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Anabela Mota Ribeiro

Maria Belo

01.02.17

Como é o seu consultório? Imagina-se que o consultório de um psicanalista não deva ser um espaço que comprometa ou distraia o paciente; por outro lado não se imagina que seja o espaço asséptico de outros consultórios.

O consultório do psicanalista não coincide com a imagem que temos do consultório médico em geral, que é muito mais asséptico. Freud já não tem esse tipo de consultório.

 

Vi uma imagem do consultório de Freud. O divã parece muitíssimo confortável, quase convidativo, e há uma tapeçaria na parede do mesmo padrão do divã que cria uma ideia de prolongamento e de envolvência.

Ele tinha a sua colecção de objectos antigos, a secretária onde trabalhava. Os psicanalistas, na sua maioria, habituaram-se a ter um espaço deste tipo, mais acolhedor, digamos. Em geral, recebo em casa. Muitos psicanalistas o fazem. Mas há quatro anos, o meu filho chegou de fora com a mulher e a criança; de maneira que durante um ano e meio aluguei um sítio no Chiado para receber. O mobiliário era o convencional e então levei algumas coisas minhas.

 

Quais são os objectos de que não se separa?

Fundamentalmente, o chamado divã, que varia. O divã não tem de ser exactamente um divã... Depois se quiser posso mostrar-lhe o meu! [risos]

 

Talvez prefira reconstitui-lo mentalmente a partir da sua descrição.

Há o sítio onde me sento, que tem de ser confortável. Há sempre uma ou duas mesinhas de apoio ali perto para pôr, enfim, a agenda, os livros, a água. Normalmente o sítio onde recebo é o local onde trabalho.

 

Freud tinha a sua colecção de peças arqueológicas. Tem algum objecto pessoal que a comprometa com o espaço, além do clássico divã e do clássico sofá que atribuímos a um consultório de psicanálise?

Depende. Até ao Natal tinha este quadro (desenho de uma mulher nua, sentada, com óculos quase masculinos). Retirei porque mandei emoldurar outras coisas que cá tinha e que queria lá pôr. Há coisas importantes, como aquilo que está em frente da pessoa que está no divã, e que, de certa forma, é uma imagem que recorda pela vida fora. E tenho livros.

 

Quando fez a sua psicanálise que imagem tinha em frente a si?

É engraçado porque só me lembro da dos últimos anos. Tive diversos analistas. Comecei a minha análise quando estava ainda na Bélgica e era assistente na universidade. Depois vim para Portugal, e desisti. Interrompi quando estava ainda no princípio, tinha dois anos de análise. Estive em Portugal um ano e depois voltei para Paris para continuar a análise.

 

Voltou para Paris expressamente para continuar a análise?

Organizei a minha vida pessoal, também, em função da ida para Paris. Voltei fundamentalmente para continuar a análise. Tudo quanto fiz lá fora era tão diferente do mundo em que tinha vivido aqui, que precisei de voltar para conseguir fazer as ligações. Fiz Psicologia na Bélgica, o ISP nem sequer existia em Portugal. Quando fui fazer a minha análise para Paris não estava ainda formada a Sociedade Portuguesa de Psicanálise.

 

A psicanálise é um projecto para a vida. Podia mesmo perguntar quem são as pessoas que a fazem. Quem tem obstinação para iniciar um processo de anos cuja focagem altera a visão instalada das coisas. Quem pode pagar psicanálise três vezes por semana. Quem tem uma vida suficientemente flexível para ajustar o seu horário ao do psicanalista.

Estou completamente de acordo com o que diz. Em relação ao meu processo de análise há algo que tem a ver comigo, mas também com o país. Não é por acaso que a psicanálise começou tão tarde em Portugal. Para além de um processo de recalcamento que é próprio da cultura portuguesa, houve um exacerbar desse processo com a ditadura, muito mais baseada na censura da palavra que na violência física, como por exemplo em Espanha.

 

Que resquícios são ainda detectáveis?

