Isabel de Castro
Quando pela primeira vez gostou de se olhar, e se reencontrou no que via, tinha mais de trinta anos. O que o espelho lhe devolvia era a vida, sulcada na cara. Uma vida vivida em bolandas, entre Portugal e Espanha, palcos e êxitos desiguais, cinco filhos e um pai e uma mãe amados desalmadamente. Lembra-se bem desse dia em que se maquilhava, e sentiu que a sua cara tinha uma geografia, ou vincos, ou leitura, que é como gosta de dizer. A vida lia-se-lhe na cara. Como hoje. Uma vida plena.
Isabel de Castro tem 71 anos, nasceu em Lisboa. A sua vida é uma vida dedicada ao amor. Ela diz que nasceu para ser mãe e para ser filha, e talvez para ser actriz. E em cada uma, do que se trata, é de ser intimamente com o amor.
No filme de Inês de Medeiros «O Fato Completo, ou À Procura de Alberto» conta que antes de uma estreia ficou apavorada com a iminência de subir ao palco, e, já vestida de condessa, desatou a correr pelo Chiado. A descrição do episódio é muito fílmica.
Eu também o vejo como um filme.
Conte-me lá esse filme.
Estava assustada. Ensaiei com o Ribeirinho, um óptimo ensaiador, uma óptima pessoa, mas muito rígido dentro do teatro. De vez em quando descompunha-nos: que não prestávamos para nada, que éramos uns canastrões, aquelas coisas. Ao mesmo tempo, quando me foi buscar, disse-me: «Nunca me digas que não és capaz de fazer». A certa altura comecei a assustar-me. Praticamente não tinha feito teatro; para dizer a verdade, no Conservatório não aprendi muito. Depois era Shakespeare. «Noite de Reis», com a Eunice [Muñoz], o Ruy de Carvalho, eu fazia a Condessa Olívia. Os fatos eram pesadíssimos, recamados a pérola.
Contudo, não era uma novata. Quando fez esta peça, regressava de Espanha, onde tinha feito carreira no cinema. Tinha 25 anos.
Pensei se estaria à altura daquilo. E não tinha facilidade em ter esta conversa, sobre a minha insegurança, com o Ribeiro. No dia da estreia, eu estava de papel na mão. Ele agarrou no papel e atirou-o pela janela fora!, «Isso nunca se faz». Vi o papel a fugir, a fugir... E de repente olhei para mim, naquele espelho enorme do Trindade, vestida de condessa, «O que é que estou aqui a fazer?», agarrei e fui-me embora! Abri a porta, e fui, tal como estava.
E os outros?
Pouco gente soube, pouca gente me viu; os que me viram, ainda pensaram que ia à rua fazer qualquer coisa, embora fosse uma estupidez ir à rua vestida de condessa... Ninguém pensou que ia fugir. Comecei por andar depressa, depois mais depressa, mais depressa. Quando cheguei ao Chiado dei a volta no Largo do Camões, e quase a tocar a Brasileira percebi que não podia fazer aquilo, não podia deixar toda a gente pendurada. Voltei para trás.
A cena lembra uma noiva a fugir do altar.
Foi um bocado isso. O teatro é uma espécie de casamento. De longa duração, normalmente não há divórcio.
Quando é que quis ser actriz?
Sempre. Quis muito ser duas coisas, aparentemente não têm nada que ver uma com a outra. Penso que quis ser útil. Dar utilidade à minha vida. Adoraria ter sido enfermeira, ter ido para países em guerra ajudar crianças. Quando tinha 14 anos houve um problema qualquer, com o Congo, julgo, e disse ao meu pai que queria ir; ele disse-me que não podia, que não tinha idade. Mas isto ligado ao teatro, que sempre fiz, sempre quis fazer. Sempre representei.
Em casa pediam-lhe para fazer pequenos números, representações.
Era miúda, miúda. Comecei a frequentar o teatro muito cedo. Aos quatro anos fui ao Nacional ver «S. João Subiu ao Trono», no colo do meu pai. Inventava as coisas no momento com uma grande naturalidade. Via uns filmes ou umas peças e inventava sobre o tema visto. Depois dei-me conta de que não era assim tão simples, mas não deixei de querer fazer. Aos 14, que era a idade mínima para entrar no Conservatório, entrei.
