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Anabela Mota Ribeiro

Sofia Pinto Coelho (s/ o avô Luís Pinto Coelho)

09.12.15

Luís Pinto Coelho, o avô de Sofia, era um estupendo. Fartou-se. Ou melhor, apaixonou-se. Foi catedrático de Direito, embaixador em Madrid, figura proeminente do Estado Novo. Tinha 52 anos e quase 30 de casamento quando encontrou a Kit, uma americana 19 anos mais nova, filha de amigos. Por ela, “por amor, renunciou a tudo: à pátria, a Salazar, à família”, escreve a neta, a jornalista Sofia Pinto Coelho. A história é contada no livro O meu Avô Luís e num documentário a exibir em breve na SIC.

 

O avô Luís morreu aos 83 anos, em 1995. Sofia Pinto Coelho tinha 30 anos e mal o conhecia. Havia muitos anos que o avô “deixara” a mulher e os seis filhos. A palavra usada no livro O meu Avô Luís é esta e corresponde à narrativa contada (ou sentida) durante décadas. O abandono resultou do romance com uma americana chamada Kit, muito mais nova, por quem mudou de vida.

Para a jornalista da SIC, tudo começou em 2008, depois da morte do pai, quando, entre o espólio herdado, encontrou cinco caixotes de filmes e cartas do avô. Demorou a decidir o que fazer, entre o cuidado amoroso e a distância de quem olha, profissionalmente, e procura ler naqueles papéis de família a história de um tempo político, um modo de estar, uma classe social. Interrogou-se sobre se esta era uma história que merecia ser contada. Era apenas mais uma história de amor? E poderia ela compreender (que é quase sempre uma forma de reconciliação) este avô salazarista?

Politicamente a questão não é linear. Sofia é casada com o advogado Ricardo Sá Fernandes que se candidatou pelo Livre nas últimas eleições. É prima de José Pinto Coelho, a cara do Partido Nacional Renovador. Ela mesma diz ser de esquerda numas coisas e de direita noutras. Este é um livro eminentemente político? Longe disso. Pode ser que O meu Avô Luís seja, mais do que tudo, um livro sobre um amor. Para ela foi também uma maneira de conhecer as suas raízes.

Sofia Pinto Coelho nasceu em 1963. Estudou Direito, está na SIC desde a sua fundação, trabalha questões relacionadas com a Justiça. Toda a gente sabe que é filha de Maria Filomena Mónica e enteada de António Barreto. Tem três filhos. A entrevista foi em casa e assim que o fotografo saiu perguntou se podia descalçar-se.

 

“O que me impressionou desde logo foi o meu avô ter sido uma espécie de príncipe perfeito.” Quando é que, aos seus olhos, o seu avô deixou de ser um príncipe?

Deixou de ser um príncipe através daquilo que os meus tios sentiram. Os seus próprios filhos. Através do pressentir o sofrimento. Nem tanto o dele, mas o que pode ter causado aos outros. Os príncipes não fazem os outros sofrer. Os verdadeiros príncipes, mesmo os reais, que vivem naquelas gaiolas doiradas, nunca podem sair da gaiola. E o meu avô saiu. É essa saída da gaiola que me dá essa percepção. O pai também lhe deve ter imposto: “Nascemos para ser isto”. Não há outros caminhos. Não há caminhos próprios, não há vontades próprias.

 

Como é que apresentaria este príncipe, nos seus títulos e na sua natureza?

Nos títulos, é fácil, está muito bem marcado. Era um professor catedrático de Direito, com todo o peso que isso implica. Ser de Direito já é difícil, é um curso penoso. Ser professor catedrático, não está ao alcance de qualquer um.

 

Luís Pinto Coelho nasce no começo do século. O que marca os primeiros anos da sua vida?

Nasce em 1912, pouquíssimo tempo depois do fim da monarquia. Estuda e tem muito boas notas, torna-se um belíssimo aluno. No início do Estado Novo, há um patrono dele, e amigo da família, que o põe como governador civil de Castelo Branco aos 23 anos. Há aquelas partes gagas... Chega à estação e ninguém o reconhece por ser tão novo. Quando vai fazer a tropa, era tão novo, mas tinha tanto estatuto, que o sargento na parada não sabia como é que o havia de tratar. “Ó 28, ó 29, ó Sr. 30”.

