Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Anabela Mota Ribeiro

Ana Vicente e Filipa Lowndes Vicente

11.03.24

O feminismo é a conversa chata das mulheres? Ana Vicente, nascida em 1943, diz que chata é a situação. A situação de discriminação. E não, não é verdade que o feminismo seja o oposto de machismo ou que as discussões de género não façam sentido em 2013. A sua filha, Filipa Lowndes Vicente, nascida em 1972 e educada numa casa feminista, só reparou tarde na “desproporção entre mulheres e homens artistas nas narrativas históricas ou na cena artística contemporânea”. O livro A Arte sem História condensa uma investigação sobre o tema. 

Filipa usa o apelido da mãe e da avó, Lowndes, e o do pai. Não adoptou o nome do marido, Diogo Ramada Curto. É historiadora. Ana usa o apelido do marido, Vicente. Casou-se num tempo em que era assim. Foi presidente da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres. Ambas têm vários livros publicados.

Têm uma relação terna, cúmplice, de admiração recíproca. Comovente. Mãe e filha passaram uma tarde a falar dos seus assuntos, a gizar a genealogia da família (sobretudo o ramo inglês e materno), a questionar, a esbarrar em contradições. O encontro foi na casa de Filipa, uma coleccionadora, como o pai. Uma casa de livros e imagens. As duas filhas pequenas não estavam e a sua presença não era visível. Não era uma daquelas casas inundadas de brinquedos ou objectos de criança que logo deixam perceber quem manda naquele espaço. De que precisa uma mulher para criar, escrever, pensar, ser ela mesma, seguir o seu caminho? Foi o ponto de partida para a conversa.     

  

Começo pelo título de uma obra fundamental do feminismo, Um Quarto que Seja Seu, de Virginia Woolf, para vos perguntar como era o vosso quarto. Pode ser o quarto da infância ou aquele que, pela primeira vez, consideraram o vosso quarto.

Ana Vicente – Partilhava um quarto com a minha irmã, com quem me dou lindamente. Mas a certa altura disse aos meus pais: “Eu quero um quarto só para mim”. Tinha 10, 11, 12 anos. Queria o meu espaço exclusivo. Fui ocupar um quarto que era das visitas. Tinha a sorte de viver numa casa com vários quartos, no Monte Estoril. Dispúnhamos de espaço, de jardim. Depois de casar também tive sempre o meu escritório.

 

Antes de falarmos desse segundo espaço, detenhamo-nos aqui: era de um tempo, e de uma classe social, as meninas partilharem o espaço com as irmãs, apesar de haver mais quartos disponíveis na casa.

Ana – Não sei porque é que nos puseram no mesmo espaço. Era como se as visitas fossem mais importantes [e fosse preciso guardar um espaço para elas]. A minha mãe era inglesa, recebia muito, amigos e familiares vindos do estrangeiro. Mas ainda havia mais um quarto disponível... Tinha um irmão, que infelizmente já morreu; tinha o quarto dele, e as meninas partilhavam um quarto grande.

Filipa – Passava muitos fins de semana com a minha avó, e havia sempre visitas. Amigas da avó que passavam lá três meses. Tinham de ter o seu espaço, não podiam dormir no sofá da sala.

Ana – Tinha uma amiga que estava a hesitar entrar ou não para o carmelo. Esteve seis meses lá em casa [a pensar]. Por acaso entrou, e ainda lá está. 

 

Era uma maneira de desindividualizar a mulher (não lhe atribuindo um espaço próprio)?

Ana – Acho que não. Se fossem dois rapazes e uma rapariga, os rapazes partilhariam o quarto.

Filipa – No caso da casa da minha avó, acho que não. E em casa, o seu espaço de trabalho era muito importante.

Ana – A minha mãe tinha o escritório dela, o meu pai tinha o escritório dele. Ambos eram jornalistas.

 

Filipa, o seu quarto.

Filipa – Para uma pessoa, para uma mulher poder criar tem de ter aquilo que a Virginia Woolf enumerou: um espaço, condições económicas para ter tempo, tempo. Sarah Afonso [mulher de Almada Negreiros] disse que deixou de pintar porque não tinha um quarto. Foram fundamentais para mim os muitos quartos onde vivi, e que eram individuais (excepto aquele que partilhei com o meu irmão até aos 10 anos, quando fomos viver para Madrid).

 

É um pequeno mundo que ali está circunscrito?

Filipa – Sim. Não podia ser um espaço neutro. Cada vez que chegava a um quarto, mesmo que ficasse lá um mês, tinha que o encher de mim própria.

 

Falaram as duas da importância de ter um espaço próprio, mas não o descreveram.

