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Anabela Mota Ribeiro

Mónica Baldaque (s/ Agustina)

14.10.23

“Esta é a minha história que a memória abreviou...”, escreve Agustina Bessa-Luís na sua autobiografia. Uma história em que são protagonistas um pai jogador que vivia entre a presa e o predador, uma mãe que repetia provérbios, uma figura inverosímil de quem herdou o espírito aventureiro, o avô Lourenço. A história de Agustina é a história de uma figura iconoclasta. Mesmo depois de a saber, e até de a compreender, não se acredita que exista uma criatura assim. Adentrámo-nos nesta estranheza pela mão da filha, Mónica Baldaque.

“Os gregos diziam que Eros tinha duas setas diferentes, uma de chumbo e outra de ouro. A pessoa atingida pela primeira sofria a paixão, a pessoa atingida pela segunda era o objecto da paixão. Eram duas formas de a paixão ser vivida. O que há de mais enigmático na natureza humana parte daí.” E qual é a paixão de Agustina? “Começa por ser eu própria. Não posso viver sem essa paixão, que não tem outra significação se não a aliança profunda com a vida humana.”

Agustina, a enigmática, diz coisas que iluminam o coração da vida. Isto que acabaram de ler, disse-o perante uma plateia, em Serralves, em 2003. Disse-o como quem escreve páginas de um romance, revelando uma vontade indómita, cosida com a raiz da existência.

Escritora amada, Agustina Bessa-Luís pertence à categoria dos que transformam a sua idiossincrasia num elemento reconhecível por todos (mesmo pelos que não a leram ou conhecem de perto). Como é o mundo agustiniano? É sem catalogação possível, pasmoso, livre.

Esta semana, Agustina faz 92 anos. Este ano, passam 60 anos sobre a edição d’ A Sibila. Nos dias 14 e 15, discute-se na Gulbenkian a Ética e a Política na sua obra, no primeiro congresso internacional dedicado à autora organizado pelo Círculo Literário Agustina Bessa-Luís (www.clabl.pt). A obra continua a ser reeditada (Os Incuráveis é a peça mais recente).

A conversa com a filha, Mónica Baldaque, permite saber de uma mulher e de uma escritora. Que são uma, como se verá. Agustina está retirada desde 2006. Deixou de escrever. Como olharia para a maneira como olhamos para ela?

Rindo-se. Seguramente.  

 

 

Como é que vamos apresentar Agustina? A genial?, a sem medo?, a perversa?, a barroca (assim lhe chamava Óscar Lopes)? Estes são alguns dos epítetos mais comuns.

Todos lhe servem. O que é para além disso talvez não tenha definição. Verdadeiramente, aquilo que ela é está no riso.

 

No riso?

É uma das características fundamentais da minha mãe, da vida dela, e do estar dela com os outros. O riso não tem a ver com a troça. Tem a ver com um segredo, com o mistério, com o estar numa outra dimensão. Há um provérbio judaico que diz: “O homem pensa, Deus ri”. Acho que aí a minha mãe está perto de Deus. O riso dela é como se fosse o riso de Deus.

 

O riso de quem tudo vê? E que compreende, engloba a totalidade do que vê.

Sim, sim. E de quem sente uma harmonia em relação a tudo.

 

Nas coisas triviais, o que é que a fazia rir?

Num plano mais imediato, fazia-a rir o absurdo. Situações absurdas. A resposta de um taxista, um comentário de uma pessoa na rua. A par do riso, vinha a nota, o explorar a situação na escrita.

 

Ocorre-lhe uma situação absurda de que tenha tirado prazer e riso?

Era tão constante... A minha mãe tinha uma modista de quem gostava muito e onde ia frequentes vezes. Essa modista, que era uma mulher muito Porto, de classe média, tinha um neto com um atraso ligeiro. Muito mentiroso. Uma vez, a avó estava muito preocupada porque ele nunca mais aparecia. A certa altura aparece com ar tranquilo. A avó, aflita: “Onde é que estiveste?”. Ele explica, virado para a minha mãe: “Aconteceu-me uma coisa muito estranha. Vinha para cá e vinha um senhor na minha direcção. De repente o nó da gravata dele começou a desfazer-se. A gravata escorregou por ele abaixo e enfiou-se num bueiro. Fiquei a olhar para o senhor, o senhor a olhar para mim. Estávamos sozinhos na rua – o que era absurdo, porque era a rua de Cedofeita – e tentámos tirar a gravata do bueiro. Não conseguíamos, e começou a vir gente que estava às janelas. Perdemos este tempo todo e não conseguimos tirar a gravata, avó.”

