Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Anabela Mota Ribeiro

Daniel Bessa

12.05.13

Quando saiu de ministro, a vida desacelerou. “Cinco meses depois tinha regressado ao ponto de partida, tinha prescindido de todas as relações profissionais, ganhava um sexto do que ganhava cinco meses antes, na faculdade de Economia não se arranja que fazer de um dia para o outro; fui parar à Comissão, sem saber bem o que fazer. Tinha vendido o Fiat Tipo e passei a andar num Peugeot muito velho que havia na Comissão de Coordenação da Região Norte, e que alguém teve a gentileza de me facultar”. Até ao dia em que Francisco Balsemão e André Gonçalves Pereira lhe fizeram uma proposta profissional para a SELBI. “Deixei então de andar no velho Peugeot e passei a ter um BMW. Eram pessoas com quem nunca tinha falado. Devo-lhes a atenção de um telefonema que me permitiu começar a respirar”.

A história começara três anos e cinco meses antes. Três anos de oposição, cinco meses de governo. “Mantive-me na reitoria da Universidade do Porto e nunca deixei de dar aulas, mas realmente o meu reitor foi um santo… Quase só fiz política”.

A história começara muito antes, quando a mãe impôs uma escolha com custos para a família: o mais velho dos quatro filhos iria para o liceu e daqui para a universidade. Sem esse gesto, a sua vida seria outra. Foi então um aluno exemplar, ganhou a vida como explicador profissional, foi professor universitário, aproximou-se da política, foi ministro da Economia.

É casado e tem uma filha. Gosta de filmes de Fassbinder. O que gosta neles? Da crueza. Ele também é assim. Cru. É um parte-a-louça, diz-o-que-tem-a-dizer, pão-pão-queijo-queijo. Há nele uma certa rudeza de pessoa do campo. Nasceu no Porto, é um citadino; mas tem a natureza indómita de uma avó que no campo, quando tudo lhe era adverso, se fez respeitar. Daniel Bessa não deixa nada por dizer: da política, da vida, da natureza humana. 

 

Miguel Baltazar


Estava a dizer-me que “isto” tem que ter piada…

Pois. A expressão que uso é “sentido lúdico”. Sem isso a vida torna-se um inferno, e já são tantas as contrariedades, cada um tem as suas agruras… Há quem diga que tenho uma vida stressada; mas não.

 

Mais do que stressado, parece irrequieto.

Isso sim. Encontrar prazer no que se está a fazer facilita muito as coisas. Tenho dificuldade em viver debaixo de uma tensão muito alta. Tensão dos desafios e objectivos?, claro. Quando a situação muda, e deixo de sentir-me emocionalmente confortável, torno-me impossível – seja na vida profissional seja na relação com alguém.

 

Foi por isso que foi ministro apenas cinco meses? De Outubro de 1995 a Março de 96.

Essa história pode contar-se de muitas maneiras… Já a contei a mim próprio de várias maneiras. A maneira mais simpática é que tudo tem um preço na vida, e esse não o paguei. Eu não conhecia o engenheiro Guterres quando ele me envolveu na política. Encontrámo-nos num colóquio ou conferência, dessas coisas que se fazem ao sábado à tarde, em Viana do Castelo. Passados uns tempos cruzámo-nos no aeroporto Sá Carneiro. “Se a vida me correr bem, hei-de chateá-lo muito”. Respondi à minha maneira: “E se não correr bem, chateie também”. Vivi sempre de falar e de comunicar bem. Acho que foi isso que o levou a pensar que eu podia ter alguma utilidade.

 

Isso associado à sua competência técnica.

Não sei se pensou nisso. Foi sobretudo o hábito de comunicar para muita gente, muitos públicos. Sou, fui, vivi de ser explicador profissional. Desde os 12 anos. Quando, mais tarde, já líder do PS, me telefona e tenta fazer de mim… nunca percebi bem se fui o porta-voz do PS ou de ele próprio. Acabei por não resistir e disse-lhe que sim. Esses anos foram fantásticos! Conheci muita gente, corri o país, o PS ficou muitas vezes com os cabelos em pé porque eu não consegui ver só defeitos no professor Cavaco Silva. O Dr. Soares chamou-me anjinho.

 

Mas isso é por causa do seu ar papudo e dos olhos azuis.

O ar papudo pode ajudar. Mas era a avaliação que ele fazia de um discurso que considerava ingénuo. Os meus colegas de escola dirão que sou tudo menos ingénuo. Mas à beira do Dr. Soares não passo de um anjinho, realmente.

