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Anabela Mota Ribeiro

Maria de Sousa

05.03.24

Desconcerta. É subtil. Fina como um alho, como se dizia antigamente. Tudo com um sorriso resplandecente. Maria de Sousa é uma cientista que se diverte como uma criança. Tem 75 anos. Saiu em 1964 para trabalhar em Inglaterra, Escócia, Estados Unidos. Regressou em 1985, foi professora catedrática de Imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. Publicou um livro Meu Dito Meu Escrito sobre ciência e cientistas, com um “monólogo da caneta”.

O livro reúne textos escritos ao longo de anos, apresentados em conferências, publicados em revistas e jornais. Também anotações, dedicatórias, memórias.

Encontramo-nos numa casa que foi a dos seus pais, prenhe dessas e de outras memórias, atulhada de livros, com elementos que suscitam a curiosidade. Uma casa onde veio dar depois de ter saído há cinquenta anos. Desde (quase) sempre o seu lugar é o mundo. Desde, desde sempre o seu lugar é o do que lhe é essencial.

A vida à volta está entre o banal e o precioso. Sem muitas coisas, sem peneiras. Não está aqui para ser famosa. Mas é. Uma referência na área da Imunologia. Um paper seu, de 1966, continua actual.

Tanto fala de um sábio do século XVI como de um aluno que está na Suíça. Não é que tudo seja equivalente, do mesmo saco. O mundo todo é que lhe interessa. Talvez seja por isso que está sempre a fazer perguntas. Umas são assumidas na entrevista, outras ficaram de fora.

Engrossa o coro dos que pedem que não cesse o investimento da ciência, até porque “na ciência não há Saramagos”, escreve no livro. No sentido em que não é possível ao cientista refugiar-se numa ilha, despojado de materiais, sem contexto, e ser o prémio Nobel. “O progresso tecnológico e de equipamentos é de tal ordem que não podemos não os ter. Há que investir. Tem que se pôr dinheiro nos laboratórios! As consequências são terríveis, serão terríveis [se não se investir].”

Coisa surpreendente: tem uma voz de menina, cantante, e não da mulher que é e que pensa imenso na morte.

 

 

Na aula de jubilação, em 2009, disse que não sabia fazer mais nada e que não fez mais do que a sua obrigação. É mesmo assim?

Como é vai fazer uma última aula? Vai falar de linfócitos? Ninguém quer saber disso pra nada. À minha última aula foram as pessoas que trabalham na secretaria, os professores, os alunos, os amigos. Então tem de dizer umas coisas que ponham as pessoas a rir, para que elas saibam que aquilo não é muito sério.

 

O que é que sentiu quando preparou a última aula?

Nada. Insistiram que fizesse. Não sou de últimas aulas. Continuo muito activa. Deu-me a oportunidade de perceber o que é que tinha acontecido. Nunca me considerei professora. Não gosto de ensinar. Gosto de estar aqui a falar consigo. Não gosto de falar a 50 nem a 500.

 

O seu registo é de um para um?

Gosto muito de trabalhar de um para um, sim. Mas é fantástico chegar ao fim de uma vida académica e ver que contribuiu para que haja uns quantos alunos por esse mundo fora. Os que passaram pelo GABBA [Programa Graduado em áreas da Biologia Básica e Aplicada]: mais de cem doutorados. Estão todos bem, muito obrigada, e a fazer coisas interessantes. A pessoa pergunta: o que é que passou por aqui?

 

Uma pergunta diferente: o que é que se passou aqui? Isto – a vida – adquire sentido porque aquelas pessoas foram tocadas por um encontro?

Dá ideia que sim. Algumas dizem que sim. Perdi um ou dois, mas de uma maneira geral estou em contacto com esta gente. A pergunta é embaraçosa para mim... Não vou presumir que toquei estas pessoas todas. O que quero é que não tenham nada a ver comigo. Que se encontrem a si próprias.

 

Abel Salazar foi médico, investigador, professor, pintor. Figura ilustre que dá nome ao instituto onde leccionou. No livro Meu Dito Meu Escrito chama-lhe “o grande desarrumador”. Quem é que a desarrumou a si?

Aonde?

 

Na cabeça. No projecto de vida.

