dar uma opinião. Uma coisa é encontrarmo-nos e pedir-me uma opinião; outra é dizer: “Tens que cá vir porque tenho que tomar uma decisão muito importante e quero a tua opinião”. Fiquei completamente surpreso, não fazia a menor ideia do que me ia dizer. Ser secretário-geral [do PS] e ser candidato à câmara de Lisboa tiveram custos físicos muito grandes, com um desgaste enorme na sua saúde. Mas foi uma decisão bonita do ponto de vista político. Claro que hoje podemos ler que a partir daí é que ele conseguiu subir a presidente da República; mas na altura ninguém pensava nisso. Havia um problema para resolver, ninguém se perfilava para a câmara e ele disse: “Eu vou, eu sou capaz”.

 

Até onde é que pensa que a sua opinião foi decisiva?

Estou convencido, não sei se já é presunção da minha parte, de que, se estivesse contra, ele teria pelo menos hesitado. A candidatura à presidência da República foi outro momento muito significativo; já não me pediu opinião, disse-me: “Vou-me candidatar”. Quando cheguei à reitoria da Universidade de Lisboa tinha um lugar destacado fora das cadeiras – achei isso muito simbólico. Um colaborador disse: “Aqui é o seu lugar, a pessoa da família de origem que ele quer aqui é o irmão”. Fiquei admiradíssimo. Sentei-me com uma emoção muito grande.

 

Lá atrás, ainda na adolescência, lembra-se de ter ficado surpreendido porque ele pediu a sua opinião sobre alguma coisa? Lembra-se de ele ter estado fragilizado e de a sua opinião contar?

Houve uma vez que reprovou a uma cadeira de Direito e foi uma catástrofe [riso]. Os nossos pais não admitiam falhas de estudo. Lembro-me de ter estado muito próximo dele, de ter sido solidário e de ele ter gostado que fizesse isso. Ele tinha uns 19 anos e eu 12. Senti-o fragilizado.

 

Fale-me das pessoas da família que acha que são importantes nas vossas vidas, mais especificamente na sua vida. 

Os pais, porque eram educadores muito bons. Eram educadores para a cultura, estavam sempre a fomentar o estudo, a reflexão, a leitura. As refeições ao jantar eram a discutir temas, não havia conversa mole; às vezes até era um bocadinho exagerado e protestávamos contra isso. Mas hoje vejo que foi uma coisa boa solicitar constantemente a nossa opinião sobre as coisas e saber o que estávamos a pensar.

 

Era uma maneira de saber quem eram.

Sim. Depois, talvez mais do que o Jorge, tenho um grande culto pela minha avó materna. Não conheci os meus avós paternos nem o meu avô materno. Daquele período dos dez aos 13 anos, em que estive na casa dela, guardo muito boas recordações. Sentava-se ao pé de mim a bordar quando eu estava a ler. Morreu com 96 anos. Depois há esse meu primo Filipe, que hoje em dia é professor catedrático na Faculdade de Ciências, de Física. Os meus dois tios eram artistas, o meu tio era escultor e a minha tia pintava muito bem. Não tinha ido para Belas Artes porque o meu avô não tinha deixado. Havia a ideia de que as senhoras não deviam ir para Belas Artes porque desenhavam homens nus.

Fomos privilegiados nesse ambiente cultural. Nenhum de nós tinha muito dinheiro. O meu pai tinha uma clínica com gente de pouco dinheiro, fazia muitas borlas. No Natal recebíamos galinhas e perus que se punham na quinta, chegávamos a ter 20 [riso]. Depois o meu pai foi para a saúde pública, ganhava muito mal. A minha mãe ganhou algum dinheiro como explicadora de inglês.

 

Aprendeu inglês com a sua mãe?

