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Anabela Mota Ribeiro

Patrick Monteiro de Barros

20.01.15

Patrick Monteiro de Barros é o homem que defende que Portugal não pode prescindir do nuclear. Apesar do Japão e da terra e da gente devastada. (Mas o assunto, a exigir cuidados redobrados com a segurança, como o próprio diz, já foi tratado nas páginas deste jornal). Patrick – se se disser Patrick, em Portugal, subentende-se o Monteiro de Barros – é o milionário apaixonado pelo mar, velejador olímpico, que mostra a fotografia do seu barco como quem mostra uma fotografia de uma pessoa próxima por quem se tem muita estima. Não o mostra como um brinquedo, porque não parece que os barcos sejam para ele um brinquedo (como os carros devem ser um brinquedo).

Estava, aliás, a chegar da vela quando começámos a entrevista.

Chegou algo esbaforido, a desculpar-se pelos quatro minutos de atraso. Um pormenor que pode não querer dizer nada. Ou sim. Não acontece muito alguém desculpar-se por estar quatro minutos atrasado. E a chegar à sua própria casa.

Pelo sim pelo não, cheguei, não quatro minutos antes da hora, mas 40. Hábitos portugueses, já se vê. Sobretudo quando se vai encontrar um português que trabalha como os americanos e que põe fora jornalistas que se atrasam. A fama precede-o.

Deu tempo para ir comer gelados. Coisa que contei numa tentativa de fazer graça, e, mais do que tudo, para perceber se ele reagia com espanto ao facto de eu ter chegado 40 minutos antes da hora combinada. Como esperado, não reagiu. Fique a senhora a saber – não disse, mas podia ter dito – que não fez mais do que a sua obrigação em ter chegado a horas. De acordo. Vamos ao que interessa.

O que interessa: a vida de Patrick. Um mundo que existe e que se refaz praticamente do zero. Isto descontando as ferramentas, nada despiciendas, que se adquirem na infância (educação e relações). Um mundo parcialmente ilustrado nas fotografias dos móveis em frente. O filho, que vive em Londres (em Belgravia, claro). Bush-pai com quem caça todos os anos. A casa americana que evoca E tudo o vento levou. O barco de linhas elegantes no que pareciam ser os fiordes da Noruega. Maria João e Ricardo Salgado numa fotografia de há uns 30 anos. Ele, Patrick, quando a vida ia a meio. Os pais, a mulher. Mais amigos. Mais casas. Mais vida.

Acabámos a entrevista talvez uns 40 minutos além da hora combinada. “A culpa é sua!”, acusou. De acordo.

 

É mesmo verdade que guiou camiões, atestou depósitos e fez aquelas coisas que Manuel Bullosa o aconselhou a fazer, quando começou a trabalhar, para conhecer os cantos à casa?

Absolutamente verdade. Fico-lhe muito grato por isso. Conheci o Sr. Manuel Bullosa muito antes de acabar os meus estudos.

 

Como é que se conheceram?

Quando estava a estudar em França, na Associação de Alunos da minha Business School, era responsável pelos eventos. Com a ajuda do banco do Sr. Manuel Bullosa organizou-se um evento, um jogo do Benfica contra o Paris Saint-Germain. Os proveitos eram divididos entre a Business School e a Associação dos Portugueses em França. O evento deu lucro e o Sr. Manuel Bullosa disse: “Um dia você tem de vir trabalhar comigo”. Depois de uns anos voltei para Portugal.

O meu pai entretanto tinha falecido. A Fundação Monteiro de Barros era uma organização muito estática, não oferecia grandes challenges e havia um certo generation gap com os outros membros da família.

 

Era maioritário.

Sim, mas era ainda um jovem, e aquilo não correu muito bem. As relações eram tensas. Um dia encontrei o Sr. Manuel Bullosa, falei-lhe disso. “Porque é que não vem trabalhar comigo?”. Why not? “Você tem um diploma universitário, é quem é, se quiser pode entrar já para um lugar de chefia intermédia. Se quiser realmente aprender o métier, aconselhava que fizesse o estágio em profundidade”. Como o problema material não era fundamental, aceitei esse desafio. Estive nas refinarias, nas instalações de armazenagem, estações de serviço e abasteci navios no Tejo.

