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Anabela Mota Ribeiro

José Pedro Croft

15.07.19

Como falar de José Pedro Croft? Talvez falando das coisas que ele faz. Escultura, desenho, gravura (sobretudo estas). É um dos artistas mais notados da chamada geração de 80. Dentro dele, existe um mundo. Arrumado em caixas.

É um artista cujo vocabulário essencial inclui palavras como vazio, viagem, memória, espaço. E contentor. Sob a forma de caixas, caixões, sarcófagos, taças. Gosta de paradoxos. Pratica conceitos antagónicos como peso e leveza, estabilidade e instabilidade, verdade e ilusão, equilíbrio e desequilíbrio. Há quem chame às suas esculturas “geometria pedestre”. Os seus movimentos primordiais são o rectangular e o circular. O seu movimento essencial talvez seja o da narrativa. E com ela, uma marca que se deixa. 

É um homem que viveu uma vida errante. Primeiro no Porto, depois na Galiza, depois em Lisboa. Algarve. E novamente Lisboa. E sobretudo o mundo todo – ambição de um viajante infatigável. Nasceu em 1957. Estudou nas Belas Artes. Foi professor de liceu. Tem um ateliê em Lisboa onde vai todos os dias. Tem obras em importantes colecções públicas e privadas. Internacionalmente, goza de um particular prestígio no Brasil e em Espanha.

Neste momento, para além da exposição na galeria Filomena Soares, que pode ser vista até nove de Maio, expõe na galeria Senda em Barcelona e na Academia das Artes dos Açores (gravura). Prepara um projecto para um parque barroco holandês, outro para o Algarve e exposições em S. Paulo.

É em doses iguais tímido e amável. Fala com grande segurança da sua obra, e sublinha a importância do erro e do fracasso. Quando diz uma coisa tão banal quanto ter feito um programa na televisão, cora… Inusitado, num homem de 52 anos. O título da exposição que fez para os 50 anos da Gulbenkian era exemplar (além da exposição): Paisagem Interior.

 

Comecemos por um aparente fait divers: já foi a Pompeia?

Não.

 

Na sua obra, os “monumentos funerários” são constantes. E há peças, como um homem de pedra dentro de um caixão, que aponta para figuras de Pompeia, apanhadas pela lava, petrificadas. Uma viagem a Pompeia e ao seu trabalho pode ser uma viagem ao mundo dos mortos.

Percebo o que quer dizer. Quando comecei a trabalhar em escultura foi com mármores e foi com o João Cutileiro. O que me fascinava na escultura era o seguinte: como é que um gesto que acontecia num momento curto poderia durar milénios? Essa ideia de execução em tempo curto que se projecta num tempo tão longo era [como] viajar no tempo. Comecei a trabalhar com 20 anos e tinha uma vontade enorme de viver com grande velocidade.

 

Isso porquê aos 20 anos? Aos 20 anos acha-se que o tempo é ilimitado.

Eu tinha exactamente a consciência contrária. Essa peça de que está a falar, e que é de 1981, é um sarcófago e tem lá dentro a figura de um morto. Eu tinha 23 anos [quando a fiz]. Esse vazio, e o vazio da morte, esteve sempre presente no meu trabalho.

 

Porque é que tinha essa urgência? Porque é que o vazio e a morte eram, são, os seus temas?

A escultura, na sua tradição, é um monumento. Como a fotografia. A fotografia conta-nos uma coisa que já foi, mesmo que esse tempo, o remoto tempo, tenha só dois minutos ou três. Em relação à escultura, há uma tradição fúnebre que vem desde os menires, os cromeleques, os primeiros monumentos que são sempre sobre a ausência. São representação do que não está, remetem-nos para outro tempo, para outro espaço. Estamos a falar de mundos paralelos, de mundos a que não temos acesso. Há jogos de espaço e de tempo que são equacionados através desses objectos de passagem que são as obras de arte.

 

Objectos de passagem?

São objectos que não são funcionais, não são objectos que tenham utilidade a não ser para nos falarem dos mundos paralelos. Como a metáfora, é dar um nome ou falar de uma coisa quando na realidade nos estamos a referir a outra.