 

Na Wikipedia li com estranheza que Daniel Bessa é um economista e político português. Político? Olhamos para si como político? Olha para si como um político? Eu olhava para si como um economista que teve uma experiência ministerial.

Nos três anos de oposição penso que fui um político eficiente. Na hora de sair, quando percebi que era inevitável sair, só falei a duas pessoas: a minha mulher e o Jorge Coelho. Não sei bem porquê, nem sequer era uma pessoa com quem tinha grande proximidade. Mas foi o ombro de que me socorri naquela hora – à procura de coisa nenhuma. E ele, em bom português: “Ó pá, não vá já embora, passei por tantas dores por sua causa. Andei a tentar convencer o PS que isto não vive só de ortodoxia e uma pessoa menos alinhada cumpre um papel…”.

 

Foi um político de feiras e comícios?

Nos comícios nunca me dei muito bem. Tem ali uma encenação… Há uma série de procedimentos esperados, e o povo bate palmas a certas tiradas... Corri a país a tentar construir uma alternativa. O meu contributo foi um entre muitíssimos, mas acho que foi eficaz.

 

Porque é que acha que foi eficaz?

As pessoas acreditavam que eram possível fazer uma coisa diferente. Esta prática política – vender ilusões, convencer as pessoas de que os outros são uns patifes – nunca fui capaz de a fazer. Lembro-me que na entrevista em que apareci – o engenheiro Guterres tinha dito que eu seria o porta-voz – disse que entre o PS e o PSD era mais o que os unia do que o que os separava. Fez cair o Carmo e a Trindade.

 

Dizia-me há pouco que algumas complicações da sua vida derivam de coisas que disse e que ficam ditas – que têm consequências. Como essa?

Tenho um prazer imenso em dizer que disse isto. Na Assembleia da República, o Dr. Manuel Alegre exigiu uma clarificação. Alguém comentou num jornal: “Mas será possível ser mais claro?”

 

Se tivesse sido o Prof. Cavaco a encontrá-lo em Viana, poderia ligar-se ao PSD como se ligou ao PS?

Aí há um problema, que é o meu velho passado de esquerda. Fui um idiota útil do PC – era assim que o PC nos considerava. Não era filiado, não participava das decisões, não pagava quotas, e andava ali, convencido não sei de quê. Participava em manifestações, abaixo-assinados, intervenções aqui e ali. Não era provável que tivesse sido convidado pelo PSD. Ao PS cheguei, havia alguma continuidade.

 

Voltemos aos cinco meses de governo. Disse que aquela era a sua narrativa simpática sobre o que aconteceu…

O extremo oposto é dizer que era um incompetente. E não me vejo mal de todo nessa. É o princípio de Peter: vamos subindo na vida até ao ponto em que atingimos uma função para a qual somos incompetentes. Vencemos as barreiras anteriores, foram pedindo mais de nós e depositando mais esperanças naquilo que somos capazes de fazer; ali atingi o limite em que me tornei manifestamente incompetente. De novo o sentido lúdico que me caracteriza e uma auto-estima que não é pequena: um dia o engenheiro Guterres concluiu que este tipo já não lhe servia para nada. Serviu mas já não serve. Foi útil para ajudar a tirar uns votos ao PSD e ao Prof. Cavaco Silva, e desde a tomada de posse nada do que ele fez me acrescenta um voto. Aprendi uma coisa muito importante na política que me ficou para a vida: não valemos pelo passado acumulado, valemos pelo que ainda podemos fazer.

 

Ou seja, pela utilidade.

Isso pode fazer com que o nosso valor caia do infinito a zero num momento. Uma empresa vale pelo rendimento que é capaz de aportar aos accionistas. Uma bela coisa, cheia de imobilizado e realizações, pode cair a zero no momento em que alguém diz: isto já não me dá nada.

 

E a credibilidade? Desaparece de um dia para o outro?

A credibilidade é importante para conquistar os infiéis. Já não era preciso ir buscar votantes ao PSD. Era preciso satisfazer uma clientela. Um tipo torna-se um inútil...

 

Se não está disposto a servir a clientela?