 

O que é que aprendeu humanamente no período em que fez essas tarefas?

Foi a minha primeira experiência de lidar com a classe operária.

 

Nunca tinha lidado, antes disso, com pessoal?

Tinha, na herdade e na quinta da família. Tínhamos uma herdade grande no Alentejo. O meu pai era uma pessoa que dava um enorme valor às relações humanas com os seus empregados. Tinha 12 anos e fui malcriado com uma empregada doméstica, o meu pai obrigou-me a apresentar-lhe desculpas.

 

Que é que tinha feito, lembra-se?

Chamei-lhe nomes. Estava com uns amigos, fomos passear a cavalo. Quando voltei, à hora de almoço, qual não é o meu espanto, vejo cerca de 100 pessoas no monte, tudo alinhado, e o meu pai: “Peça desculpa a esta senhora”.

 

Sentiu-se humilhado? Ou teve a noção de que aquilo era uma lição que o seu pai lhe estava a dar para a vida?

Foi uma lição, uma boa lição. Nunca mais fiz isso.

 

Com quem é que o seu pai aprendeu a ter essa consideração e respeito pelos subordinados? Convenhamos, é uma coisa que fica muito bem, mas nem toda a gente tem.

Tinha a ver com o seu feitio, e talvez com alguma tradição da família. Tivemos sempre no passado uma ala militar na família. Tive um tio e um tio-avô Almirantes. E altos funcionários, governadores ou vice-governadores de províncias ultramarinas.

 

Voltando a cabo Ruivo, quando começou a trabalhar com Bullosa: gostava de perceber como é que foi esse contacto no dia-a-dia.

Primeiro pensei: “Como é que vou para Cabo Ruivo? Não vou de fato e de camisa de seda, não vou no MG”. Achei por bem arranjar uma indumentária que não fosse a que usava no escritório. Apesar de a Sonap ser uma boa empresa, e de na época, as pessoas serem bem pagas, pela primeira vez apercebi-me de que havia problemas sociais, políticos e humanos, na sociedade portuguesa, que desconhecia totalmente. Até porque tinha estudado no estrangeiro.

 

Imagino que fosse a revelação de um mundo diferente para si. Pessoas que levavam a marmita.

Não tínhamos disso. Na Sonap tínhamos um excelente refeitório. Eram empresas majestáticas. Havia talvez um excesso de paternalismo na política de relações humanas. A festa de Natal, com todo o pessoal, os bairros residenciais, as colónias de férias. Mas para além dessa aparente harmonia, havia problemas latentes, que se sentiam ao falar com as pessoas, por exemplo, da guerra colonial. Comecei a trabalhar em 1968 – a discussão do tema estava no seu apogeu.

 

A revolução ainda demoraria a chegar. Só aconteceu seis anos depois.

Em 1968, o regime do Prof. Salazar durava há 40 anos. Antes do acidente que o afastou da liderança, eu tinha feito um estágio na Sonap em 1967, com o Eng. Jorge Jardim, que estava encarregue pelo Prof. Salazar de abrir uma frente diplomática confidencial com alguns países africanos. Admito que o Prof. Salazar tivesse a seguinte ideia: “Não podemos ceder à guerrilha, temos de ganhar militarmente no terreno e depois encontrar uma solução política”. Tinha ficado profundamente traumatizado pela perda da Índia. Quando veio o Prof. Marcelo Caetano para o governo, na minha geração houve uma enorme esperança. Era uma pessoa de bem, séria, trabalhadora, mas que infelizmente não tinha jeito nenhum para a política.

Do 25 de Abril há-de um dia escrever-se a verdadeira história. Ainda há muitas pessoas que são vivas e não lhes convém nada que a verdadeira história apareça. O 25 de Abril não foi à partida uma revolução popular. Começou por um golpe de militares descontentes e manipulados.

