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Anabela Mota Ribeiro

Maria Filomena Molder

05.03.24

Maria Filomena Molder usa recorrentemente palavras como “espanto”, “choque”, “ódio”. Que palavras se espera ouvir de um filósofo? Para que serve a imperfeita Filosofia (para ir ao encontro do título de um livro seu, A Imperfeição da Filosofia)? Outro dos seus livros: O Absoluto que Pertence à Terra. Na adolescência ela não quis pertencer a lado nenhum, quis nascer de si própria. Nasceu em 1950. Não foi bailarina. Fala como quem levita, e ao mesmo tempo tem peso. Desencadeia o choque. Demoramos a recompor-nos. 

Talvez seja boa ideia começar por dizer que fui três vezes aluna de Maria Filomena Molder (duas na licenciatura, uma no mestrado). E que precisei de tempo para fazer esta entrevista. Nem sempre estamos preparados para certos encontros, autores, compreensões. Ela esperou mais de 20 anos para compreender textos do artista Eduardo Chillida ou para reler Wittgenstein, por exemplo. Temia que a admiração me toldasse.

Esta entrevista é uma surpresa para mim também. Eu não conhecia esta pessoa que ultrapassou a sua mudez, que recorda a escola no Portugal de Salazar ou a voz das suas avós. Reencontrei-a quando fala de Dante, que nunca conheceu a mãe – o que impressiona muito – ou quando cita Santo Agostinho para dizer que até os corações bons têm em si um abismo.

Deu-se a coincidência de esta entrevista acontecer no último dia em que foi professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova. Maria Filomena Molder reformou-se a 31 de Outubro. Foi uma professora que odiou a escola. É por vezes uma pessoa agreste que ri como uma criança.

Em termos formais, esta é provavelmente a mais estranha das entrevistas que fiz. Os excursos são longos e todas as portas vão dar a todo o lado. Na aparência é descosida. Optei por transcrevê-la tal qual ela fluiu. Muito pouco ficou de fora. Em todo o caso, as próximas páginas resumem três horas de gravação. Não fiquem surpreendidos se chegarem ao fim com uma sensação de espanto e alienação.

 

 

Pode falar-me dos encontros que foram decisivos na sua vida? Com autores, com pessoas. Pergunto pelo que é definidor.

Não vou falar dos íntimos.

 

Porquê?

Porque, como são íntimos, quando falamos deles estamos a comunicar um segredo. A pessoa decisiva, da qual não vou falar, é o Jorge [Molder, o marido]. As pessoas que apareceram na minha vida, e qua são as estrelas da minha vida, são as minhas filhas [Catarina e Adriana]. Os meus netos [Vicente e Benjamim] são “a criança eterna”. Foi uma coisa que o Jorge disse quando nasceu o Vicente, mas que se aplica aos dois. Percebemos que os netos estão tão adiante de nós... Com os filhos não vivemos a criança eterna. É estranho.

 

Explique melhor isso.

A criança eterna é: a infância retorna. Não só retorna em cada um de nós como retorna porque alguém nasce. Mas quando os filhos nascem, para nós – falo por mim – não é a criança que retorna. É o mistério daquele aparecimento. É uma dádiva. Não temos maneiras de dar conta do preenchimento, da plenitude que isso é. Os netos: é como se estivessem num mundo que já não nos pode pertencer. Eles são os nossos guias; e ao mesmo tempo fazem retornar qualquer coisa que desde sempre existiu, que estava connosco, e que é a nossa infância sem preocupação. Com os filhos há a preocupação.

 

A preocupação em relação ao seu destino? Fala da responsabilidade.

Exactamente.

 

Foi espantosa (no sentido de causar espanto) essa regressão à infância por via dos seus netos? Há quanto tempo não se olhava na sua infância?

Acho que cada vez mais, e desde há alguns anos, talvez desde sempre – mas não na juventude... Sempre pensei que morria com 20 anos e que depois disso era quase indecente estar vivo. Acho que já disse isto, até, numa entrevista à Maria João Seixas. Era uma coisa tão consciente, quando tinha 15, 16 anos... Pensava: “Ir viver mais do que até aos 20 é ir viver como eles”.

 

“Como eles”?

Eu tinha um desprezo entranhado pelos adultos. Que perdi. Ainda bem. Não me lembro de esse desprezo ter continuado depois dos 20 anos.

 

Depois do Jorge.

Conheci o Jorge quando tinha 18 anos. Talvez tenha sido o Jorge a provocar essa alteração.

 

É o amor que nos dá uma ideia de futuro.

Sim. Se bem que eu não pensasse em futuro. Na relação amorosa não há nenhum futuro. É sempre agora. Mas certamente que havia, sem estar a dar por isso, a ideia de continuação e a ideia de dia seguinte, e do dia seguinte ao dia seguinte.

 

Isto era a propósito da sua infância.

E juventude. A juventude é uma espécie de amnésia da infância. Queremos não ter pai nem mãe. Queremos não ter nascido de ninguém. Queremos ter nascido de nós próprios. Sempre pensei que isto tinha a ver com a Filosofia. Na Filosofia há uma intuição equivalente a poder começar do vazio, do nada; ou poder começar fazendo um intervalo em relação a tudo o resto. Tenho a ideia de que na juventude, ao contrário do que diz o Qohélet (o livro do Eclesiastes), é “tudo de novo sob o sol”. Mas implica momentos destrutivos tremendos. A amnésia da infância é um acto destrutivo. Para poder finalmente nascer. Não tendo dívidas para com ninguém. O exercício crítico desenvolve-se tremendamente, em relação a pais, a amigos, ao mundo, e pode ter, quase sempre tem, elementos autodestrutivos – como por exemplo, duvidar da existência do mundo. Só na juventude podemos perguntar-nos se a nossa vida não é um sonho.