Se não paga o preço. Nunca sei quem são as pessoas que têm mais poder na política. O poder maior não é necessariamente o poder formal. Quando alguém telefonava – e acontecia quase todos os dias: “O primeiro-ministro disse que era preciso resolver aquela situação não sei onde…”. Resolver aquela situação não sei onde era sempre meter lá umas coroas. É o problema do presidente da câmara e dos seus clientes, é o problema do que não é presidente da câmara mas que quer ser e precisa de fazer uma excelente figura. Se puder aparecer perante terceiros como a pessoa que evita uma falência, óptimo, isso rende-lhe – e para isso precisa de um ministro que ponha lá não sei quanto, que nomeie alguém. Quando se está num cargo político, essas solicitações saem de todo o lado. No dia 5 de Outubro de 95 o engenheiro Guterres anunciou os seus primeiros quatro ministros; no dia 6 comecei a receber informações: quem era por nós, quem era contra nós.

 

As informações vinham de dentro do PS?

Não era preciso virem de cartão… Estão ligados, são amigos… E caem à nossa frente listas: quem são os idiotas úteis e os idiotas inúteis, quem deve ser mantido e quem deve ser mandado embora.

 

Jobs for the boys.

Claro. Um dia, tinha de nomear uma pessoa para dirigir um organismo público. Aparece-me alguém que era o mais jovem e o menos qualificado do corpo profissional que ali estava. Começou por dizer que queria ser presidente. “Mas você, com 20 e poucos anos, é o menos qualificado, porque é que há-de ser presidente?” E invocou a autoridade não sei de quem que lhe tinha dito que ele ia ser presidente.

 

Nomeou-o? Que é que lhe disse?

Tenha paciência, vamos tratá-lo bem. Mas não me ponha na posição de assinar um diploma onde, com a minha assinatura, o último passa para primeiro. Esse preço, nunca paguei.

 

Começou a ganhar a hostilidade do PS…

Total. O PS fez uma festa no dia em que vim embora. Deu por resolvido um problema com três anos e meio – se eu voltar à conversa com o Dr. Jorge Coelho. Para o PS profundo, foi como quem mata um erro genético. Nunca mais falei com ninguém.

 

No PS?

Sim. A não ser circunstancialmente, as pessoas encontram-se. Falei com o engenheiro Guterres quatro anos depois.

 

Não teve mais que dizer àquela gente e aquela gente não teve mais que lhe dizer a si.

Como lição de vida é difícil ter melhor. A política foi o ponto mais alto que atingi do ponto de vista da carreira. A política é o mais qualificado dos exercícios. Não me custa reconhecer que atingi ali o meu limite; porque são precisas muitas competências para fazer política bem feita. Se os três primeiros anos tinham sido interessantíssimos do ponto de vista lúdico, aqueles cinco meses foram de uma aprendizagem super-sónica. Nunca aprendi tanto em tão pouco tempo sobre as pessoas, sobre o mundo, como nesses cinco meses.

 

O Dr. Soares tinha razão quando lhe chamava ingénuo? Esteve três anos em política, entre “eles”, sem perceber que eram incompatíveis. O que é que muda tão radicalmente quando se tem o poder? O poder de assinar o despacho, de fazer a nomeação?

É a percepção da utilidade. Isto dá ao Dr. Soares a razão toda. Mas não me vejo mal: vivi o que nunca teria vivido, aprendi o que nunca teria aprendido. Em política diz-se que o que é bom é ser ex, que muita gente passa pela política pelo proveito que possa tirar depois. A minha vida, por exemplo, foi muito diferente da que tinha antes. Não sei se teria algumas oportunidades se não tivesse passado pela política. Não tanto para me retribuírem alguma coisa que tenha pago, porque não paguei, mas porque me deu uma visibilidade e me permitiu conhecer imensa gente.

 

Falou de incompetência. Foi uma narrativa que lhe quiseram colar, ou foi uma que fez de si para si: eu não era competente para aquela função?

Essa narrativa foi construída desde a primeira hora em que fui membro do governo. Um jornal qualquer publicou no primeiro fim-de-semana que eu não tinha mão nos meus Secretários de Estado. (Tenho o jornal, guardo tudo: acho um piadão!, é a minha história contada pelos media). Nessa altura, se essa narrativa faz sentido, não fui eu a construí-la. Vivia a minha lua-de-mel com o poder. A coisa foi trabalhada profissionalmente desde a primeira hora. Portanto, que me considero incompetente, claro. Que me revejo nas razões de incompetência que essa gente alegava, aí há uma distância enorme. Eu era incompetente pela simples razão de não estar disponível para lhes fazer os fretes todos. Até prezo muito que alguém me considere incompetente por isso, e rio-me.