Não falo tão bem como o Jorge. O Jorge esteve fora em dois períodos, quando tinha oito anos nos Estados Unidos, e quando tinha 14 em Inglaterra. Foram períodos grandes em que esteve lá com os pais. Aprendi algumas coisas com a minha mãe e depois fui aprendendo ao longo do tempo.

 

Resistiu ao inglês como quem resiste a uma coisa que lhe é desconfortável?

Gostaria de falar melhor do que falo. Leio qualquer livro sem dificuldades, mas perco capacidades a falar inglês, sinto-me inibido.

 

Tem a ver com razões emocionais?

Provavelmente. É uma interpretação sua, não sei.

 

Pergunto se se reconhece nelas, se têm algum fundamento para si.

Admito que sim. Está muito ligado o ouvido musical ao ouvido para as línguas, e apesar de gostar muito de ouvir música, tenho muita dificuldade em reproduzir uma canção. Sabia muito de francês, li todos os livros do Albert Camus, por exemplo, com 16 anos. Mas a falar fico a 50 por cento. Nos congressos houve intervenções que fiz com dificuldade. Não tenho espontaneidade na língua inglesa. E também deixei de falar francês. O Jorge, não, tem uma enorme capacidade, inglês, francês, espanhol, italiano.

 

Há uns anos deu uma entrevista em que falava do facto de os seus pais terem ido com o Jorge para os Estados Unidos e de o terem deixado aqui.

Isso foi muito empolado pelos jornais. É literário. Acho que não teve tanta importância como disse. Escrevi isso no A arte da fuga, mas as coisas têm de ser contextualizadas. O livro era sobre uma pessoa que tinha problemas de abandono. Quando lidava com o abandono do Mágico, protagonista dessa história, que é verídica, lidava também com os meus sentimentos de abandono. Quis pôr o meu abandono infantil [no livro] relacionando-o com a situação de abandono [relatada] porque isso é muito importante em terapia. Quando estamos a lidar com um problema que tem alguma coisa a ver connosco, temos de equacionar o nosso problema. Na altura reflecti sobre esse meu abandono – o termo até é exagerado: esse momento em que não estive com os meus pais.

 

Do qual não tem sequer consciência, tinha um ano.

Mas ao longo da vida pensei algumas vezes sobre isso. Sobretudo não percebi porque é que fiquei com a minha avó, porque é que não fui também. Havia a ideia de que era uma criança muito pequena para viajar. Não censuro os meus pais por isso. Depois, sou uma personalidade de alguma forma pública, e isso veio na primeira página do Diário de Notícias, o que me causou imensos embaraços. “Daniel Sampaio, a dor de ter sido abandonado na infância”. Nunca disse nada daquilo. Não foi fácil para o meu irmão e para a minha mãe.

 

Ainda tem dificuldade em entender a opção dos seus pais?

Tenho, porque sou muito familiar, ando muito com os meus filhos, com os meus netos. Não é uma mágoa que tenho, não é uma dor, é uma coisa que não compreendo bem na minha vida. Isso explica porque é que me liguei tanto à minha avó. A minha avó, que não falava nisso, tomou conta de mim. E depois, quando foram outra vez para Inglaterra, quando tinha seis ou sete anos, e estiveram seis meses fora, a minha avó tornou a ficar comigo. Os terapeutas, sobretudo os familiares, como eu, estão sempre a tentar compreender a própria família. Não nos podemos ocupar da família de outro sem compreender muito bem, muito bem a nossa. Fiz muita pesquisa sobre a minha própria família, sobretudo a materna, que é muito interessante. Vem no meu livro A razão dos avós.

 

Sentiu-se na infância especialmente amado pelos seus pais?

Senti-me muito admirado. Achavam que era bom aluno, muito introspectivo, tinham muita expectativa a meu respeito. Os meus pais não eram pessoas que demonstrassem um grande afecto do ponto de vista da proximidade física. Mas estamos a falar dos anos 60, 50.

 

E do que era ser pai e mãe então.

