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Anabela Mota Ribeiro

Coimbra de Matos (s/ Poder)

28.01.22

Oito da manhã de uma terça-feira. Coimbra de Matos fuma à secretária. Em frente, há um cadeirão desenhado por Charles Eames, que é aquele que ele ocupa. Ao lado, há uma chaise longue desenhada por Corbusier, onde habitualmente se deitam os pacientes. Naquela manhã, estava transformado em divã para homens de poder. Nunca designados. “Penso que só podemos falar de pessoas que conhecemos mais profundamente. Mas falemos de um modo genérico, abstracto”.

Falámos abstractamente, mencionámos um nome ou outro – Soares, Cavaco, Sócrates. Dissecamos alguns órgãos nucleares da vida destes homens: ambição, inveja, humilhação, imaturidade, vaidade, tirania. O que quer dizer o comportamento dos homens de poder? O que esconde a vaidade, por exemplo? O que desencadeia a ambição? Quem são eles intimamente?

Eis um homem que não se deixa deslumbrar pelos códigos do poder. Um homem que tem os seus. António Coimbra de Matos é psiquiatra e psicanalista. Um dos mais reputados. Especializou-se em questões relacionadas com a depressão. Tem um consultório rente à estrada, e de manhã cedo ouve-se o trânsito dos que chegam. A janela estava aberta por causa dos incontáveis cigarros que iria fumar. Que fumou. Fumar ajuda-o a pensar. Foi o que fez, a partir deste repto e deste ângulo. A seguir, voltaria ao papel de analista do paciente das nove e meia. E esse não fuma.

 

A ambição é o ponto de partida obrigatório para falar sobre homens de poder?

Tenho dificuldade em pôr no divã os homens de poder. Penso que só podemos falar de pessoas que conhecemos mais profundamente. Mas falemos de um modo genérico, abstracto. Respondendo à sua pergunta, o importante é distinguir entre ambição e inveja. A ambição é saudável: queremos fazer melhor do que fizemos, queremos saber mais, analisar melhor os pacientes. A inveja é altamente maligna: o indivíduo não quer crescer ele próprio, quer diminuir o outro. 

 

Se isso implicar, ou obrigar, a que ele próprio cresça… Mas esse não é motivo principal. É o que está a dizer?

É. Vou dar-lhe um exemplo: a seguir ao 25 de Abril um colega meu estava furioso; estavam a aumentar os salários nos hospitais, primeiro aos enfermeiros, depois aos médicos. Ele dizia-me: “Não é eu ganhar só X, é que o meu enfermeiro-chefe ganha mais do que eu”. Isto é que é a inveja.

 

Ambição, em Portugal, é uma palavra que tem uma conotação negativa. É quase sempre associada a ausência de escrúpulos.

Somos um país pouco ambicioso, e isso prejudica-nos na competição com outros países.

 

Podemos pensar que ambição e inveja são as linhas a partir das quais erguem as suas carreiras? Que outras linhas são essenciais? Vaidade, insegurança?

Por vaidade, muitos, por insegurança, também. Baseando-me na minha experiência como psicanalista, no contacto com pessoas, e na experiência como professor, no contacto com alunos e colegas, penso que há três tipos de organização. Há o indivíduo que quer o poder pelo poder, para ter força, para ver quem manda mais; são os amantes da hierarquia, e o exemplo típico são os militares e as ordens religiosas. Esse está normalmente baseado numa coisa destrutiva “Para eu ter mais poder, preciso de destruir o poder dos outros”. É o tirano.

 

Os piores são os tiranetes? Ou seja, aqueles que subitamente têm algum poder e que estão impreparados para o exercer. Exercem-no de modo autocrático.

Autocrático, sim. Normalmente têm um poder pequeno; portanto também se submetem a outro. “Já que estou submetido, submeto o outro”.

 

Aí, é importante a humilhaçãozinha.

É. Mas são outra categoria, os humilhadores. Os tiranos são os mais primitivos. Depois há outra organização: são os chatos das normas. O que é preciso é produzir normas. Os perfeccionistas.

 

E esses, é porque não têm audácia para voar mais alto, para sair da norma?

