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Anabela Mota Ribeiro

Maria José Nogueira Pinto

04.09.14

Uma tarde, na Baixa. Zezinha recusa-se a posar. Insistimos que será interessante fotografá-la entre as pessoas, prometemos que não será ostensivo. Cede. Eu peço “autorização” para mostrar os sapatos, evidenciar o seu lado “coquette”... Conto que estava em Paris quando Ségolène se anunciou disponível para as presidenciais, e que o Libération enchia uma página interior com os seus sapatos – lindíssimos. Está a ver?, se fosse um homem não faziam isso – resume Zezinha. Com razão.

Talvez esta seja uma conversa entre mulheres, onde se fala de lenços Hermès e de paixões avassaladoras. Procuro, com indesmentível avidez, o nexo de um tempo, de uma história improbabilíssima. De quando foi refugiada, emigrante. De quando vendeu enciclopédias no Brasil para sobreviver. De quando apanhou o filho bebé em Madrid, levado pela sua mãe, avó do menino.

O que conduziu a mais nova das manas Avillez a estes caminhos? Que têmpera é a desta mulher que, em menina, contava com o afecto seguro de pais e tias e avós e 12 empregados que viviam na casa do Campo Grande? Zezinha, a católica, fala com brilho desse tempo em que não teve eira nem beira. Sintetiza dizendo que isso a ajudou a ser mais atenta, que é sempre preciso estar atento. Que pode ser profissionalmente melhor por ter estado do outro lado do espelho. «Já viu que oportunidade extraordinária?».

Seria possível falar assim com um homem? Dificilmente. Não estou certa de conhecer entre os homens quem falasse de si, daquilo que verdadeiramente o arrebata, do tom wagneriano da sua vida, como Zezinha o fez. A pergunta que fica é se o vivem. E talvez a resposta seja: que muitas mulheres não o vivem.

Maria José Avillez Nogueira Pinto tem 54 anos, é casada com Jaime Nogueira Pinto, têm três filhos. Licenciou-se em Direito. Teve muitas vidas, como os gatos, e nelas foi sendo directora da Maternidade Alfredo da Costa, Subsecretária de Estado da Cultura, líder do Grupo Parlamentar do CDS-PP. É vereadora da Câmara Municipal de Lisboa.
Segue-se a aventura da sua vida. Segue-se a aventura que é a sua vida.

 

 

Começo por um fio que trazia consigo quando esteve num campo de refugiados na África do Sul. Onde estavam escritas três coisas...

Fé, Esperança e Caridade? A minha vida tem mais coisas além desse momento...

 

Esse momento é especial, e sobretudo improvável, se pensarmos no curso que a sua vida seguiu. O que estava contido nesse fio são pilares a partir dos quais a sua vida se ergue.

Eu gostava que fosse... S. Paulo disse que quem não tiver caridade, nada terá. Entendendo a caridade como virtude teologal. É um espírito de serviço, de despojamento. É a ideia da vida como uma passagem, de que nada é nosso...

 

Ao longo da sua vida passou por momentos derradeiros, no sentido de ter de fazer escolhas grandes. Nesses, é mais fácil perceber quais são os nossos tesouros?

É. A vida está cheia de quinquilharia. As nossas vidas hoje são uma loja dos 300. Não há muito tempo fui viver para Madrid um ano e meio. Aluguei um apartamento mobilado – não ia com tarecos... –, e vivi outra vez com quase nada. Foi um grande sossego.Enfrentar a vida como ela é, é a coisa mais bonita que há. Com altos e baixos, cair, levantar. Quando a gente passa por momentos muito grandes, cai tudo. Ficam os afectos.

 

Li uma entrevista antiga na qual falava da paixão retumbante pelo seu marido. Esse encontro mudou a sua vida.

Mudou. Era muito nova, tinha um namorico há algum tempo, mas tive a lucidez de perceber que era uma pessoa que, não só ia mudar a minha vida, como ia levar-me com ele. Eu não fiquei na minha vida, fui-me embora com ele.