Antes do Conservatório, há ainda a experiência no filme de Jorge Brum do Canto, em 46 . Completa catorze anos durante a rodagem. De modo que o seu destino ficou traçado muito cedo. Não estruturou sequer a possibilidade de ser enfermeira.
Enfermeira especializada em doenças mentais. Os loucos sempre me atraíram. Da mesma maneira que me atraíram os marginais.
Consegue perceber essa atracção?
Acho que é porque os entendo. Habituei-me a vê-los como amigos, e não como perigo ou inimigos.
É um fascínio pela transgressão, pelo abismo?
- Eu não tinha de ter um grande fascínio pela transgressão. Fui uma transgressora desde sempre, não é? Tive uma educação óptima, uma enorme liberdade de expressão, de tudo quanto quis escolher nunca fui impedida. Mas tinha contra a sociedade. Vivi num bairro bastante pobre, o Largo do Contador Môr, entre o Castelo e Alfama. Os meus amigos foram feitos ali, brincava com eles na rua, levava-os para casa. Ali passava-se de tudo. Crianças filhas de pais alcoólicos, prostitutas, que lhes batiam, que as tratavam mal.
Porque é que viviam lá?
Toda a minha família viveu naquele bairro, sempre. Nasci junto à Sé, em casa da minha avó.
A avó Ana de Castro Osório, [feminista, lutou pelo direito ao voto feminino]?
Sim. Nasci lá e mudei-me com um ano para o Largo. Até aos 17.
No Largo tinha a noção de que a sua família era diferente?
Sabia que tinha imensa sorte por ter os pais que tinha. Sabia que não passava fome, que tinha coisas para vestir e calçar, e que as outras pessoas não tinham. Fez com que houvesse um espírito de repartição que me acompanhou a vida toda: ali não havia coisas particulares, as coisas eram de um todo. O facto de ter umas coisas não fazia de mim nada de especial; especial, sim, por ter sorte. Portanto, tinha de repartir essa sorte.
O Largo, aqueles dramas, ensinaram-lhe o que era a vida, num modo apressado?
Vi morrer gente muito nova, companheiras de escola, com tuberculoses galopantes, e era porque passavam mal, passavam fome. Para eles, possivelmente, nós éramos ricos. Mas tínhamos muito pouco dinheiro. O meu pai era escritor e vivia da escrita; trabalhava para o jornal e não recebia grande coisa. A minha mãe era cantora lírica, mas cantora, neste país, minha amiga!; passou também a escrever, incentivada pelo meu pai. Não havia excesso de nada. Comer um chocolate era um dia de festa. Tinha alguns brinquedos e livros, oferecidos pelos amigos do meu pai, e eram de todos, como logicamente tinham de ser.
Que objectos tem ainda da infância?
Tenho as memórias. Guardo pouco. Guardava as cartas dos meus pais, quando fui para Espanha a primeira vez. Já tinha uma mala cheia. O meu pai insistiu que queimasse as cartas todas, «Não vais passar a vida com malas cheias de cartas». Tirei ao acaso duas cartas de cada um, e fiz uma fogueira com aquilo tudo. As cartas, conservo-as, mas nunca mais as li.
A sua educação foi singular para a época.
Completamente. Houve pessoas na família que criticaram os meus pais por isso. Fizeram muito mal!, nunca lhes perdoei. A mim, podem criticar à vontade, mas os meus pais, os meus filhos, as pessoas de quem gosto... Se tenho tido uns pais repressivos, teria sido o fim. Muito presa a eles, mas muito independente. Fui para Espanha, deixaram-me ir, acompanharam-me à estação. Fugi. Não fugi deles, fugi da sociedade. Uma sociedade que não era amável, e por isso não gostava dela. A hipocrisia sempre me assustou, e depois revoltou, e depois criei-lhes pó. Eu gostava mais dos outros, dos que estavam do outro lado.
Porque há uma verdade nesse estado limite, nesse estado sem artifícios, à margem da sociedade?