 

Manipulados por quem?

Pelo Partido Comunista. Hoje as coisas mudaram, mas é preciso reconhecer, e conheço alguns comunistas do antigamente, que há neles uma faceta parecida com a dos franceses que estiveram na Résistance, contra os ocupantes alemães. Era uma resistência contra o regime e não só uma afirmação doutrinária. Nessa altura o partido comunista era a única alternativa para quem quisesse manifestar activamente a sua oposição ao regime.

Houve um [levantamento] militar de oficiais descontentes, e alguns com razão para o descontentamento. Por volta do meio-dia, quando as duas facções se encontram face a face, nem de um lado nem do outro quiseram atirar. Eram colegas de curso, tinham estado juntos em comissões no Ultramar. Então meteram-se num táxi e foram buscar o General Spínola, que tinha aparecido como um mentor de uma evolução para o País, com o famoso livro Portugal e o Futuro. (Posso dizer isto porque o General Spínola era casado com uma prima minha). O General Spínola pensou que tinha chegado a sua hora e que ia salvar o País. Ficaria como presidente, e Marcelo Caetano tinha como ambição continuar como primeiro-ministro. “Não entrego o poder à rua, só entrego o poder a Spínola”, disse. Spínola pega num papel e num lápis, começa a fazer uma lista, e a primeira coisa é fazer uma Junta de Salvação Nacional. No fim do dia caem as máscaras e o Partido Comunista impõe-lhe uma série de nomes da sua confiança para a lista. Daí tudo o que aconteceu a seguir!

 

O encontro com o Manuel Bullosa foi fundamental?

O Sr. Manuel Bullosa foi um homem que me deu uma oportunidade excelente. Tinha por ele uma grande amizade, como se fosse um tio adoptivo. Nomeou-me administrador-delegado da Sonap mal tinha 30 anos, era o único naquela idade. Deu-me o baralho de cartas.

 

O que é o baralho de cartas?

Deu-me uma liberdade de acção que nunca tinha dado a ninguém naquela casa. E foi um grande mestre.

 

Existia em si um sentimento de orfandade? Tinha 18 anos quando o seu pai morreu.

Sou único filho de um matrimónio tardio do meu pai. Quando nasci, o meu pai tinha 45 anos e a minha mãe 44. Por mais que o meu pai e a minha mãe gostassem de mim, era quase um neto para eles. O meu pai tinha um papel importante na sociedade. Tinha negócios, viajava imenso, ia a África, aos Estados Unidos, tinha uma vida social muito activa, casa em Paris. Muito cedo passei a ser by myself. Via pouco os meus pais. Nunca fui interno, mas via mais a Madame Legal, a minha mademoiselle francesa, do que a minha mãe. Era assim naquela época. O meu pai gostava imenso que viajasse com ele. A partir dos dez anos viajávamos muito pelo Alentejo, quinta do Douro, França e vários países europeus e africanos. Quando faltava às aulas com estas viagens tinha sempre um tutor.

 

E depois fazia provas, para poder viajar?

Exacto. Tinha problemas pulmonares, passava cerca de dois meses por ano no ski, ia com a Madame Legal e o tutor, depois voltava ao Liceu Francês. Tive uma educação totalmente francófona, jardim infantil, primária, secundário no Liceu Francês em Lisboa, depois na Universidade e “Business School” em Paris. Era um bom aluno. Desde pequeno tive uma vida mais mature, mais adulta. Quando o meu pai faleceu, foi um choque enorme, mas estava preparado para a vida. O meu pai tinha um homem de confiança, um braço direito, técnico de contas, o Sr. Delfim; disse-me: “O menino acabe os seus estudos”. Arranjei pessoas que tomaram a presidência e a vice-presidência da Fundação, e vinha cá todos os 15 dias. Aprendi a gerir por delegação e continuei a fazer os meus estudos. O meu pai fez muita falta, e morreu novo, com 65 anos.

 

Falava francês com a sua mãe e português com o seu pai?