Jorge da Silva Horta, professor de Anatomia Patológica. O modo como ele ensinava. Fazíamos leitura de relatórios de autópsia, e, ao mesmo tempo, sabíamos a opinião que os clínicos tinham desses pacientes em vida. Grandes e famosos clínicos. Viam o doente, achavam que o doente tinha uma coisa, depois fazia-se a autópsia e não era nada daquilo. Os resultados da autópsia eram uma forma extraordinária de aprender que, de facto, não se sabe. O que me vai impressionar sempre é o que não se sabe. Foi a primeira desarrumação.

Depois, quem desarrumou mesmo, foi um homem chamado David Ferreira, que era de um grupo que ia constituir o IGC (Instituto Gulbenkian Ciência). Recrutaram alunos de Medicina para fazer investigação, muito cedo.

 

Cita amiúde Garcia de Orta. É dele “a primeira grande obra de investigação médica portuguesa publicada na segunda metade do século XVI”, diz no livro. Judeu, destacou-se também na botânica e farmacologia, morreu em Goa. O que cita dele: “O que sabemos é a mais pequena parte do que ignoramos”.

Ouça, século XVI! Como é possível que haja quem não saiba quem ele é? Pessoas civilizadíssimas. Os chauffeurs de táxi dizem: “Deve ter sido importante, porque há um hospital com o nome dele, uma rua, uma escola”.

 

Outra constante: as histórias de criança que conta. Como se esse imaginário infantil e esse espanto – expressão que usa muito – fosse um reduto a que está sempre pronta a regressar.

Não é um reduto. Está a falar com uma cientista. Se um cientista perde essa capacidade de se espantar, de se fascinar... Não sei onde está a criança em si... Já morreu?

 

Porque é que está a perguntar-me isso? Surpreende que faça a pergunta com genuíno interesse (o que percebo na sua voz e olhar).

Tenho imensa curiosidade!

 

O que é suposto é que eu lhe faça perguntas a si e que desapareça. Mas mesmo num dispositivo que não o da entrevista – pode ser um jantar ou uma reunião –, por carência emocional ou intelectual, a maior parte das pessoas não quer saber do outro. Quer ser ouvida, não quer ouvir. Tem esta impressão?

Então não tenho? É horrível. Têm tanto para dizer de si próprias... Nem vale a pena estar a dizer-lhes alguma coisa.

 

Respondendo à sua pergunta: tento manter uma relação estreita com a criança que fui. Tento ouvi-la.

Óptimo. É muito importante. A maior parte das pessoas deixou a criança num sítio qualquer. São cépticas.

 

Explique porque é que é tão importante.

Porque as perguntas que as crianças fazem são as primeiras. É a primeira vez que ela vê. Fascina-se – o que é isto? Um adulto já não pergunta. Esta casa: os quadros [que estão à entrada] têm tido um efeito que não queira saber.

 

São quatro e estão virados ao contrário. A primeira coisa que me ocorreu foi que, por pudor, e porque estavam a entrar em sua casa duas pessoas que não conhecia, os tinha virado do avesso.

Os quadros revelam as pessoas. Umas ficam chocadíssimas. Outras não dizem nada. Dois amigos meus, cientistas, disseram: “Deixa ver como são os quadros”. Viraram-nos, e também acharam que era melhor estarem virados para a parede [riso].

 

Qual é a história dos quadros virados para a parede?

Fiquei perplexa. O arquitecto que fez a recuperação desta casa, Nuno Rodrigues, explicou: “Esta casa está viva. Os quadros são naturezas mortas”. Acho um piadão.

 

Sobre a importância de a criança estar viva: uma possibilidade é dizer que isso é conversa de psicanalista. Que importa olhar para trás?

Não tem nada a ver com isso. É história do Chiquinho. Um dia, em Braga, o Chiquinho mostrou à mãe o painel em que Judas está a beijar Jesus. Se vir a história de cima para baixo, fica satisfeito que finalmente alguém beije Jesus.

 

Ou seja, se se começar a ver a história a partir da crucificação, aquele beijo – que nós, os adultos, sabemos ser o da traição – representa um primeiro gesto de afecto.

O homem vem de ser crucificado, carregar a cruz, por aí fora. Acho esta história fabulosa. Ilustra a importância de manter a criança viva. Em ciência é fundamental. Tem de ser capaz de ver o que as outras pessoas não vêem. As outras pessoas vêem com o que sabem. O [Steve] Wozniak e o Steve Jobs, o Hewlett e o Packard, o George Lucas: era miudagem a brincar numa garagem.