 

Foi um delírio.

A minha mãe divertiu-se imenso com esta história. Gostava imenso de ir à modista para que esta lhe contasse histórias do neto.

 

Portanto o que contradiz a pompa, o que escangalha o composto, a vitalidade das pessoas comuns, a sua imaginação sem rumo – tudo isto a prendia.

Sim. No inconsciente, [o rapaz] achou que a minha mãe seria a interlocutora ideal para uma história absurda como aquela. Acho que chegou a escrevê-la.

 

Voltemos às definições iniciais: a sem medo. N’O Livro de Agustina, escreve: “Aos três anos, em Espinho, eu saí do hotel, sozinha, com um vestido de voile azul claro e um ar de grande aventura. Tenho ainda essa aspiração de caminhar sem rumo, dizem que é um fio de epilepsia. Talvez seja. Talvez a liberdade seja um sintoma epiléptico.”

A relação com o medo... A mãe herdou isso, como eu herdei, e os meus filhos herdaram, da família. A sensação de ter medo – dos outros, de alguma coisa, de uma situação – foi coisa que nunca existiu. Estava completamente banida.

 

Como é isso possível, ainda mais numa sociedade amedrontada como a nossa? Temos medo de pessoas, do futuro, da guerra, do concreto e do inconcreto.

Penso que essa ausência de medo vem de uma segurança que a pessoa tem em relação a si própria. Com a certeza de dominar o que quer que seja. Sentia isso no meu avô, no pai da minha mãe.

 

O pai é uma figura fundamental na vida de Agustina. Tem a certeza de que pode dominar um cataclismo. De onde lhe vinha essa confiança?

Em primeiro lugar, era um jogador.

 

Agustina diz que o pai lhe paga a edição d’ Os Super-Homens, “não porque acreditasse muito nela, mas porque não perdia a ocasião de apostar num provável vencedor”.

Era um grande jogador. Depois era um aventureiro. Um homem que saiu de Portugal criança, com 12 anos. Foi para o Brasil, para fazer fortuna. Foi à aventura e aguentou-se. O que contava da experiência no Brasil era muito pouco. Imaginamos o que não terá vivido por lá...

 

O que é que imaginavam? A sua mãe falava disso? Ela queria saber o que tinha sido essa vida no Brasil?

Pouco. Deve ter passado maus bocados. Foi trabalhar com um tio, muito pouco tempo. Rapidamente se desinteressou. A vocação dele era jogar. Tudo o que pertence a esse mundo, com certeza não é o mais saudável, o mais honesto.

 

Nunca ouvi da sua mãe um juízo sobre a vida do pai no Brasil ou sobre o seu passado mais dúbio.

Nunca houve em ninguém. O avô da minha mãe acedeu a que a filha casasse com esse homem, sabendo da vida dele, e aceitando com gosto que entrasse para a família. O avô é uma personagem, e de que maneira! A minha mãe pega nele n’Os Incuráveis (que saiu agora, em reedição). A grande figura da família é ele, o avô Lourenço, que era um homem do Douro.

O pai (da minha mãe) era de Amarante. A gente de Amarante era muito valente. Grandes jogadores de pau. O Zé do Telhado foi mestre de pau do avô Lourenço. Tinha um pé, sempre, fora da lei. Um bocadinho. Só o bastante para lhe dar um certo entusiasmo.

 

Esse pé fora da lei dava-lhes uma graça romanesca. Pai e avô parecem personagens de romances de meninas bem comportadas, que arrebatam e insubordinam a ordem estabelecida quando chegam – na transgressão.

É. [riso]

 

Do lado da sua avó materna, a família era mais regular. Sobre o encontro da mãe e do pai, lê-se n’O Livro de Agustina: “Há uma cena num filme de Manoel de Oliveira, o Vale Abraão, em que um desconhecido, num restaurante, lhe oferece um prato de figos. Foi assim que meu pai abordou a jovem Laura, que estava vestida de preto, não por luto mas por promessa”.