A distância entre as gerações era enorme. Quanto era pequenino, fazíamos os trabalhos de casa, jantávamos antes deles e a empregada é que tomava conta. Não havia essas demonstrações de afecto que adoro nos pais de hoje, de andarem com os filhos pendurados.

 

Mas admiração é diferente de expressão de amor. Isto levanta uma questão interessante: perceber se podia falhar, e se tinha medo de defraudar a expectativa que tinham em si.

Claro que sim. Os meus pais não admitiam fracasso em nenhum campo. Não se podia falhar nos estudos, nas horas, não se podia falhar sequer nos namoros. Tínhamos que ser muito responsáveis com as raparigas.

 

Não as engravidar – é disso que estamos a falar?

Sim, respeitá-las como pessoas, não andar a saltar de umas para as outras. A educação era toda muito séria, exigente. Mas disso estou extremamente grato. Não chego atrasado a lado nenhum, nunca falto ao hospital. Na quarta-feira houve dois médicos que não estavam, e eu, na minha posição no hospital, estaria à vontade para mandar as pessoas embora, mas fui ouvir os doentes. Isto é do meu pai e da minha mãe. Faltar à escola por que se tem dor de cabeça? Tomávamos uma aspirina e íamos às aulas. Nunca nos desculpávamos, nunca dissemos que não podíamos ir porque estávamos cansados. Os nossos pais não diziam para sermos os melhores, diziam para fazermos o melhor possível. E quando se faz o melhor de que se é capaz, às vezes é-se o melhor.

 

Imagino o que foi, nesse quadro, reprovar um ano e estar até às quarto da manhã a discutir política. Era uma forma de os afrontar?

Claro. Era um desafio para eles.

 

Nunca teve medo de se perder e de não estar à altura do que esperavam de si?

Não pensava que me estava a perder. Pensava que tinha que trabalhar politicamente, gozar a vida e ir contra as regras dos meus pais. Está a ver o que era a minha mãe ligar para casa do Ruben de Carvalho para saber se eu estava lá… Chegava a casa e a minha mãe estava a chorar. Mas só se é autónomo quando se desafia a autoridade, senão fica-se um papa-açorda. Se não me tivesse rebelado, teria sido uma fotocópia dos meus pais, e isso não sou. Numas coisas sou melhor, noutras pior, mas sou eu.

 

E também foi importante perceber que eles estavam lá, nomeadamente a sua mãe, apesar do desafio.

Sim, nunca desistiram. Depois arranjaram uma explicação interessante para a minha reprovação: que não estaria muito bem psicologicamente [riso]. Não suportavam a ideia de que tinha sido uma opção não estudar.

 

Havia a ideia de que era especialmente inteligente e, no género calado, mais inteligente do que o seu irmão? Ou essas coisas nunca se punham?

Nunca ouvi falar nisso. Os meus pais não fomentavam a competição entre nós. Achavam que éramos diferentes e que cada um devia seguir o seu caminho. A única coisa que o meu pai, já eu médico, queria que fizesse, era a carreira universitária. Acabei por me doutorar depois da morte dele.

 

O que é que representou para si fazer o doutoramento que o seu pai não fez? Doutorou-se em 1986.

A carreira universitária do meu pai foi controversa. Foi uma coisa que ele não completou e que gostei de ter completado.

 

Fazer o doutoramento era também um tributo emocional que prestava ao seu pai?

Não foi o principal motivo. Os meus mestres queriam muito que me doutorasse. Mas o facto de o meu pai não ter sido reconhecido pela faculdade de medicina e só mais tarde ter sido reconhecido por outra escola, teve alguma importância.

 

A sua mãe assistiu ao seu doutoramento. O que é que representou para ela?