 

Isso tem a ver com liberdade e sonho?

Com certeza. E nós temos essa gente. Uma das pessoas que convidei para a apresentação do meu livro foi o Gonçalo Quadros, o homem da Critical Software. Ele e os amigos ainda não tinham acabado o doutoramento e queriam criar uma empresa. Foram a um banco pedir dinheiro. O homem do banco: “Porque é que os meninos não vão fazer a vossa vidazinha arrumada?”. Pode imaginar. O Gonçalo Quadros disse numa entrevista na RTP que o mais importante era ter um sonho e não desistir dele. E hoje têm uma das maiores empresas em Portugal [do sector].

 

Estou a pensar no risco. Em Portugal é difícil tomar riscos.

Não é só em Portugal. O Miguel Ângelo Duarte, que foi meu aluno, e agora é psiquiatra na Suíça, escreveu para o livro um texto sobre o que a escola faz aos mais criativos, sobre a formatação. (Não falo bem português porque estive muitos anos a falar inglês. Não sei bem o que a palavra quer dizer.

 

Ser formatado corresponde a caber numa caixa, a ter um rótulo.

Ser como se espera? Pois.) Você estava a falar de risco: acho que é um dos grandes problemas na Europa. Conhece o livro do Tocqueville sobre a ida à América? Do século XIX. O que o surpreende mais é o facto de a figura do pai não ter a mesma importância que tinha em França. As grande figuras não têm grande peso porque o que as pessoas querem é fazer as suas coisas.

 

Foi em 64 para fora. Era uma mulher, e a questão do género era importante num Portugal onde não se faziam perguntas.

Já estou muito longe de Inglaterra e desse tempo [passaram 50 anos]. A primeira camada de assombro: ligar a televisão e ver o David Frost a entrevistar o primeiro-ministro e a dizer: “O senhor é um burro”. [riso] Não disse, mas praticamente.

 

O impacto foi o de perceber que havia países onde se podia dizer tudo?

Não só. Era possível criticar abertamente, discutir, um dizer uma coisa e o outro estar aberto a responder. A outra coisa que me impressionou: eu saí da faculdade de Medicina e tinha professores que sabiam. Cheguei lá e comecei a conhecer nomes que eu conhecia dos livros. Aqueles que eu achava que de facto sabiam. Os grandes nomes da Imunologia, da Endocrinologia. Mas o que as motivava era o que não sabiam. Achavam que sabiam muito pouco.

 

E a título particular, o que é que a impressionou?

Eu vivia numa família, pertencia a um meio em que as casas estavam arrumadas. Não se deixava que viessem visitas sem a casa estar arrumada. De repente começo a entrar na casa dos meus colegas e amigos ingleses e estava sempre tudo desarrumado. Ninguém arrumava porque eu ia lá a casa. Tudo isto é parte da mesma cultura. Aqui, na Lisboa desses anos, havia o sentimento do “parece mal”. Lá, nada parecia mal. A atitude é contagiosa.

 

Era como se não houvesse o dentro e o fora. Quando o fora chega, apanha o dentro como o dentro está.

Claro. Não há dentro e fora. É-se. To be. Estava a dizer isto ontem a um colega: os cientistas hoje não leram Shakespeare, não sabem Filosofia. A sociedade pergunta: “Faz isso para quê?” As coisas têm de ser para alguma coisa. Sobretudo na Biologia, que está perto da Medicina. [Investigação] para quê? Para tratar doenças, para isto, para aquilo. Para a empresa, para...

 

... ganhar dinheiro.

Ah, sobretudo para ganhar dinheiro. Tudo para. E o importante é perceber porque é que as coisas são [sublinha na voz “é”]. Podem não ser para coisa nenhuma. Há uma pureza de certa maneira infantil em [simplesmente querer saber]. É mais adulto querer ganhar dinheiro.

 

Também há cientistas que querem saber para aparecer nas revistas da especialidade. Para serem famosos.

Aparecer nas revistas da especialidade: todos queremos. Se não publicarmos, não existimos. Não é para ser famoso. O desejo de ser famoso: escapa-me.

 

Escapa-lhe? Se pensar em si, jovem investigadora, na sua primeira descoberta, e no contentamento que isso lhe trouxe, compreende melhor o desejo de ser reconhecido?

