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Anabela Mota Ribeiro

David Ferreira (s/ D. Mourão Ferreira)

18.03.24

“Depois do sucesso do Um Amor Feliz vai ao Brasil e conta-me quando vem: “Tive um romance de amor, mas ela já morreu”. Ele nunca tinha lido a Clarice Lispector, ou tinha lido de passagem, e ficou tão fascinado que decidiu escrever um romance, que nunca escreveu: o romance de um homem por uma escritora que tinha morrido. Muito escritor, passado dos 50 anos, já não descobre coisa nenhuma. O meu pai sempre manteve um tom de assombramento.” David Mourão-Ferreira, evocado pelo filho David Ferreira.

David Mourão-Ferreira, poeta do amor? “A obra do meu pai tem muito mais do que isso. É um cliché merdoso, próprio de quem não o lê.” Escreveu poesia, teatro, ficção, ensaio. Em Junho, passaram 15 anos sobre a sua morte. A Presença reeditou o livro de contos As Quatro Estações.

O filho, David, acusa a edição de ser preguiçosa. “Em vez de perceber que na obra de um grande escritor há um trabalho permanente de descoberta, [a Presença] dedica-se à reedição. A obra de crónica e ensaio do meu pai está fora do mercado.”

Doravante, as reedições e a edição de inéditos vão ter a direcção de uma professora catedrática italiana, Fernanda Toriello. “Tem feito um trabalho notável na Universidade de Bari, onde é responsável pela Cátedra David Mourão-Ferreira de Língua e Literaturas lusófonas. Gostaríamos muito de ver envolvidas neste trabalho pessoas que sabem muito da obra do meu pai. O Vasco Graça Moura, o Eugénio Lisboa, o Fernando Pinto do Amaral, a Teresa Martins Marques, a Joana Varela”.

A entrevista teve lugar no gabinete de trabalho de Mourão-Ferreira. Os livros estão como os deixou, estão expostas fotografias de Yourcenar ou Nemésio, a secretária onde escrevia continua habitada, o cheiro a cachimbo ainda se sente mal se transpõe a porta de entrada. Aquela ainda é a casa de David.

 

 

“Que o verso seja um espelho/ ao mesmo tempo um véu”.

Na sua opinião, a poesia era para o seu pai, simultaneamente, o espelho no qual se revia e um véu que lhe permitia uma certa dissimulação?

A escrita já é, por natureza, um espelho e um véu. A execução de uma obra de arte é um ajuste de contas [que permite criar] um equilíbrio, precário que seja, que, sem a escrita, não se sente. Os grandes escritores percebem essa duplicidade da escrita como verdade e como invenção.

 

Invenção ou ocultação?

Acredito mais na invenção do que na ocultação. Não sei se o véu é uma questão de ocultação ou uma questão de pudor.

 

É também um artifício de sedução.

O meu pai não era propriamente um tímido em relação ao amor carnal. Nem no que escrevia nem no que fazia era pessoa para se reprimir. Mas não deixava de ter o seu pudor.

 

Na primeira edição de Um Amor Feliz (1986), na contra-capa, lê-se que romance é um ajuste de contas do autor consigo próprio. Não deixa de ser curioso que tenha tido necessidade de o fazer, com toda a obra que estava para trás, e quando já era consagrado.

Ele próprio aparece no romance como figura secundária, não particularmente simpática. Há dois alter-egos no livro, e nenhum deles é integral. Há um alter-ego em que ele se compraz a fazer ironia sobre si próprio, que se chama mesmo David.

 

E que fuma cachimbo.

Leva a gozação bastante longe. E há o outro alter-ego, que é a [personagem do] escultor, que também não é inteiramente ele. Ele projecta-se nos dois, e se calhar em mais. Não há uma personagem no Um Amor Feliz em relação ao qual se diga claramente: “É este”. Sem transformação – e o véu também é uma transformação – não há obra de arte. Ele também aparece num conto ou numa novela de um dos primeiros livros, referido como um tipo que escreve umas letras para a Amália.

 

Foi um académico heterodoxo. Tinha uma formação clássica e uma proximidade com os latinos e os gregos. Existia nele uma procura de equilíbrio?

Há um poema dele de que gosto muito: “Nós temos cinco sentidos: dois pares e meio d’ asas/ - Como quereis o equilíbrio? (“Hai-Kai”. O poema não é nem a apologia do equilíbrio, nem a condenação do equilíbrio.