Filipa – O meu espaço tem livros, imagens. É importante ter as paredes cheias. Nos quartos onde não podia pendurar quadros, tinha posters. Posters de exposições, de artistas. Um que esteve anos e anos comigo: “O Sonho de São José”, da Paula Rego (com uma menina a pintar um senhor velho). “Lisbon in London” do Daniel Blaufuks (as minhas cidades afectivas são Londres e Lisboa). Um do Kandinsky.

Ana – Eu tenho uma relação muito distante com os objectos. Esqueço-me! Os objectos existem para mim quando estão na minha presença. Claro que personalizava o espaço. Sempre tive música no quarto. (Antes de fazer a quarta classe, os meus pais perguntaram-me que presente queria se passasse; escolhi uma telefonia.) Agora, naquele que é, e será, o meu último escritório, tenho imagens. Desenhos feitos pelos meus netos, imagens da minha avó, da minha bisavó, coisas relacionadas com a família.

Filipa – Quando voltámos para Lisboa, e fomos para a casa onde vivi até aos 22 anos, a mãe tinha o seu escritório, o pai tinha o seu, eu tinha um quarto, o [meu irmão] António tinha o seu. Jantávamos juntos, mas depois cada um ia para o seu espaço. Não íamos ver televisão. Nós víamos televisão nas eleições...

 

Podem evocar a sua mãe/a sua avó? Foi fundamental no modo como aprenderam a ser mulheres. E sendo a mesma pessoa, o retrato da Filipa e o da Ana não serão coincidentes.

Ana – Nem toda a gente acha que a mãe é uma pessoa especial. Os psicanalistas explicam que há filhas que fazem os possíveis para ser o mais distantes e diferentes da mãe, de tal modo odeiam a mãe. Eu não tive esse percurso. Tive a sorte de ter uma mãe especial, e um pai também especial (sobre os quais publiquei um livro, Arcádia: Notícia de uma Família Anglo-Portuguesa). A minha mãe era uma inglesa casada com um português – com tudo o que isso implica. Adoptou o país. Mesmo depois de viúva, ficou cá, apesar de ir a Inglaterra de dois em dois anos!, o que já era considerado extraordinário.

 

Como é a história de amor deles?

Ana – Não se conheceram em Londres, onde o meu pai viveu. O meu avô tinha estudado e trabalhado em Inglaterra; e de tal modo adorava a cultura inglesa que mandava os filhos (isto no princípio do século XX) para colégios internos em Inglaterra, aos sete, oito anos. Foram os rapazes e as raparigas; só não foi a mais nova porque entretanto houve a grande depressão e já não havia dinheiro. O meu pai ficou em Inglaterra até 32. Mas vivia num mundo distinto do da minha mãe, e nunca se cruzaram.

A minha mãe veio passar umas férias a Portugal em 1938. Com o pai, que era jornalista do Times. A minha avó, que era escritora, estava a acabar um livro e não veio.

 

Antes de casar, a sua mãe trabalhava?

Ana – Tinha um loja de antiguidades e fazia trabalho social. Era uma católica convicta. Nas férias em Portugal conheceu o meu pai através de um primo inglês. Foi o meu pai que os levou a passear. Apaixonaram-se em 15 dias! Como o mundo mudou... A minha mãe voltou para Inglaterra de barco e começaram a namorar por carta. (Ainda as tenho.

 

Que é que sentiu quando as leu?

Ana – Gostei muito de ver que eram duas almas que se encontravam.) Casaram em Londres dois meses e meio depois. A minha mãe tinha 30, 31 anos, o meu pai 39.

 

Tinha um discurso feminista?

Ana –Nunca me disse: “Eu sou feminista”. Mas actuava como tal. Hoje há mulheres que dizem: “Não sou feminista”. E contudo são. Ou seja, assumem a sua autonomia, individualidade, identidade. Assumem o seu direito a fazer o seu percurso.

 

Foi educada para ter um percurso autónomo, individual, assumindo o direito a fazer o seu percurso?

Ana – É curioso. Os meus pais acharam que eu ia casar, que não ia ter uma carreira profissional. Ou que, se ia ter, ia ser uma coisa vaga. Aprendi a dactilografar. Mas ao meu irmão disseram: “Tens que ir para a universidade” .

 

Como é que a Filipa olhava para o mundo da avó, para a avó?

Filipa – Era um outro mundo. Uma casa com jardim. Em Lisboa, com os meus pais, vivia num andar. A avó estava sempre a trabalhar. Quando meu avô morreu, o jornal (Anglo-Portuguese News) passou a ser feito lá em casa. Havia jornais por todo o lado. E cães, cães-salsicha. A avó não era de abraços. Mas lembro-me de poder dormir na cama dela.