 

Na infância, não fazemos essa pergunta?

A criança não pode fazer essa pergunta porque a distinção entre o sonho e a realidade na infância não está dada, e quando começa a fazer-se não se estabiliza senão no momento em que se dá o eclodir da juventude. Para a criança é tudo real.

 

E é tudo possível.

É. Um bocado de madeira pode ser um amigo. Na juventude também se criam procedimentos desse tipo, quase mágicos, mas acompanhados de forças que desarticulam e desmancham tudo aquilo em que acreditávamos.

Mas, se a infância não retornar de qualquer maneira, essas forças vão devorar-nos. É como um pessimista ou um céptico radical a engolir-se a si próprio.

 

Muitas pessoas experimentam esse recuo à infância na infância dos seus filhos. No seu caso, o hiato foi maior, e ele fez-se com o nascimento dos seus netos.

Na vida das minhas filhas também vi a infância retornar. Mas acho que compreendi menos do que no caso dos meus netos. Agora relembro e estou muito próxima da infância delas. Enquanto estavam infantes, não estava tão próxima. Se bem que estivesse sempre a olhar para elas como essa sensação de milagre que tinha acontecido. Sempre, sempre, sempre. Claro que um nascimento é sempre um milagre, mas no caso dos netos..., não sei se é só a desresponsabilização. É como lhe disse: eles estavam adiante de nós num mundo que já não nos pode pertencer. É que os avós já não estão tão novos, já começaram a cortar vínculos. A entrada na velhice é cortar esses vínculos. É diferente do corte da juventude.

 

É diferente, mas não deixa de ser cortar vínculos.

Sim. Por isso há pessoas que na velhice ficam jovens, e crianças. Talvez esse corte dê origem a uma nova espécie de liberdade. Por exemplo, ser mais indiferente às vozes do mundo.

 

Isso significa, também, ter menos medo? Uma das coisas que caracterizam a infância e a descoberta sem limites é a ausência de medo.

O jovem é destemido. O jovem não quer ter medo. A criança é outra coisa.

 

O adulto está cheio de medos.

O adulto está cheio de medo.

 

Da rejeição, mais do que tudo?

Não é só isso. Estar vivo implica ter medo. Vi um filme sobre o Fellini, Sono un Gran Bugiardo, [O Grande Mentiroso], em que ele diz que o medo é uma força animal. Dizendo tudo: é uma força da vida. E que sem medo ele não teria feito nada. Que o medo é uma espécie de aguilhão. Posso ler-lhe uma coisa?

 

Claro.

É uma letra de um fado, que é mesmo muito importante para mim.

 

Nunca a ouvi falar de fado, ou de interesse pelo fado.

É surpreendente, sim. Fui uma jovem que recusava tudo o que lhe tinham dado. Incluindo a língua portuguesa. Era uma época em que só ouvia cantar rock inglês e americano. É assim: “Medo da morte, não consigo ter/ mas outros mais humanos e banais/ medos que a gente tem mesmo sem querer/ como o medo que eu tenho de morrer/ só por querer viver um pouco mais.” É o fado Já não Estar, da Manuela de Freitas e do José Mário Branco, que ouvi cantar pelo Camané. Isto é a descrição da vida humana. De uma vida humana que já está muito compreendida.

 

Dissecamos alguns versos?

“Medo da morte não consigo ter”: é estranhíssimo, porque do que toda a gente tem medo é da morte. Na verdade, eu tenho medo da morte. Acho que a Agustina [Bessa-Luís] não tinha medo da morte. Ou talvez tivesse medo da morte desta maneira que está aqui descrita. No último romance que escreveu, A Ronda da Noite, um adolescente acompanha a avó àquele maravilhoso cemitério de Agramonte [no Porto]. Tinha sido uma criança com aspectos invulgares. A primeira palavra que aprendeu foi “merda”. Antes da palavra “mãe”. Acho que a Agustina estava muito irritada com a velhice. A velhice pode tornar-se uma devastação irrespirável, e isso envenena a vida toda. Aquele é um texto de alguém que sabe isso. Depois de o ler pensei que a Agustina não poderia escrever mais.

 

A palavra que Agustina usa na primeira entrevista que lhe fiz, e falando da velhice, é “repugnante”. E fala de Sara, a personagem bíblica, que, velha, dá à luz.

É isso, é repugnante. Claude Lévi-Strauss diz que a velhice é uma devastação. Ele fala de uma distinção entre um eu-virtual e um eu-real. O eu-virtual tem uma ideia do todo, o eu-real só diz: “Não consigo fazer.” Na velhice tudo se passa nesta conversa, entre o eu-virtual e o eu-real.

Voltando aos versos do fado: eu gostava de ter medo de morrer por querer viver um pouco mais. Por amor à vida.

 

Desde quando tem noção de que tem medo de morrer?

Desde que as minhas filhas nasceram.

 

Ou seja, desde que tem medo de não viver um pouco mais.

Talvez seja isso. Comecei com o medo de andar de avião justamente nessa altura. Agora também tenho pouco, por acaso. Gosto de estar na terra, com os pés assentes na terra. Mas sempre sonhei voar. Sempre sonhei ser paraquedista. Era cega como uma toupeira, como é que podia ser paraquedista? [riso] Era impossível.

 

Era o prazer da dança, da levitação, do movimento?

Talvez. O meu sonho era atirar-me do ar. Eu dava saltos, quando era criança..., se a minha mãe soubesse que dava saltos daquela altura, ficaria doente. Saltava dos pontos mais altos. Muito pequena, com cinco anos.

 

Já com a ideia de um dia saltar de um avião?