É este homem que vai fazer o doutoramento em Itália e que começa a leccionar como professor catedrático em 1940. Na altura haveria 12, 15 professores de Direito, as eminências. Mandavam no país.

 

Foi, essencialmente, um professor.

Sim. Foi também advogado. E administrador de empresas por via da advocacia. Foi advogado do António Champalimaud durante muito tempo e aí tinha uma fonte de rendimento importante.

Agora, tinha uma outra pessoa dentro dele. Há pessoas que conhecemos e que são aquilo que fazem. Ele era mais do que isso.

 

Antes de chegarmos a esse que ele tinha engaiolado, vamos situá-lo no seu tempo. Nasceu aquando da Primeira Guerra. Entrou na vida pública quando na Europa alastrava a Segunda Guerra. Em Portugal vivia-se em ditadura. As fotografias devolvem um certo país, uma certa Europa e um estatuto social muito específico.

As fotografias dessa época, dos anos 40, situam o arranque da carreira profissional e o casamento. Casa-se em 1935, tem o primeiro filho em 1936. Vem de Itália em 1939. Parecem imagens dos filmes americanos passados no tempo da guerra. Os sapatos da minha avó, a saia abaixo do joelho, os tailleurs, sinais de um estatuto social.

Perguntei aos meus tios: “Sentiam-se numa bolha?” Não havia televisão. Talvez saíssem da escola e vissem miúdos descalços, mas conviviam com os Mello e os Champalimaud. Esses sim, eram ricos. Mas o que eles dizem, e isso é curioso, é que não sentiam que os outros eram mais ricos do que eles.

 

Como é que isso era possível?

À mesa comiam as mesmas coisas. A maneira de vestir era semelhante. O meu tio mais novo, que é o sexto, até aos 16 anos nunca teve uma roupa própria, era sempre dos irmãos mais velhos. Era assim que se vivia.

 

A estratificação social, que era muito vincada, sentia-se de que maneira?

Eles não sentiam, os pobres deviam sentir. O realizador do filme [que vai passar na SIC] perguntou: “Estamos a mostrar o retrato de uma família portuguesa rica, de uma família portuguesa burguesa, ou o quê?” Não cheguei a nenhuma conclusão. Por aquilo que depois percebi, o meu avô sempre lutou com dificuldades de dinheiro.

 

O seu pai, que era filho deste avô, contava conversas sobre o tema dinheiro?

Não havia o tema dinheiro. Não se falava dessas coisas.

 

Entre os pobres o tema do dinheiro era omnipresente. Entre os ricos e os burgueses era considerado de mau tom, ou mesmo falta de educação, falar de dinheiro?

Não era tema, mas era tratado com muito respeito. Os meus tios contam que se lembram de todas as noites a minha avó fazer contas com a cozinheira, para se verificar tostão a tostão o que se tinha gasto na praça. Não havia frigoríficos. Os almoços, lá em casa, eram dez, 12 pessoas. Seis filhos, as criadas, as visitas. Era tudo contadinho. E essa foi uma marca que nos foi passada: um enorme respeito pelo dinheiro e pelo não-esbanjamento.

 

Essa distinção de classe tinha que ver sobretudo com o estatuto do saber? Se o seu avô não fosse professor universitário, seria a mesma coisa?

No caso do meu avô, havia duas vias que o punham na chamada classe alta. A mãe dele era descendente dos Ribeira Grande, que estavam dentro da corte de D. Pedro. Era uma família aristocrática antiga. O pai estava na frente política e académica.

 

Vale a pena dizer mais sobre os pais, para compreender a forma como o seu avô foi educado.

São vincadamente antagónicos. O meu bisavô foi um jurista brilhante, o criador da primeira lei dos cheques e das livranças. Era um comercialista, um bom desenhador de leis. Tem um recorde extraordinário: esteve 35 anos seguidos na Câmara Cooperativa como homem de confiança de Salazar. Desde o primeiro dia, em 1935, até ao 25 de Abril. Homem espartano, sovina, ríspido. Podia inspirar medo. Com alguns galanteios para as senhoras, mas severo.

 

Apesar dessa fidelidade, dessa constância na Câmara Corporativa, era antes de tudo um monárquico.

