Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Anabela Mota Ribeiro

Frida Kahlo

22.08.19

Frida Kahlo chora copiosamente. Chora o corpo martirizado, esventrado, prestes a desconjuntar-se, suspenso por uma coluna romana. A coluna (a espinha), igualmente em processo de desmoronamento, mantém-se erguida com a ajuda de um corset feito em aço. Esta mulher llorona, envolta num cenário de desolação_ a terra fracturada, o céu carregado de chuva_, retratou-se assim em 1944. O quadro «A coluna partida» pertence ao domínio do onírico, da liberdade absoluta dos Surrealistas que agitavam a Europa; mas Frida esclarece: «Eu nunca pintei os meus sonhos. Pintei sempre a minha realidade».

A realidade, então: Magdalena Carmen Frieda Kahlo Calderón nasceu em 1907 numa famosa Casa Azul em Coyoacán, Cidade do México, onde passaria o essencial da sua vida. Filha de um imigrante alemão, fotógrafo e amante de livros de arte, que idolatrava Schopenhauer, Goethe e Schiller; mantinha com ele uma relação estreita: retocava as cores das fotografias que saíam do seu estúdio e fazia de enfermeira nos ataques de epilepsia. A mãe era uma mestiça mexicana que dedicava à Virgem uma devoção efusiva, mas que era pouco dada a manifestações de afecto. Quando a filha penou na cama do hospital, na sequência de um acidente brutal, afectada pelo choque, não foi capaz de a visitar.

A herança é complexa. Frida será sempre uma tehuana de pilosidade abundante, de estilo “incultivado”, adornada pelas cores intensas da pátria. Será sempre a artista revolucionária que lê Marx, impressiona André Breton, se envolve amorosamente com Trotsky. É redutor pensar nela como uma intérprete avant la lettre de um realismo mágico que emergiu na literatura pela voz de García Márquez _ a despeito da profusão de referências pré-colombianas que é possível encontrar na sua pintura. A educação de Frida é enformada pelo que está em voga na Europa. Lê os clássicos, (Homero, Dante, Platão) que o filósofo e político revolucionário José Vasconcelos disponibiliza aos alunos do secundário. Admira a pintura de Botticelli ou Bronzino. O primeiro auto-retrato que pinta, em 1926, é devedor dos renascentistas: a figura é alongada, os gestos são delicados. Assume uma herança impura, sincrética, uma herança dual.

Mas tudo em Frida é dual: vida e morte, claro e escuro, masculino e feminino, antigo e moderno, México e Europa. Estes são os seus termos, e a síntese, peculiaríssima, é a sua vocação.

Ainda a realidade: em Setembro de 1925, Frida seguia num autocarro com um colega de escola, Alejandro. O aparatoso acidente que sofreram incapacitou-a para o resto da vida. É já lendária a perfuração do pélvis que terá ocorrido, a coluna vertebral partida em três, ou os nove meses em que permaneceu imobilizada na cama do hospital. Foi durante esse período que começou a pintar. Para escapar ao mutismo interior? Frida praticava desde cedo, e de modo exaustivo, a solidão. Quando lhe perguntaram porque pintava auto-retratos, ela respondeu que passava muito tempo sozinha, entregue a si. Bem vistas as coisas, ela era a pessoa que conhecia melhor.

Desde o acidente, a dor e a consciência da fragilidade do corpo passaram a fazer parte do seu quotidiano. A desintegração progressiva do corpo, a precariedade da vida, a mortalidade passaram a ser a sua coroa de espinhos. A morte rondava, e nestas condições impunha-se uma fúria de viver. O ímpeto com que pintou, amou, viveu são expressão de uma tentativa desesperada de se manter viva, de se saber viva. A sobrinha da artista, ouvida pelos curadores da exposição na Tate Modern, transmite essa impressão: «A minha tia Frida era apaixonada pela vida! Nas ocasiões boas e nas más, era muito positiva. Dizia sempre: «Viva la vida, viva!» 

