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Anabela Mota Ribeiro

Miguel Beleza

23.06.17

Miguel Beleza foi quase tudo muito cedo. Foi ministro das Finanças e governador do Banco de Portugal. Doutorou-se no MIT, foi aluno do mítico professor Samuelson.

É um Beleza. Ou seja, provém de uma família onde as pessoas se destacam, procuram a excelência, estão no espaço público, têm poder. Não é uma excepção.

Engordou e envelheceu. Tem apenas 60 anos. É um entrevistado difícil. Nunca fica claro se fala a sério ou se está a meio de uma piadola.

Optei por provocá-lo. O registo é seco. 

Falámos de Alfredo de Sousa, de Cavaco, da cara da Claudia Schiffer nas notas de euro. Falámos de não permitir que outros assistam a um eventual fracasso. Do medo de não ser capaz. De não estar à altura do que esperam dele. Da cabeça rachada da irmã Teresa, há muitos anos (o contexto era uma visita ao Ministério das Finanças, e o que ficou foi a petite histoire). De ser o melhor aluno. De se pisgar de Portugal pouco depois da Revolução de 74. A revolução dele seria outra.

Tem respostas fabulosas, de quem diz verdadeiramente o que sente – fragilidades e inseguranças incluídas. O que é raro.

Saímos juntos para o parque de estacionamento do Millenium BCP, onde trabalha, e onde aconteceu a entrevista. Disse-lhe que o meu carro era o mais barato daquele parque, onde se perfilavam carros de topo de gama. “Não é não, é o meu”. Era. Estranho. 

  

Porque é que foi para Economia numa família de juristas?

Estive inclinado a ir para Direito. O meu pai tinha tido uma carreira de jurista empurrada para a Economia e para as Ciências Político-Económicas. Não tenho a certeza absoluta de ter sido a melhor escolha, e não posso dizer que tenha sido fácil.

 

Porquê?

A verdade é que as pessoas sabem pouco sobre aquilo que vão fazer. Interrogo-me se teria tido mais graça ter estudado Física ou Matemática. Mas agora já é tarde.

 

Foi por razões afectivas que quis contrariar o percurso dos seus pais, da sua irmã mais velha?

Da irmã mais velha e das outras. Não tenho a impressão de ter querido contrariar. [A Leonor] é um ano mais velha do que eu. Achava que ela era excelente.

 

Sentia que era especialmente desejado por ser o primeiro filho varão? Ou sentia que era o irmão da Leonor, que era brilhante?

A Leonor sempre foi brilhante, mas não mais do que o resto da família. Agora é bastante mais conhecida, e ainda bem, mas na altura a questão não se colocava.

Quanto a ser desejado, sempre tive a noção de grande igualdade de tratamento, de afecto e de preocupação por parte dos meus pais. Nunca senti nenhuma diferença.

 

Na sua família, as mulheres, há pelo menos duas gerações, são licenciadas.

Exactamente. Da idade da minha mãe há poucas licenciadas, e havia mais para trás.

 

Existia em relação aos filhos a expectativa de que fossem brilhantes?

Uma expectativa suave. O facto de ter boas notas ou fazer boa figura não era considerado uma coisa excepcional para os meus pais. Em contrapartida, também não havia uma grande pressão para sermos os melhores onde quer que estivéssemos.

 

Frequentemente foram.

Aconteceu, de vez em quando.

 

Foi por acaso ou era uma pressão sub-reptícia, tácita?

Nunca senti mais pressão dos meus pais do que sentia de mim próprio.

 

Uma pressão que se auto-impunha?

A ideia de que os meus pais, e não só, consideravam normal que tivesse bons resultados no liceu, acabava por ser, implicitamente, uma pressão sobre mim. Parecia mal não ser.

 

Disse que o brilhantismo na escola não era excepcional para os seus pais. O que é que era excepcional para eles? O que é que valorizavam?

Se calhar, assim meio a brincar, que fosse um grande ginasta. A família toda não era. Tenho dificuldade em responder. No meu caso, que tivesse uma boa nota a desenho – uma coisa que nunca fui capaz de ter. Penso que apreciavam aquilo que os pais normalmente apreciam: que os filhos tenham uma boa formação, que, no sentido nobre do termo, sejam boas pessoas. Esse tipo de valores era bastante referido e indicado como sendo algo que esperavam de nós.