 

Porque é que a escultura, mais que tudo, lhe interessou?

Desde o princípio, a escultura tinha a ver com uma marcação de território, com a instalação de um espaço simbólico. E tem a ver com um mundo sedentário, de permanência. Ao longo dos anos ela foi-se tornando mais leve, foi perdendo essa carga tão pesada, e foi-se transformando quase num monumento prêt-à-porter ou cash-and-carry [risos]! Estruturas que se montam, ocupam um espaço, marcam território; mas depois podemos desmontá-las, guardá-las na mochila e viajar com elas. Digamos que foi o processo que foi ocorrendo no meu trabalho ao longo destes 30 anos.

 

Peso/leveza é um dos binómios essenciais quando se fala na sua obra. Mas também nomadismo/sedentarismo. Voltando à urgência dos 20 anos, explique-me que pessoa era então.

Não sei se sou capaz de me explicar muito bem. As coisas acontecem porque acontecem. Não tenho uma explicação para as coisas que me vão acontecendo. Comecei por estudar arquitectura na Escola de Belas Artes; poucos meses depois passei para Artes Plásticas.

 

Porque é que fez essa transição?

Porque Arquitectura fechou. Tão simples quanto isso. Foi imediatamente a seguir ao 25 de Abril, e para não estar parado entrei em Artes Plásticas; quando Arquitectura abriu, já não quis voltar. Entendia-me melhor no ambiente da pintura. Houve uma altura em que conheci o Cutileiro. Fui fazer-lhe uma entrevista para a televisão. [risos]

 

Trabalhou em televisão?

Nuns programas, quando ainda era a preto-e-branco. E demo-nos muito bem. Passados uns meses convidou-me para ser assistente dele. Fui imediatamente para o Algarve, para Lagos, e comecei a trabalhar de uma forma muito directa nos mármores, a aprender as tecnologias e a maneira de trabalhar.

 

O seu trabalho tem muito que ver com a arquitectura, com linhas, formas, volumes. Tem mais que ver com a arquitectura do que a pintura. Como é que estas disciplinas apareceram como um interesse, como um foco na sua vida?

Eu, de pintura, gosto, mas gosto de olhar. Quando trabalho em bidimensão, trabalho em gravura ou em desenho; e trabalho exactamente as mesmas questões espaciais que trabalho na escultura. Tenho uma necessidade de contar histórias. Tenho uma necessidade de perceber o mundo contando as histórias, sendo o narrador. Não sou bom a exprimir-me verbalmente, não é o meu modo de expressão preferencial. Mas há coisas que podem ser ditas através de uma linha, através de um volume, através de um plano de cor ou do chumbo ou da pedra ou através de um espelho. E não é que isso me preencha, mas vai preenchendo, esvaziando, preenchendo, esvaziando…

 

Tem memórias de si, em criança, a desenhar, a mexer em materiais – quando ainda eram só experimentação, descoberta, e não uma forma de expressão.

Tenho uma memória difusa dos líquidos das tintas e de borrar e de aparecerem formas, isso tenho, de sujar a mão e esborratar. Com as mãos e com pincéis.

 

Fale-me mais do contacto manual com as coisas, porque há também um lado muito sensual e sensorial no seu trabalho.

Sempre houve [contacto manual] e nem sempre tive grande controlo. É curioso que, no liceu, era muito mau aluno a desenho, estava sempre a chumbar, justamente porque não atinava com os limites das formas e empurrava a pintura, literalmente. Com tinta-da-china, com aguarela e com guache – era um desastre.

 

Tinha dificuldade em ser preciso? Vinha por fora – é isso que quer dizer quando diz que empurrava a pintura?

Por fora e por dentro, não misturava bem as cores, era muito desastrado. Interessa-me recuperar esse lado. Interessa-me, numa sociedade tão tecnológica e tão sofisticada como aquela onde vivemos, recuperar um lado de manualidade, de registo de mão e de corpo.

 

No documentário que Margarida Ferreira de Almeida fez sobre a sua obra, Faz-me Face, são constantes as cenas de montagem das peças. E percebe-se que a relação é eminentemente física: é um corpo a corpo. Muitas vezes são dois materiais, numa desproporção de forças, de peso ou sensibilidade. Outras vezes, é um corpo a corpo entre a escultura e aquele que a monta.