Nunca tive esse problema. Pela parte infantil. Eu tinha um entusiasmo tão grande pela descoberta que não me passava pela cabeça a glória, o ser reconhecida. Tinha tanto que fazer... Se a pessoa tem muito que fazer... Muitas dessas coisas vêm de a pessoa não ter o que fazer suficientemente.

Lembro-me de um incidente. Um colega dizia-me com muita tristeza: “O seu trabalho já está nos livros de texto e aquilo que eu estou a fazer nunca vai entrar em livro de texto nenhum”. Impressionou-me.

 

As suas descobertas tinham que ver com a Área T e a Ecotaxis. Pode resumir?

Creio que todos saberão que temos linfócitos a circular. O que muitos não saberão é que os linfócitos não são uma população homogénea, com a mesma pátria. Uns nasceram no timo e saíram para a circulação no período a seguir à nascença (período neontal), outros fora do timo, na medula óssea. Essa distinção não era clara em 1964. Ainda se pensava que talvez viessem todos do timo.

O meu trabalho consistiu na observação de lâminas de cortes de órgãos linfáticos periféricos de ratinhos que tinham tido o timo removido no período neonatal. As minhas observações demonstravam que esses animais timectomizados à nascença ainda tinham linfócitos. E mais, os espaços vazios de linfócitos eram distintos dos espaços onde havia linfócitos, o que significava que as células pareciam saber para onde ir.

Isso foi posteriormente demonstrado como uma técnica importante, a autoradiografia, que permitia seguir células marcadas. As do timo iam para o território a que chamámos área dependente do tim (tda) e que hoje é conhecida por Área T. E achei esse fenómeno de as células saberem para onde vão tão importante que lhe dei um nome: Ecotaxis.

 

Só para rematar a questão: porque é que ficou impressionada com o que o seu colega disse?

Nunca tinha pensado naquilo. A pessoa tem de ter tempo para pensar: como é que vou ter glória? Deve levar tempo. Não acha?

 

Há quem procure a glória para deixar uma cicatriz, fazer uma diferença, inscrever a sua singularidade. Não se trata apenas de vaidade.

Se me projectar para trás, posso dizer-lhe que não tinha nada disso. Realmente estava muito ocupada, e entusiasmada. Só queria estar a fazer aquilo e mais aquilo. E perceber. Toda a minha vida é isso: tentar perceber.

Tenho sorte. O paper é de 1966, vai fazer 50 anos. Não desapareceu. Mas a ciência é feita de coisas que mudam. Quantos cientistas é capaz de nomear?, universais. Em Filosofia, o pensamento pode não mudar. O Aristóteles...

 

Tem ali um livro dele, sobre uma pilha.

Tenho. Pensaram e influenciaram séculos. Na ciência, enquanto estou aqui a falar, a Imunologia está a mudar.

 

Estava a ouvi-la sobre o entusiasmo de fazer. O seu parece o relato de um tempo em que havia tempo para errar. Para demorar a chegar lá. Hoje tudo parece apressado, e está incutido nas pessoas um espírito angustiado, o medo de não conseguir.

É porque as coisas têm de ser para. Não há espaço para as coisas serem. É um problema grave. Esse espaço que acabou de descrever é essencial à descoberta. A grande riqueza e contribuição cultural da ciência é questionar – questionar como se não soubesse a história, e desse modo trazer novidades absolutas. Descobertas. Não é inovação.

 

Fala e modifica a posição do livro que está à sua frente, sobre um banco.

Não é mudar a posição do livro. É deitar o banco abaixo e começar do chão outra vez. Começar de outra maneira. Pôr o banco de pernas para o ar.

 

Queria voltar atrás, 50 anos. Fale-me da rapariga que foi.

Que é que quer que diga? Não sei. Não sei. Não sou capaz de falar dessa rapariga.

 

Que sonhos é que tinha?

Sonhos? Sou muito desinteressante, sabe? Não havia cá sonhos. Havia fazer as coisas. Fazer as coisas que eu gostaria de fazer com os dons que tinha.

 

Os dons: curiosidade, capacidade de trabalho, persistência?

Sei lá. Talvez a capacidade de estar viva. A pessoa estar viva é a pessoa estar atenta. Mas é atenta. E isso ser constante. Depois é preciso fazer escolhas. Vai por aqui e não vai por ali. E quando faz a escolha, acabou. Não volta atrás. É relativamente simples. Mas é desinteressante.