Fui muito criada com a minha avó. Sobretudo depois de ela morrer fui refazendo muitas das suas atitudes. Acho que a minha avó fingiu muito, toda a vida. Fingiu! Senão, porque é que casou com um homem daqueles? Alguma coisa a leva a escolher isso. Devia casar com um advogado, um engenheiro, um homem mais certo. De resto teve essa oportunidade.

O grande gosto da vida dela teria sido ser actriz. Em criança e adolescente representava, dizia poemas. Claro que foi reprimida pelos pais porque isso tinha uma conotação muito duvidosa.

 

Agustina fala muito do gosto que tem pelo music-hall, por ver as bailarinas enfileiradas. Ela mesma queria ser bailarina. E tinha uma paixão pelo cinema. Mas não sabia do gosto da mãe pela representação.

A mãe e a tia. Essa tia ficou sempre solteira. Era uma mulher excêntrica. A minha mãe retrata-a numa série de livros. Era espanhola, como a minha avó, e tinha atitudes incríveis, que divertiam toda a gente. Por exemplo, ia às mesmas modistas da irmã. Modistas caras. Vestiam muito bem. Quando chegavam a casa, a primeira coisa que essa tia fazia aos vestidos era cortar-lhes as mangas. E andava assim, com aquilo esfarrapado.

 

Estou a ouvi-la falar dessas pessoas e percebo que Agustina é uma síntese de todas essas criaturas, singulares, não conformes. Por outro lado faz deles uma matéria prima privilegiada para os romances. Os personagens dos livros, mais do que tudo, são a família?

Sim, é na família que a minha mãe pega. Diria que em quase todos os livros aparece alguém. Utiliza-os como figuras que estão guardadas na caixa e que vai buscar, de vez em quando, para fazer este papel, e aquele e aquele.

 

Utiliza-os na escrita com uma sofreguidão de vampiro. Diz na autobiografia: “Escrever, entrar no coração das pessoas, beber-lhes o sangue, avançando sempre, criando enredos e fazendo saltar os personagens das páginas. Há pouca gente que percebe que escrever é uma espécie de danação em que às vezes se têm encontros com Deus”. Quem foram as pessoas a que recorreu mais e que transformou em personagens?

A mãe dela. A tia. O pai. Imensas vezes. O avô Alfredo, inúmeras vezes. O tio, irmão da mãe. Foi uma pessoa que ela adorou e que morreu jovem. Há uma carta que ele escreve à minha mãe (ela tinha 12 ou 13 anos) de Moçambique, onde estava a trabalhar como engenheiro: é assombrosa.

 

Falava de quê?

Em todas as cartas que escreveu, e escreveu muitas, sobretudo à irmã (minha avó), falava do país, da vida, das pessoas.

O gosto pela escrita na minha mãe vem também do tio e do avô. O avô Lourenço escrevia com pretensões. Vemos isso no diário que deixou. Há nele uma escrita e uma intenção peculiares; e uma vontade de que aquilo venha a ser lido pelos descendentes. Morreu quando a minha mãe tinha três anos.

 

Como foi tão forte a marca dele se conviveram tão pouco?

Ele morreu, mas dá-me a impressão de que permaneceu. A memória do que foi a vida dele chegou até mim.

 

Qual é o essencial da história do avô Lourenço, que fascinou tanto a sua mãe?

Ela lembra-se de ter subido para a cama dele, onde estava doente. Mas não pode lembrar-se de mais. Foi um homem que teve uma vida no Douro, numa terra pequenina. Estudou. O pai morreu quando ele tinha 13 anos. Herdou uma fortuna, à época grande, que estourou em muito pouco tempo.

 

Estourou em quê?

Estroinices.

 

Mulheres, jogo?