Uma folha de papel branco à minha frente é um corpo com o qual eu me deparo, me meço. Tenho a capacidade de me inscrever, de sair fora, de me expressar. Mas é sempre um corpo que se mede com o meu corpo. Seja num desenho pequeno, grande, seja numa escultura, seja na montagem de uma exposição. São sempre as medidas do corpo e as maneiras como elas vão ampliando, crescendo, encolhendo, mudando de local. Ir de um lado ao outro, de cima a baixo, percorrer, parar, avançar, fazer um zoom, ter um olhar de baixo para cima, medir de cima para baixo, são os assuntos do meu trabalho.

 

O cinema vive de contar histórias com imagens. Quando é que começou a ver cinema?

Comecei a ver cinema em miúdo, o Bucha e Estica, o Tom e Jerry. Ao cinema sozinho, comecei a ir com 12 anos. Ia ao Paris, ao pé da Basílica da Estrela [em Lisboa]. E via também em Sintra, no Carlos Manuel, nas férias. São os dois cinemas de que me lembro antes de aparecerem o Londres e as outras salas. Houve um filme que me marcou muito: o Lolita, do Kubrick [1962]. Não tinha a ver com a história, mas com a maneira como estava filmado. Tinha a ver com os planos, que não são planos de cor, com a intensidade do preto-e-branco.

 

Nesse filme, o conteúdo é brutal. (Provavelmente mais para raparigas do que para rapazes.) Mas a questão é saber se consegue dissociar o conteúdo da forma.

Interessa-me o conteúdo da forma. Há outro filme: o Couraçado de Potemkin [Eisenstein, 1925], que me toca pela força das imagens. Os olhares, os esgares, a intensidade das formas em movimento têm uma narrativa que é paralela e que se autonomiza à outra narrativa que está subjacente.

 

Na sua obra há uma sucessão de contentores, “objectos sólidos impossíveis”, prontos a receber um conteúdo. A partir do modo como fala dos filmes, percebemos que são dois conteúdos em separado, duas narrativas paralelas.

São duas narrativas que funcionam paralelamente, cada uma delas tem o seu campo de acção e sobrepõem-se. Podemos depois, como num TAC, fazer leituras das diferentes camadas, mas elas estão todas cosidas, integradas. Nós é que temos de fazer o trabalho de separação, se é que se pode fazer. O processo de fragmentação e sobreposição é evidente em certas peças. São como que pedaços soltos que pertenciam a histórias diferentes e que, de repente, tomaram corpo e fazem uma história única.

 

É um contador de histórias cujo signo não é a palavra. Estamos habituados a que as histórias sejam contadas através de palavras. As histórias que conta, e que incorporam estes vários fragmentos, são a sua história?

Vão sendo a minha história.

 

Qual é a sua história familiar? Temos falado da sua obra, mas ela não é uma peça isolada. É também a sua família, o seu país, a sua língua, os filmes que viu, os quadros que viu. E isso importa, não?

Claro. Na minha família tenho alguns tios arquitectos. Desde miúdo, habituei-me a ver maquetas e a ir a obras, a assistir à transposição de escalas. Da parte do meu pai, havia um grande interesse em literatura. Lembro-me de constantemente nos ler poesia e de isso ter sido importante na minha formação. García Lorca, Pessoa, muito Pessoa.

 

Por falar em caixas imaginárias, em caixas dentro de caixas, em pessoas dentro de uma pessoa...

Quando era miúdo, achava aquilo absurdo, mas ficaram as sementes. A decisão de ir para Arquitectura ou para Artes Plásticas, tomei-a muito só. Não tenho consciência de ter tido influência familiar para que fosse para isto ou aquilo. Na Escola de Belas Artes, há uma enorme partilha com um grupo de colegas, o Pedro Calapez, o Pedro Cabrita Reis, a Ana Léon, com quem comecei a expor.

 

As pessoas essenciais no seu mapa são essas?