 

Recorda-se de alguma conversa com o seu pai ou com a sua mãe, de quando era criança?

Recordo-me de conversar com ambos com alguma frequência, sobretudo com a minha mãe. Conversávamos sobre muita coisa, desde a literatura até religião.

 

Política?

Não com grande intensidade, mas também.

 

Tento perceber como era o ambiente em casa para o compreender melhor. Não sei de si no tempo em que foi um menino.

Para além de ter mais cabelo, era parecido com o que sou hoje. Não era adepto de ficar fora de casa, aborrecia-me. Gostava de ficar em casa com os meus pais, com uma tia, já bastante idosa, de quem gostava. Não gostava de estar no deserto, e o deserto era não estar em casa. Isso foi uma das coisas sobre as quais tive que meditar e ultrapassar quando fui estudar para fora.

 

Quando foi para os Estados Unidos fazer o doutoramento?

Sim.

 

Mas nessa altura já era um rapagão de 24 anos.

Rapagão não direi, era um menino de 24 anos.

 

Mantinha uma relação ainda próxima com a casa e com a família?

Algo. Suponho que custa a toda a gente que embarca numa aventura dessas, de ir fazer qualquer coisa de importante, a que se dedica, ficar algum tempo fora de casa, do meio familiar e dos amigos.

 

Talvez o que cause angústia seja não saber se somos ou não capazes.

Seguramente. Quando meditava sobre o assunto dizia: “Quero ir sozinho, não vá isto correr mal… E depois fico muito envergonhado, não quero que ninguém veja”. Foi sempre uma preocupação que tive: não queria que as pessoas constatassem que estava a fazer asneiras.

 

Os seus pais assistiram a algum fracasso seu?

Não.

 

O que isso revela é um desejo de continuar a corresponder a uma expectativa que têm de si.

Se a expectativa é deles ou minha, ou se é minha por causa dos meus pais, é complicado dizer. Mas isto é um sentimento normal na maior parte das pessoas.

 

Sim, mas quando as pessoas se destacam na vida pública, quando só conhecemos os resultados brilhantes, temos dificuldade em aceitar que elas também têm as suas fragilidades, os seus fracassos.

Toda a gente, até Einstein, teve fracassos e dificuldades.

 

Queria perceber melhor como é que se estrutura a sua personalidade. Se olhar para trás, o que é que acha que se mantém?

Algum afecto por mim próprio. A convicção de que sou capaz de fazer coisas difíceis. Se forem muito difíceis não sou, ou preciso de me esforçar muito. Alguma preocupação em que as pessoas que estão à minha volta gostem de mim – o que é mau para uma pessoa dedicada à vida pública, não pode ser assim. Ser adepto do Futebol Clube do Porto, [riso] que é uma coisa que permanece há décadas. Estas coisas são difíceis de notar.

 

De qualquer maneira, temos uma ideia, nem que seja uma reconstrução da memória de quem somos.

É a chamada auto-avaliação, mas não se pode esperar que seja objectiva.

 

Explique lá isso de ser “capaz de fazer coisas difíceis, mas se forem muito difíceis não sou, ou preciso de me esforçar muito”.

Se forem muito difíceis, se calhar sou capaz na mesma, mas prefiro fazer sozinho para ninguém ver, para ninguém saber que não sou capaz.

 

Houve alguém na sua vida à frente de quem pudesse fazer essas coisas muito difíceis? À frente de quem se permitisse falhar?

Falhar não depende exclusivamente de mim. Mas respondendo à sua pergunta: a única pessoa sou eu próprio.

 

Esse afecto por si próprio, vem de onde? Convenceram-no de que era bom?

De vez em quando as pessoas diziam-no. Só com grande infelicidade é que as pessoas não o têm. Não considero isto excepcional.

 

Não tenho nada ideia de que isso seja comum. Tenho a ideia de que o comum é as pessoas terem deficiências na sua auto-estima.

Não tenho muitas razões para ter uma auto-estima deficiente. Mas agora, que diabo, com a minha provecta idade, já tenho obrigação de ter esses assuntos mais ou menos anulados.