Nunca tentei. Agora já é tarde. Duas reacções possíveis: “Que desastre”. Ou então dizer: “É assim”. Ou ainda: “Se calhar eu nunca quis saltar”.

 

Se tivesse de facto querido, teria saltado mesmo.

Não acha? Mas eu via tão mal. Com nove anos já via tão mal que não faz ideia.

 

Medo de cegar, teve?

Agora tenho medo de cegar. Li há poucos anos uma coisa que não vou esquecer sobre um homem que cegou quando era pequenino. Estava deitado na cama, acordou e disse: “Avó, não abriste a janela”. Estava simplesmente cego. Desde essa criança que tenho medo de cegar.

 

Antes disso, não?

Não. Quando ia à igreja com os meus pais, olhava para as velas e fazia brincadeiras. A luz crescia, decrescia. Eu achava que tinha um poder mágico com os olhos, ainda antes de saber que tinha a miopia. Via muito mal, ficou pesado. Pesado, mas fazia parte de mim.

 

Goethe disse no leito da morte “mehr Licht, mehr Licht”, “mais luz, mais luz”. Para já, há a imagem da luz por oposição à escuridão e ao apagamento. Por outro, há o desejo de viver mais um pouco para ver essa luz. Goethe foi também um encontro fundamental?

Foi. Não foi directo. (O Jorge comprava os livros todos ou quase todos. A mim, os livros vinham-me cair às mãos. Claro que quando fiz a tese [de doutoramento] sobre Goethe procurei muita coisa, mas as coisas mais valiosas caíram-me todas nas mãos.) Conhecia a poesia de Goethe, traduzida pelo Paulo Quintela. Tive imensa curiosidade pelo Fausto. No entanto só comecei a interessar-me pelo Goethe através do Lévi-Strauss, que no Finale de l’Homme Nu traça uma arqueologia do Estruturalismo e aponta textos que foram importantíssimos para ele. Entre eles, a Metamorfose das Plantas de Goethe.

 

Que está no coração da sua tese, intitulada O Pensamento Morfológico de Goethe.

Decidi estudar melhor Goethe por causa disto, o que é estranho tratando-se de um doutoramento em Filosofia. Tive a sorte de ter como orientador o Fernando Gil que compreendeu muito bem a minha escolha porque também tinha interesses profundíssimos nas questões morfológicas. Escreveu textos maravilhosos que têm que ver com uma maneira de considerar a realidade a partir de um princípio de crescimento formal.

 

Comecemos pelo princípio. Em que circunstâncias foi aluna de Fernando Gil?

No primeiro mestrado que houve em Portugal, em Filosofia, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Chamava-se pós-graduação, aliás. A primeira reacção foi de desilusão. Mas essa reacção foi-se transformando em entusiasmo porque os temas que Fernando Gil tratava e a maneira menos cosida de os tratar abriram perspectivas surpreendes das quais não estava à espera. Se bem que eu tivesse tido, na licenciatura, um professor, que não era de filosofia, que me ensinou o que era o sábio livre, o Vitorino Nemésio. E numa cadeira de opção, no quarto ano, fui aluna do David Mourão Ferreira (professor admirável, uma das pessoas mais afáveis que conheci, sem nunca deixar de ser crítico).

 

Teve a sorte de ter óptimos mestres. Uma fortuna.

Não tenha dúvida. Também tive no primeiro ano o Borges de Macedo, outra figura inesquecível. Era o professor severo, implacável, um fisionomista da História; compreendia tão bem uma época como se a desenhasse com traços de pena. Lembrei-me da pena porque ele tinha um ar de poder ter nascido no século XVIII.

Agora usa-se uma palavra “interactividade” como uma varinha de condão. É feitiçaria de quarta qualidade. Um puro logro. O estudante está ávido de ouvir. Ouvir o que ainda não ouviu. E depois, se puder, se for capaz, dizer: “Tenho uma dúvida”. Às vezes estamos a receber um choque que vai mudar a nossa vida e não temos dúvidas. Estamos só a tentar não soçobrar.

 

Ainda não estamos preparados para a dúvida, é isso? Ainda não conseguimos organizar os efeitos do choque?

Ainda não temos palavras. Só queremos continuar a ouvir, absorver o mais possível. Para digerir aquilo, é preciso tempo. A treta da interactividade, é preciso destruí-la.

O Borges de Macedo: uma vez chamou uma colega que eu achava muito inteligente e perguntou-lhe: “Porque é que veio para esta disciplina?” “Foi para ter uma ideia mais exacta sobre a medida do homem”. Sabe o que é que ele respondeu? “Mais lhe valia ter comprado uma fita métrica.”

 

Resposta gelada.

Foi uma grande lição. Porque aquilo era uma frase feita. Ficámos petrificados. A pessoa em questão ficou petrificada. Mas também não lhe aconteceu mais nada. Essas petrificações momentâneas, se não se transformavam em actos de punição, eram treinos para perder o medo, para enfrentar o outro.

 

Eram treinos à paulada.

Não à paulada. Mas eram treinos que nos deixavam sem pinga de sangue. Tínhamos 17 anos. Nessa aula podíamos fazer perguntas. Um colega fez uma pergunta muito longa sobre Estruturalismo. O Borges de Macedo não interrompeu e depois respondeu: “Lamento, mas nunca estudei o Estruturalismo”. Alto lá. Estava ali a passar-se uma coisa a que nunca pensei assistir.

 

O professor dizer “não sei”?

Sim.

 

Isso passou-se antes do 25 de Abril, quando o professor sabia tudo. Imagino o espanto.

Era mais espantoso. Mas ainda hoje um professor dizer “eu não sei” pode causar surpresa num aluno. Em geral o professor fica com medo de não saber e disfarça.