Foram pessoas que me marcaram. A seguir conheci o João Cutileiro. Depois há muitas pessoas que entram e saem, aparecem e desaparecem. Tenho amigos de infância, tenho grandes amigos do liceu.

 

E encontros com autores, com artistas? Vi ali um livro de Giacometti: posso presumir que o encontro com Giacometti lhe provocou uma grande impressão. 

Há [encontros com] autores, mas acima de tudo há uma galeria enorme de anónimos. Desde esculturas africanas a arte egípcia, a escultores barrocos, de que nem sequer me lembro o nome, em quem fui tropeçando. Não só escultores, mas também objectos que fui encontrando – e daí a importância das viagens. Cada vez que viajo, só o andar na rua, o ver as pessoas, o entrar em lojas, o passear por cemitérios, dá-me uma riqueza de informação… Tropeço em coisas que eram as coisas de que eu ia à procura e não sabia.

 

Só quando as encontra é que…

É que elas se revelam.

 

Porquê esse conforto na relação com a morte? Passear por cemitérios traduz um pouco isso. Aquilo não é uma coisa ameaçadora.

Não, é um local que apazigua. O cemitério é a tal cidade paralela, com as avenidas principais, as avenidas secundárias, prédios de apartamentos, moradias – está representada a cidade de uma forma simbólica.

 

Que cemitérios o impressionaram?

Um cemitério onde não vou há alguns anos, mas a que ia com bastante frequência, é o Cemitério dos Prazeres.

 

Ia passear ao Cemitério dos Prazeres como quem vai passear ao Jardim da Estrela?

Sim.

 

Borges passeava no cemitério de Buenos Aires, como quem atravessa uma avenida. O cemitério da Recoleta é uma famosa necrópole. Mas em Portugal, tal como conhecemos os cemitérios, é um pouco mais estranha a ideia de passear no Cemitério dos Prazeres...

O cemitério dos Prazeres tem uma localização maravilhosa, sobre o Tejo, sobre a outra margem, tem de arquitectura funerária o que há de melhor. Pode-se perceber muito bem, pelas construções, pelos pequenos monumentos, pelas cruzes, pelos elementos em bronze ou em pedra, como era o imaginário no séc. XIX e princípio do séc. XX das pessoas que cá viviam.

 

Estava a falar dos cemitérios que visitou e que o marcaram.

Há o do Rio de Janeiro, o Cemitério de S. João Baptista. Tem a figura de um leão, que é um animal que não existe no Brasil, que simboliza a coragem, a força, a dominação.

 

Mas nada destes símbolos tem que ver com a morte.

É curioso, não é? Há em Barcelona o Cemitério de Igualada, que foi desenhado pelo Miralles e pela Carme Pinós, que tem a forma de uma praça de touros. Há como que uma arena central sobre a qual estão todas as gavetas em curva; isso dá-lhe uma dimensão trágica e forte. A representação da morte é também como uma representação da vida, permite pontes curiosas.

 

Nunca teve medo da morte?

Tive, tive, mas foi uma coisa muito fugaz. Aqui há uns anos capotei duas vezes com uma diferença de 48 horas. Foi uma coisa muito violenta. O carro saiu da estrada, fez uma pirueta e caiu de pernas para o ar. Tive a seguir uma coisa de adrenalina e de força vital com a mesma intensidade dessa visão da morte.

 

Ter sido num espaço tão curto parecia-lhe um sinal?

Não. Não lhe atribuo nenhum sentido especial, mas foi uma visão…

 

Como é que configuraria essa visão?

De um pânico associado a uma ideia de impotência, associado a um gesto de intensidade oposta e vitalidade.

 

Esse gesto de vitalidade é já reactivo.

Sim. Passou-se tudo, imagino eu, em segundos. A ideia de morte é outra coisa, é uma construção de outra ordem. Não é uma coisa que me assuste. É pensar qual é o meu lugar aqui e já antever este lugar sem mim. É aquilo de que a escultura fala: é a presença da ausência. É sabermos que há mundos aos quais não temos acesso enquanto aqui estivermos e que a passagem aqui tem uma duração no tempo e no espaço com limites.

 

Não é por acaso que se chama à morte a última fronteira.