Ana – Ah, quando eu não estava... [riso]

Filipa – Associo à minha avó a não-preocupação com o que os outros pensam. Penso nisto quando a minha filha mais velha, que tem 10 anos, se preocupa comigo: “Ai mãe, não se vista assim”.

Ana – Não havia o “parece mal”.

 

Mas isso é marca de ser estrangeirada.

Filipa – É verdade. Só muito mais tarde conheci esse mundo do “parece mal” e do “deve ser assim”. Portanto era um mundo muito aberto e diverso.

 

A vida da sua avó mudou muito depois de enviuvar?

Filipa – Não. Continuou com uma vida social e profissional intensa.

Ana – Começou a viajar. Como o meu pai era doente e muito dependente dela...

 

Dependente em que sentido?

Ana – Emocionalmente e até fisicamente. Não conduzia. Não podia usar muito os olhos e era jornalista. Durante anos, a seguir ao jantar, a minha mãe lia-lhe livros.

 

Na maioria das famílias portuguesas a dependência era inversa. Era a mulher que dependia do marido. E nisso há para si toda a uma aprendizagem do que são as relações conjugais, do que é uma relação homem-mulher, do que é permitido à mulher, do que ser mulher representa.

Ana – Não tinha nada a ver [o que se passava em minha casa] com essa imagem. Sempre trabalhei, antes e depois do casamento, e a partir de certa altura comecei a viajar. O meu marido sempre me encorajou na minha carreira. A minha mãe dizia-me: “Como é que o teu marido, que ainda por cima é português... O teu pai teria ficado incomodado se eu viajasse tanto como tu”.

 

Queria chegar a essa contradição, entre um espírito livre, avant-garde,  e depois, por exemplo, não esperar um destino académico da filha, ou estranhar que viaje tanto. É uma forma de esperar que a realização passe pela via da família, e não pela do trabalho.   

Ana – Sim, esperavam que eu fosse secretária, até casar. Depois, passaria ao papel de esposa.

Filipa – Penso que era a força de certos preconceitos sociais, [que se impunham]. Porque a própria avó já tinha crescido com uma mãe e uma avó que trabalharam toda a vida.

Ana – Quando publiquei o meu primeiro livro – tarde, em 1987 – Mulheres em Discurso, a minha mãe escreveu-me uma carta: “Que feliz que eu estou porque estás a seguir a tradição familiar”. Eu colaborava com eles para o jornal, corrigia provas, escrevia artigos, cheguei a ser secretária do meu pai (foi assim que comecei a minha carreira, aos 17 anos [riso]).

Filipa – Nem sabia que a avó lhe tinha escrito essa carta.

 

O facto de ter casado com um português, e de ter vivido em Portugal, aos olhos da sua mãe confinou-a ao que era o desígnio das mulheres portuguesas?  

Ana – Absolutamente, sim. Quando pela primeira vez fui a uma casa de fados, para minha grande fúria, a minha mãe foi, também. Para ser chaperon. Não queria que eu chocasse com as convenções portuguesas.

Filipa – Ela tinha interiorizado essas convenções, também.

 

Quando ouve isto, parece um mundo longínquo. E era apenas o mundo da sua mãe. O que mudou nos comportamentos sociais no espaço de uma geração...

Filipa – Eu tinha todos os mundos abertos. Estudar e ir para a universidade era completamente natural. Não havia nenhuma diferença entre a minha educação e a do meu irmão. Lembro-me de pedir no Natal um comboio eléctrico e não havia comentários acerca daquilo que uma rapariga ou um rapaz deviam fazer.

 

Partilharam o mesmo quarto até aos 10 anos...

Ana – Mas isso foi falta de espaço (e excesso de colecções do teu pai!).

Filipa – Tenho pensado neste assunto, por causa do livro (A Arte sem História) e por causa das minhas filhas. Uma pessoa só é, e só sente que há um caminho, se outras pessoas o trilharam. Mas o género continua a marcar muito. Por exemplo, olhe para o espaço que é ocupado pelos homens e pelas mulheres na comunicação social. Nas televisões, quem é que é chamado a comentar a crise? As redacções estão cheias de mulheres, mas as colunas de opinião (no Expresso, na Visão, no Público) são sobretudo de homens. Qual é a mensagem que está a ser transmitida às minhas filhas?

Ana – E aos meus netos? O meu filho só tem filhos.

 

Qual é que pensa que é a mensagem?

Filipa – Os homens falam de assuntos importantes. A geração dos 60 anos foi substituída pela dos 40 e 50, mas não há uma consciência de género, um questionamento das coisas. O mesmo digo em relação à academia. Organizam-se conferências e convidam-se 30 homens.