 

 A procura de equilíbrio não o inibiu de viver intensamente, não o deixou refém de um cânone.  

O meu pai acaba a vida com o estatuto de professor extraordinário porque era escandaloso que tivesse um estatuto inferior – ele que orientava teses. Nesta casa, já com a doença muito avançada, a ponto de adormecer por vezes, orientou uma tese. Fazia-o porque tinha uma imensa cultura, e porque tinha um enorme prazer nisso. Permite-me um desvio?

 

Todos os desvios. Já voltamos ao ponto em que estamos.

O maior amigo do meu pai era o João Belchior Viegas; conhecem-se no Colégio Moderno, onde foram alunos. Mais tarde o meu pai diria que o João Belchior teria sido melhor escritor do que ele. Foi empresário da Amália, de 1965 a 1992. Era meu padrinho. Calhou ser eu a contar-lhe que o meu pai estava muito doente. Eu soube da doença com um telefone em voz alta, não sabiam que estava a ouvir... O Belchior ficou desmaiado com a notícia. Passam-se algumas semanas e voltamos a falar sobre o estado do meu pai. Contou-me uma coisa muito reveladora; o meu pai disse-lhe, quando soube da doença: “São duas as coisas que não dispenso: estar com uma mulher e ensinar. Sem elas prefiro morrer”.

Enquanto tem forças para fazer o que o realiza dá luta à doença.

 

Já doente, grava de um disco de poesia. Outra forma de se manter vivo?

Para mim foi a despedida do meu pai. Passei vários sábados e domingos em casa dele a gravar. Depois ele conta à Joana Varela: “Sabe que, afinal, o meu filho conhece a minha obra, o meu filho gosta de mim” [riso]. Tínhamos longas conversas, discutíamos a colocação, e ele achou que eu tinha um conhecimento de causa. Faz parte dos véus, os filhos não podem passar a vida a dizer aos pais: “Gosto muito de si”.

 

Esse é outro tópico: a sua relação com o seu pai e a sua relação com o poeta Mourão-Ferreira.

Estou a gravar. Há um poema em que ele diz: “Quando a vida nos agarra”, está com um cancro, e di-lo com uma força… É ele a agarrar a vida. Ele não fala em escrever, mas nas duas coisas que considera vitais. Ensinar e estar com uma mulher.Nunca tratou de se doutorar, sendo que alguns doutores (que o meu pai não era, doutor por extenso), lhe terão dito (isto foi-me transmitido pela filha de um deles), na fase dos anos 50 para os 60: “Ó David, deixe-se de fadistices e trate de se doutorar”. Fazia essa coisa inferior que era escrever letras para a Amália.

 

O encontro com Amália foi decisivo para ambos. Mas inesperado…

A relação entre o meu pai e a Amália – e, através deles, entre a poesia e o fado – foi uma relação mal quista pelas famílias de cada um. Uma fadista muito célebre ironizava, cáustica, por volta de 1965: “Agora a Amália canta letras à Picasso!” Os disparates que disseram os sectores mais conservadores da literatura e do fado (aqui se misturando tradicionalistas e pseudo-progressistas) dão hoje vontade de rir.

Ele nunca é um académico convencional. Tem um papel importantíssimo na introdução da cadeira de Teoria da Literatura. É um óptimo crítico literário (o que escreveu sobre literatura é fascinante). Era um escritor que gostava de livros.

 

“Nunca pensei em termos de público mas em termos de leitores”. Não lhe interessava o sucesso comercial? Ainda que tenha sido um autor que desde sempre gozou de reconhecimento e sucesso.

Sucesso comercial, não tanto. Até escrever Um Amor Feliz tem mais notoriedade do que sucesso comercial.

 

As pessoas conhecem-no muito.

Por causa da televisão, e a partir de certa altura por causa do que escreve para a Amália. O volume de vendas era baixo. Publica poesia, novelas e contos, ensaio e crónica. Um Amor Feliz passa a marca dos 100 mil, e é uma coisa que o apanha de surpresa. Sobre essa frase: o leitor, o que se dá ao trabalho de ler, que gosta ou não gosta, tem importância. O público-entidade anónima pode comprar para ter na estante, ou comprar e não perceber.

 

Pode falar-me da sua avó? Sendo Mourão-Ferreira o poeta que amava as mulheres, é interessante perceber como é que aprendeu a olhar para as mulheres.  