Claro.

 

Aos 20 anos, essa urgência de viver tinha alguma coisa que ver com o medo de morrer cedo, ainda que disso não tivesse consciência?

Acho que não. É uma decisão: vou viver e dar-me o direito de a minha vida ter a ver com a expressão, e trabalhar numa área que tem a ver com a escultura, e de esse ser o assunto.

 

Quando é que a morte começou a constituir-se como um tema? 

É um tema de toda a gente, é um tema universal, e é cada vez mais um tema tabu. As pessoas não morrem em casa, não se fala da morte, não são estimulados os lutos. E a morte não é só uma morte física. Há a morte simbólica. Cada vez que saímos de um sítio e vamos para o outro estamos a actualizar a ideia de morte. Sempre que se fecha um ciclo e abre outro, aconteceu uma morte pelo meio. Vamos supor: eu vivia no Porto e passo a viver em Lisboa; posso lá voltar, e nesse sentido tenho um movimento linear, de ir lá atrás; mas já não volto da mesma maneira, volto como uma pessoa que partiu e não como uma pessoa que pertence ainda.

 

Porque é que saíram do Porto?

Por razões profissionais do meu pai. Trabalhava numa multinacional que decidiu expandir-se; começaram pela Galiza, foi para lá e nós fomos com ele. Lisboa, a mesma coisa.

 

Já era um menino introvertido?

Acho que sim. Socialmente sou tímido, mas, por outro lado, não tenho dificuldades em falar em público, em dar conferências.

 

Isso é o persona público.

É.

 

Dá a ideia que é bastante autónomo, que não depende dos outros para a confirmação de quem é ou do que faz. Que as narrativas existem do princípio ao fim dentro de si.

Realmente não preciso de grandes confirmações. E há confirmações que vêm, e eu não confio… Ou seja, já houve momentos da minha vida em que o meu trabalho não foi aceite e isso não me fez vacilar ou pôr nada em causa. Noutros momentos, de grande reconhecimento e aplauso, também não confiei. É boa a partilha, mas há uma voz interna à qual dou muita atenção. As confirmações vêm de dentro.

 

Quando é que começou a ouvir-se?

Muito cedo. Quatro, cinco, seis anos. Lembro-me de estar nas aulas, ainda na primária, e de partir para as minhas viagens, e de haver um desfasamento entre aquilo que era o conteúdo e aquilo que era a forma, (que depois reconheci no cinema). Lembro-me de, mais tarde, não ter tido dúvidas sobre o que queria fazer na vida, independentemente de ter uma profissão.

 

O que se quer fazer na vida é uma coisa, a profissão é outra. Não por acaso, quando falou na influência do seu pai, falou na poesia, não falou daquilo que ele fazia profissionalmente.

Pois. Isso nunca me foi apresentado como sendo uma coisa contraditória, um paradoxo.

 

Com os seus irmãos, tinha uma relação íntima?

Tenho uma relação cordial, cada um tem os seus interesses, vemo-nos com alguma regularidade. Mas não diria que temos uma relação íntima.

 

Era assim na infância e adolescência? Estava a lembrar-me daquele que aos 12 anos vai sozinho ao cinema.

Eu e os meus irmãos partilhávamos o mesmo espaço e era um espaço de crescimento. Somos cinco. Havia sempre as alianças e as guerras, as mudanças de alianças e as novas estratégias e as novas guerras… Nada de especial.

 

Esse jogo de tensões e poder, essa dinâmica, está presente em muitas peças suas. Nelas, a desproporção de forças é imensa, mas o equilíbrio é possível. Por exemplo, ocorre-me um banco de madeira que está inclinado e que está a suster um bloco de gesso pesadíssimo…

Esse banco, não é um banco qualquer: é um banco de estirador de arquitectura. O banco é como um personagem que se equilibra entre o peso desse monólito em gesso e a arquitectura; está apoiado numa parede que o sustém. É uma boa imagem de como lidamos com os pesos do mundo: parecem todos insuportáveis e, no entanto, estão todos num equilíbrio/desequilíbrio que não nos esmaga.