 

Deve ter sido inquietante abandonar uma vida. Abandonar um conforto material, um quadro de previsibilidade, um destino que estava traçado. Pressentiu que tudo podia esboroar-se?

Saí voluntariamente. Mas nesse período de diáspora, já foram as circunstâncias exógenas a mim, não foi um acto de vontade. Ainda tive um terceiro momento, quando estive doente... Isso fez-me confirmar o bom que é estarmos na vida sem projectos detalhados para nós próprios. Fui sempre uma pessoa com muitas saudades do futuro. A vida é sempre melhor do que imaginamos.

 

Quando é.

E quando bate, não bate mal. Porque, lá está, estávamos na loja dos 300 e era preciso sacudir, atirar fora. Só quando levamos um encontrão é que isso acontece. Por exemplo: ter estado doente, ter sido refugiada, ter sido emigrante... Foram grandes oportunidades. Trabalhando muito nessas matérias, se conseguir trabalhar um bocadinho melhor, é porque sei o que isso é. Sei o que é chegar a um campo de refugiados, sei o que é não ter eira nem beira, sei o que é ser um objecto da História, sei o que é estar à procura de emprego e não falar bem a língua e ter medo de enganar... Estou muito grata a Deus por ter dado essas cambalhotas todas. Cá estamos, não é? A alternativa a isso era... muito maçadora.

 

Ora aí está a razão pela qual muda de vida.

Gostei muito da minha infância e da minha adolescência, com os meus pais e as minhas irmãs. Mas essa dimensão, essa mundivisão, foi o Jaime que ma deu. Imagine que não me tinha ido buscar e levar? Maçadoríssima, a minha vida...

 

Que livros lia na adolescência? Ele “apareceu para a levar” e isso encaixa num romance que se devora...

Sou uma romântica... Na família fazem imensa troça: agora chamam-me “técnico-romântica”. A leitura é um meio privilegiado para irmos viver outras vidas. Talvez muitas das leituras da adolescência fossem essas coisas. Ou do romance político. Li muita coisa sobre a Segunda Guerra Mundial, sobre a Resistência, e pensava: «Nunca vou estar em nada que se compare com isto...».

 

Pensei num filme, quando pensei na sua história: «Senso», de Visconti.

Ah, muito bem. É um grande elogio.

 

É a história de uma aristocrata italiana, de olhos claros, que se trai a si mesma, as suas convicções, uma causa e um país, porque não consegue evitar a sensação de ser arrebatada. Mais do que a paixão pelo oficial austríaco, penso que não consegue recusar a ideia de...

Saber o que está para lá! Se não for, não vê. Embora eu não tenha tido esse conflito. A minha mãe é uma mulher muito inteligente e prática. Fui criada por várias mulheres extraordinárias. Uma tarde fomos, com a minha tia e madrinha, para o quarto conversar. A minha mãe fez um teste: como é que sabe que este é o homem da sua vida? Disse assim: «É o homem da minha vida porque se o encontrasse daqui a uns anos ia-me embora com ele. O que era uma grande chatice... Naturalmente, já estava casada e ele já estava casado... Assim, vamos agora, que não fazemos mal a ninguém». Não foi nada contrariado. Quer dizer, acharam um bocado “sui generis”...

 

Porque é que adoptou o nome do seu marido? Entre as irmãs, foi a única que passou a usar o nome do marido.

É diferente. A Maria João, antes de casar, já estava no Diário Popular, já assinava coisas com o nome dela. Eu não assinava nada. Tinha 19 anos, era estudante. Era “a Zé”. Depois, a minha mãe também se chama Maria José... Encontrei ali a minha identidade: esta que tenho até agora. O meu pai ficou zangadito com aquilo... Usar esse nome também significa que me passei para aquele lado.

 

Diz isso com orgulho?

Digo com gosto. Não é uma questão de orgulho. A vida que tenho hoje é muito marcada por ter sido com o Jaime...

 

Politicamente, é o que quer dizer?

Em todos os aspectos. Desde as geografias onde vivemos, às coisas que nos interessam, que fizemos, os filhos que temos

 

Comecei por aquilo que parecem balizas da sua vida: Fé, Esperança e Caridade...