Essa é uma das razões, a outra é porque são crentes (a maior parte deles) e defendem só uma verdade – a deles e mais nenhuma. Tentam impor esse pensamento único.

 

Essa inflexibilidade em aceitar outras verdades, e questionar a sua…

Não questionam a sua!, acreditam nela piamente. Começa na infância. São indivíduos que foram submetidos pelos pais e que depois submetem os outros. Não há questionamento. É a diferença, se quiser, entre religião e ciência. Na ciência tudo é incerto, na religião há certezas. Nos partidos políticos, os mais rígidos têm uma ideologia feroz. Nos partidos menos rígidos há mais divergência, maior oscilação. Na saúde mental não se procura nem poder, nem a verdade, mas, fundamentalmente, a complementaridade e a criação. O que me interessa é conviver com pessoas diferentes de mim. Um tem uma ideia, eu tenho outra, e é desse cruzamento de ideias que pode nascer uma terceira. São os indivíduos mais saudáveis e criativos.

 

Têm de ser, também, os mais seguros de si mesmos…

Ah, sim, sim. Vivem sempre numa certa dúvida. Na psicanálise sou dos mais críticos. “Está bem, o Freud disse assim, mas eu verifico isto…” E se um indivíduo tem uma ideia diferente da minha, não digo logo que está errada, fico a pensar. “Sei lá se você tem razão… Tenho pensado o contrário”.

 

É preciso maturidade para isso.

Maturidade emocional e intelectual. Embora o motor seja a maturidade emocional. Os de pensamento único são corporativistas: se sou psiquiatra, entendo-me com psiquiatras, com um engenheiro ou um ortopedista não me entendo. Eu sou apologista da multi-culturalidade; aprendo mais com pessoas de uma cultura diferente do que com os da mesma cultura. Biologicamente também é assim: se o cruzamento é entre pessoas de famílias próximas, isso é redutor do património genético. O convívio com pessoas que pensam de maneira diferente é mais enriquecedor. Nos adolescentes, vê-se muito bem que os mais tímidos só convivem com os mais passivos, os da mesma terra, os colegas da carteira do lado.

 

Convivem com mais novos – normalmente menos ameaçadores.

Os outros metem-lhes medo. No meu curso de medicina, um colega de Viana do Castelo só convivia com uma colega de Viana do Castelo. As outras, dizia ele, eram umas disparatadas. Ele dizia mais: que eram todas umas putas.

 

Está visto que o que ele não sabia era lidar com essas…

Pois é.

 

O que é preciso fazer, andar, existencialmente, para chegar a esse momento em que o outro não é uma ameaça, um estrangeiro?

Fundamentalmente ter aquilo a que eu chamo uma compleição narcísica. Ter uma auto-estima boa, ter noção do seu próprio valor, e não se sentir ameaçado por valores diferentes. Vê-se em pequenas coisas: num congresso internacional há um grupo de pessoas que convive com congressistas de outros países; os portugueses convivem muito entre si, procuram comida portuguesa ou um bife com batatas fritas, em vez de experimentar a cozinha local.

 

Tenho a impressão que muitos destes homens de poder são simultaneamente vaidosos e inseguros. Parece uma contradição.

Mas não é. A vaidade é essencialmente reactiva. É por reacção à insegurança. Se eu for seguro, não preciso de vaidade para nada. Aqui há anos, num congresso, uma psicóloga apresentou o caso de um homem de 30 e tal anos, com três ou quatro filhos; uma das coisas de que ela se admirava era que o homem, que se tratava há três meses, ia sempre com fatos diferentes, muito bem vestido. Eu disparei o seguinte: “Como é que um homem é mais bonito? Para uma mulher, é nu! Quem se veste tão bem não está muito convencido de ter uma imagem física…, et cetera. Precisa da roupa para se distinguir. Se estiver à vontade, não está tão preocupado com a fatiota”. As mulheres que se sentem mais bonitas geralmente não usam tantas jóias, cremes, arrebiques. As que têm delas uma imagem má têm mais necessidade de a compor, com adornos.

 

Muitos destes homens são francamente feios, ou gordos, ou baixos. É como se a vida toda tentassem deslocar, inconscientemente, e depois talvez conscientemente, o foco para outra coisa: a sua capacidade de mandar, de ganhar dinheiro, de comprar. Comprar a atenção dos outros, de mulheres. Deslocam a atenção do complexo físico.