Ana – A maioria dos doutorados em Portugal são doutoradas. A desculpa de que não há mulheres não serve.

 

Isso leva-nos a um dos pontos centrais da entrevista: a discussão das questões de género e ao feminismo. Em 2013 achamos que tudo está adquirido.

Ana – E não é verdade. Ainda esta semanas duas mulheres foram assassinadas pelos maridos. A violência, que assume muitas formas – a prostituição, a violência doméstica, os assassinatos –, [mostra que nem tudo está adquirido].

Filipa – A exposição física do corpo das mulheres, a forma como os homens falam das mulheres, em todos os meios sociais e intelectuais...

 

Quando é que a sua vida foi marcada por ser mulher? No concreto, o que é que deixou de fazer por ser mulher?

Ana – Deixei de fazer coisas pela minha personalidade, e não pelo facto de ser mulher. Por não ser suficientemente aventureira, inovadora. Os meus pais nunca me impediram de viajar (e até aos 21 anos não podia sair do país sem autorização explícita do meu pai, reconhecida pelo notário). Aos 18 anos, depois de um colégio interno inglês, fui estudar sozinha para Paris. Mas essa pergunta é uma armadilha. Há muitas mulheres que dizem: “Eu cá nunca me senti discriminada, não há discriminação”.

Filipa – É importante não tomarmos o nosso exemplo individual. Não corresponde à generalidade. Em que é que o ser mulher marcou a minha vida? Marcou na rua. Quando voltei de Madrid com 14 anos ia sozinha para o Instituto Espanhol, que era longíssimo, e foi um choque a agressividade dos homens. A meterem-se. As coisas ordinárias que diziam. A ideia era: a rua não é minha. Vejo isso como uma agressão.

 

Alguma vez se vestiu de uma maneira diferente, limitou ou contrariou um gosto, por pensar que, vestindo certa roupa, ia ser objecto de olhares ou comentários desagradáveis?

Filipa – Sim. Lembro-me de pensar nisso na adolescência.

Ana – A mim os meus pais diziam-se: “Não podes voltar sozinha que é perigoso”.

Filipa – E não diziam isto ao meu tio Paulo.

Ana – Tu e o teu irmão sabem tratar da vossa vida autonomamente. O meu filho sabe tratar dos filhos...

Filipa – Muito mais, até, do que o nosso pai. As contradições: era a minha mãe [feminista] que tratava de mim, que me levava ao médico. Era para a Comissão da Condição Feminina que eu ia quando acabava as aulas. Não ia para o trabalho do meu pai. Mas isto já não aconteceu comigo, com o meu marido e com as minhas filhas. Não quer dizer que não aconteça com muitíssimos casais meus amigos. Conheço muitíssimas mulheres que se divorciaram porque bateram o pé e disseram: “Chega de ser eu a trabalhar fora, e a trabalhar muito mais em casa e a tomar conta das crianças”.

Ana – Eu assumi este duplo papel [de trabalhar fora e em casa, e tomar conta das crianças].

 

Diferentes focos de discriminação: o corpo da mulher, a sexualidade, a maternidade. O grande conflito continua a ser entre o espaço da família e o espaço social?

Filipa – Sim. Essa é a grande mudança que é preciso fazer no quotidiano. Há um grande desequilíbrio. Espera-se mais das mulheres (e só falando do nosso mundo português). Mesmo com maridos educados e quando ambos têm uma profissão igualmente exigente. Quando um dos elementos tem de dar mais um passo, os homens continuam a ter mais espaço para o fazer. Espera-se que as mulheres abdiquem disso [em prol da família]. Os homens não dizem nos trabalhos que têm de sair mais cedo porque têm de levar os filhos ao médico.

 

Se dizem, são desconsiderados pelos seus pares?

Filipa – São. Lembro-me de estar num jantar e de ouvir um advogado dizer que se alguma vez um dos advogados do seu escritório pedisse os 15 dias de paternidade [a que tem direito pelo nascimento da criança] o despediria imediatamente. Era um homem de 50 anos. Espera-se que as mulheres trabalhem menos, e que fiquem em casa a tomar conta dos filhos quando eles adoecem. Mas se os homens o fizessem mais, seria igual contratar um homem ou uma mulher. Faz-se como se as crianças não existissem. Marcam-se reuniões para as seis, sete da tarde. Porquê? Porque não têm de ir para casa, porque as mulheres já estão a assegurar essa parte (os banhos, os jantares).

 

Os homens olham para esta conversa como sendo “a conversa chata das mulheres?

Filipa – Esse é um dos estigmas do feminismo. É muito mais fácil dizer que uma coisa é chata do que mudar ou questionar as nossas formas de fazer as coisas.