Tudo isto são actos de fé, e de esperança.

 

As áreas de que se ocupa na sua vida profissional coincidem com estes pilares. E parece que elas teriam sido as mesmas, ainda que não tivesse encontrado o seu marido.

Não, não. Houve imensos constrangimentos que se transformaram em grandes oportunidades. Eu seria advogada, e não fui. Porquê? Porque interrompo o curso por causa da ida para África. Porque quando venho tenho de começar a trabalhar. Fui essas coisas todas, que começam por resultar de uma falta de estatuto.

 

Falta de estatuto?

Sim. Chego aqui, sem emprego, o meu marido sem emprego, numa situação em que precisávamos de deitar a mão a tudo.

 

Seria impensável, por uma questão de orgulho, pedir(em) ajuda à sua família?

Sim. Isso é péssimo. A não ser numa situação de doença. De resto, cada um tem de andar por si. O que me apareceu na altura foi fazer fichas para o Dr. António Barreto.

 

Quando teve de procurar trabalhos mais humildes...

Nunca me fez confusão nenhuma. Nunca. Explica-se pouco às pessoas que a vida não é o que queremos: é o que é. E que nos resta uma coisa fundamental: sermos capazes de gostar disso.

 

Conte a história das fichas.

Ainda não estava formada. Eles eram todos investigadores, o Pacheco Pereira, a Filomena Mónica, o Vasco Pulido Valente, o Medeiros Ferreira, o Manuel Lucena. Eu era a rapariguinha que fazia as fichas... Conto sempre esta história porque é elucidativa de quem é o António Barreto. Um dia eles estavam a discutir e não resisti e meti a minha colherada. Aquilo prendeu-lhe a atenção, conversámos mais e ele disse: «Escreva o livro». Mas eu não sou formada, não posso ser investigadora... «Não interessa, escreva o livro».

 

É daí que resulta o «Direito da Terra».

As fichas, que era um trabalho pago à hora e de copiar os Diários da República, passado um ano e tal era um livro. Se não fosse fazer as fichas, não tinha feito o livro. Logo, as fichas foram muito importantes.

Isto passou-me em 1978/79. Tinha os meus dois filhos e nem 30 anos. O que lhe estou a dizer é que um caminho normal não comporta isto. Troquei um caminho normal por uma coisa incerta, que teve os seus momentos complicados, mas que permitiu sair do programa.

 

Dito de um modo abreviado, o que se comentava é que era uma menina bem que se tinha tresmalhado, porque se tinha apaixonado...

Não tenho essa ideia. Sempre tive muitos amigos de esquerda. Eram talvez os mais próximos. Em termos de opções políticas, aquele foi um momento de ruptura, e as pessoas estão contra ou a favor... Pôs-nos de lados diferentes. E isso magoou alguns. Mas quem tinha a ideia da menina bem eram as pessoas que me conheciam muito mal. Estudei no Liceu Rainha D. Leonor, andei na escola primária do Campo Grande. Nós tínhamos uma preceptora de francês, uma professora de piano, mas ia tudo para a rua. Brinquei com toda a gente.

 

A sua formação, se não fosse muito sólida, não lhe permitiria, mais à frente, ser “raptada”, e gostar disso; bem como fazer face a tudo aquilo a que teve de fazer face. É preciso auto-estima.

Isso sim. Tivemos uma educação que não era do nosso tempo. Com muita liberdade. Também com muita fantasia. O dinheiro não contava nada; era considerado feio falar de dinheiro. Havia espaço, que era um grande luxo. Havia 12 pessoas a trabalhar em minha casa, pessoas que ficaram muitos anos. Eram um afecto seguro. A auto-estima vem toda daí: de nos sentirmos amados e de um espaço com muita liberdade. Ali detestava-se o preconceito, o “parece mal”, a “ideia das aparências”.

 

Entre as três irmãs, é a mais católica?

É difícil dizer o que é ser mais católico. Mas Deus dá-nos essa liberdade: a de nos irmos embora e voltar. O filho pródigo... «Deixarás as 99 ovelhas para ires buscar a ovelha tresmalhada». Deus ama mais a ovelha tresmalhada.