É muito comum. São fenómenos de compensação narcísica. Se estou à vontade com a minha inteligência e os meus conhecimentos tenho uma linguagem mais banal. Se não, procuro ter uma linguagem muito rebuscada, citar nomes muito importantes… Uma aluna disse-me uma vez que estranhava que eu dissesse “não sei” quando me faziam uma pergunta; ela dizia que eu era o único professor da faculdade [com quem isso sucedia]. Os professores mais inseguros não podem dizer que não sabem responder.

 

No caso dos líderes, revelar qualquer vulnerabilidade, assumir a ignorância, tem custos.

É. Mas há muitos líderes que assumem, aqueles que têm melhor compleição narcísica. O Mário Soares assume facilmente que não sabe; há até várias anedotas políticas, de quando era primeiro-ministro e não conhecia os dossiers.

 

Sócrates e Cavaco…

Ah, esses não podem dizer que não sabem. São mais vaidosos. E inseguros. Cavaco, então, bastante mais.

 

Isso detecta-se na expressão corporal?

Sim. As pessoas mais seguras têm uma expressão corporal mais livres, as outras têm-na mais rígida.  

 

A imagem física é um tópico inesgotável. Falei a um entrevistado sobre o facto de ele arranjar especialmente o cabelo, e isso pareceu surpreendê-lo e embaraçá-lo, até, um pouco. Alguns entrevistados ficam espantados quando lhes falo de coisas de todos os dias, minudências que não consideram.

Um dos aspectos dessas pessoas narcísicas é que falar, discutir um assunto banal é prova de que não têm grandes coisas para pensar. Se me ponho, num intervalo de um congresso, a falar de marcas de automóvel, e se estou com um desses cientistas que estão convencidos de que são o prémio Nobel ou que vão ser, ele pensa que sou parvo, que só os ignorantes se preocupam com isso – os cientistas, não.

 

No caso das mulheres, elas não podem falar da cor do cabelo ou da menstruação. Não porque são assuntos íntimos, mas porque são assuntos sem relevância.

É porque são assuntos sem relevância.  

 

Como é que estes homens que procuram o poder são amados na infância? Ou desamados...

Habitualmente são amados de modo condicional. São pessoas cujos pais gostaram deles na medida em que eram bons alunos, ou se comportavam bem, ou eram bons desportistas. Não se sentiram amados como pessoas, propriamente, mas pelos desempenhos que tinham.  

 

 Como se não lhes bastasse existir, estar? Como se tivessem de estar continuamente a demonstrar, a fazer, sob prova?

Sim, sim.

 

Exigir a uma criança um determinado desempenho não é o normal?

Não. O que é saudável é valorizar os desempenhos, mas não dizer: “Tiraste 18, se tivesses estudado um bocado mais tinhas tirado 20”.

 

A sua posição contraria o que habitualmente se ouve, as regras que ensinam a estimular uma criança, a prepará-la bem, a sensibilizá-la para o esforço.

Sei que isso se faz muito, mas em minha opinião não é boa educação. Há um nome para isso: educação negra. É o nome que lhe dá uma investigadora de Zurique, Alice Miller. A educação negra é condicionar, domesticar a pessoa para atingir determinados desempenhos. A educação branca é deixar que a criança se desenvolva à sua medida e consoante os seus talentos, desejos.

 

Os miúdos, sobretudo os de classe média-alta e classe alta, são educados para ser qualquer coisa.

É um dos vícios da nossa civilização, a ocidental, onde estamos inscritos. Até à Segunda Guerra Mundial, a sociedade ocidental era caracterizada sobretudo pela culpa. O que era preciso era ser bem comportado, não cuspir na sopa, não bater nos irmãos, não insultar as meninas. Depois passou a ser uma sociedade de sucesso. Agora o que é preciso é ter bons desempenhos. Essa influência vê-se até na patologia. Antigamente, os suicídios na adolescência eram fundamentalmente por culpabilidade. Culpabilidade por não terem sido bons, correctos moralmente. Na sociedade actual, é o gosto de ti se tiveres boas notas, se não apareceres com o monco a cair. Hoje, os adolescentes suicidam-se porque não têm notas para entrar na universidade.   