O maravilhoso Vitorino Nemésio, que é um dos poetas mais extraordinários em língua portuguesa, e que li pela mão do David Mourão Ferreira, tinha programas na televisão – imagine como era a televisão. Como é que ele dava as aulas? “Escrevam num papel um tema do qual gostavam que falasse”. Nós próprios púnhamos os papéis dentro dos bolsos, que eram cambados, como os sapatos, porque punha muitas coisas dentro deles. Depois tirava à sorte uma tirinha de papel. “Kierkegaard, Diário de um Sedutor. Muito bem. Vamos falar do Diário de um Sedutor”.

 

Parece um exercício muito livre.

É a liberdade universitária no seu sentido mais elevado. Nunca mais voltei a encontrar, nem acho que seja possível encontrar. A cadeira chamava-se História da Cultura Portuguesa. E era. Em 1969/70.

 

Estou ainda a pensar no espanto de ouvir “não sei”. Uma das vezes em que fui sua aluna, ouvi-a dizer que ia tratar um texto de um artista basco, Eduardo Chillida, que tinha lido pela primeira vez há mais de 20 anos. Ouvi-a dizer que precisou de mais de 20 anos para estar preparada para o ensinar.

Foi uma amiga que me passou o texto. Achei-o maravilhoso e não o compreendi.

 

Como é que são precisos mais de 20 anos para pegar num texto que nos impressiona? Ainda mais quando temos a impressão de que os filósofos mais rapidamente chegam a compreender as coisas indecifráveis, impenetráveis. Há textos para os quais não estamos prontos? Há encontros para os quais não estamos prontos?

Não estamos prontos, mas esperamos um dia estar prontos. Sabemos que não podemos largar aquilo. Eu queria perceber o que ele estava a dizer e não conseguia – “O espaço é uma matéria rápida. A matéria é um espaço lento”. Guardei esse texto. Guardo muitas coisas para melhores dias.

 

Houve um instantâneo reconhecimento de que aquilo a perturbava, de que aquilo era seminal, mas a terra ainda não estava pronta. É uma boa imagem?

É, completamente. Precisava de me preparar. Preparar-me era de vez em quando pensar naquilo sem saber. Chillida impressiona-me muito. Só vi as esculturas pequenas. Tenho esperança de ver as de arte pública. Houve uma exposição na Gulbenkian há muitos anos, que o Jorge organizou [Jorge Molder foi director do CAM]. Até o conheceu pessoalmente. Eu não tive essa oportunidade. Reli o texto e disse: “Tenho de tentar não o largar. Como o cão não larga o osso”. Fiz uma conferência a partir daí. E o seminário Problemas de Arte Contemporânea foi sobre Chillida e o vento, por causa dele e do filme do Joris Ivens [Uma História do Vento]. O vento tornou-se muito, muito, muito importante para mim.

Goethe guardava textos para desenvolver 30, 40, 60 anos mais tarde. É muito impressionante. Sobretudo porque é um poeta.

 

E os “poetas sabem ver na escuridão”, diz um verso do Choro Bandido de Chico Buarque. 

É verdade, sabem ver na escuridão. E Goethe é o poeta da circunstância. Os poemas não nascem do nada. Nascem de uma coisa que esteve aqui. Acho que não foi por mimese [que esperei 20 anos para trabalhar Chillida]. Acho que é um género meu – uma coisa infantil e que na idade jovem ficou – gostar da estranheza, ficar apanhada por uma coisa da qual não estava à espera. Na juventude li duas ou três obras de Nietzsche, o Nascimento da Tragédia, o Zaratustra, muito depressa. Outra coisa infantil. É como comer avidamente. Lia sem parar e não compreendia nada. E não desistia. Só voltei a ler verdadeiramente Nietzsche muito tarde. Foi um autor que não procurei.

 

A atitude habitual é a da rejeição da estranheza, a procura do conforto. A sua atitude desde a infância era a oposta.

Sabe porquê? Porque era uma criança muito solitária. Até aos cinco anos, não. Depois pus-me a fazer perguntas muito irritantes para a minha mãe, as minhas irmãs mais velhas. “Porque é que a colher se chama colher?” Não encontrava que entre a palavra colher e a colher houvesse uma relação evidente. Claro que esta pergunta não tem resposta imediata, a não ser dizer que é uma convenção – o que não chega para nada. A vida humana é toda convenção. E ficamos com a batata quente nas mãos. Sempre tive uma sensibilidade muito grande, talvez por ver mal, à voz, ao som. Ouço muito bem. Adorava a voz da minha mãe. A voz das minhas avós, em particular a voz de uma delas.

 

Como é que é as descreveria? Estou a pedir uma descrição delas a partir da voz. 

A voz da minha avó Luzia era a voz da compreensão total. Avó materna. A voz da minha avó Zé era uma voz muito atenta, preocupada, e que tinha qualquer coisa (estou agora a ver isso...) de infantil. A voz da minha mãe é uma voz muito bonita. Podia ter uma doçura enorme. Também podia ser agreste. A minha mãe era muito bonita e ainda é. E quando era pequena achava o meu pai o homem mais bonito do mundo. A voz do meu pai também era muito bonita. Era uma voz discreta, silenciosa, que não se queria dar a conhecer.

 

A voz da sua mãe mudou muito com o passar dos anos?

Não. A voz da minha mãe soa sempre com graça, sobretudo se está bem disposta, e está quase sempre bem disposta [riso]. Cantava muito bem. Cantava canções muito antigas, que eram da juventude dela, dos filmes portugueses. D’ A Canção de Lisboa, sabia-as todas. Havia uma que a Beatriz Costa canta, sozinha, que é linda, muito nostálgica. Percebia que a minha mãe ficava muito comovida quando a cantava. Costurava e cantava quando costurava. Tem umas mãos de ouro. O meu pai também tinha umas mãos de ouro. Duas pessoas com mãos de ouro, e eu não as tenho.