Exactamente. O mundo lá de casa era o de escritores, pintores, gente fora do baralho. Lembro-me do Jorge de Sena e de gente assim, muito novinhos, visitas de minha casa.
A relação com a sua avó Ana de Castro Osório foi significativa?
A minha avó morreu quando eu tinha quatro anos, embora me lembre muito dela. (Tenho uma memória muito viva, consigo ir muito para trás). Tive foi uma relação fantástica com a minha avó materna. Não me admiro que a minha avó Ana de Castro Osório fosse uma pessoa para a frente; mas a minha outra avó, que não tinha um curso superior, uma dona de casa, era uma mulher inteligentíssima. Fui amparada por ela em muitas coisas que fiz. Fui para o liceu sozinha; a minha mãe ainda disse «Talvez devesse ir alguém com ela...», e a minha avó «Para quê?, ela sabe andar sozinha na cidade». Saía de casa às sete da manhã e chegava à noite.
Estava assente que seguiria os estudos? Faço a pergunta à luz da realidade portuguesa de há 60 anos.
Fiz até ao quinto ano. Depois meteu-se o Conservatório, meteu-se Espanha... Mas em casa havia uma cultura que era vivida todos os dias. Com os pais e os amigos dos pais. Lembro-me de ouvir o Ruy Cinatti ler os primeiros poemas.
Esses adultos faziam-na sentir uma criança especial?
Verdadeiramente não sei se me senti alguma vez criança. O Largo responsabilizou-me muito. O Largo. Deu-me a consciência de que o mundo era injusto. Consciência das diferenças. Porque uns morriam e outros não.
Enquanto criança, interrogava-se sobre a morte?
Tinha-a muito perto. Não é impunemente que se vê morrer uma criança da nossa idade, com quem se convive. (A minha mãe não me deixava ir lá, «A tuberculose é contagiosa», mas eu fugia, e ia). Quando se diz «É muito criança para perceber»... É mentira, a criança percebe muito bem, percebe muita coisa. Tenho a impressão que a primeira paixão..., eu digo, a única paixão que tive, foi aos sete anos. Uma coisa estranhíssima, mas verdadeira.
O que é que consegue recuperar desse sentimento?
Era um sentimento forte, fora de todo o contexto. Um sentimento que não sabia bem o que era, aos sete anos não se sabe bem. Mas extraordinário. Era uma pessoa muito mais velha, que me achava graça. (Só uma vez gostei de uma pessoa mais nova). Normalmente era atraída por pessoas mais velhas, com outro mundo, com mais experiência. Não foram amores felizes, devo dizer. Não sou uma pessoa de amores felizes. O que não me importa nada.
Não?
Não. Estou como gostaria de estar e como escolhi estar. A pouco e pouco fui entendendo que o amor não é bem isso a que as pessoas chamam amor. As pessoas são muito egoístas no gostar, muito egocêntricas no gostar. O amor de que gosto implica dádiva, generosidade, cumplicidade, admiração, compreensão. Nas relações há sempre uma que baixa a garimpa, uma que pode mais que a outra. Mas o amor não é um jogo de poderes, para mim não é. Eu estava mais fadada para gostar das pessoas, gostar das pessoas em geral. Nunca fiz muita questão em ser correspondida.
A não correspondência pode ser dolorosíssima, e normalmente instiga ainda mais o sentimento.
Quando era muito mais nova, muito mais nova, conheci um homem, como sempre mais velho, que tinha várias paixões. A nossa ligação foi muito mais uma ligação de amizade. De vez em quando, ele apaixonava-se e ia-se embora, pronto. Eu não podia prendê-lo!, não podia impedi-lo de se apaixonar! A única forma de o conservar era como amigo, entendendo-o. Era o mais importante que tinha para lhe dar. De modo que muitas vezes tratei das paixões dele, levava-as ao médico, pagava a pensão quando não tinham onde estar.
Ele era o seu homem?
Era uma pessoa com quem de vez em quando tinha uma relação. Há pessoas que não podem ter dono. Porque é que havia de me arvorar em dona dele?
Não lhe causava dor?