 

Outra peça forte: a cadeira cortada ao meio e colada na parede. Comecei por pensar nela como uma metáfora da sua timidez e da sua dificuldade em comunicar. A cadeira está destituída daquela que é a sua função inicial, que é servir de assento; estar virada contra a parede, de costas voltadas para a sala, o que a isola mais ainda. Mas esta é só a minha narrativa. Se as suas peças são contentores, o normal é que cada espectador projecte lá as suas narrativas.

A sua narrativa faz sentido, mas não é o único sentido possível. A razão pela qual comecei a usar móveis é porque remetiam para personagens. Há cadeiras do séc. XIII que remetem para um ambiente barroco. Há cadeiras que são rurais, são como pessoas no campo a falar. Neste caso é uma cadeira simples, dos anos 50, daquelas da Olaio. O assunto é outro: a cadeira foi serrada e encostada a uma parede, deixou de ser um corpo inteiro para passar a ser uma prótese; depois, há um espelho que está na parede e que a reconstitui; reproduzindo as duas pernas de trás, ficamos com quatro pernas.

 

Como chegou a essa narrativa?

É como se, em muitas partes das nossas vidas, tivéssemos sido amputados. O que tentamos fazer é reconstituir o “único” e o “um” antes de estar dividido. Passamos a vida toda a juntar coisas que nos completem daquilo que nos falta. Mas é uma impossibilidade porque uma vez que “um” tenha sido dividido ele já não volta a ser “um” outra vez, mesmo que a quantidade seja a mesma.

 

Isto leva-nos a falar de fracturas. Quais foram as grandes fracturas da sua vida? Uma escolha pode implicar uma grande fractura.

Não sei, não sei. [grande silêncio] Aquilo que queria fazer [na vida], foi uma escolha, o resto foram coisas que me foram acontecendo.

 

As suas peças contentores, e a sua vida-contentor, obriga a escolhas. Pela razão simples de não podermos conter tudo. Uma coisa prática: guarda objectos ou deita fora? Qual é a sua escolha?

Guardo alguns objectos. Tenho muito poucos que me acompanham. E de vez em quando deito fora. Tenho uma casa bastante despojada.

 

De que coisas precisa para se sentir em casa?

Algumas pinturas. Nenhuma minha. Não tenho um único trabalho meu em casa. Em casa, é como se o universo já lá estivesse, como se cada um daqueles objectos me falasse ou falasse de mim, e preenchem-me. E tenho taças de vidro – lá está, contentores –, cadeiras, mesas, sofás, livros, blocos de desenho.

 

E esses, é capaz de deitar fora?

Também. Há pessoas que lêem vários livros em simultâneo: eu tenho vários blocos. Cada bloco tem registos que podem ter cinco ou sete anos de diferença. Desenho num, depois noutro. Além de desenhar em casa, também os levo para viagens. Pego sempre no que está à mão, vou variando. Desenho basicamente aquilo que se vê em exposições, mas também escrevo pequenos apontamentos. Posso tomar nota de um número de telefone ou de uma morada, ou de uma coisa que tenho de fazer e que não posso esquecer, ou uma ideia que tive.

 

Os seus desenhos funcionam como bloco de notas da escultura? Um desenho pode ser uma escultura unidimensional cujo material é a folha de papel, e não o gesso, a madeira, a pedra?

O desenho é autónomo. Dentro do campo do desenho estão as tensões espaciais, a noção de centro, a noção de periferia, a noção de antes e de depois, as de marcas de um corpo. Em relação à escultura, são as mesmas coisas que estou a trabalhar no desenho mas espacializadas, ligando-as à arquitectura, à relação com o corpo.

 

Há pouco estava a falar da importância do falhanço…

Isso é uma coisa que adoro!

 

“Falhar, falhar sempre, falhar cada vez melhor”, parafraseando o Beckett?

Não podia estar mais de acordo. Num mundo onde é tão importante a performance, e ser um sucesso 24 horas por dia, 365 dias por ano, os falhanços são a grande alavanca do desenvolvimento. Do desenvolvimento interior e a razão do sucesso. É nos falhanços que me reconheço. É nos falhanços que reconheço as oportunidades e as possibilidades. É nos falhanços que faço as importantes descobertas.