 

Tem um gosto particular no vestir. Um gosto que me parece estar ligado aos tecidos, às formas...

É instintivo. Criança, como sempre acontece nas família em que há muitas irmãs, vestia os vestidos das minhas irmãs. Sou a terceira. Somos quatro raparigas. A minha irmã mais velha tem mais nove anos do que eu, a minha irmã segunda tem mais seis, e a minha irmã mais nova tem quase menos dois. Os vestidos eram lindos de morrer. A minha mãe sempre teve muito gosto em se vestir. Inconscientemente devo imitá-la. Agora. Enquanto adolescente não queria que soubessem que eu existia. Vestia-me de maneira a que ninguém desse por nada.

 

A que ninguém desse por si.

Eu não queria que soubessem que eu existia, que era rapariga, coisa nenhuma. As raparigas vestiam saias, usavam pouco calças. Eu usava saias um pouco envergonhada. Porque não queria ser ninguém em particular.

 

Não queria ser rapaz? Era uma rejeição da feminilidade?

Eu era uma maria-rapaz. Antes de ficar uma menina solitária, subia às árvores com os rapazes, brincava com rapazes. Solitária e leitora. Era muito atleta, magrinha, um aranhiço autêntico. Muito leve. A minha mãe também se tornou levíssima.

 

Que idade tem a sua mãe agora?

Vai fazer 93 no dia 23 de Novembro. Quando anda na rua, de costas, parece uma rapariga. Anda sempre de calças. Quando vai comigo, como sou muito protectora, quero que me dê o braço. Mas vai todos os dias sozinha ao café, muito ligeira.

 

Esse fechamento em relação ao mundo, de que fala, na adolescência, tinha consigo uma zanga?

Não, não era uma zanga. Era descobrir que eu tinha deixado uma zona, um lugar, onde as distinções não estavam muito bem estabelecidas. Éramos todos miúdos e miúdas. Também brincava com as meninas, mas adorava brincar com os rapazes. Correr, fazer coisas perigosas. As crianças fazem imensos exercícios de limites. Eu andava à roda até cair para o chão. A partir da segunda classe, comecei a ser uma criança solitária. Odiei a escola.

 

Aprendeu a ler na escola ou já sabia?

Não sabia ler. Aprendi na escola. O meu pai comprava o Cavaleiro Andante, que eu devorava. Não sabia ler, mas percebia tudo o que lá estava. Não imagina como são importantes as imagens que vi quando era pequena. Imagens poderosas, que me acompanham e alimentam muitas coisas que escrevo e que digo. Vêm daí, de eu não saber ler.

 

Porque é que odiou a escola?

Porque a escola, na primeira classe, era um lugar de crueldade. Para saber como viviam as crianças naquele tempo... Era uma escola oficial. Só não tinha fome porque ia almoçar a casa e a minha mãe me mandava um lanchinho. Chovia na escola. A sala de aulas era gelada. A professora não deixava as crianças ir à casa de banho quando precisavam. Crianças de seis anos. Só me lembro de uma colega, Isabel, a filha mais velha de Jorge de Sena. Foi minha colega nesta escola.  

Na segunda classe fui para um colégio fino de freiras irlandesas. É melhor nem falarmos delas... Mas tive uma professora maravilhosa, a da quarta classe. O que fez que acabasse a escola primária reconciliada.

 

Nunca se adaptou completamente à escola?

Nunca. E as minhas filhas também não.

 

É espantoso que mais tarde tenha sido professora e que a sua vida tenha sido na escola.

É verdade. Nunca pensei ser professora. [riso] Odiei grande parte das professoras.

 

Porquê esse ódio?, palavra forte que repetiu?

Não leve tanto a sério essa palavra. É uma maneira de dizer, como adorar. Em criança não podia dizer “adorar” porque só se podia adorar Deus. Eu achava que a profissão de professora embatia na rebeldia que era eu.

 

E na liberdade que almejava?

Sim. Reconciliei-me com esta sensação através de algumas professoras. Isabel Leonor. Sem eu ter sido aluna dela, foi quem me iniciou nos segredos da arte. Georgete, professora de português. Tenho uma dívida para com ela. Clara Nunes, professora de História, um encontro inesperado.

 

Rebelde e arisca: contra quê?, e porquê?

Eu não queria que me domassem. Só queria aprender aquilo que eu queria. Lembro-me de estar no final de Setembro em casa da minha avó materna, na rua de Campo de Ourique onde passavam os eléctricos. Pensar que ia voltar à escola..., fiquei presa de angústia.

 

Ao mesmo tempo, o que é que representou para si aprender a ler?

Não sei o que é que representou. Sei que ler é aquilo que gosto mais de fazer. Para além de dançar! [gargalhada] No liceu andei no Rainha Dona Leonor. Mudou de nome e passou a ser Rainha Dona Amélia quando tinha 12 anos. Não gostava de estar sentada na sala de aula, não gostava de responder, não gostava de dizer o meu nome. Nunca gostei muito que me perguntassem: “Como é que se chama?”, e que eu tivesse que responder, por obrigação. Adorava que nos tratássemos por “coisa” ou “coisinha”.

 

“Ó coisinha?”

Sim. “Ó coisinha, empresta-me a caneta.” Coisinha era muito afectuoso.

 

Era uma negação da individualidade, do nome.