Não. Apesar de todas as paixões, de quem ele gostava verdadeiramente era da mulher, que tinha deixado mas que nunca deixou – aquelas coisas que os homens muito cobardemente fazem. E de mim, a amiga que o reconfortava sempre. Nós, e digo nós porque ela sentia o mesmo, éramos muito mais importantes que todas as paixões.
Falavam as duas sobre isso?
Pelo telefone, muitas vezes. Foi uma relação muito completa, de dádiva. Recebi dele imaginação: transformava o mundo numa magia. Quando estava com ele, estava, e ele estava comigo. Conversávamos, ríamos, não pensávamos nem no antes nem no depois. Durou 20 anos, mesmo assim...
Provavelmente a situação não lhe seria tolerável se fosse dependente desse amor, submissa a esse amor.
Nunca consegui ser cega no gostar de uma pessoa, mesmo na paixão dos sete anos.
E a descoberta da sexualidade?
Foi uma grande surpresa para mim, era um assunto que estava muito longínquo. Uma vez deram-me um livro, quando o abri e vi o que era, com uns desenhos... Não li o livro, meti-o numa estante. A minha mãe encontrou-o. Eu que era tão aberta com a minha mãe, nunca tive coragem de lhe dizer que não tido lido o livro. Senti-me sempre envergonhada, que a minha mãe tivesse encontrado o livro, que tivesse pensado que eu o tinha lido.
Mas porquê essa pudicícia em relação ao sexo?
Não era pudor. Aliás, sempre tive fama de ser uma pessoa apaixonadíssima e tal. Como é que hei-de explicar? Os desenhos eram horrorosos. Se fosse uma coisa bonita, não teria sequer escondido. Aquilo era de baixo nível, e eu soube que era. Escondi para deitar fora, mas não tive tempo. Mas não tinha pudor em relação ao sexo. Até porque mais tarde, fiz, não se pode chamar asneiras, mas muitas experiências. Só não fiz aquilo que achei que era reles.
Nunca teve pudor em falar disso aos seus filhos?
Os meus filhos conhecem a minha vida tim tim por tim tim, nunca lhes ocultei nada. As coisas boas e as coisas más. Não é segundo o critério dos outros, é segundo o meu critério. Quando eram muito pequenos, viram uma fotografia minha vestida de noiva; a minha filha mais velha perguntou «Foi quando a mãe se casou?», e eu disse-lhe «Não, a mãe nunca se casou». Tinha pés de barro, não queria ser deusa e cair do pedestal. Aliás, dificilmente me poderiam pôr em pedestais! O que tive foi sempre muito respeito pelas pessoas.
Voltemos ao princípio. Aos 14 anos participa num filme português; segue-se a estreia no Teatro Estúdio no Salitre e a entrada no Conservatório, que interrompe para ir para Espanha.
A primeira co-produção fi-la com 14 anos, e fui para Espanha com a minha irmã. O natural seria que ficasse muito encantada, ou encandeada, com o sonho disso. Mas não. Aquilo era o meu trabalho, nunca misturei isso comigo. Consigo meter-me no papel que estou a fazer, quando o estou a fazer, e depois sou eu, não tenho de levar isso para casa. (Ou guardar fotografias, ou jornais. Não tenho nada, nada. O meu pai guardou, primeiro, e depois o meu filho). É evidente que, miúda, fiquei tocada pela magia do teatro. Mas essa magia, que continua a existir, não se traduz num palco para brilhar.
Nunca quis ser uma vedeta?
Ser uma vedeta, ser uma pessoa importante que vem nos jornais, isso não serve para nada. Quando via os cartazes enormes dos filmes em que entrava, cartazes que ocupavam toda a fachada de um prédio na Gran Via, com a minha cara, achava que não era eu! Sabe o que é?, achava que aquilo não tinha nada que ver comigo, que era até um bocado tonto!
Não sonhava com as imagens glamorosas do cinema? Os anos 50 são os anos de uma Hollywood máquina de sonhos.
Nunca quis ser glamorosa. Os meus colegas diziam que era muito bonita, e nunca me achei muito bonita. O que gostava na cara das pessoas era dos vincos, da leitura. Eu não podia ter leitura, era muito miúda. E não pode dizer-se que fosse uma miúda que se divertia: aos 18 anos tive a minha primeira filha, depois tive quatro filhos seguidos.