 

Pagou por não estar disponível para fazer os fretes. Mas também pela sua ambição? Há nos três anos anteriores à assunção do poder uma ambição crescente. Sabia que tinha essa ambição?

Essa é uma visão talvez nova… Hoje tenho algum dinheiro…, enfim, tenho duas casas boas. Do ponto de vista material é nisso que se resume uma vida de 40 anos de trabalho. Se passei a ter alguma ambição material, foi nos últimos anos. Antes de ir para a política já ganhava bastante bem. Não foi o ter sido membro do governo que me deu algum desafogo material. A ambição do reconhecimento, de que as pessoas achem que somos úteis e demos o melhor de nós próprios…

 

Que fomos bons, que somos bons.

Talvez. Na televisão, na rádio, nos jornais, nos eventos públicos, encontrei imensas manifestações de reconhecimento. Ambição? No dia 1 de Outubro de 95 eu tinha uma única certeza: que o engenheiro Guterres teria que telefonar. Era impossível que não telefonasse. Fizemos muitos quilómetros juntos...

 

Não pôs a hipótese de ele ter mudado de ideias, de afinal já não ser possível?...

Peguei muitas vezes no Fiat Tipo às seis da tarde, para estar em Lisboa às nove, para ir a um jantar ou reunião; saía de Lisboa à meia noite/uma, chegava a casa às quatro e às oito estava na faculdade ou na reitoria. Aconteceu vezes sem conta. Os meus amigos mais amigos não percebiam como é que era possível… A partir de certo momento o Professor Teixeira dos Santos vinha também, (eram os Estados Gerais). Eu acharia uma enormidade que não houvesse um telefonema. Mas o telefonema podia ser para dizer muito obrigado.

 

No fundo de si, achava que ia ser convidado para ministro, e que essa era a recompensa?

Não tinha a certeza disso. A única coisa de que devia ter sido ministro era das Finanças. Basta ver os jornais em que se fazem apostas e aqueles dias frenéticos… Achava que era uma saída possível.

 

O ministro das Finanças foi Sousa Franco.

Disse-me no dia 4 à noite, quando me telefonou, que tinha escolhido o professor Sousa Franco, e convidou-me para ministro do Plano. Fiquei de responder no dia a seguir, e no dia a seguir disse que ministro do Plano não ia com a minha cara. Ele disse que se ministro do Plano não ia com a minha cara, não podia dar a mesma resposta se me convidasse para ministro da Economia. Realmente não podia dar. Aterrei como ministro da Economia, para dizer a verdade, muito pouco preparado para o ser. Talvez a resposta mais inteligente tivesse sido dizer que não. Uma pessoa que me conhece bem disse: “Ministro? Ele dava bem era para Director-Geral”. Terá sido esse o momento em que a ambição falou mais alto e não fui capaz de ficar na berma? Foi o momento em que fui guloso.

 

Tinha 47 anos. Desejava isso. E desejava que lhe acontecesse alguma coisa.

Era a prova dos nove. Não resisti.

 

Disse que a sua auto-estima não é pequena. Contudo, parece ter uma enorme necessidade de confirmação exterior, do reconhecimento das suas capacidades.

Há duas validações. Conheço pessoas que têm uma enorme auto-estima e que ninguém reconhece. Necessito de um mínimo de reconhecimento objectivo. Todos os loucos estão contentes consigo próprios. Nunca me satisfez na vida estar muito contente comigo próprio.

 

Quem eram as pessoas à sua volta cuja aprovação e reforço mais procurava?

Isso é outra questão. Falo de uma aprovação mais ampla. O reconhecimento de terceiros a que me habituei cedo foi o dos alunos nas salas de aula. Uma boa aula é um enorme momento de realização. Ao fim de 40 anos, isso constitui um capital inacreditável… Ter sido professor de dezenas de milhares de pessoas. Coisa diferente são aqueles que nos são próximos. Sou uma pessoa reservada, não tenho muitos amigos.

 

Porquê?

Pessoas com quem nos abrimos completamente, partilhamos a vida, confessamos as angústias e esperanças mais profundas, esperamos que digam sinceramente o que pensam…, isso tenho poucas, e a aprovação dessas não é fácil de obter. A minha mulher foi sempre muito importante nisso. É economista. Não é impunemente que se vive com uma senhora há 40 anos… Não ousei dizer que sim [ao convite para ser ministro] sem ter isso absolutamente esclarecido em casa.