Jogo, não. Não era dado. Em negócios que não resultaram. Em viagens. Gastou de uma maneira pouco previdente. Entretanto teve um padrasto porque a mãe casou de novo. Era um intelectual, que tentou que o enteado estudasse. Realmente consegue fazer o curso de engenharia. Trabalha no norte, em Espanha, em África. Casa uma primeira vez com uma mulher muito excêntrica, de Santa Comba Dão. Ao que dizem, rica. Tiveram dois filhos. O rapaz epiléptico, a rapariga tuberculosa. Casa uma segunda vez com a espanhola, a minha bisavó. E tem sempre uma vida e umas atitudes inesperadas. No dia em que vai para Lisboa para embarcar para África, a mulher está a dar um lanche às amigas, na casa do Douro. Ela recebe um telegrama a dizer que ele está a embarcar. E tudo isto é recebido com naturalidade. Pelos filhos, pela mulher. A vida continua. O marido viria, um dia. Havia essa liberdade que uns davam aos outros de serem como eram.

 

Ninguém tinha medo de magoar o outro? É, muitas vezes, o que tolhe as pessoas, este afecto.

Acho que não. Nunca se pensou nesses termos, magoar. “Ele é assim”. Havia um respeito, acima de tudo.

 

Um respeito pela individualidade, pela sua vontade.

Total, sim, sim.

 

Além de usar estes personagens, usa-se a si mesma? Em que livros Agustina está mais na primeira pessoa?

Não como personagem central, mas, às vezes, sinto-o, Agustina aparece intrometida numa personagem. Dá a impressão que aquela personagem não diria aquilo. É ela, Agustina, que está a dizer. Porém, há um personagem que é ela do princípio ao fim. A Germa, d’ A Sibila.

 

Essa é ela há 60 anos. É a mesma que foi sendo, pelos livros fora? Parece que Agustina é sempre Agustina, que estamos a lidar com as mesmas pessoas, os mesmos temas. Apesar dos sucessivos livros e de diferentes registos.

Completamente de acordo. Depois, há obras que saem um bocadinho disso. O Vale Abraão, a Fanny Owen.

 

No Vale Abraão estou a ver essas tias, figuras durienses.

São pessoas de lá, que existiram, com quem Agustina teve convívio. De certo modo são um prolongamento da família. A Fanny é uma história exacta, com aquelas pessoas, que existiram.

 

As pessoas existem ou existiram sempre? Agustina repetia que não tinha imaginação.

Existiram. Propriamente inventar, a partir de coisa nenhuma, não inventava. Vai buscar aquilo que acha que é traduzível em romance ao concreto.

 

A teia principal é constante. O que é que apontaria como traços dominantes nesta manta?

O que está sempre lá são as relações familiares. É uma constante e uma preocupação. Explorar até ao infinito essa dinâmica.

 

E daí se compreende o fascínio por Freud, que leu, e a que voltou, recorrentemente, como quem lê um grande romancista.

Freud, Jung, devorava. Devorava e estudava.

 

Tentava compreender as pulsões?, ouvir o inconsciente?

Sim. Nessa procura de entender a alma, ela estava sempre incluída. De uma forma discreta. A minha mãe nunca se entendeu a si própria como uma personalidade resolvida. Estou a dizer-lhe isto a partir da leitura de cartas que tenho feito. Cartas à mãe dela. Sempre escreveu à mãe de uma forma que não é muito normal. Era como se escrevesse a si própria. A mãe era um interlocutor seguro, que saberia ouvi-la. O que a minha mãe dizia caía num poço, não era comentado, não era censurado.

 

Em que circunstâncias escrevia cartas à mãe? Em que períodos?

Sempre. Toda a vida escreveu à mãe. Como quem fala. Como quem fala a pensar.  

 

Reconhecemos nessas cartas a escrita, o olhar da Agustina? Podiam ser páginas de romance?

Hum. Algumas, talvez. Há descrições que podiam fazer parte de um romance. Mas não era a intenção dela. A intenção era a de se centrar nela.

 

Essas cartas aproximam-se mais do registo de um diário?

Talvez. [Aproximam-se] do diário, da confissão. Confissão no sentido de tentar explicar a sua atitude perante muitas coisas. Não é uma confissão de uma culpa. É no sentido de uma entrega e da interrogação.

 

Ela confessava-se à mãe sem biombos?

Sem biombos. Foi uma correspondência que li há bastante tempo, não me lembro bem... Tudo isto está a ser objecto de trabalho sistemático por parte da Lourença [filha de Mónica e neta de Agustina].