 

Foi por isso que foi embora! Como que um teste: os seus pais ama-la-iam, mesmo tresmalhada.

Os meus pais posicionaram-se sempre como pais que amavam os filhos que se podiam tresmalhar. Nunca ouvi dizer: «Só cá ficas se, ou só gosto disso se...». Não tresmalhei nada. Os meus pais acharam muito bem. Tenho a certeza que a minha mãe partiria com o meu pai e nos deixaria bem entregues. E fazia muito bem.

 

Fiquei surpreendida ao saber que deixou o seu filho cá, quando partiu para África com o seu marido. 

Deixei. Onde eu fazia falta era ali, e não aqui. Fazemos falta nos dois lados, mas isso é que são as rupturas: temos que escolher entre males menores. Tudo o que determinou a nossa vida seguinte foi muito a partir daquele momento. Eu tinha de estar ao lado dele. Éramos combatentes do mesmo combate, soldados do mesmo exército. O meu filho não precisava de mim: precisava de ser alimentado, acarinhado, e estava com duas avós, uma tia-avó, duas tias... Estava muito bem. Sofri imenso, imenso. Mas não tinha dúvidas que era lá que tinha que estar, e foi lá que estive.

 

Aí, era ainda a romântica que quer estar no coração da História?

Não, não. Aquela história era a minha. Nós casámos com comunhão de adquiridos, e aquilo era a minha história, tanto quanto a dele. Ele nunca me pediria para eu ir. Mas tomei essa decisão, e penso que achou importante que eu fosse.

 

Quanto tempo esteve sem ver o menino?

Seis meses. Ele tinha um ano. Eu não voltei [a Portugal, para o apanhar]. Quando o vi no aeroporto de Madrid ele tinha mais seis meses.

 

Foi daqui para Angola, daí para a Namíbia... E não podiam entrar em Portugal.

E depois, África do Sul, Pretória. De Pretória vim buscá-lo a Madrid, para onde a minha mãe o passou como se fosse meu sobrinho, com o passaporte dela. Foi terrível. Mas não podemos ser moles, entrar em auto-compaixão. Todos os dias no mundo acontecem coisas terríveis, não é?

 

Com certeza. Mas há umas que resultam da nossa escolha, e outras nem tanto...

Mas a toda a hora temos de escolher, e não temos a verdade absoluta. Escolhemos o melhor que podemos. Reunificação familiar, também sei o que é.

 

Surpreende-me que fale de tudo isto...

Porque não? Não gosto de falar tantas vezes, mas todos querem saber esta história! Há coisas mais interessantes a dizer.

 

Então, diga.

Falo destas coisas, como falei da paralisia facial. Reduzimo-las à sua verdadeira dimensão. Isto é a minha pequena história, não estou a dizer que seja importante. Quando nasci ou quando tinha 14 anos, não imaginava que me pudesse acontecer. Mas aconteceu e tomei-a como...

 

Um livro que se lê sofregamente?

Exactamente. Li tudo o que se lia. Do Hemingway ao Alves Redol, ao Huxley.

 

Uma heroína como a Bovary deve ter feito as suas delícias. O que há em comum entre as duas é um desejo imenso de contrariar o tédio.

Tocou num ponto... Vivi uma circunstância que se deveu ao facto de estar viva num país que teve uma ruptura histórica. Recebo refugiados, recebo imigrantes. Ao longo da minha vida, só tive uma oportunidade de estar do lado de lá. Não diga que isto não é óptimo! A minha vida é uma coisa wagneriana porque a faço wagneriana. Porque sou assim. Tenho horror ao tédio, ao “já sei o que vou fazer para o ano”. Por isso é que na política não hei-de ter grande futuro... Não tenho projectos.

 

Porquê?

A vida ensinou-me que não vale muito a pena. E pensar que vou amanhã fazer uma coisa para ter mais três votos, é um desespero. São cavalgadas. A Baixa-Chiado [projecto de que se ocupa enquanto vereadora da Câmara de Lisboa], é uma cavalgada –agora é esta.

