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Anabela Mota Ribeiro

Ana Nunes de Almeida

07.03.21

A socióloga Ana Nunes de Almeida lembra-se do dia em que pôde ir de calças para o liceu. Os nossos pais, nós, lembramo-nos do tempo em que uma empregada doméstica era uma criada de servir ou do tempo em que se vinha do campo para a cidade e se ocupava um quarto com serventia de cozinha. O espaço doméstico era outro. A vida privada também. O último volume da série História da Vida Privada, dirigida por José Mattoso, tem uma socióloga como coordenadora. O arco temporal do livro é o da sua vida. O da nossa vida.

O que mudou? Muito. Como? Em continuidade.

A maior parte de nós reconhece as imagens que ali estão, identifica aqueles códigos, as alterações. Aquela é a nossa história ou a dos nossos antepassados mais directos. Talvez por isso o historiador José Mattoso tenha decidido confiar às mãos de uma equipa de sociólogos a narrativa sobre os nossos dias.

A investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa Ana Nunes de Almeida trabalhou com Sandra Marques Pereira, Verónica Policarpo, Sofia Aboim, Cláudia Casimiro, Maria Manuel Vieira, Lia Pappámikail, Vítor Sérgio Ferreira, Teresa Líbano Monteiro e Karin Wall a História da Vida Privada das últimas décadas. “Apanhamos um arco temporal de 50, 60 anos, o nosso olhar tem potencialidades e limitações diferentes dos volumes anteriores [da colecção]. A unidade padrão é a década, é o ano, e não o século, como aqueles que nos precederam”.

O livro, editado agora em capa mole e disponível nas livrarias, oferece uma visão abrangente sobre o modo como estamos na vida de todos os dias. Como somos em casa, com o nosso corpo, em família, na relação com o espaço exterior. Continuamos a espreitar pelo buraco da fechadura. Mas agora, às vezes, a porta abre para fora.

 

 

Quando se lê o livro, o mais surpreendente é perceber a radicalidade das transformações a que assistimos nos últimos 60 anos.

Não sei se estou de acordo consigo. A partir dos anos 60, a sociedade que o Sedas Nunes caracterizava como dualista, onde havia uma imensa manta tradicional com alguns rasgões de modernidade (que tinham a ver com as áreas urbanas), o país pobre, católico e pequeno que era Portugal, começa a mudar. Há movimentos de população muito importantes, o fluxo migratório interno, do campo para a cidade, de Portugal para os países europeus, a Guerra Colonial.

 

A Guerra Colonial e a emigração são dois movimentos que levam os homens.

As mulheres ficam, e têm experiências de protagonismo e de liderança nas suas células familiares, nas suas pequenas propriedades. Há um rearranjo do papel de géneros, e uma inevitável circulação de informação, de ideias e de valores entre as sociedades. A partir da revolução de 74, a mudança entra em processo acelerado.

Discordo da sua ideia porque, apesar de a mudança ter sido vertiginosa a partir de 74, uma mudança nunca é um corte radical entre um antes e um depois. São fenómenos muito complexos.

 

Mesmo com um tremor de terra como foi o 25 de Abril?

Os pontos de partida não são os mesmos. A velocidade das transformações é diferente em grupos mais instruídos e menos instruídos, em homens e em mulheres, em áreas rurais e em áreas urbanas. Uma coisa é falarmos de mudanças de valores, outra é a mudança de práticas. As pessoas transportam para o presente as suas experiências do passado, e interpretam-nas no presente em função das suas trajectórias, herdadas, construídas.

 

O que mais mudou foi o papel da mulher?

As mulheres estiveram na linha da frente das grandes modificações que descrevemos. Quer na família, quer no emprego. Se pudéssemos ser simplistas, podíamos dizer que as mulheres fazem uma trajectória inovadora de dentro para fora de casa. O movimento inverso, a entrada dos homens nos universos tradicionalmente femininos, faz-se com mais lentidão.

Na década de 60, há muito mais analfabetas mulheres do que homens. Quando a massificação escolar se torna uma realidade no nosso país, e isso só acontece muito tarde, comparativamente aos outros países do centro e do norte da Europa, as mulheres não só entram em força no sistema de ensino, como, em brevíssimas décadas, são aquelas que têm sucesso escolar.