 

Que contava com o apoio dela, que ela concordava?

Tinha que concordar. Mas se a minha mulher me tivesse dito que não, eu não me atreveria. Não consigo imaginar a minha vida como [sendo] só minha. No mínimo, a coisa dizia respeito também à minha mulher. Passei a vir para Lisboa, ia a casa ao fim de semana – há uma barra pesada. Da mesma maneira lhe disse que, na hora de sair, foi a casa que fui. Meti-me num carro às nove da noite, cheguei à meia-noite: “Fátima, amanhã venho embora”. Essas pessoas não têm que nos reconhecer. Têm é que gostar de nós, ser minimamente críticas e confortarem-nos ou condescenderem; mas isso não tem nada que ver com o reconhecimento de mil e tal participantes na sessão de encerramento dos Estados Gerais. 

 

Conte-me como foi o encontro com a sua mulher e como isso mudou a sua vida.

Entrámos juntos em 1965 na Faculdade de Economia. Criou-se uma relação de uma cumplicidade grande, desde muito cedo. No fim do segundo ano ficou esclarecido. Tinha 19 anos.

 

Conte-me da vida que está para trás? Que passos são importantes para o conhecer?

Fui muito marcado por uma mãe, que tem agora 91 anos, a quem devo quase tudo. Era uma família modestíssima de quatro filhos, pai e mãe. A mãe era doméstica, o pai era empregado comercial e tinha o antigo quinto ano – que já era um activo interessante. O pai tinha traçado um caminho: que eu entraria numa escola comercial para, aos 15 anos, ir trabalhar e ganhar a vida. Foi a minha mãe que se impôs e disse que talvez o menino pudesse ir mais além. Fazer o ensino técnico ou o ensino liceal podia fazer a diferença em termos de expectativa de vida. É uma promessa de ascensão social.

 

Por via do estudo.

É à mãe que devo essa visão. O compromisso era que seguiria o estudo liceal até que reprovasse. Isso introduz um sentido de dever muito forte. E dar explicações desde os 12 anos tem que ver com isso: era a contrapartida. Era o pouco que podia fazer para diminuir as consequências materiais de ter escolhido a via de ensino, mais longa e com maior custo.

 

O que é que ensinava? Matemática?

Ensinava tudo. Das cinco às sete da tarde, todos os dias, de Outubro a Junho. Com o dinheiro, no fim, comprou-se um fato. A verdade é que a mãe nunca mais foi ao cinema, talvez nunca mais tenha entrado num restaurante. Foi o preço que ela pagou. Somos quatro irmãos, e todos chegaram lá. Um é médico, outro é engenheiro, outra é psicóloga.

 

Que presente ofereceu à sua mãe com o seu primeiro ordenado?

Não sou muito dado a presentes… Sinto um reconhecimento profundo. Que isso tenha que se exprimir num embrulho… Senti-me na obrigação de contribuir para a formação dos meus irmãos. A minha mulher olhou com dificuldade para isso. A minha mãe contrariou, achava que eu não tinha obrigação nenhuma; o meu pai sempre aceitou. 

 

Estava ainda a pagar-lhe a derrota que a sua mãe lhe infligiu…

Sou uma pessoa de contas e gosto de me apresentar como uma pessoa de contas. Isso fazia parte das contas. Ganhei algum dinheiro com as explicações, tornei-me profissional. Finalmente quem me sustentava, mesmo como aluno, era eu próprio. Casei no ano em que me licenciei.

 

Porque é que estudou Economia?

Eu queria ir para Direito, mas Direito era em Coimbra e não havia dinheiro para isso. Sou um jurista frustrado. Cheguei a pensar, mais tarde, tirar a licenciatura em Direito. No Porto, a confusão entre Economia e Gestão era total. A carreira profissional seria qualquer coisa numa empresa, logo se veria o quê. E depois, era o curso do Salazar. Não sei se isso credibilizava…

 

Dava segurança?

Era o curso do Salazar. Fugi aos meus pontos mais fracos. Fui muito bom aluno, no ensino secundário e no superior. Fui um dos dois melhores alunos do meu curso. Era bolseiro da Sacor – a casa onde estamos hoje [sede da Galp] – e fui convidado a trabalhar na empresa.

 

Porque não veio?