Não sei se não terá começado a olhar para as mulheres pelos olhos do meu avô. O meu avô era um amador de mulheres, que nunca saiu de casa embora tenha chegado a fugir (não sei ao certo se com uma francesa ou com uma argentina). Um dia, a minha avó telefona-me, aflita, porque não sabe do meu avô. Vamos para o banco do hospital de São José, andamos no meios de macas a ver se o reconhecemos. Dizem-nos que o Sr. David Ferreira tinha ido para casa e que estava bem. Em casa, toca o telefone, o meu pai atende: “Era uma senhora, muito simpática, da Casa Africana, que viu o papá cair e estava preocupada”. E a minha avó: “Alguma flausina a quem ele dá troco” [riso]. E dava troco. Tinha 80 e muitos anos.

 

Como é que na sua família os homens se fizeram assim amadores das mulheres? O seu pai, a propósito do seu avô, diz que era um “um discreto Don Juan”. Como ele.

O meu pai talvez menos discreto. O meu avô chegou a ser agente de ligação do Afonso Costa. Uma pessoa com origens humildes, filho de um militar, criado na Casa Pia, órfão de pai aos quatro anos. Não tem curso superior. Está metido na primeira revolta armada contra Salazar, em Fevereiro de 1927. Tanto que o meu pai nasce prematuro – tinha o sangue vermelho nos genes como outros têm o azul – porque o meu avô anda fugido e a minha avó não sabe dele. O meu avô gostava de fazer cara de mau. Era muito de falar do dever, da dignidade, aquela linguagem dos republicanos. Depois tinha um fraco muito forte por senhoras.

 

Porque é que o seu pai é um Don Juan menos discreto?

É outro tempo. E era uma figura pública, isso também atrai.

 

Que relação é que o seu pai tinha com a mãe?

Difícil. Já ouvi a teoria, que acho absurda, de que o meu pai teve muitas mulheres para se vingar da mãe dele, porque no fundo a minha avó gostava mais do meu tio [Jaime]. O meu pai tinha um sentido do dever muito forte. Uma vez, na altura em que o meu cabelo chegava aos ombros, tive um problema escolar. O meu pai disse assim: “Se há desgraça nesta família, é a morte do teu bisavô. Nenhum destes problemas teríamos se tivesses sido educado no Colégio Militar”.

 

Portanto, enquanto pai, tinha acessos de fúria, era exigente.

O meu pai estava zangado a sério, e quando se zangava falava alto. Ameaçava que me punha a trabalhar numa mercearia, e acho que punha. Estávamos a almoçar. A Pilar olha para ele: “No Colégio Militar?”, e desatámos os três a rir.

O meu tio Jaime era muito mais estroina. Três anos mais novo, um sedutor, nunca se fixou numa profissão. Foi relações públicas, publicitário, chegou a apresentar um concurso na televisão. A minha avó, em muitas coisas, ou gostava mais do meu tio, ou sentia que era mais necessária ao meu tio – o que causava ciúmes ao meu pai. Ainda por cima o meu tio morreu aos 46 anos.

 

Incompatibilizavam-se?

Eles gostavam muito um do outro mas havia um conflito. Tinham um feitio parecido naquelas coisas em que as pessoas fazem faísca. Já perto do fim da vida do meu pai tinham brigas por tudo e por nada. Depois, ficava cada qual uma hora ao telefone a queixar-se do outro, com o seu quê de imaturo da parte dos dois.

 

É extraordinário que, apesar dessa relação com a mãe, tenha feito das mulheres substância essencial da sua obra poética, e também do seu carinho e interesse pessoal.

O meu pai é um conquistador não-machista. Quem o disse muitas vezes foi a [Maria] Teresa Horta, que era muito amiga dele: “É raro uma poesia masculina e erótica tão pouco machista e agressiva contra as mulheres”.

 

O que é que acha que o fez procurar as mulheres, dar-se bem com as mulheres, e até, de uma certa maneira, reconciliar-se com as mulheres?

Ele aprende a ler com a mãe – como eu aprendi com a minha avó. O papel da minha avó não entra na história, corre em paralelo. Há um filme do Truffaut, O Homem que Amava as Mulheres, que fui ver porque o meu pai me disse que se tinha reconhecido a ver o filme.

 

Do que é que ele gostava nas mulheres?