Ana – A conversa é chata. A situação é chata!

 

Vamos à definição de feminismo – essa palavra tão chata...

Filipa – ... e assustadora.

Ana –  Não há um feminismo, há feminismos. É uma palavra que surgiu no século XIX. (Tenho uma bisavó, sobre a qual publiquei uma biografia, que era claramente feminista e nunca a palavra foi usada.) A minha definição é muito alargada. Significa um movimento social, talvez dos mais importantes do século XX, porque transformou, e está a transformar, as relações entre as pessoas de uma forma profunda. Os feminismos são uma caminhada importantíssima e baseada numa justiça que o ser humano busca desde sempre: a da igualdade. A de as pessoas serem consideradas porque são pessoas e não porque são mulheres ou homens.

 

Educou o seu filho para ser feminista?

Ana – Sim. Os homens podem ser feministas. Podem e devem ser se aspiram a um mundo melhor.

 

Um dos argumentos usados pelos detractores do feminismo é que são as mulheres que educam estes homens que ficam no trabalho até às nove ou que despedem outros porque eles usam a licença de paternidade.

Filipa – Usam esse argumento e isso é verdade. Há muitas mulheres que não são feministas e que educam os seus filhos para reproduzirem os modelos que elas próprias conheceram. É muito mais fácil reproduzir o que absorvemos. A vida torna-se mais complicada quando temos dúvidas em relação a tudo. O [filósofo e economista] John Stuart Mill tem uma frase muito curiosa, no século XIX: condenou o patriarcado e disse: “Não querem só que as mulheres sejam inferiores. Querem que elas estejam felizes sendo inferiores”. Eu quero ter um escravo, mas um escravo feliz. Não quero um escravo a chorar pelos cantos...

 

Que aceite a sua condição, e viva feliz nisso?

Filipa – Sim. Há muitas mulheres que têm medo do feminismo, que o associam a tudo aquilo a que eu não associo: que os homens não vão gostar delas por serem feministas. Na academia, os temas de mulheres continuam a ser malditos.

 

Malditos?

Filipa – Malditos e menorizados. Se perguntar, ninguém lhe diz isto. Mas é tão evidente... Como se esses temas as subalternizassem. Nas artes, a mesma coisa. Há mulheres que não querem ser associadas a exposições de mulheres porque temem que isso as secundarize. O cânone é sempre masculino. Quando as feministas nos anos 70 disseram: “Vamos descobrir as mulheres”, a atitude passou a ser: “Pronto, são assuntos de mulheres”. O Expresso está agora a escolher as pessoas mais influentes do século; em cada 25 pessoas há duas mulheres. Toda a História e a História de Arte que aprendi é feita por homens.

 

Como é que olham para a desconfiança que há em relação às feministas? É fácil rotulá-las, chamar-lhes lésbicas, histéricas, as que queimam sutiãs, as machonas (palavra tão pesada)...

Filipa – Exactamente, usam essa palavra para dizer que não são mulheres. Dizem que o feminismo é contraditório com feminilidade. Talvez por ter crescido numa casa feminista foi um choque para mim constatar que essa é a ideia que se tem dos feminismos. Para mim sempre foi uma palavra feliz, ligada aos direitos humanos. Feminismo não é o contrário de machismo.

Ana – “Ah, eu não sou nem feminista nem machista.” O machismo é uma coisa negativa que pretende que os homens sejam superiores às mulheres.

Filipa – O feminismo não diz que as mulheres são superiores. Mas este é o preconceito que lhe está associado. E mesmo aqueles que poderiam contestá-lo não o fazem porque não querem estar associados a este discurso.

 

Qual é a raiz deste anti-feminismo?

Ana – Há uns anos pediram-me para escrever sobre o tema e decidi investiga-lo. Concluí que há três grandes pilares: os políticos e os pensadores (no século XIX há textos inacreditáveis!, “as mulheres têm as cabeças mais pequenas”...), alguns sectores das religiões (as religiões monoteístas têm uma tradição de exclusão violenta das mulheres), e as mulheres. Mulheres que são activamente anti-feministas (educando os seus filhos no machismo, nomeadamente).

 

Gostava de voltar à vossa história familiar e a um dos pilares do anti-feminismo, a religião. A religião tem uma grande importância na vida da Ana. Na nossa tradição católica, há desigualdades evidentes. As mulheres continuam a não ser ordenadas.