Ser psicanalista em Lisboa é hoje completamente diferente de ser psicanalista em Paris. Em França é uma coisa de tal maneira do dia a dia que quem vai já sabe mais ou menos o que a espera; não sabe relativamente a si própria, mas sabe relativamente ao processo. Isso às vezes dificulta, porque a pessoa vai com ideias pré-concebidas, à procura do Édipo e não sei o quê. Aqui as pessoas vêm mais desprevenidas, e por isso, ainda que estejam menos ao corrente, quando escolhem psicanálise é uma escolha significativa.

 

Porque é que a psicanálise é ainda uma coisa rara em Portugal? A dificuldade decorre do investimento de tempo e dinheiro que ela representa?

Embora tenha alguma coisa a ver com isso, é sobretudo por questões culturais. Em Portugal não se falava. Nas famílias não se falava. As coisas eram vividas e sofridas, mas não explicitadas. E isso provoca um recalcamento muito grande relativamente ao que é de cada um. Em certos meios mais intelectuais ou universitários houve a partir do final dos anos 60 um interesse teórico pela psicanálise. Era uma curiosidade que tinha a ver com uma curiosidade por si próprio, mas que raramente ia ao ponto de dar o passo e de avançar para uma análise. Mas tenho a impressão que só desde há três ou quatro anos é que há pessoas comuns, que não estão doentes, que querem perceber melhor o que se passa com elas e que vão procurar na lista um psicanalista.

 

Mas quem é arranja um psicanalista numa lista telefónica? Não é exactamente a mesma coisa que ir ao oftalmologista.

Claro, claro. Mas você também não vai procurar um oftalmologista nas páginas amarelas, nem se deixa operar por um médico que encontrou nas páginas amarelas, não é? Em Portugal, com a subida do nível de vida e a democratização da cultura, há hoje muitas pessoas que não têm outro meio, e vão procurar à lista! Pessoas que têm uma vida normal, funcionários públicos, quadros não sei donde. Enquanto em França ou no Brasil dizer que se está em análise põe-se no cartão de visita, aqui muitas vezes ainda não se diz. Depois há outros aspectos: a análise é razoavelmente cara.

 

Acabou por não dizer que imagem lhe ficou do consultório de Paris.

Era um quadro meio abstracto, mas relativamente violento. As cores eram vermelhas, e, ao mesmo tempo, subsistia uma luz qualquer. Havia momentos em que eu não dizia nada, e aquele quadro..., podia agarrar-me um bocadinho, se posso dizer.

 

Àquela luz. Porque é que a Psicologia, primeiro, e a Psicanálise depois constituíram as suas opções de vida? Porque a sua tradição familiar não fazia prever esse caminho.

Porque é que diz isso?

 

Li algures que a sua família era numerosa (nove irmãos), de tradição católica, salazarista, conservadora; e a figura do pai era austera. Ocorreu-me que a psicologia representasse uma rebelião e fuga deste casulo.

Não é bem assim. Era, de facto, uma família conservadora. Os meus pais eram austeros, mas simultaneamente revelaram-se pessoas bastante abertas: acolheram, com algum sofrimento mas com bastante autenticidade, as trajectórias dos filhos (foram quase todas especiais!). Era uma família católica praticante, mas não era beata. Eu quase fui freira. Saí de Portugal aos 21 anos, tinha feito o liceu e depois o curso de educadores de infância. Estive um ano a trabalhar até que tive uma bolsa para ir fazer Psicologia. Estou convencida que se não tivesse saído de Portugal nessa altura provavelmente ter-me-ia casado, teria tido filhos e seria a mais conservadora das irmãs!

 

Onde radica essa convicção?

Fui para a Universidade Católica de Lovaina e a minha vida nos primeiros três anos foi acertadinha, sem grandes devaneios; tinha os meus amigos belgas, conservadores (mas todos os belgas da altura eram conservadores!). Depois não sei que me deu: no fim do terceiro ano tive que pensar numa tese e resolvi que queria ir a Angola. E portanto arranjei esse pretexto e um professor que me desse um tema africano. Pensava passar o Verão a fazer uma investigação com criancinhas tribalizadas e acabei por ficar um ano. Estive seis meses a fazer o trabalho e nos outros seis a dar aulas para ter que comer. Foi Angola que me mudou completamente. Foi, para já, onde me apaixonei pela primeira vez.

 

Aos 24, 25 anos?