Sim. Mas também aprendi inglês, em Inglaterra. Depois fui para a Alemanha, falava alemão. Pelo caminho aprendi outras línguas. Tive uma educação sui generis, mas excelente.

 

Foi educado para ser o quê?

Posso dizer, como se diz em inglês, que nasci with a golden spoon. Éramos uma família abastada. O meu pai aumentou essa fortuna de uma forma substancial. Nunca me faltou nada, mas aprendi cedo que um tostão é um tostão. Ensinou-me que o dinheiro respeita-se, não se esbanja.

 

Uma coisa que tenha querido ter, e que não lhe tenham dado, ou que tenha tido que merecer – lembra-se de alguma coisa?

Durante muitos anos quis ter uma bicicleta motorizada e a minha mãe era contra.

 

Mas isso era o medo que as mães sempre têm de que os filhos tenham desastres.

Não ma deram, por mais que a quisesse. Mais tarde o meu pai deu-me uma mota. Não me posso definir como um menino mimado. O meu pai dizia sempre que tudo na vida é relativo, e que as pessoas valem por si próprias, não pelo que está à sua volta ou que vem de trás.

 

Isso é um conceito muito americano.

Ele era assim. Nós, europeus de raiz latina, temos um sistema segundo o qual as heranças são divididas por todos. No sistema anglo-saxónico, um pai deixa aquilo que quer, a quem quer e como quer. Houve casos de filhos que herdaram a fortuna toda da família e de outro filho que recebeu dez libras. É o challenge da vida.

 

Sentiu esse challenge quando os bens da sua família foram nacionalizados e teve de recomeçar tudo do zero?

Não foi bem assim. No dia 12 de Março de 1975 tive de “dar o salto”. Tinha um mandado de captura passado pelo Otelo Saraiva de Carvalho, que os assinava em branco – os nomes vinham do Partido Comunista. A partir do golpe do 11 de Março, a estratégia dos elementos comunistas do MFA (uma santa aliança), era destruir o sistema capitalista português. A ideia foi nacionalizar tudo e mais alguma coisa. Chegou-se ao ponto de se nacionalizar a fábrica da cerveja e companhias de transportes públicos, camionetas. Está a ver onde é que isto ia parar. Estávamos numa luta de classes. Ou se fugia ou se ia preso.

 

Foi o que aconteceu. Muitos fugiram e muitos foram presos.

Os meus amigos e sócios da família Espírito Santo, muitos foram presos. A razão do meu mandado de captura foi que 15 dias antes tinha tido um problema na Sonap com a comissão de trabalhadores de esquerda, que foi posta em cheque numa assembleia-geral de trabalhadores. Isso não convinha. Conheci em Moçambique, nas minhas fainas com o Eng. Jorge Jardim, um militar que estava nas operações especiais, e nessa altura adstrito ao COPCON, que me disse: “Se vir alguma coisa que lhe diga respeito, aviso-o”. Tínhamos combinado um código e ele avisou-me. Eram duas e meia da manhã.

 

Porque é que ele o fez?

Foi por amizade. Fui ao terraço da minha casa, vejo os camiões, a minha mulher disse: “Põe-te a andar, como sou francesa não vai haver problemas e encontramo-nos em Paris”. Não tive tempo de fazer uma mala. Depois de uma aventura rocambolesca consegui sair de Lisboa nesse dia.

 

O que é que fez de madrugada, quando saiu de casa?

Primeiro falei com um amigo que me disse para não ir para perto das embaixadas, que estava tudo cercado. Lisboa estava fechada. Fui para casa de um grande amigo, e comecei a pensar como é que saía daqui.

 

Em Paris, foi trabalhar novamente com Bullosa, que entretanto saíra de Portugal.

O Sr. Bullosa tinha no seu império um banco em Paris no qual era administrador. Falava muito em vender o banco. Eu, francamente, não tinha ambição de ser banqueiro. Um dia apareceu-me um contacto de uma empresa de trading, com quem tinha feito negócios na Sonap, que me fez uma proposta de ir para os Estados Unidos. Contrato à experiência de seis meses para reforçar o departamento de trading dessa companhia, a Philipp Brothers, e com o objectivo principal de penetrar no mercado brasileiro.