Ana – Fui educada num catolicismo não-beato, com responsabilidade social; não quer dizer que fosse revolucionário. Com um grande cuidado catequético. Embora tenha estado num colégio em Inglaterra, mais anglicano do que o St. Julian’s School [em Carcavelos], onde estudei dos sete aos 15 anos. Quando fiz a primeira comunhão, tive aulas de Religião com uma freira. Aulas individuais. Mas questionei desde pequena (apesar de não ser discriminada por ser menina em casa) a desigualdade social das mulheres e dos homens. Dentro da igreja, só questionei mais tarde.

 

Que atitude tinha a sua mãe?

Ana – A minha mãe, apesar de achar que os padres deviam poder casar, que havia muitas coisas a mudar, a ordenação das mulheres... Não era que militasse contra, mas para ela era impensável. Tal como lhe custou a ela e ao meu pai as alterações litúrgicas, a perda do latim a seguir ao Vaticano II.

Filipa – As mudanças custam. Os seres humanos são muito conservadores.

Ana – Aos 22 anos entrei para a [cooperativa] PRAGMA. O presidente era o Nuno Teotónio Pereira. Era o grupo dos católicos progressistas. Mais tarde estive na criação do grupo reformista Nós Somos Igreja, que começou com uma petição enviada ao Papa João Paulo II; propunha a transformação de uma igreja rígida e estratificada numa comunidade de crentes aberta, em igualdade, a todas as pessoas. Dizem-nos: “Em 17 anos [de Nós Somos Igreja] não mudou nada”. Mas quando morreu João Paulo II os meios de comunicação social discutiam a ordenação das mulheres, a contracepção, o aborto, os padres celibatários...

Filipa – Antes das mudanças vem sempre isto: o debate.

 

Filipa, que importância teve a religião na sua vida?

Filipa – Tive uma formação católica, mas a religião não tem na minha vida a importância que tem na vida da minha mãe ou que teve na vida da minha avó. Tem o valor da atenção aos outros, está associada a uma forma de estar na vida. A minha mãe tem uma postura mais activa, no sentido em que diz: “Eu não concordo e quero mudar”. Eu não. Tenho uma relação difícil com o facto de as mulheres não poderem ser ordenadas, com a forma como a Igreja lida com a homossexualidade...

Ana – E com a sexualidade.   

 

Em especial com a sexualidade das mulheres?

Filipa – Sim, em tantas religiões. Afastei-me, em especial quando vivi em Itália, onde a religião católica é mais tradicional do que cá (não sei se é a proximidade com o Vaticano). A minha fé está “lá”, mas pouco vivida e pouco alimentada.

 

A história da pintura está cheia de pintura religiosa. Aí, a representação da mulher é sobretudo como a mãe.

Ana – Uma mãe virgem.

 

A mulher foi também pintada como musa. Quais são os modelos mais constantes?

Filipa – As mulheres são muito centrais e visíveis na representação, mas não enquanto criadoras. Têm um papel passivo.

 

Esta reflexão está no centro do seu livro A Arte Sem História – Mulheres e Cultura Artística (Séculos XVI – XX).

Filipa – São muitas vezes representações muito sexualizadas. São pintadas, esculpidas, filmadas por homens, pertencem ao espaço de criação dos homens, o olhar é o dos homens. As abordagens feministas da História de Arte vieram chamar a atenção para isso e deixam perceber a ausência das mulheres enquanto criadoras. Se elas não podiam frequentar um atelier de artista (a não ser quando eram filhas de artistas)...

 

Tem na parede uma imagem da pintora Sofonisba Anguissola. No seu livro fala dela e frisa que, quando fez um auto-retrato, na verdade retratou-se de uma maneira enviesada. Não era ela que se pintava, mas um homem que a pintava a ela.

Filipa – Gosto muito dessa pintora. O pai dela, por acaso, não era artista. Mas só tinha filhas e por isso investiu na educação delas. Há pintoras e músicas na família. Era muito comum no século XVI, em Itália, as mulheres representarem-se a si próprias. Porquê? Era o que podiam pintar. É mais fácil estar em casa e pintar-se a si própria do que ir para uma igreja pintar um altar, numa terra diferente. Isso implica mobilidade, autonomia, conviver com homens desconhecidos.

 

As mulheres são muitas vezes penalizadas socialmente, e muito pelas outras mulheres, quando assumem comportamentos alternativos. A que é mãe e continua a fazer uma vida de solteira, ou que está ausente, é considerada uma “má mãe”.

Filipa – Continua a ser muitíssimo verdade. O homem vai estudar, trabalhar, fazer o seu percurso para fora, e não é criticado como uma mulher é.

 

Outra ideia feita: a de que as mulheres são terríveis umas para as outras.        

Ana – A Maria de Lourdes Pintasilgo dizia que essa fama deriva disto: fomos educadas com a ideia de que temos que caçar o homem. Caçar um bom marido. E as outras mulheres podem ser rivais. Foi-nos incutida uma ideia de concorrência.