Aos 24, 25 anos. Foi também em Angola que descobri a política. Eu vivia no centro de Lisboa e nem pela campanha do Humberto Delgado dei! Dentro das famílias que não tinham tradição de oposição – a minha família era salazarista mas não era militante _ penso que era na universidade que as pessoas se davam conta da situação política. Como não fiz cá a universidade, só me dei conta quando em Angola deparei com a situação colonial. Os seis meses que passei nas aldeias com as mulheres e crianças mudaram-me muito.

 

O que é que a comoveu nessas pessoas?

A dimensão da presença. Estive nos arredores de Lubango onde havia aldeias semi-tribalizadas: viviam em cubatas, com as roupagens, com os penteados, os enfeites, e não falavam português. Quem falava português eram os homens que trabalhavam na cidade, elas não. Eu andava com uma intérprete e servia-me dela para as questões ligadas ao teste psico-motor que apliquei a crianças dos 0 aos 3 anos. Aquilo que me marcou foi o que se passou entre nós sem que nada fosse dito. Foi a forma de estar das mulheres, foi a noção, muito africana, da presença do outro, à qual são muito sensíveis, não têm as defesas que nós temos.

 

Uma primeira paixão aos 25 anos deve ser terrivelmente marcante, sobretudo para uma rapariga que queria ser freira. Não tinha contemplado o amor na sua vida?

Não tinha nunca contemplado outra coisa. Perguntava-me porque me tinha interessado pela psicanálise e pela psicologia; a psicologia, de uma forma mais explícita, teve a ver com o facto de ter feito o curso de educadora de infância – tive umas aulas de psicologia, assim uma coisa. Mas fundamentalmente, e daí o interesse pela psicanálise, desde muito pequena me interessou perceber a questão da relação, do afecto. Sou a mais nova de muitos irmãos. Éramos uns miúdos simpáticos, divertidos, bonitos, etc, mas eu atraía especialmente os amigos dos meus pais e tenho a impressão que sempre me intrigou qual era o meu lugar naquele conjunto de crianças, o que é que esperavam de mim. Respondendo à sua pergunta, não era nada indiferente à relação com o amor. Tive, como suponho todas os jovens, as minhas paixonetas de liceu pelos professores ou professoras. Mas defendi-me sempre, desde a adolescência, de uma relação de afecto. Não me defendi de uma relação de amizade, embora também não fosse dada a muitas amigas, tinha duas ou três íntimas.

 

Mantém essas amigas?

Não. Tinha um grupo de rapazes e raparigas, meu e das minhas irmãs, com quem me dava ao fim de semana. Íamos às festas e tal. Defendi-me sempre de outro tipo de relações. A história de querer ser freira tinha a ver com isso. Melhor, tinha vários caminhos. A partir dos 15 anos era dada às leituras, tinha sempre um canto no sótão ou na estufa onde estava sozinha e, na mesma altura, passei a ser militante católica dos movimentos noelistas. Uma vez demos uma festa lá em casa e uma das minhas irmãs disse-me que um amigo dela me ia pedir namoro nesse dia.

 

Eram outros os tempos.

Lembro-me de ter dançado com ele e propor-lhe jogarmos ping-pong. Interrompi a certa altura o jogo, sentei-me numa arca e disse-lhe que ia para freira!, antes que me pedisse namoro!

 

Foi uma forma de se imunizar em relação ao amor.

Exacto. Até ir para Angola, e sem nenhuma dificuldade, arranjei os sistemas necessários (a espiritualidade religiosa) para recalcar..., o desejo sexual, digamos.

 

Até onde avançou o processo religioso?

De uma certa forma, fiz tudo o que havia a fazer. Mas comportei-me sempre de maneira a que nunca fosse dado o passo decisivo. Decidi que ia para umas freiras especiais (as pessoas faziam a sua vida normal, em casa, mas eram freiras), e depois decidi que ia para Lovaina estudar. Pareceu melhor a toda a gente que fosse ver como é que era e decidisse depois se sempre queria ir para freira _ felizmente eram pessoas inteligentes! Ao fim de um ano em Lovaina comecei a fazer formação teológica: líamos umas coisas, fazíamos uns trabalhos escritos e tal. Para fazer os trabalhos, punha-me a ler os teólogos, e as tipas achavam que eu era muito intelectual, que intelectualizava a fé, que não tinha fé suficiente.

