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Anabela Mota Ribeiro

Anselmo Borges

12.05.17

Anselmo Borges é um teólogo que fala do valor da bondade que nos devia nortear, do niilismo que atravessa a sociedade, da palavra crédito que no seu étimo significa “crer”. É um padre que fala do Papa Francisco, que encanta por ser um homem com dúvidas e um farol num tempo de desorientação.

Estamos no fim do ano. É tempo de olharmos para dentro. Para o dentro individual e para o que formamos colectivamente. Que significado têm nos nossos dias palavras como “dignidade” ou “valor”?

A entrevista foi na Universidade de Coimbra, onde dá aulas. Mas Anselmo Borges vive no norte, depois de ter vivido em Itália, na Alemanha, em França... Uma vida à procura. De si mesmo, para começar. É um heterodoxo que fala franzindo o sobrolho e a sorrir. O último livro que coordenou tem por título “Quem foi Jesus Cristo?” A interrogação vai bem com ele.

 

Comecemos por uma palavra: luta. É a que mais faz sentido quando olhamos para a nossa condição de humanos?

É, mas uso mais a palavra combate. A vida é um combate. A fé também é um combate (ao contrário daqueles que pensam que é uma consolação). Talvez a luta tenha um referencial violento. A palavra combate é mais ampla e tem a ver com luta interior, grandes tarefas que é preciso realizar pessoalmente e em conjunto com outros.

 

“Luta” não é a primeira palavra que se associa a um clérigo. “Consolação”, talvez. Nestes tempos de agonia que vivemos, a ideia de luta é central?

Devia ser. O que constato é “resignação”. Infelizmente. Talvez esteja enganado.

 

Está a pensar nos portugueses quando fala de resignação?

Sobretudo nos portugueses. Mas trata-se de uma situação global muito complexa. Julgo que estamos numa mudança de paradigma. Vivemos num cotovelo da História.

 

Cotovelo?

É. Há enormes transformações. A genética, as neurociências, as novas tecnologias e o chamado transhumanismo. As mudanças climáticas. A internet. A globalização. O diálogo intercultural e inter-religioso. Há valores da modernidade em relação aos quais não é possível voltar atrás (razão crítica, separação da Igreja e do Estado, direitos humanos...), mas há uma mudança a vários níveis e não sabemos exactamente o que vem aí.

 

Como é que define modernidade?

É uma das revoluções maiores da Humanidade. Significa o posicionamento do sujeito cognoscente no centro. De um modo simplificado diria que no período clássico tínhamos o cosmocentrismo, na Idade Média o teocentrismo e agora temos o antropocentrismo. A modernidade tem, numa das suas leituras, a tentativa de realizar agora, no mundo, aquilo que se chamava de Reino de Deus.

 

Realizar agora essa promessa? Falar de Reino de Deus aponta para o distante, o inconcreto.

[Realizar] agora e aqui. O homem moderno pensou que era possível essa realização através da ciência, da técnica, da transformação da sociedade. O próprio marxismo está nesta linha emancipatória. Karl Marx levava consigo a Bíblia. Há uma ideia messiânica nesta modernidade, que está em crise. Desde o princípio do século XX que há uma desconfiança em relação a este projecto. Já não há a grande confiança na razão. Nem no progresso. Nunca houve tanto progresso, e ao mesmo tempo há desconfiança em relação ao progresso – também por causa da ecologia. Vivemos na sociedade do perigo.

 

A pergunta que se põe é: para que é que precisamos disso? De certo progresso – o que é que ele representa de facto? –  do que ele traz consigo.

Exacto. Em termos sociais, há a desconfiança [que decorre] da queda do Muro de Berlim em 1989, da crise posterior a 2008. As pessoas estão numa falta de esperança. Demos entrada naquilo a que alguns chamaram de pós-modernidade e de niilismo. Há um certo mal-estar que atravessa a Europa e o mundo.

 

Deixámos de ter, não só Deus, mas um projecto. Mais do que tudo, estamos sem farol?

Sim, há uma enorme desorientação. As pessoas perguntam-se “porquê?”, “para quê’, e vão vivendo no fragmentário. E vão consumindo. Vivemos no tempo do imediato. Isso não traz um projecto exaltante e mobilizador. Talvez esteja a ser pessimista. Tento mobilizar-me e mobilizar aqueles com quem contacto. Mas o que mais falta é confiança. E crédito, claro.

 

De que tipo de crédito fala?

