Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Anabela Mota Ribeiro

Pedro Adão e Silva

18.11.14

Pedro Adão e Silva não tem um estilo de pistoleiro, mas atira a matar. Sobre o Governo (quando diz que estamos a ter um PREC de direita). Sobre o Ministério Público (quando diz que ninguém está livre de ser condenado arbitrariamente). Sobre Carlos Costa (quando, a propósito do caso BES, diz que o governador interveio tarde e tem manchas no currículo). O seu estilo é, no mínimo, contundente. E o tom afável, muito afável.

Licenciou-se em Sociologia, tem um doutoramento em Ciências Sociais e Políticas. Talvez um dia, na política, passe para o outro lado, o da política activa. Para já, escreve no Expresso, é comentador na TSF e SIC – Notícias, dá aulas de Sociologia no ISCTE. Publicou recentemente “E Agora?”, onde reflecte sobre o país. Não se falou de surf, uma das suas paixões. Nasceu em 1974.    

 

Podia prever esta evolução do caso BES? Como é que o vê?

Se tomarmos como bom o que o Governador do Banco de Portugal, a ministra das Finanças, o primeiro-ministro e até o Presidente da República foram dizendo, não. Primeiro foi-nos dito que o BES era uma coisa, o GES outra. Logo depois, que o banco tinha uma almofada de capital suficiente, para logo ser dito que havia privados interessados. Tudo culminando na retórica populista de Passos Coelho – e que amarrou o Governo – de que nem um euro dos contribuintes seria gasto para salvar privados. É impressionante como nada do que foi dito se revelou sustentável, num espaço de tempo tão curto. Aliás, este histórico é a melhor das razões para estarmos cépticos e de sobreaviso face a esta solução.

 

Isto pode não ser o fim?

Esta solução é vendida como se fosse neutra para os contribuintes e comentada na praia pelo primeiro-ministro em fato-de-banho.

Mas uma coisa é o que foi sendo dito, outra, bem diferente, é o que se sabia. E, mais grave, o conjunto de informação que, desde Setembro do ano passado, o governador já possuía. É incompreensível que se tenha mantido em funções a administração até há um mês e é inexplicável o último aumento de capital. E é também incompreensível que tenham passado vários dias desde a apresentação de resultados e do comunicado do Banco de Portugal até a apresentação da solução. A machadada final no banco não podia ter sido dada sem que a solução fosse apresentada de imediato. Isso levou ao colapso bolsista de sexta-feira, com riscos de inside trading.

 

Considera que o governador interveio tarde.

A forma como ao longo de um ano se destruiu valor no grupo e no banco, com uma complacência generalizada, é chocante. Estamos perante uma gestão desastrosa de um processo que é, de facto, muito complexo. A própria confissão de que desde Setembro havia detectado fraudes na forma como o grupo se financiava no banco torna ainda mais inexplicável os últimos 11 meses.

Não faço uma leitura positiva daquilo que tem sido o trabalho do regulador. E, convém não esquecer, Carlos Costa é alguém que foi director-geral do BCP quando o BCP andava a utilizar offshores para comprar acções próprias. O que foi dito em tribunal pelo ex-administrador do banco, Christopher de Beck, e a forma como Carlos Costa descartou qualquer responsabilidade, é um tema que devia ter sido escrutinado de outra forma e não foi. É um daqueles casos em que se Carlos Costa soube é muito grave, mas se não soube é também preocupante, pois quer dizer que, apesar das suas funções de responsabilidade, as coisas passavam-lhe ao lado.

 

Isso não tem a ver com a sua acção enquanto governador do Banco de Portugal.

É alguém que tem um currículo que o diminui para regulador. É sempre com espanto que vejo os elogios a Carlos Costa e a capacidade de esquecer aquilo que foi a sua acção, ou inacção, no BCP.

 

Estamos perante uma nacionalização encapotada? 