 

Convenhamos que tinham razão.

As coisas foram-se adiando até ao ponto de, com a minha ida a África, ter decidido «Acabou».

 

A primeira vez que formulou o desejo de ir para freira, na tal conversa com o rapaz, tinha 17 anos. Como foram os dias seguintes? Comunicou aos seus pais o seu desejo?

Nem por sombras, não disse nada a ninguém. Mantive para mim, fiz promessas definitivas completamente íntimas. Depois fiquei cheia de medo dessas promessas e resolvi desembaraçar-me delas no confessionário! (risos) Toda essa primeira parte, dois anos, foram íntimos. Porque em Portugal não se falava. Nunca falava disso nem com a minha irmã mais próxima. Há uma história muito engraçada da minha irmã num campo de férias. Estávamos lá e tínhamos assim uma hora por dia em que havia uma conversa meia religiosa. E numa conversa, estava a falar-se de santidade, a minha irmã disse: «Eu quero ser santa, mas quero ser santa como a minha mãe: só depois de casada»!

 

O comentário da sua irmã esclarece-nos cabalmente àcerca da condição feminina: a sexualidade era permitida depois do casamento desde que consagrada à procriação e, por isso, santificada.

Pois. Era tudo muito difícil nessa época.

 

De Angola retorna à Bélgica.

Voltei para acabar o curso, faltava-me o quarto ano.

 

Foi o motivo do retorno?

Sim. Quando digo que me apaixonei em Angola, apaixonei-me verdadeiramente, mas era uma paixão platónica, nem sequer era questão para mim ficar. Soube reconhecer o que era, mas pronto, não avancei mais do que isso. Voltei à Bélgica para acabar ajuizadamente o quarto ano e escrever a tese. A única decisão que tomei foi que não ia para freira. E quando acabei o curso decidi que não vinha para Portugal porque não estava pronta para exercer Psicologia tendo percebido que havia uns mundos muito mais complicados para lá daqueles que conhecia.

 

Como é que a sua vida, e essas grandes decisões, se consumavam no dia a dia?

Fiquei lá três anos como assistente e foi nesses três anos que..., que me reapaixonei. As defesas relativamente à sexualidade tinham a ver com o facto de perceber que se me casasse ou se vivesse a sexualidade, tanto nos meus anos de Lisboa como nos meus primeiros anos de Lovaina, (havia colegas meus apaixonados por mim e eu não me dava conta!), tenho a impressão que tinha sido apanhada. Você diz que me defendi do amor; eu acho que era tão frágil em relação ao amor que me deixaria apanhar de forma profunda e perderia a minha liberdade. Por isso é que disse que seria muito mais conservadora que as minhas irmãs se tivesse seguido o caminho que elas seguiram. Mudei de vida em Lovaina. Deixei de me dar com os belgas, a não ser no trabalho, e passei a dar-me com bolseiros latino- americanos, espanhóis, italianos.

 

Não tinha mesmo noção do impacto que provocava nos homens? As suas fotografias da altura mostram-na muito bonita.

Não tinha essa noção, e defendia-me muito mesmo dessa consciência. Fui assim até muito tarde. Ainda há poucos anos, colegas meus, psicanalistas franceses da minha geração, um ou dois disseram-me que na altura eu era a mulher mais bonita da associação! Não tinha dado conta que as pessoas pudessem pensar isso. Também não pensava que me achavam a mais feia. As coisas não passavam por aí.

 

Passavam por onde, pela inteligência?, pela sensibilidade?

Mais pela sensibilidade que pela inteligência, tinha complexos quanto à inteligência. Nunca fui uma aluna brilhante, passei sempre com 13; só passei com 14 na faculdade e nos sítios em que era preciso ter 14 para continuar. Das várias vezes que fiz trabalhos escritos, lembro-me de os professores dizerem que era mais inteligente do que parecia. Não tinha necessidade de afirmação pela inteligência. Sempre me interessaram mais as coisas ligadas à compreensão do que somos e do que se passa entre as pessoas.