 

António Damásio, que cita no livro, fala sobre a componente emocional da escolha. Gostava de saber da componente emocional das suas escolhas. No fundo, porque tomou um caminho e não outro. E sobre o que foi deixando para trás.

Ahhhhh. Não é deixar para trás, talvez seja deixar para trás. A pessoa decide fazer Medicina e não fazer música.

 

Essa escolha foi aos 18 anos, antes de ir para a faculdade?

Andei no Conservatório no primeiro ano de Medicina. Tentei fazer as duas coisas. Está a ver o que é ir de uma aula de anatomia para uma aula de piano? Entrar no conservatório e ouvir a música...

 

Abramos um parêntesis para falar da música, do peso..., melhor: da aparição que a música representou para si.

Tinha um namorado. Eu tinha quatro ou cinco anos. Ele tinha cinco ou seis. Assim uma coisa. O meu namorado era afilhado de uma senhora que o ensinava a tocar piano. Eu queria também aprender. A minha mãe não queria. De maneira nenhuma.

 

Porquê?

A minha mãe tinha medo das crianças-prodígio. Fiz uma birras e umas fitas tais que aprendi a tocar piano. Depois aconteceu que eu tocava bem. A música era – é, continua a ser – uma companhia essencial. Hum, não sei se é essencial. É muito importante.

 

Ainda se lembra do nome do namorado?

Claro. Você não se esquece nunca do nome do seu primeiro namorado. Valha-me Deus. Esqueceu-se, do seu?

O miúdo não queria particularmente aprender a tocar piano. Eu comecei a aprender com a madrinha dele. Chegou uma altura em que esta professora, que era uma prima nossa, achou que já não podia ensinar-me. Que eu devia ir para outro professor.

 

Porque é que não foi pianista? Porque é que, no momento de decidir, preferiu a Medicina?

Há uma fase na vida em que a pessoa deixa de ser a criança que toca piano e fala francês (essas coisas assim) e passa a ser um ser social. A música dava-me um prazer brutal, mas só me dava a mim um prazer brutal. Não dava mais nada a mais ninguém. Ao passo que com a Medicina esperava vir a servir os outros. Cumprir uma função. Uma função social.

 

Havia algum médico na sua família?

Não.

 

De onde vem a Medicina como projecto de salvação?

Não sei. A família não queria particularmente. O meu pai nunca se importou que eu fizesse o que queria. A minha mãe é uma mãe daquele tempo. O que preferia era uma filha que casasse, lhe desse netos. Todas essas coisas.

 

Ninguém na família lhe deu um impulso para seguir um caminho independente?

Não. Zero. Ao contrário. Tem filhos? Se tiver filhos, quando tiver filhos, se quiser que o miúdo faça uma coisa, diga-lhe exactamente o contrário. [riso] Uma motivação: fazer uma coisa diferente daquela que esperam de si.

 

Isso reflecte um espírito arisco...

Arisco, muito arisco, horrorosamente arisco. Se corre muito bem, como foi o caso, vai para fora. Como bolseira. Nada de especial. Mas o ir embora, mesmo, é fracturante.

 

Por “ir embora, mesmo” refere-se à ida para os EUA depois dos anos que passou em Inglaterra e na Escócia como bolseira. O que é que alimentou a decisão de ir?

Ter dentro de mim uma coisa que não sei explicar. O que motiva é que a pessoa não pode deixar de fazer aquilo que faz. É esquisito, mas é verdade.

 

Dá a ideia de ser uma escolha fácil. Impõe-se com tanta força...

Parece fácil e pode não ser. O mais difícil talvez tenha sido a saída da Escócia para os EUA. Fui muito feliz na Escócia. Era tudo muito sossegado, estável. Fui porque queria fazer coisas com pessoas. Tinha sempre feito com ratos, ratinhos.

 

Dava-lhes nomes, aos ratos? Simples curiosidade.

[mudança de tom] Não. Mas falava com eles. Quando tinha que os matar. Ah, sim, tinha que lhes explicar que iam morrer por uma boa causa. Sempre tive muito respeito pela vida. Mesmo dos ratos. Nunca me ocorreu dar-lhes nomes.

 

Um nome, como uma cara, corresponde a uma identidade. Percebo que fosse mais difícil matá-los se lhes desse nome, uma forma de afeição.