Muita coisa. Em 1995 morreu uma amiga dele, e ele já estava com o cancro. Era Setembro ou Outubro, estava uma tarde quentíssima, eu não queria que ele fosse ao cemitério. (Ouvia-se aquela respiração pesada… O meu pai teve um cancro num rim e depois um recidiva tratada com a maior incompetência. Andou oito meses a queixar-se de dores nas costas e o médico a dizer-lhe que precisava de massagens, ou então que estava deprimido. Detectou-se o cancro com duas costelas e meia comidas pela doença num raio X… Era um cancro no pulmão, na cabeça, pele, ossos, um bombardeamento.)

Almoçámos os dois no Conventual, na Praça das Flores, entram duas raparigas muito bonitas. Era impossível não olhar. Olhámos. O meu pai: “De qual é que gostaste mais?”. E eu disse de qual, e porquê. E isto é das melhores medalhas que tenho na vida!, o meu pai disse: “Sabes ver!” [riso]. Isto de que estou a falar não se esgota numa psicanálise de trazer por casa. Gostava de mulheres, ponto.

 

Era um homem sensível, quando não era suposto que os homens fossem sensíveis. Como é que naquela Lisboa, na primeira metade do séc. XX, com estas raízes familiares, aparece um homem com esta sensibilidade e abertura?

Esteticamente e intelectualmente, vai definir-se entre pessoas que são contra o regime. Mas não só não adere ao neo-realismo como combate o neo-realismo. A maioria dos escritores da [revista] Távola Redonda é de direita; o meu pai não é. Não aceita o primado da política. O seu maître à penser, nesse aspecto, é o Régio.

 

Porque é que o Régio se torna tão central na sua formação?

É um irmão da minha avó, chamado Raimundo, que oferece um livro do Régio ao meu pai. Na altura em que o meu pai o lê, no princípio dos anos 40, o Régio é o adversário escolhido pelo Cunhal para ter uma polémica. O Cunhal está numa fase de afirmação dogmática, não lhe interessa andar à pancada com pessoas do regime. O Régio é um opositor do regime, foi preso pela última vez perto dos 80 anos, tem simpatias socialistas, mas não aceita o primado do político sobre a estética; e tem um lado religioso.

 

Que o seu pai também vem a assumir. Convertendo-se, tardiamente.

O meu pai baptiza-se para casar, porque a minha mãe era católica. Mas a presença do cristianismo no meu pai situo-a nos primeiros poemas sobre o Natal, que já são dos anos 60, aos 30 e tal anos. Não sei se o baptismo é muito mais do que uma coisa de conveniência.

Nunca se deixa reduzir ao cânone neo-realista. Também tem coisas escritas que têm um teor político. Pôs a Amália a cantar Abandono.

 

“Por teu livre pensamento/ Foram-te longe encerrar/ Tão longe que o meu lamento/ Não te consegue alcançar…”

Está a falar da prisão de Peniche. Mas isto existe como exercício de liberdade. O meu pai tem uma paciência muito pequena para os neo-realistas, tem interesse pelo Surrealismo, mas também não lhe agrada o lado de cartilha.

 

Não tem um desejo ou uma necessidade de pertença a um grupo. Ele é ele.

A Távola, que é o grupo onde está, tem outro grande poeta, o Luís de Macedo, que escreve também para a Amália. (Os três primeiros poetas que não vêm do fado, mas que vão parar ao fado, são o Pedro Homem de Melo, o meu pai e o Luís de Macedo.) A Fernanda Botelho, que vai ser uma grande romancista, era muito próxima do meu pai.

Começa a ler muito novo, tem a paixão da leitura, e não é uma pessoa de grupo. Tem 17 ou 18 anos quando um colega do colégio o leva a fazer uma ou duas conferências em centros operários, para tentar levá-lo para o PC. Era o Mário Soares.

 

A amizade com Soares é tão antiga que vem do tempo em que este era PC?

O Soares é mais velho. O João Soares [pai de Mário Soares] era amigo do meu avô, havia em comum o lado republicano. A certa altura, a pessoa que coordena os estudos vai para a clandestinidade e escreve uma mensagem muito bonita aos alunos. Era o Cunhal. Cruzam-se na mesma altura: o meu pai, o Belchior, o Soares e o Cunhal.

 

Parte da formação do seu pai fez-se no Colégio Moderno.

Tem primeiro um professor privado. O Dr. Teófilo, um republicano que não pode ensinar no ensino oficial, e que o meu avô põe a dar aulas ao meu pai.

 

O seu avô foi educado na Casa Pia. Como é que dá a volta ao seu destino?