 

Em primeiro lugar, não é provecta; depois, já é a segunda vez que faz menção à idade e tem apenas 60 anos. Porque é que diz essas coisas de si?

Porque com 60 anos desaparecemos. Por exemplo, no jornal vem que foi atropelado um cavalheiro que trabalha num banco. Se ele tiver 60 anos, diz-se que foi um sexagenário que morreu atropelado. Desapareceu.

 

Isso é uma boutade.

Não é, não. A partir dos 60 anos passamos a ser simplesmente uns sexagenários. Não é que me assuste muito, mas que remédio, tenho que encarar essa situação de frente.

 

Porque é que se sente a envelhecer aceleradamente?

Não sinto. Sei que há umas idades em que se envelhece mesmo, aos 40, por exemplo, medicamente. Tenho o hábito de não me levar excessivamente a sério. Gosto de fazer um bocadinho de troça de mim próprio. Já estou na fase da inexistência, mas não é grave.

 

Está a ser irónico, mas há um fundo de verdade nisso.

Para ser franco, nem mais nem menos do que há quatro ou cinco anos. Não noto especialmente. Mas esse é o caminho, é o habitual. Envelhecer não é uma preocupação. Mais facilmente falo do que não me aflige do que daquilo que realmente me aflige.

 

Quando o seu corpo começou a envelhecer – aos 40’s – foi ministro das Finanças ou governador do Banco de Portugal. Não era comum. Normalmente é-se depois dos 50, pelos 60. Tudo lhe aconteceu cedo na vida?

É verdade que era razoavelmente mais novo do que um bom número dos meus pares, mas muitas vezes já não era o mais novo.

 

Que me lembre, ministros em Portugal, na casa dos 30, foi a sua irmã Leonor e o António Costa, um com 36 e o outro com 38 anos. Secretários de estado, sim, muitos.

Estava a pensar em ministros de outros países. Há gente mais nova.

 

O David Cameron tem 40 e poucos anos. O que interessa: se pensa nisso, naturalmente pensa nas pessoas de outros países, não pensa em Portugal?

Era o fórum onde tinha mais colegas com os quais me podia comparar. Fiz 60 anos numa data importante: no dia em que fazia anos o Salazar, o Saddam Hussein, e para melhorar a estética, a Penélope Cruz. [riso] Há dois pobres que já não fazem.

 

Fez 60 anos e tem a sensação de estar numa provecta idade porque foi há muito tempo que esteve no auge?

Como lhe digo, não me aflige muito, senão tinha mais reserva sobre a questão.

 

Não é da questão do envelhecimento que estou a falar. Estou a falar de ter estado no auge vai para 20 anos.

Nunca tinha pensado no assunto. Olhando para trás, não sei bem o que pensar do assunto, mas se calhar tem alguma importância.

 

Pense lá.

[pausa] Pensar que, tendo passado essa etapa, não me restariam mais etapas para cumprir? É possível.

 

Não deu por si, depois de ter saído do Banco de Portugal, em 1994, a perguntar: “E agora o que é que vou fazer”? Não me refiro só ganhar a vida, mas a ter um propósito.

Assim com grande aflição, e no sentido de: “E agora o que é que vou fazer, já não sou um homem importante”, nem por isso.

O único aspecto de que tenho alguma pena é não ter dedicado mais tempo ao estudo e à vida académica. Não me considero ignorante, mas gostava de saber mais. Nessa altura não tinha esta sensação.

 

A vida académica, doutorar-se, foi antes de tudo, da carreira política, do protagonismo na vida pública portuguesa.

Foi o começo. Apesar do que se possa dizer, nunca me senti com grande vontade de estar nas primeiras páginas dos jornais ou nas aberturas dos noticiários. As outras coisas, interessava-me fazê-las, mas não era algo que dissesse que ia ser a minha vida. Penso que em parte é porque tenho dificuldade em considerar-me muito importante. Uma pessoa que se considere muito importante é deselegante. Se a pessoa em causa for estúpida, não é tão grave. Se não for, se for auto-importante, tenho dificuldade em levá-la muito a sério.

 

O que é que quis ser?, um tipo reconhecido, respeitado?