 

Foi nessa fase que se aproximou da política?

Em Lovaina interessei-me pela psicanálise (comecei a minha formação), interessei-me pela sexualidade, interessei-me pela política. Inclusivamente, pertenci a dada altura, durante esses três anos, a uma célula do PC. Fazia política com os portugueses, ia a umas reuniões e tal, e divertia-me com os latino-americanos e espanhóis, que passavam a vida a discutir política. O meu primeiro namorado foi um comunista espanhol, célebre hoje em dia; o segundo era um guerrilheiro maoísta – por isso é que as pessoas julgavam que eu era maoísta, mas não era. Um dia escrevi aos meus pais a contar que ia casar com esse tal guerrilheiro. Só uns anos depois soube que aquilo foi um susto na família, fizeram uma reunião para saber se ao menos podia casar na sacristia!

 

Como ficou resolvida a questão da religião? Continuou a ter fé?

Não. No dia em que comecei a ter uma vida sexual activa perdi completamente a fé. Retomei a questão na minha análise porque quis perceber porque foi assim. Todavia mantive certos reflexos.

 

De culpa?

De culpa, de me dirigir a Deus em situações complicadas. Foi como se uma página da minha vida fosse virada. Deixei de ser praticante, deixei de acreditar em Deus. Assim! Os meus interesses viraram-se para outro lado. Tenho um irmão que era padre. Começou por ser professor de moral no liceu, mas foi expulso pela Pide. Escolheu ir para prior da Baixa da Banheira. Depois escrevi-lhe e arranjei-lhe uma bolsa para ir para lá estudar.

 

Deixou de ser padre?

Deixou.

 

Que contactos mantinha com esta sua primeira vida?

Vinha quase sempre duas vezes por ano, nas férias grandes e no Natal ou na Páscoa. Vinha de comboio, em geral. Vim uma vez à boleia com um amigo cubano e a família ficou!..., era mesmo só um amigo, coitado, não tinha onde passar férias, «Anda comigo, vamos à boleia!». Já não tinha nada a ver com este mundo. Quando cá estava não me integrava.

 

Nunca chegou a casar.

Não foi uma decisão. Pelo contrário, até houve uma altura em que queria casar, mas durou pouco tempo.

 

Porque é que decidiu adoptar uma criança?

Já tinha 36 anos, foi em 74. Tinha deixado de viver com o Nuno Bragança, com quem tinha vivido vários anos, e sabia lá quando é que se ia proporcionar ter uma criança. Nunca quis fazer um filho de qualquer pai. Isso era para mim muito claro e uma das razões porque até aí não tinha tido filhos. Queria poder dizer a um filho feito por mim «Olha aquele é o teu pai», e juntos ou não juntos, ter por ele o mínimo de respeito e orgulho. De maneira que decidi adoptar e fui à Misericórdia inscrever-me.

 

Decide criar a sua família quando vem definitivamente para Portugal? Coincidiu com a Revolução?

Vim no Natal de 73. O pretexto, que não foi só pretexto..., não foi o pretexto, foi que estava interessada em retomar a relação com o Nuno, que entretanto tinha voltado para Portugal. Também tem a ver com a psicanálise. Enquanto estive em Paris só me interessei pela psicanálise. Fazia a minha vida, tinha amigos, não estava metida em nenhum grupo mas fazia acções políticas para este e para aquele, para a Isabel do Carmo e para o Carlos Antunes, umas coisas assim. Mas não eram objectivos da minha vida, a psicanálise interessava-me muito mais. O que fiz enquanto estive em Paris foi investir na psicanálise e no trabalho como psicanalista que comecei lá.

 

É verdade que foi psicanalisada pelo Lacan?

Fui.

 

Incomodava-a de alguma forma ter um psicanalista tão mediático? Esta questão é extensível à relação com os seus pacientes, porque é igualmente mediática. A dimensão pública permite aos pacientes saber como se concretiza a vida do outro para lá do consultório.

Quando as pessoas estão em análise, aconteceu comigo e acontece com os meus analisandos, quando não querem saber, não sabem. Por exemplo, há uma série de histórias de Lacan que corriam, histórias amorosas e histórias pessoais, que só soube quando ele tinha já morrido, quando já tinha deixado há que tempos de ser analisanda dele. Não soube porque nunca me dispus ouvi-las, e naturalmente falava-se à minha volta dessas coisas. Já me dei conta que muitas vezes com os meus analisandos acontece a mesma coisa.