A minha mãe emocionava-se muito nessas alturas. Usava a expressão “encharrecar” um lenço. (Todos os Bensaude carregam nos “r”.) Ela disse: “No teu doutoramento encharrequei dois lenços”. O choro fácil do Jorge vem do lado da minha mãe. Aí não somos nada parecidos, raramente choro. A minha mãe fez uma festa muitíssimo bonita. Quis ser ela a pagar um jantar em casa dela.

 

O Jorge disse que não se lembrava de ver a mãe chorar…

Por isso é que é interessante ouvir os dois irmãos. A minha mãe era muito determinada, forte. Chorar não a impedia de fazer as coisas. Era muito mais forte na persecução dos objectivos do que o meu pai. Ele tinha um lado um bocadinho depressivo e às vezes dizia que não era capaz. A minha mãe, como sabia inglês, foi fundamental nos Estados Unidos, em 1948, a traduzir os livros e a ajudá-lo a preparar-se para falar inglês.

E depois houve outros episódios marcantes. Em 1956-57 fez o Plano Nacional de Vacinação, que ainda hoje existe, e que lançou em Portugal a vacina contra a paralisia infantil, a poliomielite. Durante um período, havia pessoas a transmitir a doença e ao mesmo tempo a ser vacinadas – é sempre assim. A minha mãe ouvia na rua: “O seu marido está a espalhar a doença, está a fazer um grande erro”. A minha mãe aguentava estoicamente e depois dizia ao meu pai: “Não desistes”, e ele: “Mas estarei no caminho certo?”. Ele tinha uma coisa muito interessante (não sei se o Jorge lhe falou): era um caderno com o título Dossier de Lutas e Incompreensões.

 

Que é feito desse dossier?

Não existe, perdeu-se. Tenho muita pena.

 

As famílias repetem-se, reproduzem modelos, comportamentos?

Há uma repetição. Há triangulações que se vão repetindo nas famílias. Por exemplo, a mulher emancipada, o homem autoritário, o depressivo na família. Há documentos que provam isso.

 

É depressivo?

Não. Tenho um enorme entusiasmo pela vida e uma enorme crença na gente nova. A minha mulher costuma dizer a meu respeito que fica cansada só de me ver! Faço muita coisa. Às oito da manhã tenho aulas, depois faço consultas. Depois estou bastante tempo com os netos. Depois escrevo, leio. Segunda, terça e quarta, tenho actividades desde as oito da manhã até às nove da noite, com meia hora de intervalo para almoçar. Quinta à tarde tenho livre e sexta-feira é para os netos.

 

O que é que na família que construiu existe da sua família de origem?

Muita coisa. A minha família tem uma coisa que não tivemos, e devo-o integralmente à minha mulher e à família dela: o afecto exuberante. Os Sampaio admiram-se, gostam-se, mas fazem cerimónia. Da família Sampaio tenho o “antes quebrar que torcer”.

 

O seu pai era um homem bonito.

Ele era mais bonito do que nós. Vestia bem e era muito elegante. Sempre com grande poupança. Comprava bons fatos, mas poucos. Essas coisas não eram muito importantes, não se valorizava o corpo como agora. O corpo bonito era o dos actores e actrizes de cinema, não era o do cidadão comum.

 

A afirmação era pela competência e pelo racional.

Pela cabeça. O importante eram os valores e a maneira de o meu pai falar. A minha mãe, não sendo bonita, tinha uma grande capacidade de sedução pela palavra, pela graça, pelas histórias que contava. Era uma senhora que encantava num serão; falava sobre política, música, literatura. Os meus pais encantavam pela maneira como estavam, mas objectivamente o meu pai era bonito.

 

Pensa amiúde nos seus pais?

Acho a família a coisa mais importante que existe. Nos anos 60, não diríamos que os nossos heróis eram os nossos pais; eram o Che Guevara, o John Lennon, o James Dean. Os adolescentes agora dizem que as figuras fundamentais são o pai e a mãe, até quando estão contra os pais. Trabalho com famílias, não é possível trabalhar com famílias sem estar em contacto com a nossa família.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2010