Talvez. Um tipo importante, para além das franjas que ser reconhecido ou respeitado implicam, não. Nunca fiquei maravilhado por passar revista às tropas. Passei uma vez, diverti-me imenso.

Foi num aniversário da guarda-fiscal, que era o exército privativo do ministro das Finanças. E dei umas facas, perdão, umas espadas a uns cavalheiros.

 

Fez de propósito quando disse facas?

Não.

 

Espera que acredite?

Podia ter feito, é o tipo de coisa que faço frequentemente, mas por acaso não fiz. Era muito divertido ter um exército privado, o que é que julga? Tinha oito mil soldados, homens, e algumas mulheres, não era brinquedo.

 

Estou a ver que gostou de ser ministro das Finanças.

Essa parte foi a mais divertida, eu a comandar a tropa. O meu pai tinha sido sub-secretário de Estado do Orçamento e também tinha tido guarda. Agora não há, acabou.

 

Falemos a sério: o que é que foi mais divertido quando foi ministro das Finanças?

Suponho que está a dizer divertido no sentido anglo-saxónico, more fun. Provavelmente, cozinhar uma espécie de programa de estabilidade e crescimento antes de qualquer outro, em 1990-91, com a ajuda de alguns colaboradores do ministério. Foi muito interessante e muito bem feito.

[ouve-se um barulho estranho e agudo] É um cliente que não pagou o crédito [riso].

 

Voltando ao que teve mais fun quando esteve no ministério.

Nessa altura, e depois no Banco, estávamos a trabalhar na União Económica e Monetária, no nascimento do euro. Para além de assuntos domésticos, que eram mais ou menos desagradáveis. Herdei uma coisa dramática: o novo sistema retributivo da função pública, que foi uma explosão de despesa que não esperava quando para lá fui. Quando, em vez de sexagenário, for octogenário, e me perguntarem o que é que fiz pelo país, digo que dei um empurrãozinho ao euro. Foi francamente útil. Outras das minhas sugestões – por exemplo: que pusessem a Claudia Schiffer nas notas – não foram aceites.

 

Porque é que diz essas coisas? Gosta de provocar? Já não tem nada a perder?

Claro que tenho muita coisa a perder. Não tenho a menor intenção de ofender quem quer que seja e é uma graça como outra qualquer.

 

É a primeira vez que entrevisto um economista com estas responsabilidades que diz coisas dessas.

As minhas responsabilidades já foram há alguns anos. Também dizia estas coisas nas reuniões de Bruxelas.

 

Estou a ver a cara dos seus pares quando sugeriu a cara da Claudia Schiffer impressa nas notas. Os da Alemanha gostaram...

Não foi mal recebido [riso]. E ninguém considerou, por isso, que eu era menos capaz. O que é que podiam pensar? Que era um chauvinista? Fui educado com absoluta igualdade, senão superioridade das mulheres. Posso permitir-me dizer estas coisas.

 

Imagino-o a dizer estas coisas à frente das suas irmãs...

Ralham moderadamente. Mas são demasiado confiantes para achar que isto tem importância.

 

Realmente dizia essas coisas nas reuniões em Bruxelas?

Às vezes. Dava muito jeito para desanuviar.

 

Isso só é permitido a quem tem um terreno conquistado e é levado a sério.

Não é por isto que se é levado mais ou menos a sério. E é preciso o mínimo de oportunidade. Há alturas em que seria uma estupidez sem nome dizer uma brincadeira destas. A ideia é que esperam que não diga só isso, que diga alguma coisa de útil, antes ou depois. Também não estou a sugerir que o que o que palpitava nestas reuniões eram só disparates deste género. A propósito, sabe o que aprendi? Uma das piores coisas para um ministro de um país pequeno como o nosso é falar a sua própria língua nas reuniões oficiais. Tive a sensação muito clara de que, se o ministro alemão dizia uma coisa que eu não entendia, o problema era meu. Se eu dizia uma coisa que ele não entendia, o problema continuava a ser meu. Por melhor, mais inteligente, ou mais engraçado que fosse o que estava a dizer, ele não ia fazer o menor esforço para ouvir.

 

O seu inglês já era fluente, tinha feito o doutoramento nos Estados Unidos.