 

Sócrates, Cavaco, Cunhal, podiam pensar na infância que seriam líderes? Ricardo Salgado provavelmente sabia desde a infância que, se tudo corresse normalmente, acabaria sendo um líder.

Não sei responder-lhe. Conheço mal a infância dessas pessoas. Os grandes líderes históricos, normalmente, não vêm desse meio [upper class, de Ricardo Salgado]. Mandela, Gandhi, Obama. Alguns vieram, como Churchill, mas este teve uma experiência diferente e não se encostou à família para progredir.

 

Em sua opinião, o que é preciso para ser um bom líder?

O bom líder é aquele que é capaz de relações complementares, que aprecia os diferentes, e que acaba por criar à volta dele um espírito criativo. Um bom líder pode ser aquele cuja equipa consegue produzir coisas novas – precisamente porque ouve as pessoas. Um bom líder faz outra coisa: não concentra tudo nele, delega poderes.

 

Porque é que as pessoas têm tanta dificuldade em delegar?

Têm medo de ser ultrapassados. Voltamos ao mesmo problema: se não estão seguros de si têm medo de ser ultrapassados pelos outros. A primeira vez que dei 20 na faculdade fui criticado por alguns professores. “Você deu 20 a uma aluna?”, “Ela fez um ponto que, quando li aquilo, pensei que se fosse eu a fazê-lo faria pior…”.

 

O que é que temem realmente perder quando são ultrapassados?

Esse é outro problema. O indivíduo que está seguro de si próprio não teme muito perder, porque a vida é feita de perdas e ganhos. Perdemos umas coisas para conquistar outras. Se não perdemos, ficamos assoberbados.        

 

Há sempre o desejo (impossível) de acumular tudo… É um modo de não descartar hipóteses, possibilidades.

Mas não cabe tudo cá dentro. Fica-se menos aberto para ideias novas. É preciso um certo vazio para ter curiosidade e procurar coisas novas.

 

Muitos destes homens acumulam, acumulam. Podem ser livros, tralha que se encontra nos gabinetes, carros, mulheres, cargos…

Na minha maneira de ver, o mais importante é ter prazer no usufruto das coisas, e não na posse. Se eu dirigir um serviço – como já dirigi – ter poder não me interessa muito; fazer coisas interessa. A posse é uma coisa diferente. Ainda há pouco dizia isso numa conferência: ter dinheiro para o acumular, é ser escravo dele. Ter dinheiro para o usar, ele é que é nosso escravo.

 

O dinheiro é um motor destes homens de poder?

É. Há um certo deslocamento do poder da força para o poder do dinheiro. É menos maligno, mas continua a ser maligno. É melhor fazer uma guerra económica do que uma guerra aos tiros.

 

Até há uns anos, dominava o mais forte, Agora domina o mais rico.

Sim, mas na sociedade em que já estamos domina aquele que tem mais acesso ao conhecimento.

 

O que sabe mais.

Já não estamos na época daquele que sabe mais, mas na época daquele que tem mais acesso às redes de conhecimento.

 

E esse acesso deve ser notório. Há pessoas que precisam que todos saibam do poder de que estão investidas.

Há uns anos, tinha consultório na Rua Padre António Vieira; vivia pior, não tinha secretária e ia eu ao banco fazer as minhas contas. Um colega meu era também cliente desse banco. Uma vez o gerente disse-me que o meu colega era muito esquisito e que tinha feito um pé-de-vento porque queria que pusessem nos cheques “Professor Doutor”. Não lhe chegava o nome.

 

O que quer isso dizer?

A gente chama a isto identidade de papel. Se me sinto bem como sou, basta-me ser o Coimbra de Matos. Se não me sinto bem como sou, agarro-me aos títulos: sou director, sou professor… É uma identidade de papel que compõe a minha identidade pessoal.

 

Que lugar ocupa o sexo na vida destes homens?

Em alguns desses homens o sexo é mais um apetrecho. Terem várias namoradas ou amantes – julgam eles – aumenta a sua imagem pública.

 

Precisam de ter X amantes e amantes com determinadas características. Com casa posta num determinado bairro, com um relógio de uma marca específica no pulso…

Sim, sim.