O segundo dos acidentes que irromperam pela vida de Frida Kahlo foi, nas palavras da própria, Diego Rivera, o reputado muralista com quem casou duas vezes, a primeira das quais em 1929 e a segunda em 1940. A relação entre os dois amantes foi tumultuosa. Diego, 20 anos mais velho, de tamanho desmesurado, adúltero compulsivo, era «o seu Deus, o seu filho, o seu pai». Era a sua flor de obsessão, carnívora. A mãe de Frida, que nunca simpatizou com o genro, dizia do par que era o encontro de uma pomba com um elefante! Mas Frida, em cuja biografia a mãe é personagem ambivalente, passou a vida a tentar possuí-lo, certa de que a monogamia era um projecto absurdo. Lidou tão bem quanto possível com as infidelidades constantes. Verdadeiramente, só a relação que ele teve com Cristina, a sua irmã mais nova, conduziu ao divórcio.

Foi um período negro, auto-destrutivo. Despedaçou a farta cabeleira de que Diego tanto gostava num sinal de retaliação e de auto-mutilação, e numa tela exígua de 40 por 28 centímetros pintou-se assim: pelona. Andrógina. (A bissexualidade de Frida era antiga, e crê-se que a primeira experiência foi vivida com uma professora, ainda no liceu. Supostamente teve affairs com a pintora Georgia O’Keefe ou a fotógrafa Tina Modotti, para apontar apenas dois nomes sonantes.) Também é verdade que nesses anos se entregou à bebida e que, segundo Diego, pintou alguns dos seus melhores quadros. O mais famoso é «As duas Fridas».

Nessa tela de grandes proporções, Kahlo representa a dualidade da sua personalidade. De um lado, a Frida amada, vestida com o traje tradicional das tehuanas e com o coração intacto; na mão, segura um retrato do artista Rivera quando jovem, muito jovem. Do outro, tem o coração cortado ao meio e veste um traje colonial; o vestido está coberto de flores que esmaecem e se transformam em sangue. As duas Fridas estão ligadas por uma artéria, que parte da fotografia de Diego, se enreda no corpo, e termina abruptamente num bisturi. (Uma fotografia tirada quando o quadro parecia já completo, permite perceber que o pormenor das flores e do bisturi foi acrescentado mais tarde.) Frida sangrava, e a sua dor maior era o desamor.         

Quem é Frida Kahlo? A resposta, as respostas, podem ser encontradas na sua obra. Entre 1926 e 1954, a artista mexicana produziu pouco mais de uma centena de quadros em que explora aspectos relacionados com “o corpo, a genealogia, a infância, as estruturas sociais, a pátria, a religião, os contextos culturais, e a natureza”, como se lê no catálogo da exposição. Todos remetem, de modo quase sempre directo, para a sua vida. 

Frida é um ícone improvável, mistura explosiva de política, sofrimento e introspecção, combinação única de “candura e insolência, crueldade e humor” (Breton). Pintora de auto-retratos, inscreveu a sua biografia no centro da sua obra. Pintora de narrativas que deixam entrever uma cosmogonia privada. Em «Moisés» (1945), Nefertiti, Lenine, deuses aztecas, Freud, Alexandre, Buda, deuses egípcios, Apolo, Cristo, Hitler, (a quem chama “A criança perdida”), e, em especial, o Sol, como centro de todas as religiões e criador da vida, integram o seu panteão. Pintora de naturezas mortas, de frutos suculentos, entreabertos e explicitamente sexuais, narradores do seu amor pelo México, símbolos de fecundidade e do ciclo da vida.

Observemo-la nos auto-retratos. O olhar parece desconfiado, distante, inalterável. Frida pintava-se ao espelho, e esta circunstância pode explicar a “distância” dos auto-retratos. O que pinta é o que é devolvido no reflexo, e não o que lhe sai de dentro. O arrebatamento ou a dor raramente são dados pelo olhar, mas pelo espaço envolvente.