Era uma senha secreta de entendimento. Uma vez uma disse: “Não me chamo coisinha”. Pensei: “Que pessoa tão estúpida”. [gargalhada] Pensando agora nisso: não há essa negação. Porque as coisas e as coisinhas eram todas diferentes. “Coisinha” era nosso.

 

Era um mundo mágico?

Era. 

 

Uma recordação feliz da infância, que é que lhe ocorre?

Com quatro anos já ia ao cinema. A minha mãe também. O meu pai, não. Os meus avós maternos iam todos os dias ao cinema. Para mim, a isso chamava-se “uma vida de sonho”. Mas só ia aos sábados. Tínhamos que levar a cédula para provar que tínhamos seis anos. Eu queria ir de qualquer maneira; com quatro anos tinha que ir com cédula emprestada. E a minha mãe achava muito bem.

 

Via que filmes?

Eram filmes pensados para crianças. Ou eram filmes que as pessoas pensavam que as crianças podiam ver. Filmes que não esqueci, como “A Família dos Malucos”, que o Jorge já procurou por todo o lado. 

 

Como é que era o filme?

O que me lembro: chegava o pai [a casa]. Era uma casa cheia de coisas modernas. Carregava-se não sei onde e a porta abria. Como por milagre, os filhos saltavam lá de dentro. A telefonia não funcionava bem. O [pai] dava um grande salto no sofá e a telefonia começava a funcionar. Só sei que não sonhei porque o Jorge também se lembra deste filme. Também vi filmes passados e repassados, nos quais estava sempre a chover. Pensava para comigo: “Porque é que no cinema está sempre a chover?”.

 

A sua filha Adriana disse-me numa entrevista que o Jorge pegava nela e na irmã e as levava a ver filmes a preto e branco. Iam ver Sunset Boulevard de Billy Wilder e outros filmes que não eram para crianças. Ela falava disso com grande encantamento.

Viam tudo. As minhas filhas sempre adoraram cinema.

 

Quis ser alguma vez actriz ou cineasta? E artista?

Eu quis ser escultora. Para imitar a Isabel Leonor que também tinha o curso de escultura. Até fiz uma pequena peça.

 

Como é que era?

Era um homem que está preso. Que tem as mãos presas atrás das costas. Moldei-a em barro e cozi-a e pintei com tinta preta. Tinha uns 10 centímetros. Não fiz mais nada. Tentei partir pedras sem qualquer saber. Tenho um grande defeito: não quero aprender através de alguém que me diga: “Faz-se assim”. Queria descobrir. Por isso é que posso esperar 20 anos. Não quero que me digam: “Não percebes, mas é isto”. É uma machadada em mim... Não tem nada a ver com orgulho. Nada, nada, nada. Tem a ver com uma autodescoberta que acabava de perder.

 

Porque é que não foi artista? Seria expectável que fosse artista.

Talvez, talvez. Escolhi Filosofia, sabe porquê? Porque não sabia o que era. Não é que eu soubesse o que era a arte. Tive um grande choque com a exposição de 1965 “100 anos de arte francesa” (que incluía imensos artistas que não eram franceses, mas a França é que os acolheu), organizada pela Gulbenkian. Pela primeira vez vi arte abstracta. Antes disso, num museu de arte contemporânea, que se chama agora do Chiado, exibiu Canto da Maia. Fiquei imensamente impressionada. Para uma miúda de 15 anos aquelas esculturas correspondiam a uma compreensão do fundo da vida. Tinham uma delicadeza que essa rapariga não encontrava facilmente.

 

Foi professora de Estética. Nas aulas partia frequentemente de artistas e poetas que punha em relação com filósofos como Walter Benjamin e Kant. Observar, olhar parecem verbos fundamentais. 

Tenho um espírito muito observador, mesmo quando não dou por isso. Observação distraída. Mas a captar imensa coisa. Além das coisas que leio, é isso que dá lastro às aulas e ao que escrevo. Falar é muito importante. Para uma pessoa que começou a juventude tão fechada, é estranho que agora goste tanto de falar.

 

Há uma longa metamorfose.

Há. Essa metamorfose aconteceu com as minhas filhas. Comecei a falar quando elas nasceram. (Tendo conhecido o Jorge houve uma mudez que desapareceu. Mas também havia uma mudez no Jorge que se ligava com a minha mudez.) Fui professora logo a seguir à Catarina nascer.

As primeiras experiências de ser professora no liceu não foram felizes. Fui obrigada a falar. No segundo ano já foram felizes. Acho que foi a minha filha ter nascido. E depois a minha segunda filha ter nascido.

 

A Catarina nasceu em que ano? Tinha quantos anos?

O que posso dizer é que a Catarina é mais velha dois anos e meio que a Adriana. [gargalhada] Digo que as minhas filhas são as estrelas da minha vida e é a maior das verdades. Tenho um lado muito infantil de viver noutro mundo. Há uns meses disse assim: “Naquele momento, parecia-me mesmo que estava noutro mundo”. A Adriana perguntou: “Naquele momento?” [riso] Tenho aprendido tanto com as minhas filhas...

 

Tendemos a confundir admiração e amor.

Não faz ideia do que elas me ensinam. Em relação ao que faço, em relação à vida. Eu tenho um lado inadaptado que nunca venci.

 

Que foi sendo menos agreste.

Menos reactivo. E mais armado. Tenho aprendido a armar-me em relação à vida, em relação aos outros. Este mundo [com elas] não é fechado. As minhas filhas são as pessoas mais ligadas à vida em tantos sentidos. Isso é um grande dom que me foi dado. Porque eu não sou assim. Só talvez tenha sido assim nesses anos em que era maria-rapaz. Só então estava à solta.

 

Voltemos ao que queria ser. E porquê a Filosofia e não a arte quando a arte seria um caminho evidente de comunicação com o mundo.