 

Podia confessar a sua vulnerabilidade?

A minha mãe, vulnerável?

 

Agustina era vulnerável a quê?

Verdadeiramente, a nada. [riso]

 

Temos a ideia de que todos temos zonas de sombra e vulnerabilidade.

Não consigo descobrir. A minha mãe, às vezes, era, não direi vulnerável, mas sensível à injustiça [de que era alvo]. Mas rapidamente transformava isso noutra coisa qualquer. Num vestido, numa carteira. Nem sequer isso [a injustiça] permanecia muito tempo.

 

A relação de Agustina com a mãe é central. Mas esta parece ter uma rivalidade que não existe na relação, igualmente central, com o pai e o avô. Concorda? Não parece uma relação cúmplice...

Acho que a relação mãe-filha, filha-mãe é das coisas mais misteriosas que há. É tão forte, tão violenta, tão inacessível o profundo dessa relação. É impossível definir por palavras. Cumplicidade é uma palavra que eu retiraria. Seja qual for a mãe, seja qual for a filha. É de uma relação superficial.

A minha mãe tentou, tentou, trabalhou esse tema em toda a obra. Está para lá do amável, do compreensivo, do necessário. A obra em que senti que havia uma aproximação mais forte a esse tema é A Ronda da Noite.

 

Foi o último livro que escreveu.

Sinto que foi a despedida, consciente. Nunca a vi trabalhar com um esforço interior tão grande como na escrita desse livro. Havia uma entrega, uma ausência... A minha mãe sempre escreveu mantendo a disponibilidade em relação a toda a gente, à família, aos problemas domésticos. Nesse, não.

 

Voltamos à Ronda mais tarde, quando falarmos da última etapa. Ainda em relação à mãe dela: a mãe rasgou o testamento do avô de Agustina dizendo que ela não precisava dele; já tinha a inteligência, que era o seu tesouro.

Claro! [riso]

 

Claro? O que isto pressupõe é a plena consciência, de todos, da inteligência prodigiosa de Agustina. Encarada como um dom. Mas o episódio traz-me a competição entre elas. Numa frase: será que Agustina se sentiu muito amada pela mãe? Admirada, sabemos que sim.

O que é que eu acho? Acho que a minha mãe não é uma pessoa que se ame.

 

Como?

Não! Ela é de tal maneira uma força, tão poderosa, tão poderosa, que nem em criança podia suscitar esse sentimento.

 

Então suscita o quê? O espanto? A assombração?

Suscita temor.

 

Porque não se reconhece aquele objecto estranho?

É. Inclusivamente a mãe dela. Havia uma cerimónia entre as duas. Também em relação aos amigos. Ao irmão. Até o pai. Sendo ele um homem tão independente e tão seguro, tinha uma cerimónia em relação à filha. Não tem que ver com amor. Por isso ela diz: “Nasci adulta, morrerei criança”. Como criança adulta não suscitava esse amor. Suscitava o desafio. Os outros sentiam-se desafiados pela sua presença. Presença, apenas. Nem era preciso mais. Isso manteve toda a vida.

 

É muito impressionante o que diz. O que nos liga, em primeiro instância, é o amor. Mas no caso de Agustina parece que falamos de uma criatura que não obedece a nenhum destes critérios, a nenhuma destas regras de funcionamento.

Foi assim que ela se habituou a olhar para ela mesma. Repare no amor, nas obras. Como é que ela o trata? Está-se sempre na iminência de um estado de amor. Mas está-se sempre na iminência de esse estado se transformar noutra coisa. Que vem a ser a coisa importante. Uma guerra. Um crime.

Estou a lembrar-me da Fanny. O desenvolvimento [da história] conduz à morte dela, quase por vontade própria, à morte dele, também, porque não há outra saída. A morte traduz a falta de imaginação para resolver situações difíceis. Na Ema [Vale Abraão], como é que se resolve o amor? Com a morte dela. Como é que A Sibila resolve uma tentação de um estado de amor? Morre. O amor é sempre um empecilho.

 

Ou um caminho para qualquer coisa.

Um caminho.

 

No caso de Agustina, essa outra coisa que é linda, para citar o poeta, nunca é o amor.