Neste momento faltam palavras que as pessoas associam à religião. Fé. A palavra vem do latim “fides”, de onde vem, aliás, confiança. A nossa vida está baseada na confiança. A palavra crédito vem de “credere”. Também falta crédito bancário [riso], mas em primeiro lugar trata-se de crer, acreditar. Confiar na vida, nos outros, no futuro. Crer no futuro.

 

Essa palavra tem acepções tão distintas...

As duas coisas estão ligadas: o crédito e a confiança. Que faltam. Também porque há uma desafeição em relação à religião. Essa fé mobilizadora em Deus dava estímulo. Assim, vivemos numa penúria. Vivemos na noite de que falava [o poeta alemão] Hölderdin.

 

Estava à espera que trouxesse um salmo, uma palavra bíblica, antes de o ver trazer um poeta.

Os salmos são grandes poemas. De louvor, de queixa. São as grandes orações que estão na Bíblia, e que mesmo não-crentes recitam. Porque são belos. A beleza, dizia Dostoiévski, é que salva o mundo. Eu acredito plenamente. Como é que conseguiríamos viver sem beleza? 

 

Qual é o primeiro salmo que lhe ocorre? Um de que goste especialmente.

“Deus é o meu pastor, nada me falta.” Isto liga-se àquele poema de Santa Teresa D’Ávila, a mística: “Nada te turbe, nada te espante.” Que nada te perturbe. “Solo Dios basta.” Deus basta. Com isto não estou a dizer que a religião seja pura consolação. Mas a partir da confiança em Deus nasce a exaltação da vida, o combate pela dignidade, por aquele mínimo que todos os homens e mulheres devem ter para a realização humana plena. É necessário ler a História no seu reverso.

 

Como é que se lê a História no seu reverso?

A partir disto que acabo de dizer. De um modo geral, a História que lemos é a História dos vencedores. É uma parte minúscula. Se não quisermos ficar apenas com uma parte diminuta, temos de lê-la no seu reverso.

 

O reverso diz respeito aos derrotados?

Às vítimas. Aos oprimidos, humilhados, ofendidos. Aos pobres. Aos mortos. Os de todas as periferias.

 

Esses são quase todos.

São. Porque é que a História só há-de ser a História dos vencedores? Temos de ler a História a partir do seu reverso e agir em consequência. Isto é, colocar-se nesse lugar, que  é o lugar de Deus. Deus, que criou por amor, quer que todos os homens e mulheres sejam sujeitos da História. É preciso dar-lhes meios para que possam ser actores da História.

 

Ocorreu-me a palavra afonia. Esses de que falou, e que são quase todos, não têm voz. Outro problema diferente é a afasia, que acontece quando não encontramos as palavras para dizer o que queremos dizer. Neste momento da História não encontramos as palavras que nos permitem mudar o discurso, inventar outra narrativa. Como é que isso se faz, na prática?

Transformando o mundo, agindo em consequência. Para que todos possam ter o seu lugar.

 

Falemos do Papa Francisco. Causa espanto que diga coisas aparentemente banais. Na intervenção que mereceu uma resposta da JP Morgan falou de trabalho digno, educação, cuidados de saúde, e que os ricos partilhem a sua fortuna.

Era disso que eu estava a falar. Aparentemente é banal, mas apenas está a fazer o que Jesus fez. Jesus, que não se meteu na política em sentido técnico, foi condenado à morte pela religião oficial enquanto blasfemo e pelo poder imperial romano enquanto subversivo.

 

As palavras do Papa Francisco parecem retiradas de um ideário político. Todos os políticos falam de trabalho digno, educação, igualdade social.

O Papa fá-lo enquanto voz político-moral e a partir da experiência de cristão. A Humanidade tem de resolver alguns problemas. Esses. E repare: esta sociedade é a primeira que, para ser o que é – banal, consumista, hedonista, individualista – teve de fazer da morte um tabu.

 

O que é fazer da morte um tabu?

“Disso não se fala. Não é de bom tom.” Escondemos a morte. Quando alguém morre, a primeira coisa que fazemos é esconder a morte às crianças. É uma sociedade do êxito, da conquista, que não permite o luto. É uma sociedade da juventude que triunfa. Ora, a morte põe tudo isso em questão.

 

Somos impotentes em relação à morte.

Com a omnipotência, pensaríamos poder matar a morte. Mas não podemos. Por isso, é necessário ter a ideia de Messias e de ressurreição dos mortos. De facto, se tudo desemboca no nada da morte, como pensar a ética, a moral, a existência autêntica? É o pensamento da morte que nos leva a distinguir, em última análise, entre o que é justo e injusto, entre o que é digno e indigno, entre o que vale verdadeiramente e o que não vale.