 

Começou por falar da competição que as filhas têm com as próprias mães. Num plano mais profundo, psicanalítico, pode passar por aí também esta rivalidade entre mulheres?

Ana – Não sei. Nem sei até que ponto isto é uma ideia feita...

Filipa – Estas coisas ouvem-se quando as mulheres estão a ocupar espaços que eram masculinos. Quando uma mulher, no local de trabalho, tem características negativas atribui-se isso a ser mulher. Ditadores: ninguém diz que são ditadores por serem homens. Se tem poder, seja a Thatcher seja a Merkel, ser mulher já entra [na apreciação]. Nem que seja para dizer que tem poder porque se aproximou das características masculinas. Num mundo onde não houvesse discriminação de género essas questões não se punham. 

Na minha experiência, no instituto de investigação onde trabalho, sinto que há uma enorme cumplicidade e solidariedade entre as mulheres. Tenho grandes amigas entre mulheres com quem também estou “a concorrer”.

Ana – Claro que há mulheres insuportáveis, como há homens insuportáveis. Há pessoas insuportáveis.

 

Maria de Lourdes Pintasilgo, Maria Helena Rocha Pereira, Isabel Magalhães Colaço: três mulheres que foram pioneiras em Portugal. Não por acaso, não casaram nem tiveram filhos.

Ana – A Leonor Beleza, com quem tive também o privilégio de trabalhar, foi a primeira mulher (e tem 62 ou 63 anos) que, ao sair da universidade, foi convidada para assistente. Isabel Magalhães Colaço teve de se doutorar antes de ser convidada. Portanto isto é tudo tão recente... Ajudou, com certeza, o facto de não terem filhos para chegar onde chegaram.

Filipa – Muitas destas mulheres artistas, no século XVI ou no século XX, foram mulheres que, ou estavam sozinhas, ou tinham maridos que o permitiram e as apoiaram. O homem que se tem ao lado é determinante.

 

O marido de Helena Almeida apoia-a e fotografa-a. O Alberto Luís dactilografava os manuscritos de Agustina.

Filipa – O Arpad e a Vieira da Silva são o exemplo de um casal em que um não anula o outro. Estas mulheres tiveram homens especiais, que não se sentiram ameaçados ou lhes deram espaço para crescerem enquanto criadoras.

Ana – Uma escritora portuguesa, de 50 e tal anos: um dos seus maridos não a deixava escrever. Divorciou-se. Noutros tempos talvez não pudesse fazê-lo e a sua voz apagar-se-ia. Aconteceu muito ao longo da História.

 

Voltemos ao vosso percurso pessoal, ao concreto, lugar onde estão tantas contradições. Foram viver para Madrid nos anos 70. Porquê?

Ana – O meu marido, que é professor universitário, foi convidado para conselheiro cultural da embaixada. Fui atrás dele. As crianças estavam numa idade ideal (sete e dez anos), ainda não se importavam de ser transplantadas de país. Em Madrid continuei os meus estudos universitários e comecei a escrever. Tive, como a Virginia Woolf, tempo e um quarto. Escrevi o meu primeiro livro porque o Estado português me deu essa oportunidade, atribuindo-me uma bolsa. Mulheres em Discurso foi o meu primeiro livro.

 

Já comentou com as suas filhas que as mulheres em Portugal, até 1969, precisavam da autorização dos maridos para viajar para o estrangeiro?

Filipa – Para elas é um mundo longínquo. Tento que tenham uma consciência feminista. Como tento que tenham uma consciência ecológica. Como tento que não tenham medo da crítica, de ser a voz dissonante num grupo. Como mãe, é muito importante transmitir a ideia de não-preconceito, de abertura aos outros seres humanos.

 

A Filipa viveu anos em Florença e em Londres. Essas mudanças foram uma escolha?, foi atrás do seu projecto de vida, ou foi atrás do seu marido?     

Filipa – É curiosa essa pergunta. A resposta é: as duas coisas. Quando fui bebé para Paris, era o projecto de vida dos meus pais. Com 10 anos, para Madrid, também era o projecto de vida dos meus pais.

Ana – Era o projecto de vida do pai.

Filipa – Quando voltei de Madrid, aos 14, decidi interiormente que queria viver fora. Quando comecei a fazer um doutoramento em Londres, aos 23, era um projecto individual. Quando conheci o meu marido estava há um ano em Londres; a última coisa que queria era um namorado em Portugal. Aliás, sempre achei que, se alguma vez me casasse, ia casar com um estrangeiro.

 

Porquê um estrangeiro?