Dizia: “Na família, primeiro somos monárquicos, depois católicos e só depois por Salazar.” Ela, a avó Mariana, era a figura fixe de quem toda a gente gostava imenso. Era divertidíssima, dizia o que pensava. Dizia palavrões, fumava desalmadamente. Era perdida pelo jogo. Perdeu a casa da família ao jogo, num casino afamado, em França. O meu avô dizia que tinha herdado esse lado Câmara, não tinha a fronha Pinto Coelho.

 

Como é que esses dois lados – opostos – passaram para a personalidade, para o comportamento do seu avô?

Tinha um enorme sentido do dever, das responsabilidades. De ser um bom pai de família, um homem recto. Mas depois era um tipo com um charme... É o que perpassa nele e no meu pai. São pessoas que são lembradas por serem carinhosas, atenciosas.

 

Vendo as fotografias do livro, percebe-se que o seu pai tem uma postura muito mais descontraída do que o seu avô. Era menos bonito, chamava menos à atenção. O seu avô tem uma postura física menos abandonada.

Porque o meu pai virou meio hippie. O meu pai era um curtido. Aos 17 anos deu um grito do Ipiranga, agarrou numa Vespa e andou a passear pela Europa. E tinha uma vontade meio anarca. Teve um embate com o meu avô por isso. Fazia nudismo. Não sei se andou nos charrinhos. Era um galanteador. Mesmo no fim da vida, levava o barco para a Croácia – adorava vela –, para Itália, e vivia seis meses por ano no barco.

 

O seu pai fazia o quê?

Era piloto. Começou como comissário de bordo. Tornou-se piloto, subiu a comandante.

 

Não tinha ambições políticas, o seu avô?

Não percebi. Há muitas bocas de que ele esteve numa shortlist para substituir Salazar. Mas numa entrevista que deu já nos anos 80, dizia: “Isso é um mito. Eu nunca teria categoria para suceder ao Dr. Salazar.” Foi sondado para ministro ou para reitor e terá dito: “Longe de mim.” Mas não sei se isso não terá sido um desabafo, e se depois gostaria [que tivesse acontecido].

 

O que é que norteou a vida dele? O que é que o fez avançar, prosseguir uma carreira, um caminho?

Há dois tempos. O primeiro é um tempo de dedicação, de abnegação, de família e de trabalho. Sentia-se confortável nessa farpela. Na sua missão de educar e enquanto foi comissário da Mocidade Portuguesa [1946].

 

Era o cumprimento de um dever ser, mais do que tudo?

Não era só. Os meus tios dizem que chegava a casa com uma alegria imensa. Chegava rebentado, longas jornadas de trabalho, e cheio de histórias para contar. Que adorava contar.

 

De onde é que lhe vinha essa alegria?

Do sentido de humor. Conseguia ter histórias com pilhas de graça sobre o que lhe acontecia. Sobre as suas desventuras. Isto é salvífico.

 

Quantas vidas é que acha que ele teve? O primeiro grande bloco é até ao casamento?

Não, ser embaixador ainda faz parte desse bloco. [O primeiro grande bloco vai] até ao apaixonar-se [pela Kit]. Tem uma vida metódica, arrumada, expectável. Pela leitura das cartas, percebo que esteve genuinamente apaixonado pela minha avó. No dia em que a conheceu escreveu no seu diário; “Hoje conheci a Piinha Almeirim. Que amor!!”. Dois pontos de exclamação. Ele amava-a, era a mulher da vida dele. E terão vivido 25 anos felizes.

 

Foi outro depois de se apaixonar pela Kit. Tinha mais de 50 anos e era embaixador em Madrid. O modo como essa paixão foi vivida é uma insubordinação às convenções do meio social? Interroga-se menos sobre o que lhe era permitido?

Ele tem uma frase de que gosto: “Estou farto de ser considerado um estupendo”. Todas as famílias têm este problema. As famílias têm determinadas expectativas em relação aos filhos, e quando eles saem dessas expectativas, é uma chatice.

 

Onde é que encontrou essa frase?