 

Significa que uns vão ler esta entrevista e outros vão querer não ler.

Vão passar ao lado. Provavelmente é uma coisa que se faz sem se dar conta. E as pessoas quando vêm sabem quase sempre ao que vêm.

 

A linguagem, a formulação, é essencial num processo analítico. O facto de o francês não ser a sua primeira língua constituiu dificuldade?

Não. O inconsciente é poliglota, não se preocupa muito com isso. Vou contar-lhe uma história da minha análise, muito engraçada. Quando estava ainda em Lovaina, a certa altura contei um sonho que tinha muito a ver com a vida que levava. Era uma história de uma manifestação política dentro de um recinto. Eu falava em francês e não me lembrava como se dizia recinto, e portanto tive de explicar o que era. Então ele disse com um ar muito tranquilo: «Enceinte», que é, simultaneamente, estar grávida. Quando ele disse «Enceinte» percebi porque é que não conseguia lembrar-me da palavra.

 

Aquando do regresso, a sua integração no meio não foi pacífica. Pela herança lacaniana, na altura em clara ruptura com aquilo que era feito em Portugal?

Não, a herança era ainda política, foi no fim de 73. Nos primeiros quatro meses fiz uns biscates e tal, mas praticamente não tive actividade profissional. Só depois do 25 de Abril tive uma proposta para o Ministério da Educação e outra, que me interessou mais, para o Dispensário de Higiéne Mental de Setúbal. Depois comecei a trabalhar na opção e a dar aulas. Por um lado, eles não se reconheciam na minha forma de actuar, eles eram muito mais cautelosos e eu avançava. Por outro lado, eu é que dava a conhecer a Psicanálise, eu é que passava a vida a falar de Psicanálise.

 

Em 79 adere ao PS. Qual era o apelo da política?

Tinha uma intervenção cívica, escrevia muito já, e achei que era importante ir mais além. Aderi ao partido e fui muito militante. Nessa altura não tinha grandes ambições. Aliás, as pessoas é que pensavam que eu vinha com grandes ambições. Só depois, com o tempo, é que tive a ambição de subir no Partido Socialista. Tinha imensa vontade de ser do Secretariado.

 

O que se esperaria é que dissesse que as suas ambições não iam além do horizonte da participação cívica. A assunção do desejo de ter poder, além de desconcertante, é inusual num político. Provavelmente se a sua formação não fosse a psicanálise, habituada a perscrutar as verdadeiras motivações, a confissão não seria possível.

Fiz política a partir daquilo que é a minha formação de psicanalista. Nunca tive ambição de ser Ministra das Obras Públicas, ou qualquer coisa parecida! Quando estive no Parlamento Europeu, tinha muito mais interesse em chamar a atenção, dentro das diferentes questões que eram discutidas, para os aspectos que em geral eram menos óbvios, mas que a minha formação me permitia ver; uma espécie de complemento ou suplemento ao que as outras pessoas faziam.

 

Consegue deslindar essa vontade de poder?

O poder é interessante, na medida em que com ele se pode fazer alguma coisa. Existe em todos nós uma vontade de afirmação que se traduz na vontade de dominar os outros. É por aí que passa, no fundo, a vontade de poder.

 

Ou de não ser dominada?

Também. Mas isso não preciso. Sempre consegui não ser dominada, mesmo que na política as pessoas gostem daqueles que entram no jogo, que não levantam ondas.

 

A subordinação ao colectivo faz-me espécie. Apesar de toda a retórica, o espaço para a afirmação pessoal de vozes dissonantes é praticamente inexistente.

Tenho a impressão que agora está muito pior, e pior que nos outros países. Não tenho hoje em dia ilusões sobre partidos políticos.

 

Mas tinha ilusões?