 

E aí tinha a vantagem de falar português.

E conhecia algumas pessoas no Brasil. Falei com a minha mulher e disse-lhe que não via grande futuro na Europa. Falei com o Sr. Manuel Bullosa: “Se precisar de mim fico, se não precisar vou tentar isto”.

 

Quanto tempo depois foi para os Estados Unidos? Quanto tempo esteve em França?

Cheguei aos Estados Unidos no dia 24 de Setembro de 1975.

 

Que dinheiro tinha em França?
Nada. Vou explicar-lhe porque é que perdi tudo. A Fundação Monteiro de Barros era uma espécie de holding. As relações com os outros membros da família eram difíceis e resolvi tomar o controlo da Fundação. Repatriei todo o dinheiro que tinha lá fora e fiz um empréstimo em Portugal, em 1973. Quando veio a revolução as contas estavam todas congeladas e não pude pagar os juros. Tinha dado a minha garantia pessoal. Não tinha rendimentos, estava tudo de pantanas, e os juros, com a inflação, chegaram aos 18, 20 por cento. Não tinha hipótese. Perdi a casa de Lisboa, a casa de Cascais, e todo o resto foi nacionalizado ou expropriado. Não podia vir a Portugal. O Sr. Manuel Bullosa pagava-me um ordenado de administrador no banco, em Paris, mas não era uma mina de ouro!

 

E não dava para manter o nível de vida a que estava habituado.

Quando cheguei a Nova Iorque tinha 28 mil dólares no bolso.

 

Quanto tempo demorou até ficar outra vez milionário?

Não sei se sou milionário.

 

Depende dos parâmetros, portugueses, americanos.

Vou responder de outra maneira. Levei um ano e meio até voltar a ter uma qualidade de vida aceitável. Um ano e meio muito duro. Os americanos não são generosos. Além do ordenado modesto, pagavam-me 50 por cento da renda do apartamento que ocupava em Manhattan. Pus o meu filho a estudar no liceu francês em Nova Iorque. Só as propinas do Pascal eram mais de um terço do meu ordenado. Vivíamos num basement, tínhamos uma sala que era sala, cozinha, e um quarto e meio. Foi aí que aprendi que às vezes a pessoa tem que usar a camisa dois dias seguidos. Não estava habituado, confesso. Por não podermos sequer ter uma empregada doméstica, teve de ser a minha mulher a lavar o chão, fazer as compras, lavar a roupa. Foi duro para ela, mas nunca se queixou.

 

Já passaram anos suficientes para perceber que foi uma boa educação?

Foi uma experiência muito válida. E tenho a sorte de ter uma mulher extraordinária.

 

O que é que foi mais duro?, deixar de ter as coisas a que estava habituado?

Nunca tinha passado pela necessidade de verificar ao dólar o saldo da minha conta no banco. Chegava o fim do mês, aquilo estava tão justo...

Havia uma agravante: viajava intensamente pelo mundo. A minha pobre mulher passava duas e três semanas sozinha com o nosso filho. Chegava o fim do mês, ia à caixa da companhia e pedia um avanço para as viagens e também para equilibrar o orçamento familiar.

 

Viveu aquilo como sendo vexatório socialmente? Como se fosse um falhanço?

Nunca considerei aquilo um falhanço. Considerei uma adversidade. Nunca tive para com o meu país uma atitude de vingança. Passou, passou, vira a página. Sou dos que consideram que uma grande parte da responsabilidade daquilo que se passou cabe à elite económica de então, e da qual fazia um pouco parte.

 

Como assim? Como é que essa responsabilidade cabe a essa elite?