 

São coisas diferentes, a ideia de Messias e a de ressurreição dos mortos. É possível pensá-las de maneira dissociada. Podemos não ser crentes, e nesse caso a ressurreição nada nos diz. Mas culturalmente foi-nos inculcada a ideia de um Messias.

Há uma dívida da História para com as vítimas inocentes, que clamam justiça. Só Deus pode pagar essa dívida. Daqui a ideia de ressurreição dos mortos. Trata-se de saber quem é o Messias.

 

Temos sempre um Messias, mesmo que não o entendamos de um ponto de vista religioso?

Para o marxismo, o Messias era o proletariado. Pôde ser também a ciência e a técnica. Mas eu refiro-me ao Messias religioso, esperança para todos e força para a transformação deste mundo.

 

Força, poder?

É claro que em todas as organizações tem de haver um mínimo de poder. Mas trata-se de perceber se é o poder enquanto dominação ou se é o poder enquanto serviço. Esta é que é a opção fundamental. Os políticos, se não caminharem no sentido do poder enquanto serviço, vamos continuar nesta situação lamentável.

 

De descrença.

De desconfiança em relação aos políticos. Não temos grandes estadistas. Andamos todos perplexos em relação à Europa e ao mundo. Nisso estou com o grande sociólogo Zygmunt Bauman que diz que não há solução enquanto não se fizer uma análise verdadeiramente global. A política, que é da ordem do dever ser (para que todos os homens e mulheres possam realizar-se na sua dignidade humana), é local ou regional. Ora os mercados são globais. Temos esta cisão. Assim, enquanto não tivermos instâncias políticas globais, como é que se vai controlar os mercados descontrolados?

O Papa Francisco foi acusado de marxista. Ele diz que não lhe faz diferença. Mas ele não é marxista. Ele denuncia o capitalismo desenfreado. Não é contra os mercados. Penso que   quer uma economia social e ecológica de mercado.

 

Parece uma utopia, dito assim.

Há utopias que podem concretizar-se. Estive várias vezes na África do Sul, ainda no tempo do Apartheid, vi bancos de jardim onde estava escrito “só para brancos”, e perguntava-me: “Qual vai ser a saída? Como é que vai ser possível instaurar uma democracia, sem uma revolução com imenso sangue?” Foi possível! E tanta gente, por estes dias, se inclinou perante a memória de Mandela. A utopia é um pensamento fundamental, que pretende dizer-nos para onde devemos caminhar e que nos indica a possibilidade de transformar o mundo, nem que seja por pequenos passos.

 

Estamos também falhos de utopias.

Claro. No quadro da falta de grandes relatos, que caracteriza o nosso tempo, estamos também falhos de um pensamento utópico mobilizador. A utopia implica uma visão holística da realidade, embora, com o perigo, também, de totalitarismos.

 

Continuemos a falar do Papa. Porque é que acha que o mundo se encantou com ele?

Encantou-se porque as pessoas andam desorientadas e ele é uma referência. As pessoas dizem: “É possível, afinal”. Primeiro aspecto: a simplicidade, a humildade, vir à varanda, quando foi eleito Papa, e desejar boa noite e bom apetite... Quer dizer, é um homem, que confessa que também tem dúvidas. Um homem estimável que está interessado verdadeiramente no bem estar das pessoas. Pegou no esmoleiro do Vaticano (aquele que distribui as esmolas, e que é um arcebispo) e disse-lhe: “Tens de ir de noite, como eu fazia em Buenos Aires, pelas ruas, visitar os sem abrigo. Aqui no Vaticano não precisam.” Isto encanta. O estilo dele é o estilo do Jesus. Ao longo de muito tempo a Igreja foi muito “disangelho” – uma notícia má. A expressão é de Nietzsche. Agora, é outra vez o Evangelho: uma notícia boa, felicitante.

 

Além do estilo, há a prática do Papa Francisco, que também surpreende. Adoptou o nome Francisco e uma atitude franciscana por oposição a estes tempos de opulência desigual.

E por oposição a uma Igreja que era triunfal. Ele não foi para o Palácio Apostólico. Ficou em Santa Marta com as pessoas normais.

 

A escolha do nome revela que a pobreza (consequência do capitalismo desenfreado que o Papa critica) ia ser uma das linhas essenciais do seu papado.      

E é. Qualquer dia vai escrever uma encíclica sobre a pobreza. Ele não quer uma sociedade de pobres, quer é que não haja a injustiça gritante e a exploração.

 

Um Papa nunca é, apenas, uma voz religiosa e dirigida aos crentes. Mas o conteúdo do discurso deste Papa parece especialmente político.

