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Anabela Mota Ribeiro

Berlim, cidade dos anjos

27.04.20

Começo por Potsdamer Platz. É um aglomerado de edifícios cuja arquitectura fere por ser tão exuberante. Não há vestígios do tempo (recente) em que esta era uma terra de ninguém. Nem do outro, mais longínquo, em que era uma das praças mais animadas da Europa, com os primeiros semáforos, automóveis e eléctricos. No cruzamento de linhas há hoje um pedaço do Muro, com inscrições nas duas faces – uma referência que serve a curiosidade dos turistas que querem saber onde acabava a Berlim Ocidental e começava a Oriental. Ver o muro de um lado e do outro, circundá-lo, parece o mais simples dos caminhos; e contudo, é o resumo de uma impossibilidade que se desfez.

Quando Wim Wenders filmou «As Asas do Desejo», o mundo terminava no Muro. Em 1987, dois anos antes do desmoronamento de um tempo, o realizador não podia prever a reunificação das duas Alemanhas e, sobretudo, que a topografia que o filme registava estava na iminência de desaparecer. Uma das cenas mais tocantes do filme é, justamente, quando um velho, narrador da História, vagueia por um imenso descampado, onde não existe nada, senão a sua memória do que ali se passava. Ele procura: «Não consigo encontrar a Potsdamer Platz, isto não pode ser Postdamer Platz». “Isto” é a terra devastada que percorre, ao mesmo tempo que lembra que ali, no centro fervilhante da Potsdamer Platz, ficava o Café Josty, onde à tarde se conversava e observava o público, e se fumava o tabaco comprado numa tabacaria de renome. «Não desisto enquanto não encontrar Potsdamer Platz».

Chego à Potsdamer Platz à hora de almoço. Talvez seja excessivo dizer que me parece um olho de vidro incrustado num lugar onde antes se via de verdade. Mas a Potsdamer é mesmo uma cidade de vidro que tem no centro o complexo Sony (a sede europeia é aqui), do outro lado da rua o edifício DaimlerChrysler, um centro comercial, um casino, a maior sala de espectáculos de Berlim, 17 salas de cinema e uma escultura de Jeff Koons dedicada a Marlene Dietrich (é uma flor azul fosforecente, como ela foi no cinema). O investimento que reconverteu a praça foi de 17 mil milhões de euros. Em nenhum outro lado se construiu tanto nos anos 90. Porque é que nada disto me espanta?

À hora do almoço, a Potsdamer está razoavelmente vazia. O Café Josty – outra incrustação, desta vez no interior na Praça Sony – tem uma esplanada pindérica e uma família a comemorar o facto de estar na esplanada do Café Josty, onde à tarde se conversava e fumava tabaco de renome.

Prefiro o café que fica no rés do chão do museu do cinema e que se chama Billy Wilder. A amostra não podia ser melhor: fotografias pelas paredes imortalizavam Charles Laughton e Marlene em «Testemunha de Acusação», Audrey Hepburn em «Sabrina», Shirley MacLaine, de meias verdes, em «Irma la Douce». Havia até um cocktail chamado «Sunset Boulevard». Mas a menina que me atendeu não tinha ideia sobre quem era Billy Wilder. Virei as costas ao “Willkommen, willkommen” da Potsdamer Platz e segui para o Monumento ao Holocausto, muito perto dali.

 

Se à época existisse, Wim Wenders teria escolhido este espaço para o encontro e desencontro de pessoas de carne e osso. É um labirinto ondulante, composto por 2700 blocos de pedra, que assinalou os 60 anos do fim da Guerra. Não há neles qualquer referência aos milhões de judeus que morreram naqueles anos – vozes discordantes criticam o facto de ser um memorial demasiado abstracto... Nem há nesta sequência uma ideia de pedras tumulares. O arquictecto americano que o criou gosta de pensar nele como espaço intregrante da vida dos berlinenses. Peter Eisenman preferia que fosse usado para encurtar caminho, por exemplo, mais do que “uma experiência sagrada”.