Uma elite económica tem o dever de participar na definição do destino do seu país. Infelizmente o que se passava e passa ainda em Portugal é que sistematicamente essa elite abdica dessa responsabilidade. Ainda há o que chamo “complexo do empresário”. Com o Salazar, não se discutiam ordens. Se olharmos para o que se passa em Espanha, país que conheço muito bem, a elite, o poder económico, dialoga de igual para igual com o poder político. Em Portugal, salvo raras excepções, o poder económico está de cócoras perante o poder político. Por isso é que estamos nesta situação.

 

Acha mesmo que é assim? O Jornal de Negócios publicou uma lista dos homens mais poderosos do país e Ricardo Salgado aparece à frente de José Sócrates. Existe uma certa paridade entre o poder político e o económico.

Foi o seu jornal que fez esta classificação. Conheço o Dr. Ricardo Salgado muito bem, é um amigo do peito e tenho o prazer de trabalhar com ele. Discordo totalmente desse tipo de classificação.

 

Porquê?

Como é que define o poder? Não pode misturar poder político com poder económico. No seu jornal fizeram uma salada russa. No tempo do Salazar havia a lei do condicionalismo industrial, as forças económicas foram criadas em simbiose com o poder político, e daí a sua subserviência.

 

Ou seja, quem dava a licença era o poder político.

Não estou a fazer uma crítica ao partido A ou B. Continua a verificar-se uma prepotência do poder político em relação às actividades económicas, que é inaceitável. E o poder económico ainda tem a mentalidade “não se pode partir a loiça, porque há retaliações”.

 

Retaliações?

Não tenha dúvidas. O poder político é indispensável numa democracia, mas o poder económico (o empresariado, a vontade de criar riqueza, de criar postos de trabalho) é aquele que faz andar o país. O poder político é para servir o país, o poder económico é para fazer crescer o país. Quando as coisas correm mal tem que haver um poder judicial, que não existe em Portugal. E por isso este país é de momento ingovernável.

 

Dito assim parece que está no nosso ADN, e que não é uma situação conjuntural.

É ingovernável num quadro democrático, pode ser governável fora de um quadro democrático – o que não queremos.

 

Numa ditadura, novamente?

Pode acontecer. Não se pode excluir esse risco. A regra de base numa democracia é simples: votos, eleições, deputados, governo, leis. Como é que querem governar o país se à cabeça toda a gente sabe que as leis não se cumprem? E se não se cumprirem não acontece nada, porque o sistema judicial não funciona.

 

É daqueles que começaria por fazer, antes de qualquer coisa, a reforma da justiça.

Absolutamente. É complicada, é uma série de remendos sobre remendos. Basta ver a morosidade dos processos e as prisões preventivas que podem durar mais de um ano. Não há sanções e as pessoas não respeitam as leis. Se não respeitam as leis, não se pode governar o país.

 

Gostava que explicasse melhor isso da democracia versus ditadura.

Veja a história da 1ª República, a confusão chegou a tal ponto que um dia houve um golpe de Estado.

 

O que está a dizer é que pode acontecer um golpe de Estado ou uma mudança de regime por estarmos numa situação ingovernável?

O poder político está de tal maneira difuso que nenhum partido pode chegar a uma maioria. Estamos em risco de entrar na espiral de governos a caírem uns atrás dos outros. O país precisa de uma certa estabilidade. Há um momento em que é preciso dizer: “Isto está tão mau que temos de salvar o navio”.

 

É apologista de um sistema que funcione. Mas não de uma ditadura.

Exacto. Não é preciso uma ditadura para nada. É preciso ter leis e ordem, "Law and Order”como se diz nos países anglo-saxónicos.

 

Vamos voltar a Nova Iorque. Em quanto tempo é que deu a volta?

O grande pulo foi ao fim de cinco anos, 1979/80.

 

Tinha confiança em si e não duvidava de que ia conseguir?

Temos sempre dúvidas, mas ao fim de uns anos pensava que tinha boas probabilidades de vingar.

 

Em nenhum momento falou do que sentia. A confiança, a felicidade, os sonhos, essas coisas que também fazem parte da vida do homem. Era um menino triste porque via mais vezes a mademoiselle do que a sua mãe? Sentia-se inseguro ou carente?