Está numa carta. A carta que escreve a uma das noras, em que explica o horror que tem à hipocrisia. Dá esse passo de se ir embora deixando tudo para trás. O Salazar, a pátria, a família, os amigos, a profissão, o dinheiro. Porque tem horror à hipocrisia, e porque quer tentar ser feliz com outra mulher, de outra maneira.

 

Que terramoto foi esse chamado Kit?

Foi uma enorme paixão que ele teve em 1964. Estava casadíssimo. Perguntei aos meus tios se achavam que o pai tinha tido amantes antes. (Era normal os homens terem amantes nessa época, de casa e pucarinho.) Eles crêem que não. Nem devia ter tempo. Quando foi para Madrid tinha um trabalho importante. Apanhou com o cadáver do Humberto Delgado no meio desta convulsão amorosa.

 

Abramos um parêntesis para falar do caso. Como é que o assassinato de Delgado em Espanha, e as questões diplomáticas e políticas daí decorrentes, foram vividas pelo seu avô? Tem material desse tempo?

Eu gostava que os descendentes do Humberto Delgado e os historiadores me dissessem se a carta original que eu tenho, que Salazar escreveu ao meu avô, é inédita ou não. E se pode acrescentar alguma coisa à história que já se sabe.

 

Que é que diz essa carta?

Diz que Humberto Delgado foi atraído para uma cilada pelos comunistas. E que, como não quis fazer aquilo que os comunistas queriam, foi assassinado por eles, e não pelos nossos.

 

Nenhuma menção a Rosa Casaco?

Zero. Diz claramente: “Isto não é um assassinato nosso”.

 

O que levanta a questão de saber até que ponto Salazar estava ao corrente do que se passava.

É a grande questão. O mundo divide-se entre os que acham que Salazar não sabia e os que acham que Salazar sabia.

 

Ou essa carta é uma espécie de engodo para a posteridade...

Ou é uma carta para sossegar o meu avô, e para lhe dar força interior. Percebi pelos telegramas que aquilo em Madrid foi forte e feio. A família do Humberto Delgado contratou advogados lá, o Estado português teve que contratar advogados lá. A carta tanto pode ter sido para sossegar o meu avô ou para ficar para a posteridade. É uma carta pessoal, não está no arquivo de Salazar na Torre do Tombo, está aqui, numa caixa em minha casa.

 

A partir de determinada altura as pessoas sabem que ficam nos compêndios de História. Que a correspondência oficial e oficiosa vai ser escrutinada.

Nem tanto. Se calhar hoje mais. Até por herança da minha mãe, historiadora, toda a vida ouvi falar da dor de alma que dá as famílias das elites não guardarem os seus papéis. As pessoas consideram os papéis das famílias lixo, e assim não se consegue escrever a História.

 

Voltando à paixão do seu avô: em que contexto conheceu a Kit?

Uma parte do trabalho [enquanto embaixador] era feito em festas, onde estavam reis, rainhas, marquesas, políticos. Ela era enteada do adido militar da embaixada dos Estados Unidos e filha de uma senhora americana que se tornaram amigos dos meus avós. A relação dele é com os pais dela. A Kit era 19 anos mais nova, [tinha 33 anos]. Era quatro anos mais velha que o filho mais velho dele. Tem uma paixão desvairada que descobri nas cartas de amor. São cartas lindas.

 

A paixão está nas cartas. Outra coisa é o relato dela pelos seus tios e avó.

Se não tivesse as cartas, não descobria paixão nenhuma. Via umas fotografias e pensava que ele é giro, ela é gira, ela é mais nova.

 

Pensava que ele estava com uma crise de meia-idade?

Ele era muito sedutor, ela era atiradiça. Eu entrevistei-a, ela conta que o seduziu. Viu que a embaixatriz da Pérsia lhe estava a fazer uns rapapés e pensou: “Se ela pode, porque não eu?” A coisa começa assim. Sabemos como é a sedução, é uma coisa agradabilíssima. Mesmo quando estamos casados. Isto de nos sentirmos vivos porque alguém olha para nós, é uma coisa que até à morte deve existir.

As cartas: é difícil descrever estados de paixão, e ele descreve. Sem vergonha.

 

Eram cartas que o seu avô mandou para a Kit. Estavam no espólio…

Dela. Ela ofereceu-me essas cartas agora.