Não, não é. Nunca descobri que essa outra coisa fosse o amor.

 

E o sexo, que importância tem no universo de Agustina? O sexo é olhado como uma força geradora, animal, que não sabemos de onde vem. A sua importância reside no facto de ser um motor, um agente de mudança?

Na vida familiar, o sexo não era referido como matéria relevante. Mesmo comigo, nunca houve uma atenção especial sobre isso. Embora eu sinta nos livros que aparece com um certo poder. Mas é sempre, também, transformável noutra coisa. Dá a impressão que são passadas que a minha mãe dá. Depois varre e caminha em frente.

 

Abordámos a ideia de Agustina estar pronta desde sempre, madura à nascença. O retrato que dá dela n’ A Sibila é prova disso. Esta ideia está também contida no aforismo que já citou, “Nasci adulta, morrerei criança”. Há também uma famosa carta de Teixeira de Pascoaes que se refere à estreante Agustina como uma “escritora dotada do instinto do real” – o que poderíamos, ainda hoje, dizer. O que é que ela dizia acerca deste tema?

Sempre sentiu que estava preparada, segura. Considerava isso um dom. E que tinha vindo ao mundo, a este tempo com um propósito. Mas que não se esgotava aí, [nesse tempo]. [Nos estudos que temos feito], estamos na fase “Agustina e o inacabado”. É isso. A própria vida de Agustina é um inacabado. Tudo isto vai continuar. Tem outros capítulos.

 

Os outros capítulos serão, por exemplo, uma exegese da sua obra?

Não, serão ela própria, noutra galáxia. [gargalhada]

 

Sempre teve a noção de ser imortal? De resto, numa entrevista, falando do post-mortem, disse: “Nem todos podem ser imortais”. Com a clara noção de que ficava.

Volto a dizer: isto não é uma prerrogativa da Agustina, achar que é imortal. Todos na família acham que são imortais! Até porque não dão muita importância à morte. O facto de uma pessoa morrer... Continua-se com o almoço, com o jantar, com as rotinas. Como se fosse – e é! – a coisa mais natural sair daqui e ir para outro sítio. Nunca foi empolado [o tema da morte], nunca foi drama. Desaparecer daqui não quer dizer que não permaneça de outra maneira, com outra forma de presença.

 

Como é que foi quando morreu o pai?

Foi uma morte esperada, porque esteve muito tempo doente. Estávamos a viver em Esposende nessa altura. A mãe sentiu a partida do seu pai com desgosto. Nunca a vi chorar.

 

Nunca chorou à sua frente mas percebia que ela chorava, sozinha?

Eu nunca a vi chorar. Não sei se chorava. Nunca pressenti que pudesse ter estado a chorar. O choro era uma coisa que não imaginava nela. E era completamente insensível quando me via chorar. Queria era afastar essa imagem de ao pé dela. Achava que era uma perda de tempo. E desnecessário.

O que a vi reter da morte do pai foi a descrição do dia e do que aconteceu quando saiu o caixão do Douro para o cemitério de Travanca. Foi um nevão enorme, que cobriu tudo. Já em Março. A minha mãe reteve isto como um sinal. Um sinal de qualquer coisa, não sei o quê. Mas para ela foi importante.

 

Noutra entrevista, que lhe fiz em Serralves, perante a plateia, em 2003, refere-se à quantidade de pessoas que assistiram ao funeral, apesar do frio e da neve. Ficou tocada com isso.

Estava muita gente a esperá-lo. Pessoas até que ela não conhecia. E uma figura misteriosa. Apareceu ao longe, comovido, homem. A minha mãe fixou-o. Nunca soube quem era aquela figura.

 

Diz de si, jovem: “Meu irmão dizia aos amigos que eu era um génio, o que não ajudava nada. Nesse tempo trocava correspondência com desconhecidas só pelo gosto epistolar, e via que exercia um poder sobre elas que não era vulgar. Não as considerava amigas, mas sim o pretexto para eu escrever mais e mais. ‘Eu não preciso de amigos, preciso de quem me leia’, dizia eu.” Sempre teve a noção do seu valor.

Sempre.

 

E nunca teve dúvidas de que ficaria?