O meu avô vem para Lisboa como aluno da Casa Pia, e a certa altura, porque nasce em 1897, torna-se republicano. Como os heróis dele são da literatura francesa, o Dumas, o Victor Hugo, começa a estudar História para escrever romances históricos. E a frequentar bibliotecas. (Terá, quando muito, o curso do liceu.) Na Biblioteca Nacional chega ao Jaime Cortesão, (padrinho do meu tio Jaime), frequenta o círculo do Cortesão, do Câmara Reis, do Raul Proença, do [António] Sérgio. São todos demitidos, e todos readmitidos depois do 25 de Abril. O meu avô é autor de uma das primeiras histórias políticas da Primeira República; no prefácio considera-se republicano, democrata, de tendência socialista, e é faccioso na defesa do Afonso Costa.

 

Mas foi um homem sensível ao saber, que se afirmou pelo saber. Daí ter puxado o Dr. Teófilo para casa.

O meu avô dá aquele salto. A minha avó tinha a 3ª classe.

 

Apesar dessa limitação, é quem o ensina a ler.

Se é o pai que o introduz nos livros, é a mãe que o introduz na escrita. Escreve no poema Jogo de Espelhos: “Foi a mãe que lhe ensinou a ler; e a entender. O pai, a reflectir; e a contemplar”. Os dois fascinados por França. Fui a Paris a primeira vez com os meus avós e o meu primo Jaime. Tínhamos 13, 14 anos, e fomos às Folies Bergère.

 

França naquela altura era o farol do conhecimento, assim apelidado. E acolhia muitos emigrantes políticos.

O prazer que o meu avô tinha em estar em livrarias de Paris a dizer mal do Salazar… Falavam um francês bastante decente, e quase nada de inglês.

 

O seu pai estuda Filologia Românica cumprindo, de certa maneira, um desejo dos pais de aproximação à cultura francesa?

O meu avô acarinhava a ideia de o meu pai estudar Direito. Mas como o meu pai revelava outras tendências, o meu avô levou-o a uma pessoa que respeitava e cuja idade ficava entre a dos dois – o Agostinho da Silva. O Agostinho da Silva é que diz: “Não faça isso. Este rapaz tem que ir para literatura”. O meu pai vai para a faculdade de Letras, onde conhece a minha mãe. Apaixonam-se e chumbam. A minha mãe irreversivelmente larga os estudos e vai para dactilógrafa, para o Valentim de Carvalho, que era tio dela, meu tio-avô. Casam-se passados oito anos de namoro.

 

É especialmente difícil fazer-lhe esta pergunta a si, mas porque é que acha que foi a sua mãe a pessoa com quem casou? O seu pai conta numa entrevista que dá à Colóquio que ela casa virgem. Ela sabe que ele não é casto, que há aventuras ao longo desses anos de namoro.

Um amigo do meu pai, o Urbano Tavares Rodrigues, num programa de televisão, gaba duas coisas na minha mãe: a beleza e o imenso sentido de humor. O meu pai escreve muito cedo no diário que não é homem de uma mulher só.

 

Ele estimava o desejo da sua mãe de se manter casta até ao casamento? Sabe se tinha algum fascínio por isso? Resultava como uma dificuldade, uma forma de resistência da parte dela.

Não tenho nada que me permita responder a isso. Tenho a sensação, a partir das coisas que apanho, de que a intimidade entre eles não deve ter sido extraordinária. Naquela época, não é grave.

 

Uma época em que faziam umas coisas com as de fora e outras com as de casa.

Aí, o meu pai era apenas mais visível. E se calhar tinha o sucesso bastante para poder escolher entre as de fora.

 

Acha que era sobretudo um amoroso ou um sexual?

As duas coisas.

 

Estou a perguntar por ele e sempre a pensar na obra. Que é marcadamente erótica e também profundamente amorosa. Ou ele não fazia esta dissociação entre o amoroso e o erótico?

Tem muitos poemas de amor físico, tem muitos poemas de enamoramento. Não teria o preconceito de achar que o físico sem a alma não tinha legitimidade. Ao mesmo tempo, escreve num dos poemas: “Por que há-de sob a pele o sangue amotinar-se quando apenas a pele havemos convocado” (Sob a pele). Existem as duas coisas na poesia dele, e um trânsito entre as duas componentes. Não me estou a lembrar de uma situação na obra de paixão deliberadamente casta.

 

Uma das traduções que fez, com Natália Correia, foi A Arte de Amar, de Ovídio. Ele falava do que entendia por amar, do que o amor fosse, ou não mantinha este tipo de conversas?