 

O espólio que chegou até si depois da morte do seu pai, e que tinha material do seu avô…

Não tinha nada disto do amor. Tem uma espécie de diário que inclui um controlo das saídas dela. Os ciúmes. Em cinco páginas escreve: “Sinto-me velho, choro, vejo cair as lágrimas. Tu és um velho, ela é jovem, ela pode ter qualquer homem no mundo. Ela é linda, é inteligente, afectuosa. E tu nunca a poderás ter, a única coisa que podes fazer é renunciar. Tu que estás aí ao espelho, ouve-me, tens é que re-nun-ci-ar”. É esta coisa dilacerante, de agonia, de intenso sofrimento, que ele conseguiu pôr tão bem na escrita. Era um escritor. Nenhum professor de Direito conseguiria escrever aquilo [risos].

 

Isto é a Sofia apaixonada pelo seu avô, agora, depois desta pesquisa. Outra coisa é a aparência que dele ficou por causa deste desvario. Durante estes anos todos, como é que foi?

Não foi. Isto aconteceu quando eu era um bebé. Nos 30 anos a seguir, tê-lo-ei visto uma dúzia de vezes. Sempre em coisas de família, jantares, natais, onde estavam sempre dez ou mais pessoas. Nunca estive a sós com ele. Não tenho uma única fotografia com ele.

Isto é outra coisa que descobri: nós não conhecemos a nossa família. Nunca estamos a sós com uma pessoa. E para se conhecer, tem que se ter uma relação a dois.

 

Ou seja, conheceu agora, e postumamente, o seu avô.

Sim. Embora ele tivesse sido sempre (todas as famílias têm) a pessoa importante da família. Mesmo ao longe, mesmo ausente. Depois a pessoa importante passou a ser o meu tio Luís, pintor. Era o retratista dos famosos, uma pessoa conhecida na sociedade.

 

O seu pai viveu sempre bem nesse apagamento entre um pai catedrático e um irmão pintor?

Sim. Estes seis irmãos mantiveram-se até ao fim unidos como um cacho. É uma expressão interessante, esta, do meu tio Luís. Outro aspecto de se lhes tirar o chapéu: quando os meus avós morreram, tiveram que fazer partilhas, e não houve uma beliscadura, uma zanga. Isto diz muito sobre um traço educacional que é um misto de cerimónia, não-ganância, respeito. Há o reverso da medalha: são pessoas que metem tudo para dentro. Eu não sou assim, eu saí ao lado Mónica!

 

O lado da sua mãe, Maria Filomena Mónica. É impetuosa?

Não meto nada para dentro. É óptimo.

 

A família nuclear implodiu depois dessa paixão. Separou-se da sua avó em 1968. Escreve: “Não é claro (e não há testemunhos) se teria sido ele a anunciar a intenção de se demitir [do cargo de embaixador] ou se teria sido forçado a isso. Correu a versão de que teria sido o seu próprio pai a ligar a Salazar dizendo que o devia demitir. Mas também se comentou que este nunca tinha chegado a saber porque já não estava lúcido...”. Salazar caíra da cadeira.

O meu avô sofreu as passas do Algarve no Brasil, que odiou, andou à rasca de dinheiro.

 

Foi advogado em São Paulo, em 1969 e adido cultural da embaixada no Rio de Janeiro em 1970. Casaram em 1971.

Beberam esse cálice (de felicidade) de 71 a 74. Foram só três anos. Teve um pico de vida porreira em Buenos Aires, como embaixador [1972].

 

Os filhos eram os “abandonados”? Ou, pelo menos, sentiam-se como tal?

Não sei. Cada um dos filhos casou várias vezes. A minha avó Piinha sofreu, mas tinha imensos netos, imensas amigas, as passeatas, os interesses. Ele ficou muito mais abandonado. Ele ficou sem nada. Ficou com saudade, exilado.

 

A sua avó ficou com o estigma do abandono.

Mas depois veio o 25 de Abril e ela tornou-se muito mais aberta, progressista.

O meu avô: há aqui um factor importantíssimo de que não estamos a falar: sexo. O sexo é provavelmente a coisa mais poderosa que existe.

 

Podia ser um sexo praticado com uma amante e não ser essa grande paixão. Em que é que está a pensar quando fala nisso?