Eu queria era dançar. Os meus pais não me deixavam aprender a dançar. As bailarinas tinham má fama. A dança não era uma actividade que eles gostariam que eu tivesse. Mas desde pequena eu adorava dançar e cantar. Este desejo tem a ver com uma imagem do Cavaleiro Andante. De uma mulher rebelde, irlandesa, que está vestida com um vestido comprido e que tem sapatinhos com fitinhas. Essa imagem está sempre dentro de mim. A minha irmã mais velha arranjou uns sapatos desses. E os sapatos não me serviam.

 

Aos 15 anos foi aprender.

Muito tarde. E com 17 fiquei doente.

 

Uma doença nos pulmões. Parece uma passagem de um livro do século XIX.

É verdade. Chamava-se primo infecção [tuberculosa]. Tive de passar todas as tardes desse ano deitada na cama, quando vinha da faculdade, e tinha de tomar uns medicamentos que me fizeram buracos na língua e na garganta. Depois fui a um médico, ainda não tinha casado (casei muito cedo), que me disse: “É um medicamento que está proibido”. Davam-nos isso nos serviço médico-sociais da universidade, em grandes saquinhos, transparentes... Além disso fiz dezenas de radiografias e tomografias no sanatório D. Carlos I (actual hospital Pulido Valente). Tenho disso uma memória traumática. Depois os buracos desapareceram, deixei de tomar os medicamentos.

 

Nunca pensou escrever um romance? Ser escritora era um caminho?

Romance, não sei. Posso escrever muito. Mas a minha escrita pertence a uma zona em que o rigor do conceito e a musicalidade da língua conhecem formas várias de fusão.

 

No fundo, estou sempre a perguntar porque é que não foi uma artista, como o Jorge é um artista, a sua filha Adriana é uma artista; a Catarina é cantora lírica. A Filosofia não é o mesmo que a arte ou a poesia.

Não tem nada a ver. A Filosofia é muito destrutiva, mas acho que quase consegui passar incólume.

 

A arte é construção?

É, como a escrita. Voltando atrás, só aprendo o que consigo aprender, o que me deixa ser livre, o que descubro que me pertence e eu não sabia. Tudo o que me é adverso, tudo o que me quer negar, não aceito. Só tenho consciência disto agora que falo consigo. Quer dizer, às vezes tenho uma grande resistência que ignoro. Tenho armas que não são as armas habituais. Não quis estudar certos filósofos, ou comecei a estudar e abandonei-os. Mesmo que os ache excepcionais, não quero conhecê-los bem.

 

Uma vez, numa aula, referindo-se a Heidegger, disse: “Ele não é da minha família”. Alguns autores e artistas, fala deles com uma proximidade que se usa para falar de pessoas da família.

É um bocadinho isso. Da minha família fazem parte Nietzsche, um mestre tardio. Goethe é o primeiro. Walter Benjamin vem logo a seguir, quase ao mesmo tempo. Quando o comecei a ler achei que eu era da família dele, que ele era da minha família. Como a Hannah Arendt. A Hannah Arendt a fumar no filme [homónimo]... É como eu a imagino. E pensar é como ela faz.

 

Como é que é?

Pensar é um acto solitário. Não se está a dizer nada a ninguém. Está-se deitada na cama ou sentada a olhar para nada. Isso tem de ser transmitido de alguma maneira, quando se ensina. Ela é um ser livre.

Os medievais diziam uma coisa maravilhosa: diziam que o ar da cidade torna os homens livres. No campo, na verdade, eram só corveias [trabalho gratuito que os camponeses deviam prestar ao senhor feudal]. Claro que na cidade também havia outras formas de domínio [do senhor sobre o servo], mas o ar era livre. A universidade era o lugar da liberdade. Ainda soube um bocadinho o que era a vida universitária. Hoje alguns alunos ainda sabem. Alguns professores também. Poucos.

 

E com isto voltamos aos professores que a marcaram.

Tive um mestre: Oswaldo Market. Provocava nos alunos uma grande admiração pelo domínio que tinha dos autores que estudava (quase todos do Idealismo Alemão, e também gregos). Organizava as aulas com um modelo policial. Havia um enigma a desvendar, um crime a resolver. Era assim que eu o via, e o Jorge também. Sentava-se como um professor alemão. Lia as aulas que tinha escrito. Os alemães em geral fazem assim. Punha sobre a mesa sete pacotes de cigarros de marcas diferentes e fumava deles todos durante a aula. Coisa que sempre adorei.

Também tenho de falar do padre Cerqueira Gonçalves, uma pessoa muito livre. Perguntou-nos qual era o filósofo de que mais gostávamos, logo no segundo ano. A minha resposta foi Heraclito. “Heraclito?” E olhou-me com muita atenção. Corrigia as provas, punha um comentário e devolvia-as. Eu, a partir de certa altura, na faculdade, devolvia as provas. Depois percebi que havia regras sobre isso. A vida universitária tornou-se um espaço de tacanhez. Descobri cedo que o excesso de regulamentação é um sintoma de medo ou angústia. Medo do risco.

 

A primeira vez que fui sua aluna ensinou Dante em Filosofia Medieval frisando que não se tratava de um texto filosófico mas poético. Isto ocorre-me na sequência do que disse sobre o risco e a formatação da universidade hoje em dia. Como é que chegou a esta escolha?

Dante é uma descoberta muito tardia. Há muitos anos que leio [o poeta Osip] Mandelstam que escreveu um texto sobre Dante. Li-o e interroguei-me: “Então e eu nunca li Dante?” Apareceu uma tradução portuguesa que era bilingue e com a rima seguindo a regra da tercina do Dante. O primeiro verso rima com o terceiro da primeira estrofe, o segundo verso da primeira estrofe rima com o primeiro da segunda estrofe. Sempre! Catorze mil versos. Que o Vasco Graça Moura tenha conseguido fazer isso..., só posso fazer uma saudação de admiração.