 

Aquando do casamento de Sarkozy, dizia-se que Carla Bruni era mais um brinquedo de luxo para o presidente plim-plim, (porque é fascinado pelo que brilha).

Provavelmente. Usa aquilo como uma mulher usa uns brincos. É um cartão de visita ter aquela mulher bonita, espampanante. 

 

Os homens reparam muito na mulher que o outro tem, nas amantes que o outro tem?

Sim, porque acham que ter uma mulher muito bonita aumenta a beleza deles, a importância deles. Que grande homem que arranjou uma mulher deste tipo…

 

Muitos deles mantém a mulher de sempre, a mãe da família. E à descarada têm uma/s namorada/s. Isso é porque não conseguem cortar com a estabilidade da família? Porque não conseguem abandonar? Assumir a ruptura?

Depende muito. Essa patologia – ter várias mulheres – normalmente acontece com homens que não conseguem ter uma relação profunda com uma mulher só, e [ter várias] dá-lhes a ideia de que são sexuais, que conseguem conquistar… Mas têm relações pobres com todas elas. Pobres do ponto de vista emocional, e às vezes até do ponto de vista sexual.

 

Na literatura e no cinema, temos exemplos dos vícios e dos escândalos desses homens, que são o oposto em privado do que são na vida pública. No clássico filme de Buñuel “Belle de Jour” há um permanente jogo de dominação e submissão. Não é raro que sejam os mais poderosos aqueles que querem ser subjugados.

São os novos sadomasoquistas. Normalmente são numas situações sado e noutras masoquistas. Há aí muitos jogos: um deles é o da culpabilidade. O sadismo dá culpabilidade interior, consciente ou inconsciente. E uma forma de o indivíduo se desculpabilizar é, numa situação paralela, ser masoquista. Sofre, é dominado, e alivia a culpabilidade de dominar. Outras vezes é o contrário: são profundamente masoquistas, e para se compensarem, aos seus olhos, têm necessidade de ser sádicos em determinadas circunstâncias para mostrarem que também são capazes de dominar. 

 

Pela vida fora, normalmente estão num destes quadros: dominação ou submissão. Ou são o número um ou são o número dois.

Muitas vezes isso vem da educação infantil, tiveram essa experiência: não havia relações de igualdade na família, havia relações de domínio. Se em casa há relações de igualdade, é isso que observam e que sentem no pêlo. Uma vez, um paciente chegou à sessão muito furioso porque o filho, adolescente, tinha-lhe chamado cobarde. Eu disse: “O filho tem o direito de chamar cobarde ao pai. O pai é que não tem o direito de chamar cobarde ao filho. Porque está numa posição de superioridade, isso seria abusar da sua posição de superioridade. No filho é um desabafo de que precisa, até para se sentir mais ao nível do pai”.

 

Muitos destes homens que entrevistei, não parecem dar uma grande importância aos filhos. Contudo, tem uma grande importância na vida deles a figura do pai ou da mãe – que foi essencial na construção da sua identidade. No fundo é como se não saíssem da condição de filhos.

Muitos deles são assim. Mas isso é trágico – para o país ou para a instituição. Porque são imaturos que não passaram da situação de filhos.

 

Raramente os vi falar com especial orgulho ou importância dos filhos. Alguns arrumam isso e resolvem o problema de consciência pondo-os nos melhores colégios, investindo nesse tipo de formação. Mas não parecem ter com os filhos relações de intimidade.

Posso comparar com um meio que conheço bem: os bons professores universitários, quando estão em conversa de café, falam muito dos alunos. Os de má qualidade falam dos antigos mestres. Ainda não ultrapassaram isso, continuam a ser alunos daqueles mestres, e os alunos são uma classe secundária.

 

Vivemos na convicção de que há vícios privados e virtudes públicas. É essa a impressão que tem? Nesta franja de que estamos a falar, os homens de poder, essa clivagem é especialmente vincada?