Várias vezes a ouvi dizer que a obra estava fora do tempo. Que poderia vir a ser importante mais tarde. E entendida de outra maneira.

 

Nunca a viu com angústia em relação ao que fazia?

Não!

 

Como é que era a cara dela a escrever? Via-a?

Às vezes, via. Ficava completamente entregue e ausente de tudo o mais. Faz-me essa pergunta e lembro-me de situações... Uma vez, tinha seis, sete anos, entrei na sala onde a mãe estava a escrever. Com a prancheta nos joelhos, a manta nos joelhos. Quase tive medo. Só de olhar para ela. Porque não era a minha mãe. Era uma pessoa que estava ali de tal maneira compenetrada em qualquer coisa que eu não sabia bem o que era... O que é que podia provocar aquele ar, aquele transe?

 

Estava enovelada sobre si?, fisicamente essa era a posição?

Sim, e num maple com orelhas, o que também a envolvia.

 

É sabido que o seu pai, de quem não falámos ainda e que tem uma importância enorme na vida da sua mãe, passava à máquina os manuscritos. Esse processo fazia-se como?

O meu pai não se limitava a transcrever. Havia coisas que não percebia. Ou não percebia a letra, embora estivesse habituadíssimo a ela, ou achava que o sentido não era claro. Fazia observações. Era sempre muito mal recebido! A minha mãe acabava de escrever um livro e desligava-se em absoluto dele. Já nem sabia quem era fulano nem sicrano.

 

Logo?

Era um desligar imediato. Portanto não se interessava. Não queria voltar à história. Era o pior tempo da casa, esse em que o meu pai estava a passar à máquina. Era o mais desestabilizado possível, uma guerra entre duas linguagens. Era a fuga da minha mãe a dar qualquer explicação e a insistência do meu pai, com a formação do Direito, e a exigência do rigor, do que tem de ser bem entendido, a querer obtê-la.

O meu pai foi fundamental. Não só no trabalho de transcrição como no de procura de documentos, livros, leituras.

 

A relação deles era muito desigual? Ele tinha o sentimento que se tem por uma criatura tão singular como ela, que se idolatra?

A ideia que tenho é que havia um entendimento muito profundo entre os dois. E, da parte do meu pai, uma admiração muito grande pela obra da minha mãe; e uma vontade imensa de que fosse reconhecida, bem sucedida nas intervenções públicas.

A minha mãe reconhecia as qualidades que o meu pai tinha, e tem. Com ele, não pode haver falhas. A minha mãe é muito mais solta. Se fosse preciso pôr uma data que não correspondia, punha. Achava que tanto fazia. Mas considerava essas qualidades do meu pai importantes para ela.

 

Eram o tipo de casal que tem gesto de carinho, ou nunca os viu assim?

Vejo agora. No passado, nunca vi. Apesar de sentir que havia uma relação de casal, um tratamento atento e carinhoso.

 

Tocar o ombro, agarrar a mão: só agora? Agora que estão entregues um ao outro e à velhice?

Sim. Agora vejo e quase não me apetece ver, sabe? Não é aquilo a que eu estava habituada. É comovente. O tempo, e a situação de doença da minha mãe... Não sei se lhe podemos chamar doença.

 

Como é que lhe chama?

Chamo-lhe uma ausência. Todo este processo da minha mãe é muito complicado, muito estranho. A minha mãe sempre disse que não tinha nada a ver com médicos. Quando começou a ter sintomas de qualquer coisa do foro neurológico, disse que o que tinha era uma depressão profunda. É o que eu acho que ela tem. Começou a aprender a viver com ela. Já lá vão oito anos.

 

Teve um derrame cerebral em 2006, é assim?

Dizem que sim. Ela diz que não. Todos os sintomas desse dito derrame foram vindo aos bocadinhos. A fala, o andar, o deglutir. Depois recuperava. Por isso é que nunca achou necessária a presença de médicos. Dizia que sabia o que se estava a passar. Acredito que sim. E lendo o último livro que escreve, [percebe-se] que o que aconteceu a seguir é a sequência natural.

 

O que conta do estado da sua mãe não coincide exactamente com a doença de Alzheimer...

Mas a mãe não tem Alzheimer.