Filipa – Porque, achava eu, me identifico muito mais com a forma de pensar. Foi tudo ao contrário. [riso das duas] Mas lembro-me de o meu pai ter esse medo! De que eu fosse abandonar o doutoramento para me casar! Nunca mo disse, mas eu percebi. Fiquei chocada com o facto de o meu próprio pai pensar isso de mim. Não me conhecia.

Ana – A Filipa fez questão em se doutorar antes de casar.

Filipa – A seguir tive uma bolsa de pós-doutoramento, que permite bastante mobilidade. O meu marido ganhou um concurso em Florença e fui atrás dele. Confrontei-me muitas vezes com essas contradições. Escrevi um livro, comecei outros dois. (Este livro das mulheres artistas também foi começado lá.) De repente estava eu ali, acabada de doutorar, com vontade de fazer coisas, e era “a esposa” do senhor professor.

 

Não havia mulheres na universidade?

Filipa – Era uma universidade tradicional, onde só se fazem doutoramentos, muito masculina. Que homens há dispostos a abdicar das suas carreiras para acompanhar a mulher que vai estudar? Obviamente há menos mulheres a candidatarem-se. Eu, a feminista, fui a um almoço de “spouses” [esposas]! Conheci tantas mulheres que abdicaram das suas carreiras para se adaptarem...

 

O que é que fez?

Filipa – A minha forma de subverter essa condição foi levando a sério o meu trabalho. Mas não foi fácil.

 

Já com crianças?

Filipa – Nasceram lá. Fiz questão que houvesse a tal partilha. Se eu parava de trabalhar para as ir buscar, exigi que o meu marido também o fizesse.    

Ana – Depois foste para Londres e ele foi atrás.

Filipa – Depois dos oito anos em Florença fomos, por causa de um projecto meu, para Londres, um ano.  

 

A Filipa não adoptou os apelidos do seu marido. Ponderou fazê-lo?

Ana – Eu adoptei! Se fosse hoje, não adoptava. Na altura era aquilo. Nem pensei. Penso que para o meu marido, não sendo ele machista, era importante adoptar o nome dele.

Filipa – Nunca me passou isso pela cabeça. Já tinha a minha identidade, não faria qualquer sentido. E para ele também não.

 

Profissionalmente assina Filipa Lowndes Vicente.

Filipa – Não por acaso, Lowndes é o apelido da minha mãe e da minha avó.

 

O livro A Arte Sem História é dedicado à sua mãe, “... sem a sua educação e inspiração feministas, este livro nunca teria sido escrito.” Já disse que o começou em Florença. Porque é que pegou nele novamente?

Filipa – A verdade é que foi o cancro da minha mãe que me deu o incentivo para acabar o livro. Tinha-o posto de lado para dar prioridade a outros projectos de investigação. A doença da minha mãe inverteu as prioridades. Sempre pensei dedicar-lho e queria que ela o tivesse nas mãos e pudesse ler as palavras que lhe dediquei. A doença tem-nos marcado e unido. Falamos mais sobre tudo, sem tabus. Ela resiste à doença e desafia-a, contra todas as regras – até nisso vai contra as regras. O livro é uma forma de falar do enorme amor e admiração que tenho pela minha mãe. Ainda maior, se possível, ao ver a serenidade e ao mesmo tempo a energia, o humor!, com que tem convivido com a doença.

Ana – Eu queria dizer que é um privilégio e uma benção ter a Filipa como filha. Tenho imenso orgulho pelo facto de ela ser a quinta geração em linha recta de mulheres da família que escrevem, e com uma qualidade e profundidade raras. Considero A Arte sem História uma peça pioneira que enriquece a produção dos estudos sobre as mulheres no nosso país. Quanto ao facto da minha doença ter estimulado a Filipa a terminar o livro, fiquei obviamente muito contente com a decisão dela.

 

Onde vai buscar esta coragem de que fala a sua filha para lidar com o doença?

Ana – Ter um cancro é uma experiência que muitíssimos doentes vêem como uma nova e não necessariamente terrível fase da vida. Pertenço a um grupo de auto e interajuda de doentes oncológicos e é frequente ouvir testemunhos agradecidos do género: “Foi esta doença que me fez mudar de trabalho, de marido, de país, de rumo de vida”. Tenho fé, mas sei que quem a não tem pode ter as mesmas experiências que eu: encarar a mortalidade mais ou menos próxima, ninguém sabe, com naturalidade, e desfrutar de novas amizades que se podem encontrar, inclusive, entre os profissionais de saúde que frequentemente nos circundam. A doença aproximou-me da minha família e das minhas amigas e amigos. A Filipa tem sido uma aliada extraordinária neste caminho.

 

 

 Publicado originalmente no Público em 2013