Eu dizia que sim à empresa e três ou quatro meses depois dava com as costas num quartel. Fui para o ensino para fugir à tropa. Se seguíssemos a via do ensino éramos declarados estudantes de doutoramento e isso adiava o serviço militar até aos 30 anos. Em 74 deixou de se pôr o problema. Foi isso que me impediu de seguir outra carreira melhor remunerada. Depois, fiz as asneiras todas, tornei-me idiota útil do PC, paguei um preço altíssimo por isso.

 

Como assim?

Por exemplo, tentei sair da faculdade. Cheguei a ser admitido no gabinete de estudos de um banco, cheguei a despedir-me da faculdade; e depois, por razões políticas, na reunião seguinte alguém disse: “Se esse tipo entrar, saio do conselho de administração”. E assim acabou a minha ida para o banco, e eu a voltar para a faculdade, a pedir imensa desculpa, e a dizer que já não ia para o banco… Há-de haver uma razão; se calhar a ambição – o termo que usou há bocado. Hoje levo-o à conta de estupidez. Fiz coisas mesmo estúpidas. Mas, lá vem a auto-estima, não estou descontente com o resultado final.

 

Era jovem…

Fui presidente do conselho directivo da minha faculdade logo a seguir ao 25 de Abril, tinha 26 anos. Fiz parte do pequeno grupo de pessoas que mudaram a faculdade de Economia e que fizeram esses disparates todos. Algumas pessoas desse grupo atingiram níveis de reconhecimento interessantes – o Fernando Teixeira dos Santos, o Alberto Castro. Aqueles que não cometeram os mesmos erros não passaram pelo mesmo processo de aprendizagem. Assim se tempera o aço.  

 

Nisso tudo havia um desejo de ascensão social e de não defraudar a confiança que a mãe depositou em si? Funcionou como motor da sua vida.

Sim. Foi o tema em que pensei hoje na viagem, de carro, do Porto para Lisboa: a mãe. Tenho uma dívida incomensurável.

 

Fala como se não pudesse nunca saldar essa dívida.

Não tem hipótese de ser saldado. Nunca falei com ela sobre isto. A mãe não é uma pessoa meiga.

 

Ela vai ler esta entrevista?

Não, está já muito diminuída. Se há coisa que não gostaria de ser, é ingrato. Mas nunca estive à espera de grandes carícias ou reconhecimento. Foi sempre bastante austera e contida na manifestação dos seus afectos.

 

É um pouco como a sua mãe? Há na maneira como fala disto um lado bruto – desculpe dizê-lo assim. Diz o que tem a dizer, mesmo acerca de si mesmo, sem contemplações.

Odeio iludir-me. A passagem pela política… talvez me tenha sobrestimado, mas sou incapaz de considerar um erro total. Fez parte de uma história e envolveu uma aprendizagem. Há coisas que sei sobre mim próprio e sobre os outros que não teria sabido se não tivesse passado por essa experiência. Esse lado mais rude tem muito que ver com a minha avó paterna. Foi mãe solteira numa aldeia no interior de Viana do Castelo há 90 e alguns anos. Foi capaz de construir um caminho próprio, tornou-se merceeira e padeira e tornou-se numa pessoa respeitadíssima e independente. Era duríssima. 

 

Era de uma grande tenacidade. Que o senhor tem.

Sim. Talvez me tenha marcado mais a avó do que o pai. O lado mais rebelde, de menor condescendência vem da avó. Ela interpôs uma acção de reconhecimento de paternidade e ganhou na primeira instância, em Viana, e perdeu na segunda, no Porto – é difícil ser mais humilhado. O avô estava ali a umas centenas de metros, manteve-se solteiro, o problema terá sido criado pela mãe do avô que não aceitou o casamento; quando a velhice se aproximou, o padre propôs o reconhecimento do filho e o casamento. Ela teria 70 e muitos anos. Fizemos uma festa pelo reconhecimento do filho – meu pai – e foi aí que conheci o avô. Mas a avó não aceitou casar. É fantástico! A avó morreu em 74, em casa do meu pai e da minha mãe, e o pai morreu logo de seguida.

 

Não o viram ministro, mas a sua mãe sim. Que lhe disse quando foi ministro?

Nunca falei com ela sobre isso. Nos meus velhos 127, e depois no Fiat Tipo, nunca tinha passado dos 140 km no máximo. No dia em que vim tomar posse vim num carro de Estado, nuns 170/180 km, e regressei a casa a 240. É impossível não haver um fascínio, por mais que se tenha os pés na terra. Mas não telefonei à mãe.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Janeiro de 2009