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Anabela Mota Ribeiro

Margarida Palma

04.01.15

A gravura é o lugar onde se sente mais confortável? Foi para Inglaterra (Camberwell) estudar gravura.

Eu entendo a gravura como um meio, uma ferramenta. O meu lugar mais confortável é mesmo o desenho. A gravura atribui ou oferece ao desenho possibilidades e intensidades distintas. Mas acho que desenhar vem antes... É uma competência mais profunda, que precede tudo o resto. Implica um tipo de reflexão de outra natureza.

 

Conte como faz uma gravura.

Há muitas maneiras de fazer gravura. Vou tentar simplificar ao máximo. Em princípio, é necessária uma matriz, seja madeira, metal ou outra. Nessa matriz fazem-se marcas, incisões ou texturas que depois são transferidas para outro suporte, geralmente papel, utilizando uma prensa. Uma gravura pode ser reproduzida muitas vezes, ou não, dependendo do tipo de matriz e da marca que se fez. Pode ser rigorosa, experimental, plana, tridimensional.

Há um lado muito técnico que é necessário perceber e dominar. O Bartolomeu (citando Jean Renoir) dizia frequentemente que a técnica deve ser aprendida... Mas terminava, completando: para depois esquecer.

 

Como assim?

Toda a atitude e forma de trabalhar dele mostravam que é quando existe esse esquecimento, quando todos aqueles preceitos se tornam num movimento natural e despreocupado, que as coisas mais interessantes acontecem, que somos capazes de voltar a experimentar, sem reverências à técnica.

 

E como é que faz gravura? Pergunto pelo seu modo próprio. 

Eu prefiro experimentar, brincar, desenhar directamente no metal (ponta seca). É um processo directo, um pouco rude. Exige intenção, força. Por vezes, nesse equilíbrio delicado entre força e precisão, surgem outras coisas. Acho que se adequa ao meu desenho. Também gosto de ver o ácido a morder livremente (spit bite). Frequentemente opto por caminhos um pouco imprecisos, contrariando a rigidez do meio. Gosto mesmo é do erro e do acaso.

 

O que é que mudou em si o encontro com Bartolomeu Cid dos Santos?

Acima de tudo, a certeza de que estava no rumo certo. Mudou a confiança em mim mesma, a vontade de arriscar, de ir. Tinha dezoito anos quando o conheci. Nessa altura, sentir que uma pessoa com aquele percurso, aquela vida, aquela história, tinha curiosidade em perceber o meu trabalho, estava disponível para me ensinar, ouvir, partilhar... Foi de uma generosidade imensa, sempre. Isso não se repete. E faz muita falta.

 

Os seus desenhos e gravuras têm corações, pernas, o corpo. Porquê o coração, mais do que tudo? É o coração-órgão, quase sempre. A representação é oposta à do coração romântico da cultura popular.

Sim, é um coração órgão, em estudo, talvez. Repito um mesmo órgão ou parte do corpo muitas vezes, no meu trabalho. São tentativas. Sempre achei extraordinária a ideia do desenho científico em que se condensam as características de um animal ou planta perfeitos, na sua espécie, mas que na realidade não existem. São amálgamas, uma ideia sobre as características que os definem. Talvez eu esteja no caminho oposto. Vou registando características particulares, perspectivas transitórias, passageiras, desses pés, pernas, órgãos... Porque eles não são estáveis, estão em permanente mutação. Mudam, crescem e adaptam-se.

 

Viveu em Londres, Chipre, Algarve, Lisboa. É um cliché, mas vou perguntar: a luz importa mesmo?

Para mim, muito. Mas também os ventos específicos de um lugar ou o tipo de nuvens mais comuns de uma região. São coisas em que só reparamos quando vivemos num sítio o tempo suficiente para perceber esses padrões.

 

O que é que mudou em si depois da vida nestes lugares? Como era a sua vida em cada um deles?

A vida foi muito diferente em cada um desses lugares. Com estímulos diferentes, aprendi coisas importantes em cada lugar, em direcções quase opostas. Londres e o Chipre trouxeram novas camadas ao que eu sou, foram experiências ricas, entre futuro, diálogo, possibilidade e herança, silêncio e luz.

 

As suas raízes são algarvias. Recentemente viveu no Algarve e trabalhou na Oficina Bartolomeu Cid dos Santos (OBS). Viver perto da casa dos avós, dos pais, perto do sítio de onde vem, mexeu consigo de um ponto de vista criativo?

Viver em Tavira alterou a minha compreensão e identificação com o lugar, o sentido de pertença, da história pessoal, do padrão, o enriquecimento da memória.

O regresso à OBS (Oficina Bartolomeu dos Santos) foi um desafio enorme. Tinham sido cinco anos sem um rumo definido para aquele espaço. Não foi simples retomar um projecto daqueles, sem o pai, o mentor. É uma responsabilidade e ao mesmo tempo uma alegria imensa ver as prensas a voltar a trabalhar, pessoas novas a entrar, a usar, a experimentar, ver as relações que o Bartolomeu criou a serem renovadas e ampliadas. Quero acreditar que ele ficaria contente.

 

Como é que aquilo que vê (no cinema, num museu) contamina o que faz? 

O cinema é uma fonte constante de informação. É um meio extraordinário, rico e diverso. Há coisas que ficam adormecidas e ressurgem dias, meses, anos depois. Não são necessariamente usadas de forma literal, mas fazem parte de um léxico visual importante para mim.

Há outras interferências, da medicina, da biologia. Ideias que me interessam e de que me aproprio. Fascina-me a sobreposição desses planos, as relações que deixam de ser unívocas, a multiplicação de leituras.

 

Está a regressar a Portugal depois de mais uma temporada fora. Demora a encontrar de novo o seu lugar? Acho que estou a perguntar também pela importância da viagem e do centramento em nós mesmos.  

A viagem, e sobretudo uma temporada tão longa, exige depois também o tempo para integrar o que se viveu, o que se viu. Acho que voltamos sempre diferentes, e portanto não há um reinício simples, nem tudo volta a encaixar no mesmo sítio. Isso é bom, mesmo quando causa estranheza, surpresa ... mesmo quando dói compreender que mudámos e que é irreversível.

 

Em que coisas está agora a trabalhar?

Continuo a olhar para o corpo. A capacidade de readaptação, interior e exterior interessa-me. O registo dessas lutas continua a ser o foco principal daquilo que eu faço, seja em desenho, objecto ou livro.

 

Uma delicadeza que fere e está ferida - pode ser uma boa maneira de falar do seu traço?

Eu desenho como um cirurgião inexperiente, acho... Desenhos podem ser mesas de operações onde corpos e órgãos se refazem, reagrupam. Tento reproduzir o que foi, a partir da memória, com o que ficou. Há ali uma oportunidade de refazer ou resolver qualquer coisa. Ferida, tentativa e erro. Novo corpo, nova função, nova possibilidade de resposta.

 

Se lhe perguntar quem é a sua família, responde o quê? Pode nomear pessoas, pinturas, lugares, passeios...

Esse mapa podia ser quase infinito, as ramificações são tantas... Amigos, professores, quadros, livros, lugares. Sophia. O mar. Marguerite e Virginia. Adriano e Orlando. Louise. Mulheres. Muitas mulheres. Uma, a do quarto de hotel, do Hopper. O Bartolomeu. Tavira. A serra algarvia. O Abbas. O miúdo à procura do amigo. O Wim. O anjo no baloiço. Tudo o que me fiz sentir e onde me senti menos sozinha. E a outra família, forte, de sangue e de amor desmedido.