Que vida levava em Espanha?
A primeira vez que fui a uma boite, tirando uma experiência aos quinze anos, (apanhei um grande pifo, comecei a beber whisky, nunca tinha bebido, e caí para o lado), foi em Portugal já com vinte e tal anos. Nunca tinha tido tempo para ir a uma boite. Em Espanha levantava-me às cinco da manhã, para estar no estúdio às seis e meia, e quando chegava a casa era noite, tinha de dormir um bocado, tinha os miúdos. Tive a sensação de ter adormecido criança e acordado mulher, cheia de trabalho e responsabilidade. [remexe em papéis e lê] Escrevi isto: «Da adolescência que não tive, ficou-me a nostalgia da primavera».
Mas quando vai para Espanha, que projecto de vida era o seu?
Fui para Espanha para fugir, se se pode dizer assim, com o pai das minhas filhas mais velhas, Carlos Otero. Ele era casado. Não estou arrependia, porque ele era, de facto, uma pessoa extraordinária; mas um bocadinho mais velha, não teria ido... Nunca pude furtar-me à ideia de que tinha ficado alguém a sofrer por minha culpa. Embora soubesse que não eram felizes, foi uma coisa que me perturbou bastante. Tentei acabar várias vezes, mas não consegui.
Tinha 16, 17 anos?
16 quando comecei a andar com ele, 18 quando fomos para Espanha. Ele tinha 33. Achou sempre que eu tinha ainda muita coisa para fazer, que não ia ficar parada. Combinámos que ao menor interesse que surgisse, contaríamos um ao outro. Claro que fui eu, não é?, tinha de ser, não é? Um interesse estranho que derivava da curiosidade pelo sexo, da atracção pelo sexo em si. Contei-lhe. Eu, que nunca me preocupei com as pessoas, preocupei-me imenso com o que podiam dizer dele, «E se te chamarem corno?», «Isso não existe, basta que tenhas sido sincera comigo, ficamos em casa como bons amigos». Mas eu não quis. Fartei-me de chorar e vim embora. Tinha 23 anos.
Teve os filhos porque quis ou porque aconteceram?
Sempre porque quis.
Tinha a noção de que aquilo que sempre quis fazer ficava muito coarctado pela existência dos filhos? Foi por eles que recusou o convite da Rank, a companhia inglesa que prometia transformá-la numa vedeta mundial em quatro anos?
Foi-me fácil recusar o convite, sim. A primeira questão era ter de deixar os meus filhos, (que não deixaria nunca!). Depois, o meu fito nunca foi ser vedeta. Uma boa actriz, gostava. (Para ser uma actriz, levei muitos anos. Uma boa actriz, vamos lá, para aquilo que eu era...). É um facto que isso não se usava, mas sempre quis tê-los, sempre disse que ia ter cinco! A minha vida é feita em função dos meus filhos e dos meus pais.
De regresso a Portugal, volta para casa dos seus pais. Parece que não chega nunca a cortar o cordão umbilical.
Nasci para ser mãe e filha, acho que não nasci para muito mais. Para ser actriz, talvez. Queria ser uma boa actriz para que tivessem orgulho em mim. Dei vida aos meus filhos, é certo, mas foram eles que me deram vida a mim. Sem eles, não sei se teria resistido a muito.
O único amor que tomou conta de si foi este, pelos seus filhos e pelos seus pais?
Completamente. Se me dou o direito de ter saudades do passado, (porque o passado passou, é preciso viver cada dia), tenho saudades dessa época em que estávamos todos juntos. Com os meus filhos, os meus pais, e depois os meus netos, já o meu pai tinha morrido. Percebi verdadeiramente a extensão do amor com os meus pais e os meus filhos. [pausa] A minha filha mais velha morreu. É o maior amor que alguém pode ter e o maior desgosto que alguém pode ter. Não há nada, nada, nada maior, nem nada que substitua um filho. No princípio, por mais que a pessoa queira, não consegue abranger a imensidão do que lhe aconteceu. Depois, não consegui chorar nunca. Mas isso, nem na morte do meu pai, nem na morte da minha mãe consegui.