Tenho a obrigação de falar inglês. Mas em algumas circunstâncias, nas reuniões oficiais, era obrigatório falar português. Não sei se ainda é assim.

 

Quando é que aprendeu a falar inglês?

Aprendi mais ou menos aqui em Portugal, no liceu, e com mais uma ou outra aula adicional. Estive pouco tempo numa escola de línguas que havia por aí. Mas o que aprendi foi a não ler as legendas da televisão e do cinema, e a começar muito cedo a comprar livros em inglês; eram mais baratos e melhores do que as traduções. Quando fui para os Estados Unidos essa era uma das minhas preocupações, durou um dia ou dois. Basicamente aprendi lá.

 

Como é que foi a aventura nos Estados Unidos? Foi para o MIT, escola prestigiadíssima, a achar que tinha de fazer boa figura.

Foi um bocadinho por um acaso. O meu querido amigo Alfredo de Sousa, achou que nós (assistentes dele) devíamos ir estudar para onde fosse. “Já que vou tentar uma coisa impossível, toca a tentar a melhor”. Por uma razão que ainda hoje estou para saber, aceitaram-me lá.

 

Não foi realmente uma surpresa terem-no aceite, pois não?

Foi, honestamente. Era muita gente que tentava entrar. Tive algumas ajudas interessantes, além do Alfredo de Sousa, o Prof. Fraústo da Silva, o Engº Cravinho, a quem perguntaram que tal é que eu era. Era apontar o mais para cima possível.

 

Apontou e conseguiu.

Sim. Sabia muito pouco quando fui para lá, apesar das minhas notas cá. Os primeiros dois anos foram muito, muito difíceis, tive de estudar desalmadamente. Agora damos uma formação muito melhor aos nossos alunos. Andei em Económicas naquele período conturbado, de Abril, em que a faculdade fechou. No 5º ano foi um enredo terrível para abrir a faculdade.

 

Assistiu à morte do Ribeiro Santos?

Não. Estava na faculdade, mas não estava no anfiteatro.

 

Nunca se envolveu nas lutas políticas?

Muito seriamente, não. Houve uma altura, com uns colegas, em que fizemos uma tentativa de pôr um pouco de juízo na direcção dos alunos. Ainda ganhámos umas eleições, mas depois tinha mais que fazer. Havia muitas coisas naqueles movimentos que eram desagradáveis. A própria história da morte do Ribeiro Santos é estranha. Houve um telefonema para a PIDE, há um agente que sugere que está à espera de um problema, e claro que mandaram alguém. Além disso, desde o 4º ano que estava a trabalhar, não tinha muito tempo e não me apetecia muito.

 

Em que é que estava a trabalhar?

O meu primeiro emprego foi um estágio no Banco da Agricultura. O meu chefe directo era o meu amigo Almerindo Marques, e indirecto, imagine, o Engº Jardim Gonçalves. Depois fui para o secretariado técnico da presidência do conselho de administração, onde, entre outras coisas, fazíamos planos. Ao mesmo tempo era assistente. Pouco tempo depois fui para fora.

 

Porque é que trabalhava sem ter o curso completo, era por dinheiro?

Também dava jeito. Mas era por achar que não era preciso dedicar mais tempo aos estudos, e que podia aprender alguma coisa a trabalhar num sítio qualquer.

 

Tinha a ânsia de se emancipar em relação aos seus pais?

Estava bastante emancipado, para efeitos práticos. Tinha a sensação de fazer o que queria. Não o que me apetecia – isso era outra questão.

 

Tinha a ânsia de começar tudo cedo? Já estar na vida e não na preparação para a vida?

Tinha a vontade de não me atrasar, o que é diferente. No 5º ano da faculdade, em que aquilo estava num estado calamitoso, estava com vontade de me ir embora e acabar aquilo o mais depressa possível. Não é bem começar cedo, é não fazer tarde.

 

Atrasar-se em relação a quê? Ou a quem?

Em relação ao que era possível utilizando a estrada mais curta. Por exemplo, acabar a faculdade aos 22 anos.

 

Quando é que começou a ser claro que ia lá para fora?