Se tudo correr bem, será uma nacionalização temporária; mas não deixa por isso de ser uma nacionalização. Foge-se à utilização da expressão nacionalização apenas para resolver um problema que o Governo criou a si próprio, ao ter feito declarações demasiado definitivas sobre o assunto.

 

Mas, a seu ver, é uma nacionalização.

Qual é, em última análise, a natureza da garantia? O Estado empresta dinheiro – convém não esquecer, quase 5 mil milhões de euros – ao Fundo de Resolução. Alguém acha possível que se o banco bom for vendido por um valor inferior ao que agora se estima ou, pior, que não seja possível reprivatizá-lo, serão os outros bancos a suportar o prejuízo? Bancos que já têm, eles próprios, dificuldades e que já recorreram à linha de crédito da Troika.

Será muito interessante ouvir o que os outros banqueiros têm a dizer sobre o assunto. Estará Fernando Ulrich disponível para o BPI suportar, para falar claro, os desmandos de Ricardo Salgado? O sistema financeiro português está em condições ou disponível para garantir o reembolso integral de quatro mil milhões e meio mais juros?

 

O que quer dizer é que, se a solução correr mal, a factura será para nós?

É evidente que se correr mal – e há muitos riscos, desde logo riscos legais, que se avolumaram com a confissão do Governador que detectou irregularidades no financiamento do grupo pelo banco, logo em Setembro de 2013 –, em última análise, seremos todos nós a suportar os prejuízos. A alternativa é um colapso sistémico do sistema bancário português.

 

As comparações com o BPN eram inevitáveis à partida. Os casos parecem-se cada vez mais?

São dois casos muito graves, mas com diferenças substantivas. O BPN é uma espécie de caso de associação criminosa, com um balcão virtual e um banco offshore, desconhecido das autoridades (o Insular), que serviam para ocultar perdas. O problema do BES é de natureza distinta. Num par de anos, curiosamente desde que Portugal assinou o memorando de entendimento, um grupo transformou um banco num instrumento de financiamento do próprio grupo e fê-lo em público.

 

Em público? O que se dizia até há pouco, e reproduzindo o vox populi, é que ninguém sabia do BES e toda a gente sabia do BPN.

Em público no sentido em que isto aconteceu com os accionistas a assistirem, com a Troika cá, com os supervisores a verem, com as empresas de auditoria – que devem proteger os interesses dos accionistas – a caucionarem as contas. É, nesta medida, um caso de supervisão e devemos questionar-nos como é que isto foi possível? Agora resta saber se o BES não se revelará também um caso de contabilidade paralela como o BPN. A avaliar pelas últimas declarações do Banco de Portugal, há fortes indícios disso.

 

A justiça popular procura sempre, e para começar, alvos fáceis, bodes expiatórios. Quem são, neste caso? E quem são, na sua opinião, os grandes responsáveis pela situação? 

É tentador encontrar um bode expiatório e individualizar a culpa. A repetição de escândalos financeiros nos últimos tempos é reveladora, no essencial, da incapacidade dos mecanismos de supervisão. A fraude está sempre um passo à frente dos reguladores. Há um problema generalizado de opacidade e complexidade no sistema financeiro, na forma como se organiza o financiamento, nos modelos de governação, que cria incentivos para comportamentos de risco e que geram fraudes, ao mesmo tempo que torna impotentes os supervisores. Nenhum supervisor de base nacional será capaz de lidar com este problema enquanto, por exemplo, tivermos autênticos paraísos fiscais como o Luxemburgo dentro da zona euro. Se nada mudar, os supervisores estão condenados ao fracasso e as fraudes financeiras repetir-se-ão.

A Europa tem andado a disparar ao lado. A culpa era da insustentabilidade dos Estados sociais ou era necessário fazer reformas estruturais que devolvessem a competitividade às economias. Mas a realidade regressa sempre a galope e é sintomático que, assim que a Troika e o seu reformismo saíram de Portugal, tenhamos sido devolvidos à realidade dos problemas sistémicos do sistema financeiro.