Não. Não tinha irmãos, mas tinha um primo muito próximo e tive a sorte de ter grandes amigos. Vivia perto de um deles, e penso que passei mais fins-de-semana, quando os meus pais não estavam, em casa dele do que na minha. Fazia parte da família, tinha o meu quarto, a minha cama.

 

Era o Ricardo Salgado?

Era o Nuno Brito e Cunha. Com o Ricardo tinha também uma grande amizade, fizemos juntos a nossa comunhão solene e brincávamos com o comboio eléctrico. Só que depois o Ricardo foi para a Suíça, para o colégio. Ficámos muito amigos, mas não nos víamos tanto. Só nas férias ou na vela. O meu amigo mais velho é o Nuno, ainda hoje falamos várias vezes por semana. Naquela época, as relações entre pais e filhos eram muito diferentes das de hoje. Eram muito mais formais. A mãe tinha o seu filho, tinha uma nanny, e via a criança antes de ir para um cocktail com o marido. Aos sete anos ia para um colégio interno. Eu tinha óptimas relações, mais com o meu pai do que com a minha mãe. A minha mãe tinha uma vida social muito activa. Com o meu pai era diferente íamos ao Alentejo e percorríamos a herdade a cavalo ou de jeep.

 

Que sonhos tinha? O que é que queria ser, o que é que queria vencer? Que challenges é que tinha?

Tive sempre uma enorme atracção pelo mar. Era obcecado pelo mar. Essa obsessão nasceu talvez dos passeios no iate do meu tio, que era Almirante. A primeira vez que fui num transatlântico tinha cinco, seis anos. Quando me perguntavam o que ia ser, dizia: “Vou ser armador”. Sempre ligado ao mar. O meu último quarto de jovem era decorado como se fosse a cabine de um barco. Tinha um beliche e tudo.

 

Mar. Fez duas voltas ao mundo.

Estou a acabar a terceira. É um projecto que nasceu depois da minha última campanha olímpica, Barcelona. Cheguei à conclusão de que já tinha idade para deixar. Um amigo meu, grande velejador, disse-me: “Porque é que não arranjas um barco menos atlético e vais fazer umas voltas ao mundo?”. E nasceu a ideia de um projecto que se chamava “Around the World in Eighty Months”. Encontrei este barco, apaixonei-me por ele, fizemos a primeira volta. Como tenho de trabalhar não posso fazer todas as etapas. A tripulação vai levando o barco, várias vezes por ano vamos ter com ele e fazemos cruzeiros pelo mundo fora.

 

Tem de trabalhar ou escolhe ter esse desafio para se sentir vivo? Tem dinheiro suficiente para não ter que se preocupar com isso.

Uma vez na minha Business School, em França, fizeram-me a seguinte pergunta: “Qual foi o seu melhor negócio?”, “Foi entrar em 1975 na empresa americana”. Nos Estados Unidos não há empregos garantidos, é preciso mostrar resultados. “Ao mesmo tempo ter feito quatro campanhas olímpicas, e ter conseguido conciliar isso com o trabalho”. Não ganhei nenhuma medalha, mas posso garantir que os meus pares, os grandes campeões olímpicos, sempre olharam para mim como um concorrente respeitável, e não como um turista olímpico. Mesmo assim conquistei um título mundial e um europeu.

 

Mas precisa de trabalhar? A sua cara muda quando fala dos barcos e do mar.

Estou a reduzir o meu campo de acção em Portugal. Tenho 66 anos, mas já vou na segunda batalha contra o cancro. Também conta. Foi há uns anos.

 

E isso muda a vida?