 

Interessa-me perceber que tipo de ascendente tem o seu marido sobre si. Conheceu-o quando ele foi a sua casa convencê-la a assinar um abaixo-assinado.

O Jaime é mais velho seis anos. Andava no quinto ano de Direito e eu no primeiro. Trabalhava na televisão. Ele falava de imensas coisas em relação às quais presumia o meu conhecimento, que eu não tinha. Dos factos e dos raciocínios que se podiam fazer sobre os factos. A primeira coisa em que pensei é que não era nada maçador. Não tínhamos nada para nos encontramos... Como um cruzamento de duas carruagens de metro.

 

Estamos também a falar de relações de poder. Que é do que se fala quando se fala de ter ascendente sobre o outro.

Jamais casaria por casar. A minha mãe sempre disse que a monogamia é contra-natura, por isso «vejam lá com quem casam»...

 

Isso vindo da mãe, tem graça.

Fomos habituadas a ouvir estas coisas, a vida é assim mesmo. Nunca tive a ideia de casar com qualquer um ou porque tinha chegado a idade de casar. Eu só me casaria com alguém que tivesse um forte ascendente sobre mim. Que é o caso. Não me envergonho de dizer. Crescemos juntos. É uma pessoa a quem peço sempre conselho, com quem penso em voz alta, com quem discuto as coisas. Acho que agora é mútuo, mas não quantificamos o ascendente!

 

A sua vida é feita de ciclos. Se olharmos para esse ciclo, tão recuado, parece que não tem que ver com o actual.

Mas depois vai ter... Os interfaces, não os controlamos. Mas a vida tem mostrado que os interfaces se têm feito correctamente. Tem batido tudo certo, o bom e o mau. Não fazia de outra maneira. Naturalmente só sabia fazer assim... Decidi sair da Misericórdia e candidatar-me em 24 horas. Foi o tempo de perguntar ao Jaime e aos meus filhos. Eram as únicas opiniões que queria ter.

 

Aí, mais uma vez, impera o desejo de ser arrebatada por uma ideia.

Exactamente!

 

Para que é que lhe serve o poder?

Para fazer. Posso não saber como se faz, mas percebo como se pode fazer. Tenho a “teoria geral” e chamo as equipas. O resultado do meu trabalho é sobretudo um resultado de equipas. A palavra entusiasmo vem do grego “sopro divino”: é o momento da revelação. É um sopro em que a gente percebe que podia mudar. E depois faz-se. E depois de estar feito já não tem interesse nenhum. Tem que se passar para outra coisa.

 

O seu discurso é profundamente católico. Se não fosse católica sentir-se-ia mais desamparada?

Ai, sentiria. Isto encaixa num sentido. É preciso haver uma disponibilidade. Tem de se estar à escuta. E vem das formas mais diversas. Um livro que estamos a ler, uma pessoa que encontramos por acaso, alguém que fala comigo na rua...

 

Vou dizer-lhe uma coisa, que, espero, não seja ofensiva: parece mais nova pessoalmente que na televisão. Não é só por não estar maquilhada; é porque tem um brilho e uma disponibilidade quando fala disto que nunca percebi na televisão.

Tenho o meu parceiro à frente, o Mário Crespo [risos], e não quero que ele vá para lá divagar, como você! Gosto muito da condição humana. Como todo o pecado tem perdão, [Deus] não nos mergulhou no opróbrio. Que hoje a sociedade nos coloca, se não fazemos como as pessoas querem, se as setas vêm para baixo, se parece mal... No outro dia um jornalista perguntou-me se repito os vestidos, e eu disse que sim. «Não acha que pode parecer mal?», «Não, só se fixa uma mulher excepcional ou um vestido excepcional». Numa festa fixa uma mulheraça ou um vestidão!

 

Pois olhe que eu bem “fixo” os seus lenços Hermès!

Por acaso está aqui um... Os lenços são todos presentes do Jaime. Por isso é que são bons. Eu só compro porcaria para mim.

 

Vai à Zara?