Quando comecei a passar mais tempo com o professor Alfredo de Sousa. Não era tão frequente como agora e o MIT tinha essa aura. O melhor economista do século, o professor [Paul] Samuelson, que morreu agora há pouco tempo, estava por lá.

 

O que é que sentiu quando leu a notícia da morte dele? Ele foi seu professor?

Foi. O senhor já era bastante velho, não foi um acontecimento inesperado. Senti que perdíamos mais um pilar da ciência da Humanidade, não só da Economia. Ainda por cima era um tipo amável e engraçado, com a ideia de que sabíamos imensa matemática e outras coisas; mas éramos muito incultos.

 

Ele sabia o seu nome?

Sabia.

 

Porquê?

Sabem sempre. Embora o meu nome fosse Luís.

 

Luís Miguel.

Infelizmente era o meu nome no MIT. Mas eles sabem, pelo menos enquanto somos alunos deles. E muitas vezes sabem depois, mas isso não pude testar com ele.

 

Samuelson já tinha sido Nobel?

Já. Foi Nobel em 1970, fui para lá em 1974. Via-se que era uma cabeça fora do comum. Quando me deram a terceira assinatura (significava que a tese era aceite) fomos todos beber cerveja para o bar do MIT, um sítio bonito, em cima do rio, e ele teve a amabilidade de nos oferecer as cervejas.

 

Quem foram os seus grandes mestres?

Vários prémios Nobel. Outro indivíduo que foi meu conselheiro de tese, um alemão com sentido de humor, o que é uma coisa pouco natural, Rudi Dornbusch. Depois havia um tipo espectacular, como professor, chamado Stanley Fischer, que ganhava uma fortuna, suponho, na Goldman Sachs, e foi ganhar uma miséria para o Banco de Israel.

 

Há alturas em que o dinheiro não é o que mais importa.

Seguramente. Não posso colocar-me nos sapatos dele (como dizem os americanos), seria pretensioso, mas se calhar tinha feito o mesmo. Depois, outro prémio Nobel, o Robert Solow, também ensinava muito bem e era genial. 

 

Em Portugal, quem é que foram os seus mestres?
A pessoa com quem aprendi mais, não tendo sido meu professor, foi o Alfredo de Sousa.

 

E o seu pai, ensinou-lhe alguma coisa?

Não muito. O tipo de abordagem para que ele estava vocacionado não era aquela que segui.

 

Ele tinha um especial orgulho em si?

Espero bem que sim.

 

Quando foi para o MIT o que é que disseram lá em casa? Não me diga que disseram que não era excepcional.

Disseram: “ A situação está um pouco conturbada no país. Vai porque provavelmente é uma oportunidade única e não podes perdê-la”.

 

É diferente de dizer: “Foste admitido numa das melhores escolas do mundo, que coisa excepcional”. Esse tipo de palavreado não se usava?

Os meus pais, não muito. Algumas pessoas que conhecia, sim. Para falar com franqueza, não sei se tinham noção de que era uma das grandes universidades. Admito que tenham ficado impressionados.

 

Foi um dos melhores alunos do seu curso, aqui?

Fui o melhor, com média de 17 e qualquer coisa. Claro que estava contente, bolas! Estava a pensar que tinha de ir estudar num sítio bem mais difícil. Como dizem os americanos, “aí é que se vão distinguir os homens dos rapazes”.

 

E nos Estados Unidos, foi dos melhores?

Não tenho essa informação, fui suficientemente bom. Não fui o melhor, nem pensar nisso.

 

Terminou o doutoramento com aquilo que em Portugal seria o brilho e distinção?

Sei lá, ignoro. Deram-me um diploma muito feio.

 

Na cara de quem é que queria esfregar o brilho e distinção? Para quem é que aquilo era?

Para mim.

 

O seu pai e a sua mãe nunca duvidaram de si, do que era capaz?

Pelo contrário, o mal deles era acreditarem demais.

 

Dizem que competia com a sua irmã Leonor. É verdade?

Que disparate! Nunca. Nem com ela nem com ninguém. Nunca se criou essa ideia na família, nem acredito que qualquer das minhas irmãs diga uma coisa dessas.

 

A mola não é a competição?

Não.