Substituí um colega, que é um grande professor de Filosofia Medieval, num semestre sabático. Comecei por não me sentir capaz de o substituir.

 

Já tinha dado aulas de Filosofia Medieval.

Sim, nos primeiros anos em que dei aulas. Aulas práticas. Lia textos de autores que eu admirava e admirarei até ao fim dos meus tempos. De Plotino, dado a importância que o pensamento neoplatónico tem na Filosofia Medieval. De Santo Agostinho. De Santo Anselmo.

 

Leu Plotino e outros autores no original, em grego, em latim?

Eu tinha umas lambidelas de latim. Também tinha aprendido grego no liceu. Até tive 20. [riso] Mas não sei grego para ler Plotino sem uma edição bilingue. Voltei ao grego e ao latim na faculdade. Mas aquilo exige muita dedicação e eu estava a ler também Hannah Arendt e Walter Benjamin, e Wittgenstein vinha a caminho. Decidi-me a aprofundar o alemão. Sou como o Rainer Maria Rilke que queria aprender latim, e à segunda ou terceira lição desistiu e disse: “Sou como um homem cheio de fome, que tem um prato suculento à frente e não tem colher para comer. Acham que vai começar a fabricar a colher? Não, vai engolir a sopa como puder”.

 

Sabe falar bem alemão?

Não. Mas para ler os autores que eu quero ler, mesmo a poesia, consigo.

 

Dante escreve em italiano, e não em latim, o que é novo. E pede a um poeta que admira muito, Virgílio, que o acompanhe no Inferno e no Purgatório. Virgílio não chega a entrar no Paraíso. De certa maneira, quando lhe perguntei pelos encontros decisivos, estava a perguntar-lhe pelas pessoas que lhe deram a mão, que a acompanharam na viagem.

Pessoas que foram guias... Que me salvaram, em certos momentos, dos perigos... O Nietzsche ensinou-me que há uma coisa que é muito fácil fazer, que é caluniar as aparências. É um mestre. Li Wittgenstein quando estava grávida da Catarina, com 22 anos. Li o Caderno Castanho e o Caderno Azul. Li-os inteirinhos sem saber nada de Wittgenstein. [em surdina] E também não percebi nada. Mas não parava de ler. Queria perceber, por isso é que continuava. Só recomecei com Wittgenstein nos anos 90. Pela primeira vez li o Tratactus. Foi um choque sem igual. O Dante foi uma descoberta das mais extraordinárias. É um ser muito secreto, nem se conhece a letra dele. Nunca conheceu a mãe. Impressionou-me também que se interessasse tanto por política, chegando a governar Florença. Desde criança que conhece os exílios, as matanças entre famílias, o sangue a correr na rua. Ele próprio foi proscrito, nunca mais regressou a Florença. Conheceu a cidade humana como um inferno. Isso aproxima-se tanto da nossa vida...

 

E Dante é do século XIII.

Agora parece tudo filtrado. [O filósofo Giorgio] Colli diz que pomos uma máscara na violência. O artista é aquele que tira a máscara. Mais vale a violência nua do que a máscara que converte a violência em muitos programas. Como diz Santo Agostinho, o abismo existe em todos os corações. O abismo chama por muita coisa, mesmo nos corações bons. Chama pela crueldade, pela vergonha que estamos a infligir aos outros, e que Nietzsche diz que é o pior que podemos fazer.

 

Kafka também diz que a vergonha é o pior dos sentimentos.

É. Infligir aos outros esse sentimento é imperdoável. Não tenho nada a ideia do perdão sem limites, e acho que há uma distinção entre bem e mal. Temos de procurá-la todos os dias. Aí sou arendtiana. A faculdade de julgar à maneira kantiana é a grande força da nossa existência pensante. Kant foi um autor decisivo desde sempre. Nas minhas aulas, e até às últimas, era difícil não o referir. O meu próximo livro chama-se As Nuvens e o Vaso Sagrado – Estudos sobre Kant e Goethe.

Surpreendeu-me também a liberdade de Dante. Que um cristão como ele tenha posto o Siger de Brabante [filósofo medieval] no Paraíso... deve ter sido uma das razões por que passagens da Divina Comédia estiveram no Índex. Era um averroísta, contrário aos ensinamentos da igreja católica. Lembra-se do princípio da Divina Comédia?

 

Lembro-me de Dante perdido na selva oscura, sim.

“No meio do caminho da minha vida senti-me perdido numa selva escura.” Dante ama o sexo. É claro como água. É atacado do pecado da luxúria. E quando está diante de Beatriz pela primeira vez é como um menino envergonhado diante da mãe. Não ousa olhar para ela. E quer voltar à Terra. Isto é tudo tão forte, tão poderoso...

Aceitei substituir o meu colega [em Filosofia Medieval] com a condição de trabalhar a Divina Comédia. Foi um privilégio para mim. E foi um privilégio saber que os meus alunos leram Dante em italiano. As provas só tinham os versos em italiano (que me perdoe o Vasco Graça Moura).

 

Quem foi o seu Virgílio? Já falámos de imensas pessoas que a tocaram.  

Ah, não sei. Não sei escolher. Alguns estarão em primeiro lugar, mas não sei o nome do primeiro dos primeiros. Também lhe digo que sou muito rebelde. [riso] Sou como uma criança que não quer obedecer – à sua pergunta.

 

A sua maior insegurança foi sempre qual?

Dar-me a conhecer.

 

 

 

Publicado originalmente no Público em 2013