Já analisei alguns homens de poder. Se o tratamento correu bem, isso desaparece um bocado. [O sujeito] fica mais genuíno, consistente, integrado, menos clivado. Lembro-me de dois ministros que a certa altura tratei – já eram ministros quando vieram. Um deles era esquisitíssimo, pediu para fazer a última hora de consulta e conseguiu levar-me a esperar um quarto de hora [entre o final da consulta anterior e o início da consulta dele]. Para ninguém o ver entrar. E tive outro que aparecia às horas normais, toda a gente sabia, e estava à vontade com o facto de ser ministro e precisar de se tratar. São atitudes completamente diferentes.

 

Esses homens, ministros ou não, uma vez deitados no divã falam basicamente do que falam os outros, não é?

Sim, sim. Falam da sua vida privada. Podem dizer uma coisa ou outra [da vida do Ministério], mas não é esse o tema. Às vezes aparecem coisas que são da sua personalidade e que se revelam nas relações com uma secretária, com um colega de trabalho.

 

O mito da relação entre patrão e secretária é antigo, e inesgotável… Porquê?

Ah, porque ainda há muito essa ideia de que a relação homem-mulher é uma relação de poder e que o homem deve submeter a mulher.

 

E porque é que, se ele já a submete, uma vez que é seu superior hierárquico, precisa ainda de mandar nela na cama?

Provavelmente não lhe chega… Tem de mandar em todos os aspectos. Pode não mandar. Eu não mando na minha secretária – ela trata-me por tu, foi minha aluna e é psicóloga.

 

Há também os que precisam fazer com a mesma pessoa um jogo sadomasoquista? De compensação. Se mandam num sítio, querem ser dominados num outro plano.

Sim. Às vezes é na mesma escala. Na tropa conta-se uma anedota: um coronel chama o capitão e diz-lhe que as coisas correm mal porque o capitão é aselha. O capitão chama o sargento, o sargento chama o soldado, a quem dá duas bofetadas. O soldado chega a casa, a mulher põe-lhe a sopa, ele acha que a sopa está quente e atira o prato ao chão. A mulher vem varrer o chão, encontra o miúdo e dá um safanão ao miúdo. E o miúdo vem a chorar e dá um pontapé no cão que encontrou no caminho. É dominado por um e domina o mais baixo.

 

Descarregam. Alguns descarregam sempre nos mesmos. Porquê?

Se eu for sádico, basta-me dizer à minha mulher ou a um dos meus filhos qualquer coisa e isso compensa-me suficientemente. Arranjo ali um bode expiatório. Isto leva a que o filho mais velho seja habitualmente aquele que sofre mais. Os pais têm tendência para compensar nele a sua neurose – ficam um bocado mais livres.

 

Porque é que acha que as mulheres ascendem pouco a posições de topo?

Penso que a nossa sociedade ainda é muito machista. Nos países nórdicos não é assim. Chefiar não tem nada que ver com género. Liderar não é dominar. Há alguma diferença: as mulheres têm mais tendência para fazer uma liderança democrática. Os homens têm mais tendência para fazer uma liderança tirânica. Isso explica-se biologicamente. A testosterona é uma hormona sexual masculina, mas é também uma hormona da competição e do domínio – há uma maior tendência no homem para ser mais dominador. Embora com a educação e a cultura isso se esbata bastante. Normalmente as mulheres tomam atitudes mais moderadas. Vão mais para a negociação do que para a guerra.

 

Estão habituadas, há séculos, a procurar o consenso: com o pai, os irmãos, o marido. Dentro de casa, para começar. Isso que diz contraria o cliché da mulher que se masculiniza, e fica tirânica e inflexível quando está em situações de poder.

As chamadas mulheres-fálicas.

 

A Thatcher é o protótipo dessa mulher. Dentro de portas, Ferreira Leite é olhada como se fosse uma mulher inflexível, dura, rígida – uma série de adjectivos que aplicaríamos mais facilmente ao masculino.

Não a conheço, não sei se encaixa no [estereótipo] da mulher-fálica. Não me parece muito isso… Parece-me que é uma mulher tímida, com uma certa dificuldade de extroversão. Se comparar com a Maria de Lourdes Pintasilgo, por exemplo, que era uma mulher convivencial, gostava de falar com as pessoas. Isto é muito da personalidade de cada um… A Pintasilgo, segundo consta, nunca terá tido vida sexual. A Ferreira Leite ficou divorciada e não se lhe conhecem romances.  