Tinha, tinha. Quando fiz parte do ex-Secretariado estava convencida que íamos mudar o mundo e o partido. Estava convencida não só disso, como estava convencida que essa era a vontade do Guterres e do Jorge Sampaio e do Vítor Constâncio e de toda a gente que lá estava. O que verifiquei foi que quando o Soares deixou de ser secretário-geral do partido, as comissões nacionais, a que ainda pertenci durante uns tempos, deixaram de ser um sítio onde se podia falar. O tempo do ex-Secretariado era gerido pelo Guterres de uma maneira muito mais interessante. Ele agora esmaga tudo, não é? Na altura ele fazia equilibrismos e negociações. Havia dois extremos: de um lado o Vítor Constâncio, do outro lado eu. Curiosamente acabámos por ser as pessoas que tinham mais respeito uma pela outra, se assim se pode dizer.

 

Estava a pensar como seria, tão bonita e com uma herança estrangeirada tão forte, no meio destes portugueses economistas e engenheiros.

Como vinha de um mundo completamente diferente, muitas vezes não tinha consciência do efeito que podia provocar. Apesar de nunca me ter demitido de intervir, por vezes, quando estava a sós comigo, tinha uma estranha sensação e dizia: «Esta coisa da política é uma coisa de homens. E a gente perturba-os». Já então defendia teoricamente, e depois defendi claramente, que uma das razões pelas quais as mulheres devem estar na política é para fazer intervir a diferença sexual e para fazer intervir na política uma compreensão do humano que tem a ver com a sexualidade.

 

Sentia que a levavam menos a sério por ser bonita e perturbadora?

Por ser bonita, nunca tive essa sensação. Sempre pensei mais que me levavam menos a sério por ser psicanalista.

 

Numa entrevista, citava Freud dizendo que havia três coisas impossíveis: Educar, Governar, Psicanalizar. O que é curioso é que são os três pilares da sua vida.

Porque é que diz Educar?

 

Se bem entendo, além da participação no meio universitário, a sua ligação à política tem que ver com a apetência pela educação, pelo domínio sobre os outros.

É, é. Ainda por cima, o projecto que vem a seguir é fazer uma escola para meninos dos 3 aos 12. Queria estudar como é que hoje se pode lidar com as crianças. Freud provavelmente tinha razão quando dizia que essas são as três coisas impossíveis. São impossíveis porque nunca se governa; quer dizer, governa-se, mas nunca de uma forma ideal, como nunca se educa se uma forma ideal.

 

O seu primeiro curso foi o de educadora de infância. Aos 62 anos o próximo projecto é o de fazer uma escola. Este retorno a um desejo de infância é acompanhado pela pacificação de se encontrar o caminho ou, por outro lado, pela inquietação perante a ideia de morte?

Quando se chega à minha idade já não se sabe quanto tempo se vai durar. Felizmente tenho saúde, não tenho doenças especiais. Posso viver facilmente 20 anos, como posso também morrer de um dia para o outro. Em todos os projectos tenho sempre a ideia de que não é como um projecto aos 20 anos. Mas não me veria dizendo que não tenho idade para ter projectos.

 

A tentativa de pacificação interior e a permanente inquietação são duas premissas constantes na sua vida. No meio do turbilhão do que se revolve, o processo analítico é também ele uma procura de paz.

Exacto. É também uma procura de paz relativamente ao humano. O humano é simultaneamente delicioso e obsceno. O que se passa noutros países, na Jugoslávia ou em Angola, pode de repente passar-se connosco. Acho que a psicanálise reconcilia-nos um bocado com essa parte hedionda.

 

É muito difícil vivermos com a possibilidade de um dia nos descontrolarmos e matarmos. Para um psicanalista presumo que seja sumamente apetecível o paciente que contiver a tal ambivalência. Mas, nas relações pessoais, continua a ser uma dificuldade intransponível?

É um outro capítulo. Tenho uma amiga que vive em França num bairro onde a dada altura começou a haver muitos psicanalistas. Na escola onde era professora havia os filhos dos psicanalistas, que ela dizia serem as crianças com mais problemas!

 

Quando é que esteve mais perto de se encontrar com a paz que procurou a vida toda?

Fui caminhando. Antes de ir para a Bélgica achava que tinha essa paz. Tenho a impressão de que os momentos mais difíceis foram os anos 80 em Portugal.

 

 

Publicada originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2000.