O factor de atracção, primeiro. Depois há uma juventude e uma frescura na Kit que percebo que o tenham encantado. Ela ainda hoje, aos 80 anos, é uma adolescente. Viver com uma pessoa que não é uma chata é muito bom!

 

O começo do fim da felicidade do seu avô foi a revolução de 74?

A Kit diz que viu o meu avô chorar duas vezes na vida. Uma foi quando soube que um dos filhos tinha cancro. A outra foi no 25 de Abril. Achou aquilo tudo horrível. Uma canalha. Viu os vira-casacas, a desordem. A descolonização. O “fartar, vilanagem”.

 

Como é que de ponto de vista político e social se manteve tão conservador?

Eles não mudaram. O meu pai era um homem que convictamente acreditava num mundo melhor dentro das utopias da esquerda. E a determinada altura dizia à Kit: “Finalmente, vai mudar o meu pai”. E ela, horrorizada: “Eu, mudá-lo? Mas eu gosto dele como ele é.” Ela também pertence a esse mundo, do tempo d’ O Leopardo, em que de facto há les uns et les autres.

Ao escrever o livro, limpei umas coisas..., porque estava cheia de preconceitos em relação a isto.

 

... isto de o seu avô poder ser lido como um fascista?

Sim. E estava assim a armar-me em livre pensadora. Sinto-me de esquerda numas coisas e de direita noutras, mas não conseguia compreender. Estava acintosa. Contudo, já não tenho aquele chavão do “fascista, que horror!”.

 

O seu avô não olhou para a censura, não olhou para a PIDE, não olhou para a Guerra Colonial, não olhou para a desigualdade social. Como é que ele conseguiu passar ao lado de todas estas coisas? Como é que um homem que é capaz de cortar com tanta coisa, fazer a sua revolução pessoal, depois não consegue cortar com outras?

Como fez o Adriano Moreira. Era um homem do regime e passou para o outro. Se calhar era casmurro, não sei. Não conseguiu. Tentei procurar essa resposta. Verdadeiramente ele nunca admitiu – pelo menos, não escreveu – os vícios e os danos do Estado Novo. E não conseguiu viver bem na democracia. É irónico, ele pediu uma liberdade individual, mas foi como se não achasse que todos os outros também tinham direito a essa liberdade.

 

Como é que Marcelo Caetano lidou com esta história?

Não sei se Marcelo Caetano terá ajudado totalmente o meu avô na altura em que isto rebenta... Creio que não. Aparentemente eram de alas diferentes. Respeitavam-se, mas não sei se politicamente seriam muito ligados. Mas há duas coisas que são simpáticas. Quando vai numa visita oficial ao Brasil em 1971, diz: “Já sou suficientemente velho para perceber esta fraqueza do Luís”. E quando o meu avô consegue finalmente casar (sem ser casado não conseguia ter um emprego na função pública), há um cartão do Marcelo Caetano que diz: “Tomara eu poder aproveitá-lo melhor”.

 

Em 74, está a viver onde?

Estava [colocado] em Buenos Aires, mas no 25 de Abril estava em Lisboa. Ainda fica um ano até que é saneado. Mário Soares, que é ministro dos Negócios Estrangeiros, diz: “No embaixador Pinto Coelho não tocam, porque sempre foi de uma extrema lealdade ao Estado.” Sentiu que no aparelho de Estado estava um homem que era um servidor do Estado e não meramente do regime.

É saneado em 75. Ainda tenta fazer vida no Rio de Janeiro, mas torna-se impossível aos quase 65 anos arranjar trabalho. No fim de 76, 77 vêm para Madrid. Mais uma vez sem casa, sem emprego, sem dinheiro. Instalam-se no apartamento que a Kit tinha em Madrid, onde fica sentado no sofá, a ler o jornal. Ainda arranja uma coisa como administrador da Império em Madrid mas aquilo corre mal. Acha que os gestores revolucionários só estão lá para delapidar o património público. Incompatibiliza-se e sai.

 

Fica a viver de quê nos últimos anos de vida?

Da reforma de professor universitário. Era uma reforma pequena da qual tem que dar uma pensão de alimentos à minha avó. Depois a Kit levou uma fotografia dele à agência de modelos e fez um sucesso. Acharam que era uma estampa, que tinha um jeitão. E ganhava umas coroas. Mas foi tudo uma coisa bastante amargurada. Muito ruminante. E ela sem grande paciência.