É uma voz político-moral, como disse, que tem pela frente muitos desafios. Se não conseguir que os cardeais, os bispos, os padres, os católicos sejam cristãos, a coisa é complicada, não é?

 

É frequente os líderes ficarem enredados na máquina que comandam (ou não comandam completamente). Obama é o exemplo acabado disto. O seu território fica minado e acabam impotentes.

O Papa Francisco não pode ser sozinho, fazer sozinho. Fiz uma conferência em Lisboa sobre “A síndrome de Obama ou o efeito Francisco?”. Francisco já transformou muito a Igreja, a sua figura será inapagável, mas precisa de dar uma nova Constituição à Igreja. E se a não conseguir fazer? A nível institucional precisa de mais descentralização. A Igreja é a única instituição verdadeiramente global. Precisa de mais participação dos leigos, das mulheres. Para dizer isto numa palavra laica: a Igreja precisa de mais democracia.

 

Porque é que na sua conferência pôs o Papa Francisco e Obama na mesma linha?

Se o Papa não conseguir uma transformação profunda da Cúria, transparência no Banco do Vaticano, mais democracia, o seu projecto pode ficar em parte bloqueado. É nesse sentido que alguns falam da síndrome de Obama. Mas há todo o efeito Francisco. Despertou uma simpatia global e em alguns países aumentou a prática religiosa. Foi considerado a figura do ano. Notável.

 

O discurso de Francisco tem sido progressista. O que disse em relação aos homossexuais é prova disso.

Sim. Estou convencido de que vai permitir aos católicos divorciados que recasaram o acesso à comunhão. Abrir aos anticonceptivos. Não creio que acabe já com o celibato [dos padres], mas pode abrir a porta à ordenação de homens casados. Vai colocar em lugares de decisão máxima na Igreja as mulheres.

Depois há a relação da Igreja com o seu “fora”. Ou seja, a ligação com outras Igrejas cristãs (tem uma boa relação com o mundo protestante, com o mundo ortodoxo), com as outras religiões. Não é impossível imaginar que o Papa visite Moscovo.

 

Seria, será um grande passo.

Não é por acaso que o Vaticano tem embaixadas pelo mundo, as chamadas nunciaturas apostólicas. Porque é que isso não há-de constituir um espaço para a defesa dos direitos humanos e para fazer pontes para a paz? Um dos primeiros países que felicitaram o Papa Francisco foi a China. Não é impossível pensar que, não este Papa, mas o que se lhe segue, vá também a Pequim.

 

Isso representaria o fim da diabolização da besta comunista?

O comunismo acabou em 1989. O chamado “socialismo real” terminou ali. O que tem impedido a ida do Papa (mesmo do anterior) a Moscovo não é a política. Têm sido os diferendos com a Igreja ortodoxa.

 

A palavra diálogo é a palavra central? Nestes tempos, a defesa dos direitos humanos é a bandeira que a todos liga?

Há pouco estava a falar de utopia: a utopia é essa. A utopia é um mundo no qual todos os seres humanos, homens e mulheres, de todas as religiões, de todas as etnias, vejam respeitada a sua dignidade humana. É para aí que é preciso caminhar.

 

O que JP Morgan respondeu ao Papa Francisco, voltando a este tópico, foi que a pobreza não é um fenómeno contemporâneo. Sempre existiu.

Temos que ser realistas. Hoje vive-se melhor do que há uns anos. Mas ainda há muitos pobres. Num tempo em que há a possibilidade de alimentar todas as pessoas do mundo, é uma vergonha para a Humanidade que morram 24 mil pessoas por dia de fome. É intolerável. Porque os outros pertencem-me, também. O que é dramático no nosso tempo é o capitalismo especulativo financeiro. Parte do drama.

 

A outra parte é a desigualdade brutal que esse capitalismo provoca. É contra ela que o Papa se pronuncia.

O Papa coloca-se no plano de Jesus, que queria um mínimo de igualdade. E apesar de acreditar na vida eterna, quer a felicidade para os seus filhos já, aqui, nesta terra.

 

Gostaria de voltar à palavra messianismo e cruzá-la com sebastianismo, sabendo que são coisas diferentes, eventualmente coincidentes.

Há uma ligação entre elas, sim. Escrevi um texto sobre isso.

 

Temos entranhada na nossa cultura a ideia de que alguém há-de surgir do nevoeiro para nos salvar. Se é verdade que esta crise não é local, por todas as razões conhecidas, por outro sabemos que Portugal vive um momento especialmente agudo. Vamos continuar à espera? Vamos conseguir emancipar-nos e dar o salto? Crescer.