 

Dê-me um ou dois exemplos para ilustrar isso que diz.

Em relação aos desenhos, se por qualquer razão não encontro o sentido dele, isso é angustiante e há uma sensação primeira de decepção. Como é que isto me saiu tão desajeitadamente e aparentemente tão repetitivo e tão banal? Já me tem acontecido agarrar num desenho e, em vez de o rasgar, pô-lo de parte, voltar a revisitá-lo daí a uns anos e perceber que aquilo que a mão estava a fazer eu ainda não tinha mecanismos para perceber. Às vezes falta apenas um traço, um pedaço de cor, apagar uma parte.

 

Como se um falhanço fosse um prenúncio de mudança?

Como se fosse uma mudança que está feita mas que ainda não tenho mecanismos para reconhecer. Acontece-me também com as fotografias. E aconteceu com a escultura. Só quando organizei a retrospectiva no CCB, em 2002, já com quase 25 anos de trabalho, é que consegui ver que todo o meu trabalho andava à volta de caixas, caixotes e contentores.

 

E caixões.

E caixões. Vamos cada dia para o ateliê, e cada dia é um dia; só começa a fazer sentido quando se passaram 20 anos e percebemos quais são as constantes que lá estão. Primeiro era pedra, depois desenho, depois madeira, depois bronze, gesso, depois espelhos. São objectos diferentes e são caminhos novos, que não se reconhecem uns nos outros. Mas esse caminho tão profundo, inconsciente, está lá. Precisa é de muito tempo para se revelar.

 

É paradoxal que tudo isto aconteça com uma lassidão que contrasta com a urgência que tinha aos 20 anos.

Sem dúvida. E isso tem-me permitido fracassar. Essa permissão para o fracasso faz emergir depois as coisas, o assunto.

 

Ou seja, quando há essa visão da morte, a seguir há uma pulsão de vitalidade.

Exactamente.

 

Olha para uma peça e diz: “Eu sou isto”?

Sou, absolutamente. Eu sou aquela escultura, eu sou aquela prótese, eu sou aquele bocado, eu sou o espelho, eu sou a imagem, eu sou o bocado de pedra congelado, eu sou a peça que se constrói de parafusos e ferros, e que se pode desmontar e voltar a construir noutro sítio. Mas é impossível que um arquitecto não seja as paredes, o tecto e o chão da casa, e um poeta não seja as palavras que lá estão. São outros meios para falar de nós.

 

Como é que chegou a essa certeza de quem era, do que queria fazer, de qual era a sua narrativa?

Cheguei a esta narrativa e a esta certeza com muitos fracassos. E por me ter permitido um entendimento do mundo não verbal. Ou seja, dar significado a uma cor, a uma forma, a um volume, a um vazio, a um tempo absurdo, a um tempo cheio de sentido. É isto que sou hoje.

 

Além desse mundo, há ainda o mundo daquele que é cidadão, pai de um filho, que vai ao supermercado, que tem contas para pagar.

É contraditório e também me ocupo dele.

 

Também sente prazer e identificação nele?

Sinto, sinto. Houve uma altura em que eu não tinha carro, trabalhava em Pêro Pinheiro e dava aulas à noite no liceu da Damaia. Vivia em Lisboa. Apanhava primeiro um comboio para Sintra, de Sintra um autocarro para Pêro Pinheiro, e depois voltava a apanhar um autocarro para Sintra, ia de comboio para a Damaia, onde dava aulas das 7 e meia da tarde às 11 e meia da noite. Aproveitava os tempos das viagens como tempo de leitura ou para ir olhando a paisagem.

 

Ou seja, fazendo uma viagem paralela encaixada nessa viagem real.

Sim. Nunca me lamentei por ter de viver esse mundo real. E as coisas que ensinava no liceu eram prosaicas, e a seguir os alunos faziam exercícios e eu tinha de dar notas. As coisas ligam-se umas às outras. É como ocuparmo-nos dos grandes assuntos e dos pequenos detalhes: tudo faz parte. E só faz sentido uma coisa com a outra.

 

 

Publicada originalmente na Revista Pública, em Abril de 2009