É verdade. Voltando ao ser social: tanta coisa, tanta descoberta, tantos papers – tudo com ratos. Então agora vamos ver se isto tem significado nos seres humanos. A melhor investigação clínica em Imunologia estava a ser feita nos EUA. Pumba. Fui.

 

Pelo meio esteve noiva. Estava a perguntar-me pelas coisas que deixou para trás e que a fizeram balançar. As de foro pessoal desempenharam um papel central?

O que não fiz? Não. Numa altura da minha vida tomei a decisão de não casar e não ter filhos. Tenho um filho emprestado. Morreu a mãe, que era minha amiga, e fiquei com aquele a quem chamo “afilhoado”. Bem. Um dia, uma grande amiga americana diz-me que vai ser avó. Foi a primeira vez que voltei atrás e pensei: “Grande burra”. Tomei a decisão de não ter filhos, mas não pensei que não ia ser avó. [riso] Entretanto o meu afilhoado teve filhos. Tenho uns netos emprestados.

 

A escolha tinha de ser essa por causa do Portugal de então, do espaço que era dado às mulheres?

Já não estava cá quando decidi que não ia casar nem ter filhos. Esta escolha é feita tarde. Tinha 30 anos, 32, talvez. “Ou é agora ou não é.” Decidi que não era. Fui por outros lados.

Tenho vindo a perceber o que eram para uma mulher aqueles anos 60 em Portugal. À distância (as memórias póstumas são possíveis dada a grande distância dos anos) vim a perceber... a minha mãe.

 

Perceber a sua mãe?

Foi uma coisa que me levou imenso tempo. A minha mãe teve muita dificuldade em perceber-me a mim. Compreensivelmente. Agora compreensivelmente. Na altura não achava nada compreensível. O que eu queria era a minha vida, não era estar aqui, nesta rua.

 

Acabou por se mudar para esta casa que era a dos seus pais. É onde estamos a fazer a entrevista.

Veja lá, estou cá, agora, e percebo. É um bocado tarde. Foi sempre conflituosa esta relação entre o que uma mãe daquela geração esperava de uma filha única e o que eu queria. Os meus amigos americanos vinham cá, falavam com a minha mãe e ficavam doidos. Não percebiam porque é que a minha mãe não estava muito contente com a filha que tinha. Mas não estava. Ou não estava ou não deixava transparecer que estava.

 

Estava focada na narrativa da investigação e essa era incompatível com casar e ter filhos. Era isso?

Sim, era. Isto acaba por dar no “não saber fazer mais nada” e ao “ser muito desinteressante”. Conheço-me bastante bem, vivo comigo há muitos anos.

 

Como se fosse um sacerdócio? Mulheres como a helenista Maria Helena da Rocha Pereira, mulheres que se destacaram nas suas áreas...

Na verdade têm todas esta história.

 

Não casaram nem tiveram filhos. Não encaixaram no que a sociedade do seu tempo esperava delas.

O sentido do não encaixar: nunca o tive. Só nos conflitos com a minha mãe o sentia.

 

Quando diz que era preciso compreender a sua mãe está a dizer que é preciso compreender aquele tempo?

Exactamente. Quando tomei a decisão de ir para Glasgow, percebi que se eu fosse casada e o meu marido fosse para Glasgow, e eu fosse para Glasgow porque o meu marido ia para Glasgow, estava tudo bem.

Acho graça quando fala da narrativa e do paradigma e dessas coisas complicadas... [riso]. Falta plataforma.

 

As palavras da moda.

É. Depois a vida é muito mais simples. É como um rio. Se vir a origem dos rios, impressiona. A origem do Tejo ou do Volga é uma coisinha. Nem se percebe como dá aqueles rios enormes. A imagem do rio é a da vida. A única escolha do rio é que não tem escolha: vai por ali fora, por onde a montanha deixa. No rio humano fazemos escolhas. Tirando isso, gosto mais da metáfora do rio do que da narrativa.

 

Para situar: esta casa é a da sua infância? Qual é o percurso?

A casa da minha infância é no Alto do Dafundo. Onde vivia com os meus pais numa casa alugada. O prédio tinha um terraço fantástico. A minha infância é nesse terraço de onde se vê tudo. Ao fundo do rua vivia a prima do piano. Essa não era uma casa alugada. Era um palacete. Eu detestava esta casa onde estamos. Daqui não se vê o rio. A minha mãe achou-a. Fiz parte do curso de Medicina já daqui. Mudámo-nos em 61 ou 62.