Ainda consegue chorar?
Praticamente não choro. Há muitos anos que não choro. Faz-me uma falta enorme. Vêm ondas, ondas, sinto uma vontade imensa, e não consigo extravasar. No entanto, num espectáculo, sou capaz de chorar, raramente, mas sou capaz.
O riso e o choro, quando é que os perdeu?
Fui perdendo. Digamos que os perdi quase definitivamente com a morte da minha filha, há cinco anos e meio. Falo disto porque nunca a apartei da minha vida; ela vive comigo diariamente. Preciso de falar dela, de outro modo sinto-me muito só. Eu estava a ir-me. Percebi que uma pessoa não precisa de se suicidar, uma pessoa morre quando quer. Senti que podia morrer de um momento para o outro. Procurei ajuda. Um médico, ajudou-me muito, ainda hoje lá vou. Ele concordou.
Que a Isabel definhava?
Sim, sim. Quando era miúda dormia no quarto com a minha avó, passava noites acordada a ver se ela respirava. Mas da minha própria morte, nunca tive medo. Depois da morte da minha filha, não tenho mesmo medo, nenhum, nenhum. Acredito que para pior não vou. Acredito em Alguém, numa certa Ordem, numa Energia. Podemos chamar-lhe o que quisermos, tanto me faz. Temos com a morte uma relação péssima, fazemos disso uma coisa trágica que nos persegue toda a vida, quando na verdade não há nada mais certo. Se vivemos temos de morrer, não é?
Porque tem ao pescoço a imagem de Cristo?
Tenha sido filho de Deus ou homem, é uma figura extraordinária, é uma figura que me é muito querida. Jesus Cristo e S. Francisco de Assis são os meus grandes amores. A imagem foi-me dada por uma amiga de uma amiga; nunca a tiro.
Representa com ela?
Sim, quando não é para ver, ponho para trás. E este anel era da minha filha, pus e nunca mais tirei.
Os seus trabalhos mais famosos no teatro, como «A Voz Humana», de Cocteau, «Bruscamente no Verão Passado», de Williams, «Quem tem medo de Virgínia Woolf», de Albee, são mulheres em estado limite, muito perto do desequilíbrio.
Não quer dizer que eu mesma não esteja próxima do desequilíbrio. Tenho é tido muito cuidado em equilibrar-me.
Teve fases mais próximas do abismo.
Muito próximas.
Teve fases em que bebeu.
Sim, sim. Coincidiu com a morte do meu pai, com a morte da minha mãe, com o desaparecimento de pessoas... As pessoas achavam que eu bebia assim para fazer ginástica com o copo! Não é bem assim. Bebi muito em fases de perda. Coisa que com a minha filha não aconteceu. Deixei de beber exactamente quando a minha filha faleceu, (já não tocava há muito tempo). Não queria perder um bocadinho sequer dos cinco sentidos, adulterada por qualquer bebida ou fumo. Não se pode perder um milímetro do tempo. Quando o meu pai morreu, eu tinha 32 anos, quando a minha mãe morreu, 50. Lá fiz o meu papel de forte... Andei sempre a fazer de forte. Às vezes nem quero pensar o quanto sou fraca... Por isso percebo tão bem as personagens em desequilíbrio. Lutei sempre para ser uma pessoa equilibrada. Ainda hoje luto muito.
Nunca se arrependeu de nada?
Não me serviria de nada! Não vale a pena chorar sobre o leite derramado, é uma coisa que o povo diz e é bastante verdade. Não há tempo para o arrependimento. Há tempo para fazer melhor. O tempo é curto, de cada vez é mais curto. Se penso no embate com o futuro, o que gostaria é que aqueles que me amam ficassem bem, ficassem calmos. Que não ficassem perturbados, como eu fiquei.
Como gostaria que se lembrassem de si?
Oh, como uma pessoa. Não há nada de muito especial pelo que queira ser lembrada.
Publicado originalmente no DNa, Diário de Notícias, em Abril 2003.
Isabel de Castro morreu em 2005.