Os meus pais separam-se, não sei se tinha 12, 13 anos. Tenho um grande desgosto. Não contava com aquilo, mesmo que se dessem muito mal, grandes discussões. O meu pai vai viver com a Pilar na Rua dos Ferreiros à Estrela, numa casa pequenina com águas furtadas. Em casa da minha mãe, numa época que já não existe, de criada de dentro e criada de fora, o almoço e o jantar eram na cozinha. Quando os meus pais se separam começo a ser tratado como adulto. Oiço anedotas de adultos, picantes, muitas. Entro nas discussões de política. Fazia parte do charme do meu pai sobre mim. Adorei. Em 1967 não era como hoje. De repente estava num universo de homens recém separados, com mulheres mais novas, e algumas giras.

 

O seu pai começou a contar as suas histórias amorosas?

Muitas das histórias que contava, também contava à frente da Pilar. Mas não se gabava.

 

Não respondeu: era de falar sobre o amor? O amor é isto, o amor é aquilo.

Não, era um mistério, para ele. Isso nunca. Nunca se assume como aquele que sabe. A poesia é isso, é o amador aprendiz. O meu pai achava que eu era um exemplo porque fui durante décadas homem de uma mulher só. Fazia-me confidências. Uma vez deu-me um grande abraço, disse-me uma coisa lindíssima: “Ah, meu filho. Meu filho, meu pai”. Havia coisas em que achava que eu era o adulto, porque vivia numa estabilidade, e ele sentia-se frágil.

 

Quais eram as suas grandes angústias e dores?

A obra dele está marcada pela obsessão da morte.

 

O amor e o sexo não são senão uma forma de contrariar esse fantasma. Eros e Tanatos.

Num poema, dos que gosto mais, O Romance de Pompeia, fala do casal que morre no acto, que fica eternizado na lava. A morte é uma preocupação fortíssima, que aparece muito cedo. Nos últimos anos de vida, dez, 15, tem a angústia do regresso à barbárie.

 

Barbárie civilizacional?

Sim. Sabe que pertence a uma cidadela sitiada. A partir de 1967, fazia pelo menos uma viagem por ano a Itália com a Pilar. Ficava angustiado antes de partir. Telefonava para se despedir, e começava a dizer mal de Itália. Depois voltava e adorava. Ele ia claramente ter com uma velha amante, e tinha medo que ela tivesse envelhecido mal. A amante era a cidade de Roma. (Está em Londres, para ser visto pelos médicos, num apartamento onde vive duas ou três semanas: o primeiro livro que se vê é um guia de Roma. Está sempre nos planos, durante os meses da doença: quando estiver melhor tem que ir a Roma).

Depois de Portugal aderir à União Europeia, volta e meia vai a Bruxelas, convidado para fazer conferências, e fica desgostado com os eurocratas. Conta-me da vergonha que tinha dos que se sentavam no avião e pediam logo A Bola.

 

Não gostava de futebol?

Nunca gostou de futebol. Por solidariedade para comigo passou a vibrar pelo Benfica. O meu avô queria que perdessem todos, achava a bola um atraso. O que o chocava era que estávamos entregues a brutos.

 

Há um momento em que ele percebe que vai morrer. Como é que ele lida com a morte concreta, física, não com a questão metafísica que atravessa a sua obra?

O meu pai era um hipocondríaco. A partir de uma dor de garganta era capaz de criar a ficção de uma doença terminal. E perante o cancro, foi de uma bravura extraordinária. Como as pessoas sabem do estado em que está, servem-se do pretexto do disco de poesia para lhe dizer que gostam dele. O disco tem críticas óptimas por todo o lado. Ele gostou, mas sabia que as pessoas se estavam a despedir.

 

O disco é também uma forma de ele se despedir, até da poesia?

É, é uma escolha que faz, é a última antologia dele. Sabe perfeitamente que vai morrer. Era um homem muito bonito e dá entrevistas para a televisão desfigurado.

 

Era um esteta.

Penteava-se, ia ao barbeiro, perfumava-se, vestia com gosto. Era um homem que gostava da sua aparência, e não se esconde. Continuámos a ir a restaurantes, e há uma ou outra situação em que as pessoas não o conhecem à primeira. Foi uma coisa dolorosa.

 

Porque é que ele capitulou? Estava esgotado?

Porque cada vez tinha menos as coisas boas da vida.