A minha primeira experiência foi arrepiante. Era quase escuro quando mergulhei no labirinto. À superfície vê-se uma sucessão de pedras desiguais, mas não se percebe que há um afundamento a seguir. Não se percebe que se cai no abismo (no horror de que somos capazes?). Podemos seguir o caminho que quisermos e fazêmo-lo com segurança, porque não temos dúvida de encontrar a saída, de nos salvarmos a qualquer instante. O que tornou a minha passagem sagrada foi o som de um violino que distingui ao fundo, e que me fez procurar por entre as pedras o ponto exacto de onde ele vinha. Era um som tristíssimo, que chamava e contagiava. Quando o encontrei, vi um jovem, parado, com uma criança que teria dois anos nas suas costas. A criança olhava para o céu de chumbo e o som era cada vez mais pungente. A perfeição daquele momento levou-me novamente ao filme de Wenders, à perseguição da inocência. Quase estraguei tudo quando lhe perguntei se o podia gratificar. Mas ele era apenas um rapaz americano, judeu, que prestava tributo à sua gente, e que, findo o prazer da música, enfiou o violino na caixa e partiu.

No dia seguinte, dia claro, voltei a mergulhar no Memorial. Devia escrever “atravessar” em vez de “mergulhar”, porque usei-o como atalho para chegar ao outro lado da praça.

Esta experiência, (corriqueira, mas sensorial), estaria vedada aos anjos de «As Asas do Desejo». Recupero um diálogo maravilhoso entre Damiel e Cassiel num descapotável que está para venda. «Mas às vezes farto-me desta existência de espírito. Gostaria de sentir um peso que anulasse a infinidade e me segurasse à terra. Sentir o agora, jogar cartas, ser cumprimentado, nem que fosse com um aceno, chegar a casa cansado, ter febre, ficar com os dedos sujos de ler o jornal. Supor em vez de saber sempre tudo. Comer borrego assado e beber vinho, sentir os pés descalços. Poder dizer “ah, oh”». Estes anjos querem experimentar o espanto, provar o sabor do café quente, sentir o vento frio na cara.

 

Há vinte anos, o realizador alemão Wim Wenders vestiu os seus anjos de sobretudo e pôs-lhes o olhar nostálgico de quem perde o caminho e se quer achar. A Berlim que então filmou já quase não existe. Persistem os fragmentos da vida de todos os dias: a discussão conjugal, a família árabe com crianças no banco de trás, aquele que no metro se preocupa com questões prosaicas, “Como vou pagar, com a pensão pequena que tenho...?”, aquele que se ocupa de questões existenciais, “Porque estou vivo?”. Ou aquele que se esvai em sangue, depois de um acidente, e enumera o que deixa por fazer ou aquilo por que vale a pena viver: “O cruzeiro do sul, Stromboli, as casas antigas de Charlottenburg, Albert Camus, a luz da manhã, nadar na cascata, os olhos da criança, o saltitar, os nervos das folhas, o ondular da erva, a paz do domingo, andar de bicicleta sem mãos, a bela desconhecida, o meu pai, a minha mãe...». Há uma parte de «As Asas do Desejo» que ficará para sempre, por mais que a cidade seja reconfigurada. Aquela que diz respeito à procura, à densidade que é própria do humano.

Todo o filme se passa na Berlim ocidental, erguida sobre os escombros da Guerra. Todos estamos ainda incrédulos_ como foi possível? A banalidade do mal doi. Se o povo alemão não fosse tão perseverante, tão organizado e tão rico não seria possível reconstruir a cidade em 60 anos, e agora, depois da queda do Muro, em 18 anos. Há nos mercados de rua vestígios dessa passagem do tempo e da abertura ao leste: candeeiros da Bauhaus a 70 euros, casacos de vison a 900 euros, mobiliário “vintage” em óptimo estado, talheres em prata, mapas antigos, medalhas e distinções militares (abundantes). Pergunto pelas obras de Marx e Engels e o alfarrabista diz que desapareceram. Deitaram-nas fora! Deixaram de as querer, de as procurar, de qualquer associação com esse tempo e o que isso produziu.

 

Não é só pelo desconhecido que a parte leste é a mais extraordinária de Berlim. Lá se conserva um tempo, austero, apesar de todos os sintomas da mudança. São muito visíveis os buracos das balas, as fachadas reconstruídas. Vem à memória a imagem do filme de Wenders quando uma mulher sacode o edredon na casa esventrada...Em Berlim, as pedras têm vida. Também há no lado ocidental avenidas praticamente refeitas. O tamanho da destruição percebe-se em coisas tão simples quanto: em dez casas, oito foram feitas de novo. E há a catedral a que os berlinenses chamam “dente furado”, a Kaiser-Wilhem, bombardeada em 43 e mantida tal qual. Mas na Berlim Oriental o tempo fechou-se sobre si e o mundo fechou-se em torno da ideia soviética de mundo.