Estamos a viver tempos agónicos. Portugal teve sempre muita dificuldade em governar-se. Cometemos erros, erros. Houve um certo regabofe, nada de ilusões. Imensa irresponsabilidade na condução do país. Nos últimos 40 anos podíamos ter dado um salto qualitativo; esse salto não foi dado.

Veja o número de auto-estradas. Criaram-se instituições de ensino superior de forma cega, inadequada. Era preciso ganhar eleições. Depois há imensas cumplicidades entre a política partidária e os negócios. Daí a corrupção, fuga ao fisco. Depois pergunto-me quantas pessoas verdadeiramente acreditam na justiça, em Portugal. Ela não é célere, muitos queixam-se de que não é justa. Depois temos o tsunami demográfico; qualquer dia não há portugueses. Depois perdemos alguns valores. O valor da honra.

 

Como é que se perdeu o valor da honra?

Porque a dada altura entrou fundamentalmente o valor do ter. A qualquer preço. E era preciso parecer. Para dar um exemplo: alguém roubou. Roubou! Mas não roubou no supermercado. Roubou na banca. Ou fugiu às suas responsabilidades políticas. Isso vem na primeira página do jornal. Estou a ler aquilo, chega o responsável e aperta-nos a mão – olá. Entende? Antigamente havia censura social.

 

Está a dizer que desapareceu a vergonha social?

Também. Quando se fala de crise de valores, é isto. Valores há. O dinheiro também é um valor. Mas não pode é ser o valor máximo.

 

Voltamos a lidar com palavras que têm acepções distintas. Valor e valores.

Gosto muito do étimo das palavras. A palavra valor vem da saudação romana: “vale”. Quando nos cumprimentos dizemos: “Como está? Passou bem?” É sempre em relação à saúde. O “vale” é: passa bem.

O ser humano vem ao mundo com muito poucos instintos. Os outros animais vêm ao mundo feitos. Um pintainho: abre-se o ovo e já anda nesse dia. As vitelas, os cordeiros erguem-se naquele andaime bastante frágil, a mãe lambe-os e já andam. O ser humano tem de fazer-se. Os valores têm a ver com o fazer-se bem e em todas as dimensões. Para realizar-se plenamente. O ser humano tem em si a pergunta pelo infinito, e isso é que é o fundamento da sua dignidade. Isso é o que o distingue. A utopia é criar e realizar um mundo onde todos possam ser reconhecidos como plenamente humanos.

 

Alguém devolver-nos a face e ela trazer consigo a imagem do reconhecimento? Dos nossos pares, dos nossos pais?

Isso mesmo. Ao ser humano não basta existir. Precisa de existir para alguém que o reconheça. O respeito tem a ver com isto: vejo o outro e o outro restitui-me o seu olhar, reconhecendo-me. Vê-me na igualdade e na diferença. O outro é um outro eu, um eu como eu, mas também um eu que não sou eu, um eu outro. Um fascínio e uma ameaça, porque não sei o que é que ele pode fazer de mim. Francisco sente-se reconhecido por Deus, e por isso não tem medo. “Deus é o meu pastor”. A quem temerei?

 

Voltando a Portugal. Pensa que vamos conseguir vencer o sebastianismo que há séculos nos acompanha?

Não podemos esperar nenhum D. Sebastião. O Messias somos nós. Mas é evidente que as responsabilidade não são todas iguais. Eu esperaria que neste momento em que se decide se queremos que o país tenha futuro ou não, as forças da sociedade civil, as mais significativas e determinantes, se unissem.

 

Quais são essas forças?

A universidade, as igrejas (a católica é entre nós a mais representativa), os partidos, os empresários, os sindicatos, os média. Se unissem para dizer aos portugueses verdadeiramente o que se passa. Sabe o que é que se passa? Sabe qual é a real situação do país? Alguém sabe? Confia-se nos dados contraditórios que nos chegam?

 

Está a dizer que deviam cair as máscaras.

Sim. Que se dissesse qual é a situação real e que se estabelecesse um consenso mínimo em políticas que construíssem um futuro de dignificação para todos. Enquanto isso não acontecer andaremos a queixar-nos uns dos outros, a culpabilizar-nos uns aos outros, mas não faremos nada para o futuro.

 

Precisamos de uma grande figura aglutinadora?

Precisaríamos de algumas figuras aglutinadoras. Vozes encantatórias, diz o professor Adriano Moreira. Uma voz político-moral que estivesse acima dos pequenos e grandes interesses, que não estivesse na inverdade que estamos a viver. Sabe, eu acredito na razão, mas numa razão aliada à bondade. Este vínculo da bondade solidária e da razão é que devia nortear-nos.     

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2013