 

Qual é a mola? O que é que o fez estudar, trabalhar? O que é que o fez seguir em frente?

Fazer tão bem quanto possível, melhor do que os outros, mas para mim próprio. Talvez para os meus pais, de uma forma indirecta. Mas concorrência familiar, não.

 

Não é competitivo, nunca foi?

Comigo, com certeza. Com os outros, como consequência de ser competitivo comigo próprio.

 

Às vezes fala um bocadinho para dentro.

É como o Siza Vieira.

 

O Siza não fala para dentro.

Então, estou enganado. O que não lhe tira brilho, capacidade e distinção. Tentei copiá-lo.

 

O que fala, o Siza, é com sotaque do Porto.

Eu tenho sotaque de Coimbra.

 

O que é que lembra de Coimbra, onde viveu até aos oito anos?

Pouquíssimo. Tenho uma vaga ideia da universidade, onde de vez em quando havia umas cerimónias que envolviam o meu avô e o meu pai.

 

Teve sempre essa noção, de ser filho e neto de senhores distintos da universidade?

O meu avô José, pai do meu pai, era meu padrinho. Era um homem recordado pela sua graça, para além das suas capacidades intelectuais. Se tinha a sensação de ser filho do meu pai e neto dele?, claro. E filho da minha mãe, também. O brilho formal da minha mãe na faculdade terá sido menos do que o do meu pai, mas não era assim tão pouco. Comecei tarde a verificar que isso era excepcional.

 

Conte-me uma história sua com o seu avô.

Infelizmente aproveitei pouco o meu avô. Quando vim a primeira vez a Lisboa levou-me a ver a Torre de Belém, e queixei-me amargamente de ser uma torre baixíssima. O meu avô achou imensa graça e falou do assunto durante muito tempo. Fartou-se de falar de uma tentativa minha de mostrar ambas as solas das minhas botas novas, ao mesmo tempo.

 

Era um miúdo falador?

Não especialmente. Não sou muito falador de um modo geral. Mas nunca deixei de dizer o que me passava pela cabeça. Não me sinto coibido de fazer propostas sobre as notas do euro. [riso]

 

Tem recordações da vinda, como é que Lisboa lhe pareceu?

Viemos porque o meu pai foi trabalhar para o Governo. O meu pai tinha o cuidado de nos levar ao ministério e de nos mostrar como era.

 

Podia lá imaginar que anos mais tarde, seria, não secretário, mas ministro daquele mesmo ministério.

Não pensei nesse assunto.

 

O que é que sonhava fazer o miúdo de oito anos?

[pausa] Não sonhava ser ministro nem secretário de Estado. Não tinha uns horizontes muito altos. Queria estudar as coisas que tinha que estudar. Olhava para o meu pai como sendo uma pessoa que fazia alguma coisa que talvez gostasse de fazer. O meu avô, sempre tive por ele uma enorme admiração. Tinha coisas engraçadas; imagine que foi advogado do Alves dos Reis, o falsificador. Brevemente, mas foi.

Não sou capaz de dizer com o que é que sonhava. Não sonhava ser futebolista nem bombeiro.

 

Quando foi ministro e quando chegou ao ministério, lembrou-se dessa ida com o seu pai, em pequeno?

Com certeza. Aquilo estava bastante mais feio, cheio de automóveis por tudo o que era sítio.

 

Lembrou-se de que chegou mais longe do que o seu pai?

Não. De vez em quando o meu pai dizia-me qualquer coisa sobre isso, mas era ele.

 

O que é que ele dizia?

Que eu era bestial. Do que me lembrava melhor do ministério, dessa ida em criança, foi que a minha irmã Teresa, tinha dado uma cabeçada, coitada, numa fonte, num repuxo, e tinha ficado cheia de sangue. Foi uma coisa que me impressionou muito. Fora isso, tinha ido ao átrio, acho que fui ao gabinete do meu pai e pouco mais.

 

Com que então o seu pai dizia-lhe que era bestial… Sentia-se muito orgulhoso, claro.

Gostava de ouvir. Ele não dizia bestial: devia dizer “formidável”.

 

Ajuda à auto-estima.

A minha mãe, mais perspicaz, pensava o mesmo mas dizia menos.