O mais possível! E compro às ciganas, sou grande amiga das ciganas! [risos]

 

Considera-se extra-ordinária? Porque foi esse destino que procurou: aquele que a levasse do ordinário.

Isso sim. Dou tudo o que posso a uma empreitada. E depois esgotei-me. Normalmente ela fica feita e eu cumpri o meu ciclo. Como se fosse uma transfusão. Tenho de passar para o lado de lá. Senão fico da cor das paredes. As pessoas não perceberam porque é que saí da Misericórdia.

 

Porque foi?

O segundo mandato era já uma grande revolução, e não era líquido que tivesse condições para a fazer. Fazer um banco da economia social, ser um motor entre as instituições financeiras para a economia social, já estávamos a caminho de presidir à associação europeia das lotarias, e da mundial... Era uma escalada muito incómoda e o país não nos permite escaladas muito grandes. Para ficar a fazer gestão corrente... Não é que me ache muito importante, mas não tenho essa energia. O melhor é ir para casa.

 

O que é que lega aos filhos? Que imagem têm os seus filhos de si?

O que se deixa é o exemplo. A minha educação já foi muito assim. Não interessa nada o que dizemos aos filhos em teoria. Interessa o que os filhos vêem todos os dias. Mesmo quando nos vêem vulneráveis. Odeio essa coisa das super-mulheres.

 

Alguma vez os seus filhos a viram discutir com o seu marido, por exemplo? Uma discussão conjugal, quero dizer.

É possível. Mas eles sempre tiveram a noção de que gostamos muito um do outro. Vêem quando estou aflita, preocupada, triste. Chorar, não tem mal nenhum, não é?

 

Viu os seus pais chorar?

Vi o meu pai chorar duas vezes em momentos trágicos, e a minha mãe a chorar uma única vez. Naquela geração ainda se tinha a ideia de que chorar à frente dos filhos era afligi-los. E não é. Muitas vezes são os filhos que nos amparam.

 

Como é que os “assuntos de mulheres”, íntimos, eram abordados na sua família?

Tirando o dinheiro, tudo era abordado. No nosso meio social havia famílias com muito mais dinheiro, e outras com menos. Habituámo-nos a respeitar as que tinham menos e a não invejar as que tinham mais. E foi muito bom, porque quando fiquei sem absolutamente nada, naquele período em que estive lá fora, habituei-me a viver sem nada. É uma aprendizagem muito útil. Não me senti atrapalhada, sequer.

 

Por ter de lavar roupa...

Sim, e não poder comprar, e andar com a roupa que as pessoas me davam. Nada disso me tornou desgraçada ou me fez sentir vergonha. Mandaram-me uma mala daqui, com roupa. Eram duas irmãs, muito amigas da minha tia, que se vestiam nos grandes costureiros. Foi caricato: no período mais pobre da minha vida desembarcou uma mala com um número infindável de etiquetas! [risos] Nunca andei tão bem vestida! Fiquei-lhes sempre muito grata. Elas podiam não ter tempo de ir procurar roupas, metê-las numa mala, despachá-las... Essa atenção, essa disponibilidade, esse tempo...

 

Nessa altura, já tinha ido à Cartier vender as suas jóias?

Já, mas não era para comprar roupa, era para comer.

 

Com certeza. Mas faz diferença entrar na Cartier para vender jóias e estar bem vestida.

A única coisa que me fez aflição foi pensarem que eu tinha roubado. Não tinha os certificados, nada.

 

Lembra-se como estava vestida?

Estava de jeans. Saímos com pouca coisa. Tinha levado um vestido para arranjar emprego, uns jeans, umas camisas. Mas ali, o ser loura e ter olho azul teve alguma influência. Eles também tinham ouvido falar de Portugal e da Revolução, estava muita gente a sair de Angola e de Moçambique. Temos que perceber: as pessoas vulneráveis, os medos que têm, vêm destas coisas. Medo de serem apanhados, mal interpretados, de acharem que estão a roubar. Tenho, desde essa altura, atenção a isso. Depois, sim, na fronteira, há o medo de ser apanhado... E mesma aquela coisa de as senhoras que me puxaram o fio [no campo de refugiados]: não é que me tivessem humilhado...