 

Então teve um derrame seguido de um apagamento de si própria?

Sim. Nunca perdeu a consciência, de quem é, de onde está, da família. Simplesmente fechou-se num quarto.

 

E deixou de escrever.

Mantém o gesto, o movimento da escrita. É capaz de escrever. Não é capaz de engendrar um mundo.

 

A caligrafia mantém-se?

Agora é natural que esteja mais debilitada, mas até há um ano era exactamente a mesma. Sem hesitação.

 

O que é que escreve? Cartas, notas?

Não escreve nada. Nós dizemos: “Mães, escreve esta frase”; e ela escreve, direitinho.

 

A Ronda da Noite, escrito em 2006, meses antes do derrame: é um livro de preparação para a morte?, é um livro de despedida?

Preparação para a morte, não.

 

De zanga, porque vai morrer?, porque vai envelhecer?

Não. A preparação para a morte: acho que foi a vida toda. A Ronda da Noite foi o registo de uma memória que ela não queria que ficasse dita de outra maneira. Queria que a mãe dela fosse recordada assim. O sítio onde aquilo se passa tem muita importância no imaginário dela. É uma quinta, que foi vendida. Como tudo. Esses rastos de lugares, de casas, a mãe foi-nos apagando.

 

Vendeu não por necessidade?

Não por necessidade. Era de família. A mãe dela era assim. Tinha a tentação de mudar. Sair daqui e ir viver para ali. Fechar a casa. Esse gosto nómada, aventureiro, sempre existiu na minha mãe. Encontrei no outro dia, no Eugénia e Silvina, a razão de ser disto: “Um sinal de luto profundo é o abandono do lugar onde se vive e se têm recordações”. Parei aqui. Pensei se este abandono sistemático dos lugares pela minha mãe quereria dizer luto. Quereria dizer um abandono das recordações? Com certeza, sim.

 

É a cuidadora de uma mãe debilitada e também uma das cuidadoras do seu espólio. Como está entre estes dois papéis?

Ao lidar mais de perto, mais atentamente com a obra dela, e sem a palavra dela ao lado, que era o que normalmente tinha (tinha a minha mãe disponível para lhe fazer perguntas), procuro, procuro-a. Leio a obra dela nessa perspectiva: a da razão de ser disto e daquilo, desde comportamento e deste pensamento. Não é bem a escritora... É o desvendar, no fundo, da minha mãe. Dela como figura mãe.

 

Ela como figura mãe, ela como pessoa estão na obra que escreveu, nas entrelinhas?

Sempre.

 

Agustina continua a ter gosto nos vestidos?

Aiii, sim! Sim! De que maneira.

 

Quer dizer qualquer coisa. Lembro-me de ouvir Agustina falar com mais alegria de um bordado do que de Dostoiévski.

[gargalhada] Isso continua presente. Aí não houve derrame nenhum! Eu entro na sala; se vou mais bem vestida, porque fui a um jantar ou almoço, a mãe tem um olhar absolutamente fulminante. Chama-me e começa a ver o que tenho. Dos pés à cabeça. Os sapatos, a roupa, a carteira. Olha-me com uma expressão... sei lá! De fúria. Como quem diz: “Tu usas isso! Tu podes usar isso. E eu não.” Não digo que seja inveja. Mas uma certa...

 

Impotência perante a velhice? Porque já não pode.

Já não pode ir às lojas, já não pode ir a Paris buscar as coisas, já não pode escolher. É a única vez em que sinto que a mãe está na plena posse das suas capacidades.

 

De onde vem este gosto pelos vestidos? Um dos aforismos mais famosos: “O sucesso não vale tanto quanto um vestido novo”.

Tem razão.

 

Não era uma boutade?, acreditava nisso?

Absolutamente sim! Há tempos foi lá a casa uma pessoa visitá-la. Muito ternurenta, com aquele ar “coitadinha da senhora dona Agustina”. A mãe ouviu tudo, impassível. A senhora foi-se embora. A mãe: “Estava tão mal vestida!”. [gargalhada]

 

Extraordinário.

É. Articulou tudo muito bem articulado.

 

Enquanto tiver esse gosto...

É sinal de que está aqui, sendo ela.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2014