 

Porque já não podia ensinar nem estar com uma mulher.

É isso. Há uma aluna desse grupo de estudantes que vinha cá para casa, e que tinham 20 e tal anos, que fica um ano com uma depressão profunda por causa da morte do meu pai. Nesta sala, acontecia estar a ver cadernetas velhas e a falar-me de alunos, do Eduardo Prado Coelho, do Artur Anselmo. O prazer que tinha nos grandes alunos...

 

Era sobretudo a ideia da transmissão do conhecimento, da corrente, de tocar a outra pessoa?

Ele também tinha sido tocado. Tinha tido acesso privilegiado, lendo ou através do contacto pessoal, a pessoas excepcionais, e transmitia isso. A noção da água de um rio usa-a num poema em que, numa das versões, fala do meu avô e de mim. O poema chama-se Xácara dos Campos de Elvas e tem três versões. A que ele virá a considerar piegas, a primeira, acaba: “Que nestes campos sem água/ eu sinto-me água dum rio/ David José meu pai/ David João meu filho”. Mais tarde corrige, e os últimos versos passam a ser: “Água que vem do meu pai, que se prolonga em meu filho”. Grava para o disco uma terceira versão onde faz questão de dizer outra vez o meu nome e o do meu avô.

Adora saber coisas de família. Andam aí por casa esquemas que fazia, quem é que vinha de quem. Fascinava-o saber se o avô do meu avô era judeu (esta teimosia nos David dá-o a entender).

 

Ocorre-me que a forma como arruma os livros é uma espécie de genealogia. Arruma-os a partir da data de nascimento dos autores. O que vem, de onde vem, vai dar a quem.

Nunca tinha pensado, mas tem toda a razão. Sabia quase todas as datas de cor, tinha uma memória extraordinária. O meu avô é um historiador amador, o meu pai tem muitos livros de história. Escreve uma novela que se chama Nem Tudo é História. Até como professor, tem uma noção do que vem, para onde vai.

 

Começa por arrumar por línguas, e depois, dentro de cada língua, segue, não a ordem alfabética, mas a cronológica.

São os rios. Copiei-lhe isso, e faz muito mais sentido. O que faz sentido é encontrar o Garrett ao pé do Herculano e do Castilho. Tinha uma paixão muito grande pelo Garrett, é dos primeiros poetas acerca de quem escreve. O Garrett foi uma espécie de ministro da Cultura, o meu pai foi secretário de Estado da Cultura. O Garrett foi um homem que se interessou pelo direito de autor. O meu pai trabalhou na Sociedade Portuguesa de Autores, a certa altura. Além da ligação ao teatro.

Um dia conta-me a história do enterro do Garrett. O Castilho, que era cego, terá feito, para os risinhos da sua corte, um comentário puritano e maldoso às mulheres da vida do Garrett, que eram muitas: “Mas a família que está cá é a verdadeira”. O Herculano terá respondido: “Dêem dois tostões para calar esse cego”. O meu pai estava a falar do enterro dele. Sabe que tem mais do que uma mulher a chorá-lo.

 

Disse que o outro autor com o qual sente uma grande identificação, além do Garrett, é o Paul Valéry.

Que é um tipo de uma inteligência muito fina. Uma noite, ainda é solteiro, põe-se a ler o Valéry, e faz uma directa, de entusiasmo, não consegue parar. Uns dias mais tarde vem a saber que o Valéry tinha morrido naquela altura.

 

Ele explicava o porquê dessa identificação tão íntima?

Não é exagero dizer que o meu pai acreditava que a comunicação entre os espíritos não se esgotava naquilo que sabemos. Cinco ou seis anos antes de morrer, no aeroporto, há uma mulher de leste, uma cigana, que olha para ele e de repente desata a chorar convulsivamente. Quanto tem a doença, acha que ela viu a doença dele. Há outras coisas deste tipo que atravessam a vida dele. Vai à Baixa [de Lisboa] pela mão do meu avô, há um atentado bombista, e escapam por um acaso. Mais tarde vai ao Brasil, há um travesti que é extraditado e que quer mandar o avião abaixo; o avião baixa de 10 mil para mil metros, param nas Canárias. O meu pai achava que várias vezes na vida alguém lhe tinha posto a mão por baixo.

Mais tarde, alguém atribui o interesse do meu pai pelo catolicismo a uma beatice, por ter apanhado esse susto. É completamente falso. Isso passa-se já em princípios dos anos 90, e os poemas cristãos são do início dos anos 70. Sobretudo o fascínio pela figura de Jesus.