 

Olhemos para a “realidade que regressa sempre a galope” a partir do seu ponto de vista. O maior problema do país são as lideranças, é o crescimento, é a dívida? Estes problemas são constantes nos livros de História, quando analisamos o passado.

As lideranças, não. Têm um papel relevante, mas não são o nosso problema. A dívida e o crescimento estão ligados. Temos problemas de natureza política que têm implicações no crescimento e na dívida. E temos problemas na forma como as políticas públicas se organizam. A nossa tradição é de muita instabilidade.

 

Somos instáveis exactamente em que sentido?

Temos um padrão de excesso de mudança, da ausência de cultura de planeamento em que quase todos os governos caem. Uma lógica big bang: cada novo governo quer começar tudo de novo.

 

É tentador, é uma forma de deixar uma marca e de afirmar a diferença em relação ao seu eleitorado.

Cada secretário de Estado, cada ministro quer ser diferente e fazer diferente dos anteriores, mesmo que sejam do mesmo governo e do mesmo partido. Essa instabilidade tem custos. O Ortega Y Gasset dizia que o que diferencia o homem do orangotango é o facto de o homem ter memória.

 

Tem também um horizonte de futuro.

Certo. Mas se estamos sempre a perder essa memória, estamos a plagiar o orangotango. Nas políticas, em Portugal, há excesso de plágio do orangotango. Tem sido sempre verdade e é particularmente verdade neste último ciclo político. Houve muitas rupturas, pagamos caro por isso e vamos pagar muito mais. Temos a tentação de replicar o que funcionou no estrangeiro, fazer como os irlandeses, os finlandeses, os suecos.

 

Andamos há pelo menos 40 anos a querer ser (como os) suecos.

O que temos que perceber é que os países que crescem mais têm um conjunto de características que não tem tanto a ver com as opções substantivas mas com questões formais. Com a forma como organizam as políticas. Tendem a ter maior coerência entre várias áreas políticas e um padrão de maior estabilidade nas opções. A cada mudança de governo não corresponde uma mudança radical de políticas.

 

Conseguem isso fazendo pactos? Recentemente António Costa e Rui Rio falaram de um pacto a dez anos.

Fazem isso porque têm uma cultura de compromisso. Obrigam a governos de coligação.

 

Está a pensar sobretudo no pós 25 de Abril? Tudo somado tivemos 25 governos em 40 anos, seis provisórios e 19 constitucionais. Ou está a pensar no tempo anterior à revolução?

Esse anterior nem interessa. Não há nenhuma nostalgia em relação às políticas públicas antes da democracia. Estrangulamentos estratégicos que ainda temos hoje são fruto de opções erradas anteriores.

 

Durante estes 40 anos tivemos diferentes ciclos. Antes e depois da CEE, por exemplo. Antes e depois do Euro. Porque é que nunca fomos obrigados a assumir compromissos a longo prazo?

Não nos libertámos dessa tradição de grande instabilidade em áreas importantes. Se já tínhamos isto, a marca mais forte destes últimos três anos é a ruptura permanente – uma espécie de PREC de direita.

 

Como assim?

PREC de direita. A reconstituição institucional e das políticas vai demorar muito tempo. Vamos levar mais a recuperar [dela] do que o tempo de que precisámos para recuperar de alguma instabilidade das políticas do PREC.

 

Isto a que chama “PREC de direita” pode ser isolado da crise internacional, nomeadamente da europeia?

Não pode. A crise foi ao mesmo tempo uma oportunidade (que permitiu introduzir uma agenda) e um mecanismo de distribuição de poder. Estes três anos serviram, não para resolver os problemas estruturais da nossa economia, a dívida ou as contas públicas – nada disso foi resolvido. Serviram para a transformação das relações de poder mais profunda em Portugal desde 74.