 

Eram enfermeiras da Cruz Vermelha?

Eram senhoras voluntárias, pertenciam às classes altas de Joanesburgo. A minha tia também era da Cruz Vermelha. Percebi como podemos não ter atenção. Era uma fila de mulheres e crianças – os homens comiam à parte, não sei porquê –, e era mais uma; mas trazia um penduricalho. Não me humilhou. Só pensei assim: será que alguma vez fiz uma coisa destas? Jurei a mim própria que nunca faria isso a ninguém.

 

Conte como foi a cena.

Fui buscar a minha sopa. Elas estava a servir a sopa, viram o fio e puxaram-no. Puxaram-no como se eu fosse um bezerro. As pessoas não fazem por mal...

 

Ou fazem.

Não, coitadas. Estão desatentas. Era um fiozinho de prata, uma coisa de miúda, não valia muito. As jóias estavam escondidas. Não mo partiram, só acharam curioso e puxaram, como podemos puxar por uma coisa que está num cabide. É só esta ideia...

 

De que valemos muito pouco?

Ora bem! Por isso, não vale a pena estar com peneirices. Nasce tudo e morre tudo da mesma maneira. Tudo isto foi muito interessante.

 

Vive na casa onde nasceu, não é?

Vivo. A minha irmã Maria João também. A Maria da Assunção entretanto saiu, mas viveu também lá. As campainhas das portas estão separadas, mas o pátio e o jardim onde os nossos filhos foram criados são comuns. É um sobe e desce. É um atravessa o pátio. É um “escrevi um artigo, leia lá, dê cá a sua opinião”.

 

O Jaime trata-a por tu ou por você?

Por tu.

 

Era uma música que lhe era estranha?

Não. Não fui criada naquela redoma. Andei no liceu. Andava de eléctrico sozinha aos seis anos.

 

A sua avó fazia uma sopa dos pobres lá em casa. Por isso é que há pouco lhe dizia que as áreas em que foi trabalhando são anteriores ao Jaime. 

A minha avó marcou-nos imenso. Estava sempre a dizer mal dos ricos e das coisas boas. Estava sempre a lembrar que havia quem não tinha. Era uma chumbada de uma conversa! Mas era por causa do exemplo. A minha avó andava de autocarro e quando já não era assim tão nova, a minha mãe ralhou-lhe: «Credo, mãe, vai assim». E ela respondeu: «Mas onde quer que eu encontre o próximo se não nos autocarros ou comboios ou eléctricos?».

 

Isso inculcou, presumo, um complexo por ter sido privilegiada.

Não criou sentimento de culpa, mas acendeu uma luz amarela. Era um semáforo, sempre a chamar atenção. Era gente muito inteligente. Mesmo coisas que hoje estão muito na moda, por exemplo, a homossexualidade: não tinham importância nenhuma. A minha avó tinha grandes amigos em meios artísticos. E lembro-me de ela comentar, com graça e sem acinte, as pessoas e os seus hábitos, aquilo a que agora se chama as orientações sexuais. Não tinham que ser todos iguais a nós. Não defendo nada que as pessoas sejam todas iguais.

 

É contra o casamento entre homossexuais, por exemplo.

Sou. Mas todos os passos que se deram para salvaguardar direitos e situações que têm de ser salvaguardadas [nas uniões de facto], com certeza. Há coisas que não faço, mas podem fazer outros.

 

Como é que viveu o seu acidente? Mudou a sua vida?

Mudou. Já tive muitas vidas, como os gatos. Foi a seguir ao nascimento da Catarina, tinha 24 anos. Mudou a minha identidade. Foi uma doença complicada, que não correu bem. Depois foi a paralisia facial. Depois decidi que não falava mais em público. Estava a acabar de me formar, dispensei a todas as orais, para não falar. Fui fazer o estágio. Um dia, ali no Palácio da Justiça, percebi que o processo estava mal instruído e que o homem estava inocente. «Se eu não falo, ele vai condenado». E falei. Tinham passado dois anos. Depois pensei: que estupidez, para que é que vou ficar calada?