Não muda a vida, mudam os horizontes. Se me perguntar se posso deixar de trabalhar amanhã? Com certeza. Mas tenho responsabilidades. Sou accionista de um grupo e o mínimo que se pode dizer é que as coisas não são fáceis. Nos momentos em que as coisas não são fáceis temos a obrigação de dar o nosso melhor. Tenho uma companhia de trading, tenho colaboradores, alguns há 20 anos. Chegou a hora de tomarem conta da empresa. Isso leva tempo. Têm de a comprar, não a vou oferecer. Se correr tudo bem daqui a um ano, um ano e meio, está tudo resolvido. Tenho a Petroplus, onde sou chairman. Houve pessoas que investiram na companhia, e as coisas estão muito difíceis na área de refinação de petróleos. Reformar-me? Sim, num horizonte de dois, três anos.

 

Que horizontes mudaram com a doença? O que é que se relativiza?

Vamos todos morrer, é uma questão de timing. Fazia planos a dez anos, talvez hoje faça a cinco.

 

Teve medo de morrer?

Não, não tenho medo da morte. Já a vi duas ou três vezes bem perto. Uma vez no mar, outra em África. So what? Quando chegar a hora, peça a Deus que seja rápido e não doa muito.

 

Não recuperou nada do que tinha sido da sua família? Não sente apego por nenhuma das casas do seu passado, dos seus familiares?

No Alentejo recuperámos uma parte pequena da herdade, numas condições muito adversas. Vendi. Não me sentia com coragem de voltar ao monte do Marmelo, completamente diferente do que tinha conhecido. Pertence à Nutrinveste, dos Mellos. É o mais belo olival do país.

 

Conseguiu fazer mais dinheiro por si do que aquele que a sua família tinha no passado?

Não sei, nunca fiz as contas.

 

Porque é que isso nunca foi importante?

Tudo é relativo. A definição da fortuna de uma pessoa é o que se tem no bolso. E aquilo que pode ir ao banco levantar sem dar nada em caução. Já me têm perguntado: “Quanto é que o senhor vale?”. Já saí da lista [dos mais ricos], de uma revista mensal portuguesa, felizmente e a meu pedido.

 

Está a dizer isso com ironia, confesse. Toda a gente gosta de ter dinheiro.

Está completamente enganada. Não existe em Portugal, como existe nos Estados Unidos para a Forbes, a possibilidade de fazer essa listagem com alguma exactidão. Felizmente, ou infelizmente, depois do desaire da refinaria Vasco da Gama, resolvi desinvestir em Portugal, e criei a Petroplus. Falei com o director dessa revista e disse-lhe: “Já não sou residente em Portugal, o senhor faça o favor de me tirar da lista”.

 

Porque é que continua a sentir-se português? É Patrick, e não Patrício, que é o que vem no bilhete de identidade.

Patrício. Naquela altura não se permitia a um cidadão português ter um nome estrangeiro. A minha avó materna era irlandesa – eis o porquê do Patrick. É a minha terra, fui educado cá, o pai era português e tenho muita honra em ser português.

 

Estados Unidos, Virgínia. O que é que significa para si ter uma casa desenhada por Thomas Jefferson?

Foi a primeira casa que comprei depois de deixar Portugal. (Primeiro comprei um apartamento em Nova Iorque onde não tinha a ideia de ficar toda a vida – era um poiso.) De todas as minhas casas é aquela que considero “o meu lar”. Quando vi a casa pela primeira vez, disse: “Conheço esta casa”. Nunca lá tinha posto os pés. No dia seguinte, ao pequeno-almoço, disse à minha mulher que tinha sonhado que era um oficial do exército sulista, que ela era a filha dos donos daquela casa, e que casávamos naquela casa. Gone With the Wind. Comprámos a casa. Seis meses depois apareceu o presidente da associação histórica da Virgínia com um certificado de casamento de Aristides Monteiro de Barros, 1850, filho de Francisco Xavier Monteiro de Barros, que seria o irmão do meu tetravô, e que tinha emigrado para os Estados Unidos. Esse Aristides, durante a guerra civil, era o regimental surgeon do Coronel Mosby e casou com a sobrinha do primeiro proprietário da casa. Não tem fantasma. E está tudo documentado. Edgemont é um monumento nacional. Foi desenhada e construída pelo presidente Thomas Jefferson em 1946.

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011