 

Ter uma vida sexual resolvida influi muito no comportamento das pessoas?

Um bocado. Homens e mulheres. A nossa capacidade de adaptação, de sublimar, compensar, ultrapassa isso. Mas para uma pessoa se realizar totalmente deve ter uma vida sexual e amorosa.

 

Se para uns o sexo é mais um apetrecho, talvez para outros não seja uma coisa tão pulsional, e para outros seja uma coisa essencial para o seu equilíbrio emocional e físico.

Sim, depende.

 

As mulheres que ocupam cargos de poder tendem a arranjar-se de modo discreto, e apagam uma sexualidade latente. Temem não ser levadas a sério se parecerem exuberantes. Se se arranjarem demasiado passam a outra categoria – das fáceis, das que querem subir na horizontal. É assim?

Nem todas. As mulheres são diferentes dos homens. Empenham-se como os homens. Desempenham de uma maneira diferente dos homens. Elas procuram soluções moderadas, eles mais conflituosas.

 

Tem ideia que muitas destas pessoas têm consumos desregrados? Álcool, cocaína, comprimidos para dormir, calmantes… Aparecem nas revistas títulos sobre festas loucas onde se combina sexo e droga – como se fosse uma cena do filme de Kubrick “De olhos bem fechados”.

Nos que conheci não encontrei muito isso. Penso que não é muito habitual nas pessoas do poder – não quer dizer que não haja. Penso que é mais habitual nas pessoas do mundo artístico. As do poder usam mais a razão do que as emoções.

 

Tive um entrevistado que, quando me cumprimentou, tinha um intenso bafo a álcool. Deduzi que tinha bebido antes de me receber. Provavelmente para se desinibir. Como se fosse uma mola.

No mundo dos cientistas há alguns também assim: que antes de uma conferência precisam de beber um whiskey ou dois, ou três, quatro cafés – excitantes ou calmantes.

 

Vivem da imagem pública. Perderem a face, ficarem desnorteados, é o que estes homens mais temem?

Devem temer. Mas os bem estruturados – que também os há – não se importam muito com isso. Os que não têm traço psicótico são capazes de circunscrever as emoções – se estou numa situação em que não devo mostrar a irritação, ponho-a a um canto. Se tenho um traço psicótico tenho muita dificuldade em fazer isso e os afectos invadem [tudo].

 

Nesta crise enorme, muitas destas pessoas estão em pânico – até porque parte do seu dinheiro é virtual. Será que o seu poder é também virtual? O que é que uma crise destas provoca intimamente num homem de poder?

Em alguns homens, que são mais narcísicos, autistas, esquizóides, não provoca problema nenhum, porque estão-se nas tintas para os outros. Quando são políticos que gostam de pessoas ficam altamente preocupados, porque percebem que o momento é complicado e vai fazer sofrer muita gente. Há os que se preocupam mesmo com o bem estar dos outros. Conheci um: o António Guterres. Eu era muito amigo da primeira mulher dele, e conheci-o bem. Vê-se pelo cargo que depois escolheu…

 

Há banqueiros e empresários que perderam metade da fortuna em meses. Estamos na iminência do pânico? Pergunto isto influenciada pelas imagens trágicas da Grande Recessão, dos suicídios.

Na crise de 1929 e nos anos seguintes houve muitos suicídios, sim. Mas esta é uma época diferente. Nessa altura as pessoas estavam mais implicadas no próprio trabalho. Hoje, a maior parte dos banqueiros, se saírem ilesos, que o banco entre em falência não os importa muito. E habitualmente saem ilesos. 

 

Podem perder o respeito, a honra, a reputação.

Perdem.

 

E alguns ficam com o ferrete de ladrões.

Mas esta sociedade é muito hipócrita. Quem roubar até 10 mil contos é ladrão, quem roubar até 100 mil faz um desvio, quem roubar para cima de um milhão faz uma operação de engenharia financeira.

 

Porque é que fuma tanto, aos 78 anos?

Ah, fumo… É principalmente quando estou a escrever. Nas aulas não fumo, nas consultas não fumo, nas conferências não fumo, a conduzir não fumo. É um hábito de quando estou a pensar.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2008