 

Às mulheres modernas, exige-se a polivalência. Devem ser exemplares em todos os domínios. Isto tem nem 40 anos. O Presidente do Conselho Marcelo Caetano dizia às suas alunas, no curso de Direito: “Vá para casa coser meias”.

Hoje, as raparigas estão em maioria [no curso de Direito].

 

A única professora em Direito era Isabel Magalhães Colaço. Não por acaso, nunca casou e nunca teve filhos. Quer dizer qualquer coisa.

Claro que sim. No Estado Novo, e ao contrário do que se passa no período democrático, o Estado, em grande cumplicidade com a Igreja Católica, tentava impor aos cidadãos uma cartilha virtuosa. Onde havia uma clara subalternidade das mulheres, uma afirmação explícita, até traduzida na lei, da superioridade dos homens. O homem era o chefe da família, a autoridade máxima. Nos gestos vulgares do quotidiano, a mulher dependia do seu marido.

 

Precisava de autorização do marido para sair do país.

Havia também uma clara desigualdade entre adultos e crianças. A mulher tipicamente estava associada ao domínio dos afectos, ao cuidar da casa, dos filhos. O homem tinha a função de ganha-pão, assegurava os proventos da sua família. Era o modelo considerado ideal. Ao mesmo tempo, havia situações que destoavam desta representação da família. Larguíssimas franjas de mulheres trabalhavam nos campos à frente das explorações agrícolas familiares. Havia um número expressivo de mães solteiras e de filhos ilegítimos.

 

Quem eram os pais destas crianças ilegítimas, homens casados, sobretudo?

Eram homens casados; e eram filhos de casais que não estavam casados entre si. O que chamaríamos hoje de união de facto. Ou de solteiros. Não se esqueça da revogação da Concordata com a Santa Sé, que tinha impacto no divórcio dos que se tinham casado na igreja – esses casais não podiam [divorciar-se para] voltar a casar no civil. Imagine duas pessoas que estavam separadas dos seus cônjuges iniciais, tinham um filho, num casal estável, assumido – essa criança era considerada ilegítima. O Estado Novo apregoa estes valores como os únicos que tolera. Há uma estigmatização brutal das margens.

 

Estes filhos ilegítimos eram também de pessoas de outras classes sociais, não assumidos? Não existia qualquer permeabilidade entre classes sociais.

E hoje também não. Apesar de mudanças tão significativas, as pessoas continuam a escolher o seu cônjuge em meios sociais próximos. Se fizermos uma relação entre os níveis de escolaridade e os tipos de profissões dos pais e das mães dos noivos, a proximidade é grande. As pessoas são socializadas em determinados meios, socialmente apertados.

 

No filme de João Canijo Sangue do meu sangue, a mãe diz à filha: “Mas tu achas que o médico vai deixar a sua casa para se juntar com a filha da cozinheira, que trabalha como caixa de supermercado?”.  

Apesar da democratização do acesso à universidade, e isso é sem dúvida um progresso, uma conquista que vem do 25 de Abril, percebemos que as vias escolares mais selectivas, mais privilegiadas, estão claramente reservadas àquilo a que chamamos os herdeiros, aos filhos dos licenciados. Não quer dizer que não haja trajectórias improváveis, e a probabilidade de isso acontecer aumenta nas sociedades contemporâneas. Mas em Portugal, um país fortemente marcado por clivagens sociais, por desigualdades de rendimento entre grupos, essa miscelânea não é a regra.

 

A educação, apesar de tudo, permitiu a ascensão social. Estou a pensar no Presidente Cavaco: a ascensão social é feita numa geração e é sobretudo pela via do estudo.

Olhe o Salazar. Esses são sempre exemplos e é importante conhecer as trajectórias improváveis. Mas a trajectória mais provável é a de ficar na sua classe.