 

Quem é que manda agora? Houve um tempo em que mandava mais quem tinha mais dinheiro.

Em 74 tivemos uma grande transformação das relações de poder, e agora voltámos a ter. Ainda não consigo dizer quem manda mais. O que sei é que o poder se concentrou. Se pensarmos nas relações laborais (um bom observatório), o trabalho perdeu poder em relação aos empregadores ou ao capital.

 

Consequência da reforma laboral?

É uma coisa mais vasta. Há um contexto de perda: reforma laboral, desvalorização salarial, desemprego.

Nas grandes empresas portuguesas – a EDP, a PT – a estrutura accionista mudou. Os bancos: nenhum tem a mesma estrutura accionista que tinha [antes da crise].

 

Os maiores accionistas são quase sempre estrangeiros. O poder mudou de mãos, em suma.

Certamente vão surgir novos focos de poder. E também novos equilíbrios. As reformas estruturais, que são tão apregoadas, funcionaram, mas não no sentido que lhes é dado. Não no sentido de libertar a economia e pôr o país a crescer ou a flexibilizar o mercado de trabalho para os jovens. As reformas estruturais funcionaram porque alteraram as relações de poder. Se calhar foi sempre esse o objectivo. Tudo isto é uma espécie de cavalo de Tróia para um outro fim – que foi conseguido. Desse ponto de vista, a aplicação do programa de ajustamento foi um sucesso.

 

Em que é que falhou redondamente a aplicação do programa de ajustamento?

O programa de ajustamento, de acordo com os critérios e medidas definidos à partida, foi um falhanço total. Não há um indicador macroeconómico relevante que tenha sido cumprido. E aproveitou-se o memorando para fazer transformações profundas em áreas que não estavam previstas no memorando.

 

Está a pensar em quê?

Pensões. Caixa Geral de Aposentações e regime geral da Segurança Social. O memorando inicial nada dizia sobre pensões.

Já terminado o programa de ajustamento, surgiu a questão do BES; é notável a assimetria na forma como se tratam os pensionistas ou os aposentados da CGA e as perdas do sistema financeiro e bancário. Mostra bem que há uma atitude dúplice: a uns tudo é exigido, a outros tudo é permitido.

 

Os bancos estiveram/estão descapitalizados. Os nossos ricos não são suficientemente ricos. Temos um problema de capital?

Sempre tivemos. E não o resolvemos. Se calhar não é possível resolvê-lo.

 

Quando é que foi a última vez que tivemos dinheiro a sério? Fora o período de D. João V.

Nunca tivemos dinheiro a sério. Tivemos um período, nos primeiros quadros comunitários, em que houve alguma capacidade de investimento. Mas não foi dinheiro a sério porque não foi um reforço de capitais próprios.

 

Quando diz que não vamos ter capital está a ser pessimista.

Um dos problemas do país, e também do centro-esquerda, e da social-democracia, é que olha para a História como uma trajectória de progresso sistemático e com aspirações sociais e materiais crescentes. É uma visão ingénua da História. Podemos estar a entrar num período de grande estagnação ou de grande declínio em que essa ideia da História como progresso deixará de ser verdade.

 

O que é que marcou o fim dessa caminhada esperançosa, em que achávamos que o futuro ia ser melhor, que os nossos filhos iam viver melhor?

Isso foi assim durante muito pouco tempo.

 

Depois do 25 de Abril, os nossos pais confiaram que ia ser assim.

E aconteceu. As pessoas viveram melhor do ponto de vista dos recursos materiais, dos apoios sociais da saúde, da educação. As pessoas tiveram aspirações de que a sua vida melhoraria, a dos seus filhos ainda mais. O que marca essa mudança é uma conjugação de factores. É o crescimento das economias noutros espaços, com ganhos notáveis de outras regiões, que criaram um problema objectivo à Europa.