Cada quadro funciona como fragmento de uma anotação diarística, síntese da realidade vivida. Exemplo disto são dois quadros famosos, pintados na sequência de acontecimentos trágicos. Em 1932, no espaço de quatro meses, sofreu um aborto espontâneo e assistiu à morte da mãe.

O aborto revelou-se um momento especialmente traumático. Consta que quis ver o feto, que devorou livros de anatomia, que desenhou infatigavelmente até produzir «Henry Ford Hospital», o quadro que a expõe ensanguentada, a segurar o bebé, a zona pélvica, entre outros símbolos relacionados com a experiência. Alguns críticos consideram que o amor de Kahlo pelos animais (um cão irrequieto que levava o nome de um deus azteca, um macaco que se enredava no seu pescoço...) são uma solução possível para a impossibilidade de ter filhos. O corpo frágil da artista não consentia tamanhas aventuras...

A morte da mãe, ocorrida pouco depois do regresso de Frida ao México, impulsionou «O meu nascimento». É um quadro blasfemo, no qual quebra dois tabus: a exibição do sangue vaginal e da sexualidade da mãe. Um lençol branco tapa a cara da parturiente e uma Virgem dolorosa contempla a cena, da parede. Os dois quadros aproximam-se: cruzam a morte e a vida, a natalidade e a mortalidade. 

Mas há outros quadros que ilustram páginas do seu diário. Como aqueles que pintou nos anos em que viveram na América. Nesse tempo, gringos como Rockefeller estavam fascinados com Rivera, e Frida era “a mulher do artista, que também pinta”_ um papel que ela reclamava para si: quando retrata o casal em 1931, surge minúscula, com uns pés invisíveis que quase não tocam no chão; e ele é um gigante que segura na mão uma paleta com pincéis. Ela era a excêntrica a quem os miúdos perguntavam quando passava na rua: «Onde é o circo?». Era la mexicana, figura que adoptou depois do casamento para agradar ao marido e como declaração política_ viveu fervorosamente os ideiais da Revolução, a ponto de alterar a data de nascimento para 1910 de modo a coincidir com a data da Revolução mexicana.

Na América pintou o folclore mexicano, pintou as filas de desempregados, pintou Mae West que Diego adorava. Mas morria de saudades, e regressaram para viver na Casa Azul.

A casa era um museu vivo, pejada de objectos, retablos, e tralha, tralha que contava a história do México, as suas raízes e tradições. E acolhia refugiados políticos como Trotsky. Por lá passaram, também, o cineasta russo Eisenstein, os fotógrafos Edward Weston ou Álvarez Bravo, o revolucionário Pancho Villa.      

A Casa Azul assistiu ao recasamento de Frida e Diego e à morte da artista em 1954, aos 47 anos. Os últimos anos haviam de ser especialmente penosos. Em 1950 passou nove meses no hospital, durante os quais foi operada duas vezes à coluna, e em 53 foi-lhe amputada a perna direita. Apesar do sofrimento físico, Frida insistiu em comparecer à sua primeira, (e única em vida) exposição individual no México, em 53. Recebeu os convidados deitada na cama, plantada no meio do espaço expositivo. No convite escreveu: «Estes quadros que pintei, pintei-os com as minhas mãos. Eles esperam por si para lá destas paredes, para agradar, tal como planeei».

 

Nota: a exposição recém inaugurada na Tate Modern, em Londres, é a maior alguma vez dedicada a um artista latino-americano em Inglaterra. Aconselha-se a compra antecipada de bilhetes e o aluguer do guia áudio. Além da informação relativa aos quadros em questão, mostra num pequeno ecrã fotografias da pintora, quadros e estátuas que serviram de referência a algumas obras ou imagens da Casa Azul. A mostra quase integral é especialmente bem montada, em salas amplas e  inclui inúmeros desenhos. É emocionalmente forte, como a pintura de Frida. O merchandising da exposição é atraente: pulseiras, cintos, ganchos para o cabelo, inúmeros postais e bibliografia abundante. Caro. Disponível até 9 de Outubro.

 

 

Publicado originalmente na revista Grande Reportagem do Diário de Notícias em 2005