 

Acha que se amaram até ao fim, a Kit e o seu avô?

Not sure. Aparecem coisas como a diferença de idade. A Kit aos 50 anos estava como eu, que tenho energia para dar e vender. O meu avô já tinha 70. A Kit ia passar os Verões e os Natais aos Estados Unidos, onde vivia o filho [de uma relação anterior] e onde estava a mãe. O meu avô ficava sozinho em Madrid.

Quando começou a ficar velhinho e com maleitas, a deixar de conseguir falar espanhol, os filhos raptaram-no e trouxeram-no para Lisboa. Ela continuou a viver em Madrid.

 

Nesse período em Lisboa, quem é que mais do que tudo tomava conta dele?

Uma empregada. Os filhos iam lá de vez em quando.

 

E a sua avó, nesse período em Lisboa?

A minha avó não ia. Há um afastamento. A Kit também não pôde vir porque havia uma cláusula no divórcio que o obrigava a nunca viver em Portugal com a nova mulher. Era uma cláusula moral e escrita.

 

Imposta pela sua avó?

Sim. Foi uma cláusula de uma crueldade incrível, imposta para ver se o demovia daquele devaneio. Ficou um homem amarfanhado. Há uma carta trocada com o Franco Nogueira, que se exilou em Londres: “Custa tanto envelhecer e esperar pela morte. Ela chega tão devagar.” É este tipo de pensamentos que tem.

Nessa fase, eu já estava na loucura da SIC, não lhe dei atenção. Para a maior parte de nós, no fundo, era um estranho. Só sei por testemunho indirecto, dos meus tios, que se ocupava a ler os jornais, coisa que nunca deixou de fazer. E a dizer: “Que disparate!”.

 

Porque é que lhe pegou agora? Fez o livro e um documentário que vai passar em breve na SIC.

Comecei por lhe dar atenção quando descobri os filmes. O meu pai morreu em 2008 e, como era um fiel depositário de cinco caixas, essas caixas vieram aqui para casa. Abri as caixas, espreitei o diário, mas foquei-me nos filmes. Fiz um filmezinho de família, transformei sete horas em 20 minutos. Foi uma brincadeira familiar.

Uns anos à frente, uma colega da SIC, a Marisa Vieira, aparece com um livro debaixo do braço, O Cinema no Estado Novo. “Sofia, a tua família! Descobri que tens um avô que era realizador de cinema”. “Ó Marisa, o meu avô era embaixador, professor de Direito. Mas ia à falência, quase, porque era tão Estado Novo e salazarista que montou uma produtora para fazer um filme chamado Chaimite” [1953].

 

Que filme é esse?

É uma espécie de Os Canhões de Navarone português, com milhões de figurantes. É uma luta patriótica pela manutenção de Moçambique.

E os olhinhos dela começaram a brilhar. “Podíamos fazer um documentário...”. Andámos naquela brincadeira de corredor. Até que comecei por telefonar à Kit, muito a medo. Ela aceitou. E depois foi ler cartas, vasculhar. E escrever uma súmula de 40 páginas para aquilo se transformar em filme. O filme aproveita três cartas, eu tenho 1500.

 

O seu avô podia imaginar que ia ser objecto de uma pesquisa feita por si ou por outra pessoa? Ele tinha um sentido da posteridade?

Tinha, mas depois não conseguiu cumprir. Com tantas mudanças de país e de casa, se calhar tenho 10% do que houve. Há um diário da Mocidade Portuguesa, em 1936 – ele está no arranque da Mocidade Portuguesa [como secretário-inspector] –, que começa: “Agora estou numa posição privilegiada para ver o que se passa à minha volta. Vou tomar nota daquilo que oiço, vejo e sinto, para que os meus vindouros possam saber como é que as coisas se passavam neste tempo e neste sítio onde estou”.

 

Uma palavra para ele.

Un grand seigneur. Adoro os romances da Jane Eyre, a Madame Bovary [do Flaubert]. Acho que ele se posiciona bem aí. Un grand seigneur com um cenário à altura [risos].

 

 

Publicado originalmente no Público em 2015