 

No livro faz referência aos três transportes que tinha de apanhar do Alto do Dafundo para a faculdade.

Ia de eléctrico até Algés (não ia a pé porque saía de casa às seis da manhã), tomava o comboio até ao Cais do Sodré, e por fim um autocarro até Santa Maria. Mais tarde tive carro.

 

Quando vai para o Porto em 1985, depois dos EUA, é a primeira vez que vive no Porto? Há imensa gente que pensa que é a sua cidade.      

É, as pessoas pensam isso. Mas nunca tinha vivido no Porto. O Porto foi giríssimo. Perguntei à minha mãe: “Está contente? Já estou em Portugal”. “Sempre é mais perto do que Nova Iorque.” Mas ainda não era esta rua [riso]. Só vim a percebê-la, coitadinha, quando tinha 80 anos. Os últimos anos da vida dela foram muito felizes. Eu percebi-a e ela percebeu-me a mim. Percebeu que afinal eu não era tão má quanto isso.

 

O que é que fez com que a percebesse?

Oh, crescer. Perceber o contexto das mulheres no século passado. Olhe, comecei a ter mais tempo. Não para ser famosa, mas para perceber a minha mãe.

 

O seu pai, era o grande compincha?

O meu pai, o meu pai era um tipo bestial. Era da marinha, primeiro oficial de marinha.

 

Devia ser bonito de farda.

Já lhe mostro! Era muito bonito. A minha mãe era uma figura dominante e não lhe agradava o oficial de marinha. Convenceu o meu pai a ser piloto da barra de Lisboa. Sempre estava aqui mais perto. É dos Açores. Deixou a ilha e fez a carreira da marinha mercante. Havia nele... a narrativa. A narrativa de ir fazer a coisa dele e deixar para trás a ilha e a família. Era tão ousado num jovem como foi ousado na jovem ir para fora. Por isso o meu pai sempre percebeu bem estas idas e narrativas (como você lhes chama).

 

É como se fosse um enredo. Andamos a inventar enredos, de livros e filmes, em nós mesmos.

É o que torna a vida muito interessante. Lê a vida como se fosse um enredo. Eu leio com os rios a correrem. É o Pirandello que tem a peça de teatro Seis personagens à procura de um autor. Andamos a contar a mesma história. No caso do cientista, a história mede-se pelo que deixa escrito. No caso do académico... Penso que criei espaço para que as pessoas fossem elas próprias.

 

Tem fama de ser uma orientadora feroz.

Pois sou. Se a pessoa tem qualidades. A maior parte das pessoas que tive a sorte de quererem trabalhar comigo tem muita qualidade.

 

Sempre teve esse sorriso? Tem um sorriso de contentamento. De quem está bem com a vida.

Estou bem com a vida, estou.

 

Quais foram os grandes momentos atravessados pela angústia ou pela dor?

A morte. Mortes. Depois de as pessoas morrerem, tudo o resto é sorrisos.

 

Pensa muito na morte?

Na minha? Agora penso imenso. Faz-me impressão. Se eu morro de repente ficam aqui estas coisas... Tenho de tomar conta. Saber para onde é que isto vai.

 

Tem 75 anos.

Nem isso. Lá chegarei, em Outubro. Sou Balança. Nasci em 1939. É importante porque é quando começa a guerra. O meu pai estava fora, nos cursos da marinha, quando nasci. Tenho encontrado coisas aqui em casa que a minha mãe manifestamente não deitou fora. Um diário de bordo. O meu pai não era um homem de grandes conversas nem de grandes escritas. No dia em que começou a guerra escreveu: “Hoje a Alemanha invadiu a Polónia”. Stop. Já lhe morreram muitas pessoas?

 

Nunca teve vontade de desistir?

Não. Isso nunca. É curioso. Explique lá? Não sei. Você gosta muito de uma pessoa no mundo? E sabe porquê? Se gosta mesmo, não sabe. Há uns de quem a gente gosta porque é alto e porque é magro. E depois há um de quem a gente gosta e não sabe porquê.

 

Estou muito surpreendida que faça tantas perguntas.

Porquê?

 

 

Publicado originalmente no Público em 2014