 

Um fascínio humanista? É menos a figura de Deus e mais a figura do homem.

Sim. Ou um homem de uma bondade tão extraordinária que é por isso que é Deus. O nome do meu pai é David de Jesus porque a minha avó é Teresa de Jesus. Um poema diz: “Sou David, mas de Jesus”. Havendo o humanismo, a dimensão transcendente não está fora. É um humanismo enriquecido, que não encara o homem sob uma visão meramente materialista.

 

Preocupava-se com a imortalidade da obra dele? E enquanto católico, o post mortem era uma coisa que o preocupava?

Era um católico especial. Há um poema de Natal – nunca o percebi, a Joana Varela é que me chamou a atenção – que de edição para edição passa sempre para último poema do livro; e todos os outros têm data, menos esse. O poema começa: “Há-de vir um Natal e será o primeiro/ em que se veja à mesa o meu lugar vazio”. Aquilo vai num crescendo: “Há-de vir um Natal e será o primeiro/ em que não viva já ninguém meu conhecido”. Acaba a dizer: “…em que o Nada retome a cor do Infinito”. O lado religioso nunca lhe dá a segurança de que fique mais do que o Nada. Esse poema é muito bonito, e é uma reflexão sobre a hipótese da mortalidade total. Não é só a mortalidade física. É a própria obra.

 

A respeito da obra, o que é que ele pensava que ia suceder? Achava que era um grande poeta e que por isso ia perdurar anos e anos, que ia ser estudado nas escolas?

O meu pai tinha a obrigação de saber a qualidade que tinha, mas tinha a sua insegurança. A minha mãe, que bateu à máquina muitos poemas, dizia que considerava o meu pai um dos maiores poetas de toda a língua portuguesa. E depois não gostava da prosa. Costumava dizer: “O teu pai às vezes parece que precisa da opinião de uma criada para saber que é bom”. E precisava de uma corte de pessoas inferiores. Isto é típico dos artistas.

 

Porquê?

A Amália tinha uma corte patética, ainda hoje sofremos os efeitos disso no seu legado. A Natália [Correia] tinha uma corte inacreditável. Era muito amiga do meu pai, tinham uma camaradagem de irmãos, e no PREC, em 1975, telefonava a dizer que aparecia aqui em casa. Podia ser uma pessoa, três pessoas, sete pessoas, a corte encolhia e alargava. No Botequim, sabia tudo sobre o PREC, e sentava-se, rainha, no melhor sofá, a perorar.

A corte do meu pai não tinha este peso, porque o meu pai tinha coisas que as outras duas não tinham – filhos e netos. E felizmente tinha muitas mulheres, que o equilibravam bastante. Mesmo assim tinha uma corte. Lembro-me de uma cortesã muito simpática que uma vez me admoestou porque eu estava a discutir política com o meu pai: “Ó Davidzinho, não discuta com o pai porque o pai depois ainda lhe dá uma bofetada e fica triste” [riso].

 

Ele era emocionalmente carente, era por isso que precisava de ser tão amado por tantas mulheres?

As mulheres, é outra coisa. O grande artista ser carente e precisar que o confirmem é muito mais comum do que seria de esperar.

O meu pai, até ao fim, lê muito e vive muito, mas não deixa de ter insegurança.

 

Ele precisava de viver para escrever?

E vice-versa. Tem um texto de 1969, onde, julgo eu, inventa a expressão O Ofício de Escreviver. Assume que é viver para escrever, e escrever para viver.

 

Outro título muito famoso: Órfico Ofício. Ofício remete-nos para o lado laborioso da poesia.

E órfico para o sonho.

 

E para Orfeu.

Outro poema de que gosto muito (na fase mais tardia tinha poemas muito curtos, a meio caminho entre o poema e o aforismo): “Olhar de frente o Sol  Assim se aprendem

as letras iniciais da Solidão”. Nas festas de Natal, era ele que ia comprar o vinho, o bacalhau. A escolha dos presentes, a encenação... Esteve presente no nascimento de todos os netos (assim que sabia, vinha de férias do Algarve). Na última entrevista grande que dá, um programa feito pela Diana Andringa, está sempre a falar desta coisa maravilhosa que é a vida. Quando a imagem pára nele vê-se um homem, fisicamente a morrer, a dizer que a vida é uma coisa extraordinária.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2011