 

Porquê?

É evidente que não sou bestial, sou razoável. Se o meu pai diz que sou e a minha mãe não, é porque é mais perspicaz.

 

Até onde é que está a falar a sério?

Penso que sou um bocadinho melhor que razoável.

 

Em que é que é bestial?

Em tempos, agora já não, era bestial a fazer jogging. Depois, houve uma altura em que não era mau em questões de Economia. Não acho indispensável uma pessoa ser bestial.

 

Qual é que era o seu fito?

Houve uma altura em que tive um muito claro: estudar e doutorar-me. E depois havia aquele objectivo de não fazer má figura. Assim um desígnio para a minha vida, que tenha começado de pequeno, não sou capaz de dizer.

 

Há quanto tempo não tem um grande desígnio, uma coisa que o apaixone?

Há bastante. Desde que empurrei o país para o euro.

 

Que importância teve na sua vida o encontro com Cavaco Silva? Quando é que se deu?

Conheci-o quando regressei dos Estados Unidos. Vim trabalhar para o Banco de Portugal. Era um director e eu um funcionário. Depois fui outra vez para fora, dar umas aulas, em Providence. Quando estava no Fundo Monetário Internacional é que fui convidado para ser administrador do Banco de Portugal. 

 

Foi Cavaco Silva que o convidou?

Directa ou indirectamente, para administrador do Banco de Portugal, acredito que seja o primeiro-ministro que diz qualquer coisa. O FMI foi engraçado. Estive para lá ficar, mas depois resolvi vir.

 

Porque é que veio?

Não tinha a intenção de ficar, de viver muitos mais anos fora de Portugal. Evidente que estava convencido que o lugar no Banco de Portugal era muito interessante.

 

Estávamos a falar de Cavaco. Foi uma pessoa fundamental na sua vida?

Muito importante. Era um excelente chefe dos conselhos de ministros. São muitas pessoas importantes, todas querem dizer muitas coisas e não há tempo. Tirar o que é importante é difícil. Cavaco ouve as pessoas que trabalham para ele, não fica preocupado por não serem tudo ideias do próprio. Combina uma coisa e não há o menor desvio daquilo que ficou dito, ainda que implícito. Para além de ser uma pessoa que sabe dos assuntos. Foi agradável trabalhar com ele.

 

Porque é que se pegou com o Braga de Macedo?

Eu? Não, ele é que se pegou comigo. [riso] Não foi propriamente uma pega, foram algumas diferenças. O Jorge tinha umas ideias sobre taxas de juro de que não gostei, e eram questões que diziam respeito ao Banco de Portugal. Foi um fait-divers. Os objectivos fundamentais que tínhamos em relação às taxas de juro, conseguimos pô-los em prática. Não foi muito grave.

 

Não havia uma competição? Os dois tinham sido alunos brilhantes dos respectivos cursos.

Não. A competição dele seria com o Marcelo [Rebelo de Sousa], não comigo.

 

Porque é que está mais gordo e caído?

Preguiça. O peso é que faz cair. Não tem a ver com o facto de ser um sexagenário. Houve uma altura em que deixou de ser prático fazer ginástica onde fazia. Mas são desculpas. Preguiça. Lamentável. Espero resolver esse assunto. No MIT fartei-me de fazer ginástica de toda a espécie.

 

Os seus pais ainda são vivos?

São.

 

Vão ler a entrevista?

Eu leio-lhes.

 

Vão reconhecê-lo?

Se estiver ao pé. [riso] Não sei se reconhecem, nalgumas coisas sim, noutras não. Há coisas que dizemos de nós próprios que não são exactamente o que as pessoas pensam ou esperam. Suponho que um auto-retrato nunca é de uma fidelidade enorme.

 

E os seus filhos, vão ler, vão reconhecê-lo?

Que remédio.

 

Que idade têm?

A minha filha tem 21 e o meu filho fez agora 19.

 

Não me diga que estudam Economia.

O meu filho. Uma maçada, bem tentei dissuadi-lo. Ele anda onde dei aulas, na Universidade Nova de Lisboa.

 

Também ele é o filho do professor, como lhe tinha acontecido a si. E o avô, o bisavô.

Coitado, espero que não.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010