 

A emergência dos BRIC’s, uma reorganização da economia mundial.

E não só. Transformações demográficas no espaço europeu alteraram aquilo que é a demografia da Europa. A criação da moeda única desequilibrou o poder dos países que faziam parte da União Europeia. A combinação de tudo isso criou um contexto novo.

 

Está resignado a que os seus filhos vivam pior do que você?

Não, claro que não. Quando se olha para estas coisas individualmente temos sempre a expectativa de que isso não seja connosco. Não é uma questão de resignação. Mas temos demasiados indicadores de desagregação social, comunitária, de crise de representação política e de legitimidade, de crescimentos económicos anémicos.

 

Não vai haver uma erupção no fim disso tudo? Ou, até 2030, vamos fazer como na canção brasileira: “A gente vai levando”?

Não sabemos se as coisas se vão reequilibrar. Ou se vamos ter uma crise sistémica. Se olharmos para a História, em todos os momentos em que se combinaram estes factores, houve mudanças de regime. Guerras. Pode ser que haja alguma aprendizagem que impeça isso. Não temos muitos sinais positivos disso.

 

A Europa, ou vai ou racha.

Sim. Temos sinais eleitorais de enormes falhanços (Frente Nacional em França) que podem obrigar à mudança. Os partidos do centro podem perceber que é preciso fazer alguma coisa – que não é possível “ir levando”.

 

Quem é que vão ser os líderes, os protagonistas desse movimento que vence o impasse?

Não tenho uma visão messiânica das lideranças. Os momentos carismáticos é que produzem líderes carismáticos. É evidente que a liderança é importante porque, em última análise, a política é uma conversa que temos uns com os outros. É preciso alguém que inicie essa conversa.

 

Uma pessoa do sistema, de fora do sistema?

Temos tido um número excessivo de lideranças demasiadamente de dentro do sistema, com pouca capacidade de falar para fora.

 

Está a pensar à esquerda e à direita?

Sim. Não pode ser uma coincidência que os líderes dos principais partidos tenham tantas semelhanças de percurso. Não tem a ver com cada um deles. Tem a ver com qualquer coisa que o sistema está a gerar que tornou esses os líderes viáveis.

 

No momento em que nos lêem, estamos a pouco mais de um mês das eleições no PS, que vão ter, forçosamente, um impacto na organização política nacional. Voltou a falar-se abertamente de eleições antecipadas. O que é que pode acontecer na rentrée?

A rentrée vai ser marcada pelas primárias no PS. Depois de resolvida a questão do PS vamos entrar num novo ciclo e vai haver uma antecipação técnica das eleições legislativas. Não é nem uma solução de parlamento nem uma demissão do Governo. As eleições, em lugar de serem em Setembro ou Outubro, serão antecipadas para antes do Verão. É o que faz sentido se pensarmos no Orçamento de Estado para 2016.

 

No começo de 2016 haverá também presidenciais.

É importante separar o processo das eleições legislativas das presidências. De Outubro para Janeiro é muito próximo. As coisas iriam estar contaminadas. O Presidente da República pode precisar de ter uma intervenção importante na formação de um novo Governo. Se já estiver com os candidatos à sucessão em campanha, isso diminui a sua capacidade. Até do ponto de vista do semestre europeu, há várias vantagens em antecipar.

Significa que vamos chegar ao fim de Setembro, o Partido Socialista terá um líder novo e rapidamente se entrará numa dinâmica de preparação das legislativas.

 

Vai ser animada a rentrée depois das primárias do PS. Os estilhaços vão estar por todo o lado. A esquerda vai ter que se reorganizar, com as fracturas do Bloco, os novos movimentos.

Esses micro-temas da reorganização da esquerda interessam aos comentadores, aos jornalistas e pouco mais. As pessoas não estão a olhar para o que se está a passar na reorganização do Bloco. A grande virtude do Bloco foi contrariar a ideia de que era impossível o diálogo à esquerda e entre as esquerdas. O que o Bloco agora está a provar é que a ideia que contrariou afinal era verdadeira.