 

É engraçado: salvou-lhe a vida, mas é como se ele tivesse também salvo a sua.

Pois foi. Mas foi uma aprendizagem: a ser a mesma pessoa, contudo sendo outra. A cara é a nossa marca distintiva... Por alguma razão Deus mandou isto.

 

Que resposta encontra?

Talvez me tenha tornado melhor. Às vezes penso nisso. Por exemplo, o estar internada em hospitais estrangeiros. O estar sozinha – muitas vezes tinha que estar. O não ter dinheiro. O estar em Londres numa enfermaria com pessoas a morrer. Foi quando comecei a pensar como é que se punha em ordem a saúde. Foi o que me fez pegar em coisas da saúde. Tudo isto foram viagens ao outro lado da vida.

 

É um processo simétrico: nesta segunda fase da sua vida está directamente ligada a experiências pelas quais passou, mas ocupando um outro papel.

É isso. Estou do lado de cá e nunca me esqueço do que é estar do lado de lá. Posso ser mais útil assim. Em relação à política, permite perceber como é vácua.O poder é instrumental. Deveria ser, pelo menos. Não me importo nada de ter poder. Terem-me dado a oportunidade da Baixa-Chiado? Vale a pena ter poder para fazer isto.

 

Já não se usam os epitáfios. Mas para quem tem um cristianismo tão arreigado, imagino que a vida seja um balanço permanente. Um epitáfio resume uma vida, é uma linha a partir da qual podemos evocar aquela pessoa.

Nunca pensei. [risos] Há um poema do Álvaro de Campos, muito bonito: «Quando eu morrer podem dançar e cantar à roda do meu caixão. Não tenho exigências para quando não puder ter exigências». Agora tudo quer ser incinerado. Eu não. Quero ir para a terra. Ando a ver se arranjo companhia! O Jaime já disse que vinha comigo.

 

Não acha extraordinários os casais em que um morre e o outro não sobrevive senão meses?

Sou uma candidata a esse acontecimento. Eu percebo: a dada altura é uma pessoa em dois corpos.

 

Acha que ele a vai reconhecer e, portanto, vai reconhecer-se um pouco a si mesmo nesta entrevista?

Eles não gostam nada que eu fale destas coisas. Você não me deixou falar da política, do partido...

 

Mas fale! Isso importa comparado com este sumo todo?

Quando cheguei à política foi por pensar que fazia sentido chegar a este nível de instrumentos para poder fazer coisas. E que mais? A câmara, que estamos aqui. A pala, foi importante: foi uma questão da ética do poder.

 

Pensei que não gostasse de Cavaco Silva e que esse sentimento estivesse associado ao caso da pala. Afinal, ele pediu-lhe 48 horas para resolver a situação e não o fez. E por isso se demitiu.

Não se portou nada bem... Provavelmente não se poderia ter portado melhor, ou podia e não se portou... Não interessa. Houve outras coisas mais importantes. Quando ele se candidatou a presidente da república, logo da primeira vez, tive muito gosto em fazer parte da comissão, em abrir a campanha para as mulheres, na FIL. Quando as pessoas fazem coisas que me desconcertam um bocado, é bom pensar que são... fraquezas.

 

Tem condescendência com as suas fraquezas?

Não tenho muita. Mas os outros têm comigo. De vez em quando tenho muito mau feitio, não sou uma pêra doce.

 

A sua irmã Maria João é que disse que a Thatcher, ao pé de si, é de chocolate.

Sou uma pessoa determinada, voluntariosa, e [passo] esta imagem de ser mandona. É a aflição de ver que o caminho é por aqui..., e detesto quando começam os compromissos, que baralham...

 

Sabe que não olho para si como uma política?

Não? [gargalhada] Não me levam a sério!

 

Olho para si como alguém que ocupa cargos de chefia nestas áreas, que são as suas. Não estou a dizer que não seja competente politicamente, mas parece que isso não potencia o que melhor que há em si. Como se essa não fosse...

A minha pele, a minha pele... Isso é interessante.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2006

Maria José Nogueira Pinto morreu em Julho de 2011