Hoje, a zona oriental está transformada num centro nevrálgico, onde se instalam cadeias internacionais e artistas. É um novo mundo do qual se tem vontade de fazer parte. A par de Londres e Nova Iorque, Berlim é um ponto essencial no panorama da arte contemporânea. Noé Sendas, Filipa César, Rui Calçada Bastos, Nuno Cera, Gabriela Albergaria ou Adriana Molder são alguns dos portugueses que vivem em Berlim. Há um claro investimento do governo alemão na revitalização de Berlim como centro cultural europeu. E o custo de vida, ajuda. Um apartamento no centro de Berlim Oriental, com um quarto e uma sala custa cerca de 500 euros. Já não há existem os cabarés dos longínquos anos 20, cheios de fumo e luz difusa, embora tenha reaberto um dos mais famosos, com meninas vestidas a la Josephine Baker, para turista ver. Mas há o PergamonMuseum, com o colossal altar da cidade grega de Pérgamo, e as portas da antiga cidade de Babilónia – só para mencionar os “highlights”. Também há, num outro museu, o busto de Nefertiti, de uma elegância e beleza raras, que por si só justifica uma visita a Berlim. 

 

Passeio na Unter den Linden. Marlene cantou «Enquanto as tílias continuarem a florir na Unter den Linden, Berlim será sempre Berlim». A avenida, com tílias no corredor central, conduz à Porta de Brandemburgo – zona de fronteira onde a multidão celebrou a queda do Muro. Do outro lado, o Reichstag, (sede do Parlamento), é talvez o edifício mais visitado de Berlim. A renovação da cúpula, obra caleidoscópica de Norman Foster, atrai milhares de visitantes que esperam estoicamente, mesmo em dias de chuva miudinha, para subir uma rampa espelhada e ver uma boa parte de Berlim.

De um lado e do outro da Linden, há museus onde apetece passar o dia, a ópera nacional, jogadores de vermelhinha, vendedores ambulantes de gorros de pelo, bicicletas e bancas de salsichas.

A Linden está para a Berlim Oriental como a Kurfürstendamm está para a Berlim Ocidental: amplas avenidas, modelo glamoroso importado de Paris, intensa vida comercial e empresarial. Peço ao taxista que me deixe na Walter Benjamin Platz – a obra do filósofo alemão foi uma das influências de Wenders na criação d’ «As Asas do Desejo» -, e é aí que começo a andar pela Ku’damm.

Termino com um dos mais belos espaços da cidade, infelizmente vedado aos não-sócios: a biblioteca estatal de Berlim (Staatsbibliothek), um projecto de Scharoun que dialoga com a Philarmonie, do outro lado do passeio. (Deixaram-me entrar quando me apresentei como jornalista e expliquei estar a refazer o circuito do filme). São edifícios de cortar a respiração, integrados no Kulturforum, um complexo que inclui, também, museus como a Gemäldegalerie (colecção soberba, com Ticiano, Vermeer, Caravaggio...) ou a Neue Nationalgalerie, desenhada por Mies van der Rohe.

No filme de Wenders, uma longa sequência dá a conhecer esta biblioteca. Tenho alguma dificuldade em descrevê-la... Talvez me aproxime se disser que o espaço me pareceu, como n’“As asas...”, metáfora do tempo babélico que vivemos, de palavras cujo significado mais íntimo se esqueceu ou não se chega a compreender. E, ao mesmo tempo, da potencialidade absoluta contida nas palavras, da memória como núcleo da identidade, repartida por mil pessoas e mil livros.

Os diferentes espaços da biblioteca estavam ocupados por sócios. Depreendi que fossem, em grande parte, alunos de doutoramento, que anotavam, escreviam no portátil, “scannavam”, fotocopiavam. No filme, há 20 anos, ainda não se usavam os computadores, e todos estão recolhidos na leitura, no pensamento. Por entre os leitores, reconhecemos os anjos, que velam por eles. E no andar de cima, como eu previra, a partir do filme, estão os globos onde o narrador da História procura quem o queira ouvir. Li algures que o seu nome é Homero. Invoca a Musa, esclarece que os seus ouvintes são agora leitores. Era ele que ao princípio procurava Potsdamer Platz.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2006