 

Pensava na reorganização de equilíbrios depois das eleições do PS. À esquerda e à direita.

Aí é que não sou mesmo optimista. Vai ser mais do mesmo. Só não vai numa coisa: há uma grande saturação em relação a Passos Coelho e Paulo Portas. As pessoas já não aguentam.

 

As sondagens não têm dito isso, eles têm subido.

Marginalmente. Mas isso mudará. O PREC de direita gerou uma coisa insólita na sociedade portuguesa: uma coligação contra Passos Coelho muito ampla. Essa coligação, que tem voz e protagonistas visíveis, não tem ainda uma representação política.

 

Os grande opositores têm sido pessoas de direita, Pacheco Pereira, Manuela Ferreira Leite, Bagão Félix.

Ainda não houve quem representasse esse descontentamento que vai de Pacheco Pereira a pessoas mais à esquerda. A reacção ao radicalismo, ao voluntarismo ideológico do Governo, acabará por ter algum tipo de representação política. O país está disponível para encontrar essa representação.

 

É uma nova força política?

Não, acabará por ser o PS. As primárias, que têm muitos defeitos e riscos, têm essa vantagem, dão uma legitimidade acrescida. Se votar muita gente há uma força acrescida.

As pessoas têm um desejo de estabilidade. Um quotidiano previsível. Implica parar com esta voragem revolucionária e voltar a respeitar o funcionamento das instituições. Perceber que a Constituição é um ponto de consenso, de defesa de todos. E recuperar esse lado de alguma sanidade institucional que se perdeu nos últimos três anos.

 

Perdeu-se, também, e não só nos últimos três anos, confiança nas instituições e nos políticos.

E no regime, o que é pior, ainda. O que legitimou o nosso regime democrático foi o amor pelas liberdades combinado com uma melhoria objectiva das condições de vida. A democracia confunde-se com as pessoas terem uma vida melhor.

 

Confunde-se legitimamente?

Sim. Em Portugal, a democracia são três coisas: as liberdades, o Estado Social e a Europa. No momento em que o Estado Social se está a desagregar, em que o desemprego sobe, as pensões baixam, os salários baixam, a Europa está em implosão, é natural que haja uma crise de regime. Vai demorar muito tempo a reconstituir a confiança nas instituições, a confiança uns nos outros.

É possível que tenhamos de fazer uma revisão constitucional em algum momento. Que condições é que há para fazer uma revisão constitucional que envolva o PS e o PSD depois do que se passou na relação com o Tribunal Constitucional e com a Constituição nestes anos? Degradaram-se as condições objectivas para reformar as instituições. É esse o legado destes três anos, esta loucura.

 

Quando olha para os últimos três anos, o que é que o surpreende mais? Sabia que ia ser um governo de direita, num país intervencionado.

Nunca pensei que num momento como este, tão exigente, pudéssemos ter um governo tão impreparado. Há uma componente que tem a ver com ideologia, mas há muita incapacidade. E também nunca pensei que se fosse tão longe nos ataques aos pensionistas.

 

Porquê?

Achei que politicamente não era possível. É terrível essa vontade de pôr os portugueses uns contra os outros. Os pensionistas contra os jovens que descontam. Dilui o sentido de comunidade. Recordo-me sempre da ausência de compaixão na forma como se lidou com os verdadeiros perdedores nestes últimos anos, as pessoas que ficaram desempregadas, sem rendimentos, os pensionistas.

 

Está a pensar em alguma declaração específica de Pedro Passos Coelho que ilustre isso?

Estou a pensar na ligeireza com que estas coisas se fizeram. E o lado da culpa moral que nós, portugueses, interiorizámos e que o Governo reproduziu activamente. Ao mesmo tempo penalizou aqueles que já pouco tinham e que com menos ficaram.

 

Houve alguma coisa que tivessem feito bem ou que tivesse corrido bem?

[pequena pausa] É bem revelador [este silêncio]. Não é fácil identificar algumas áreas de acção governativa em que as coisas tenham corrido bem. Nas áreas duras, o que se passou foi uma ofensiva terrível.

 

Educação, saúde, pensões?

O [que se passa no] ensino superior e ciência é uma coisa sem nome. O ministro [Nuno] Crato é a corporização dessa lógica radical e revolucionária.

A saúde foi uma área um pouco mais protegida. É um bom contraste de como é diferente ter alguém movido pelo bom senso e com experiência de administração pública. Não houve nenhuma vontade de ir além do memorando.

O ministro [Vítor] Gaspar foi o líder da revolução e quis fazer de nós um laboratório, uma experiência de austeridade expansionista – que falhou. Como sempre tinha falhado. Depois tentou reescrever dizendo que afinal não era austeridade expansionista; era só para conquistar a confiança dos mercados. Não é verdade. Foi mesmo uma tentativa de destruir para crescer, com os resultados conhecidos.

 

Qual foi o falhanço, no país, destes 40 anos de democracia?

Há uma área das políticas públicas que é obscura e que, nestes três anos, não mudou: a justiça. A maior parte das pessoas não tem má experiência nem do contacto com a educação nem com a saúde. Mas com a justiça a maior parte das pessoas não contacta. Persiste um poder em Portugal que não se democratizou e onde todos estamos sujeitos a uma enorme arbitrariedade. Chama-se Ministério Público.

 

Um poder que não se democratizou?

Se pensarmos nos casos mais mediáticos, é possível alguém ser condenado em Portugal sem que o Ministério Público seja obrigado a mostrar e a provar quando, como e de que forma [aquela pessoa cometeu um crime], alegadamente. Há uma ausência de escrutínio do Ministério Público, uma coligação ultra-perversa entre péssimas investigações, péssimas acusações e péssimo jornalismo que diminui a confiança na justiça..

Quando falamos das condições da participação política em Portugal, há um risco que ninguém assume: por ser político, ou por ser figura pública, corro o risco de ser sujeito a uma condenação arbitrária na justiça.

 

Há casos?

Há casos. Há casos na forma como o sistema trata as pessoas. E os casos muitas vezes nem se traduzem em condenações em tribunal. É o pior dos mundos: o espectro da culpabilidade, a impossibilidade de defesa e a não-condenação. Temo que enquanto pensamos no tema da dívida, do défice, do crescimento económico, da sustentabilidade das pensões, ninguém tenha coragem de diminuir, de facto, o poder e a forma como funciona o Ministério Público em Portugal. É uma reforma essencial para garantir as liberdades civis e políticas.

 

E a reforma do mapa judicial, as reformas levadas a cabo por Paula Teixeira da Cruz?

Há um problema na gestão da justiça, na organização do território. A questão da presença do Estado no território deve ser tida de forma integrada e temos falhado nisso. Mas estou a falar de outra coisa. Estou a falar do poder do Ministério Público. Isso tem sido uma ameaça à nossa democracia. Uma espécie de espada de Dâmocles por cima de todos nós. Ninguém está livre.

 

Tem noção que lhe ficam com um pó depois do que disse.

Ou fico mais defendido. É da vida. Não confio no Ministério Público. Quero ter as garantias de que, se um dia tiver que enfrentar um problema na justiça, e se for inocente, tenho condições para demonstrar a minha inocência, e que o que tem que ser provado é a minha culpabilidade. Não me parece que seja isso que acontece frequentemente em Portugal. E o problema é que só temos essa percepção [quando temos] proximidade à justiça. Isso o 25 de Abril não resolveu, a democracia não resolveu, a Troika não resolveu, e não vejo que no futuro alguém tenha coragem de resolver.

 

 

 Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014