As grandes mudanças? A educação foi uma mudança importantíssima. As relações de género mudaram radicalmente. As trajectórias sexuais de homens e de mulheres tendem a aproximar-se. A condição da infância; a esmagadora maioria das crianças que nasciam nos anos 40 em Portugal, ou mesmo no início dos anos 50, era posta a trabalhar.

 

Um ditado do fascismo que traduz essa ideia: “O trabalho do menino é pouco, quem o desperdiça é louco”.

Trabalhavam no campo, nas fábricas, iam ajudar os pais. Claro que entre a elite isso não acontecia. Com a democratização da experiência escolar, o lugar da socialização da criança é a escola, onde está entre pares, onde é posta a aprender.

 

A célula de socialização era quase exclusivamente a família.

Este confronto com experiências de socialização diferentes, a escola, os pares, e hoje em dia os média, altera em muito a forma como se cresce nas sociedades contemporâneas.

 

Um aspecto fundamental quando pensamos na emancipação das mulheres: em 1962 foi comercializada a pílula em Portugal.

A evolução do indicador da fecundidade em Portugal, país que era dado como católico, conservador, é espantosa. A taxa de fecundidade começa a baixar, e em 81 já não asseguramos a substituição das gerações. Não é uma queda progressiva, é a pique. O padrão contraceptivo das mulheres portuguesas é assente na pílula. A pergunta que nós, sociólogos, fazemos é: “O que é que justifica a procura social da contracepção por parte dos casais, e nomeadamente, pelas mulheres?”.

 

E o que é que justifica?

As mulheres têm menos filhos para os pôr a estudar. Sabe-se que quanto mais longo e quanto melhor for o percurso escolar, melhores são as suas possibilidades de entrar no mercado de trabalho. A preocupação com a escolaridade dos filhos, o reconhecimento da importância da realização individual, a exigência das carreiras profissionais, tudo isso é um forte incentivo à limitação dos nascimentos.

 

Hoje, uma família de quatro filhos é considerada uma família numerosa.

Com três é considerada família numerosa. Não sei dizer qual é a percentagem de mulheres com três filhos, mas não deve chegar aos 20 por cento. Há também um aspecto conjuntural que tem a ver com o adiamento das várias etapas da vida. Os jovens atrasam a sua entrada no mercado de emprego, atrasam a sua entrada na conjugalidade e a sua saída de casa dos pais. Tudo isto é feito em idades mais tardias e muitas vezes nem é feito de uma forma linear. É uma espécie de iô-iô, entra, sai, experimenta, vê.

 

O modo como se considera a parentalidade comporta um custo elevado. Financeiro e emocional. Basta pensar num carro que não é suficientemente grande para acolher três cadeirinhas, ou numa casa que não é suficientemente grande para acolher as três crianças – o que nos leva a falar da configuração das casas.

É a representação que temos sobre a criança, sobre o que deve ser uma família. A família é entendida como um lugar de realização afectiva, individual, de trocas relacionais ricas, de compromisso entre adultos que a decidem formar. Não há determinadas dimensões institucionais que pesavam sobre a família, como a transmissão, a procriação como um destino natural das mulheres e dos casais. Houve uma alteração tão grande de valores que a decisão de ter filhos é equacionada. No passado era entendida como naturalizada. Tudo é desenhado ao milímetro. O momento de ter os filhos, o intervalo dos nascimentos. Uma criança quando nasce vem para ficar. A morte de um bebé ou de um recém-nascido é uma aberração intolerável. O facto de as crianças se terem tornado bens duradouros altera muito a atitude dos pais.

 

Há 40 anos era normal que a roupa passasse de um irmão para outro. Toda a gente usava as mesmas camisas, calças e calçado, quando ele resistia. Era normal que os irmãos partilhassem quarto, e hoje, idealmente, cada um tem o seu quarto. Existe uma delimitação muito maior daquilo que é o espaço de cada indivíduo.

É verdade que a roupa e os livros escolares passavam de irmãos mais velhos para irmãos mais novos quando havia uma cadeia de irmãos com idades próximas. Muitos casais hoje têm filhos com distâncias de seis e sete anos, o que faz diferença. Por outro lado, há uma injunção ao consumo, que é uma marca dos nossos dias, um apelo muito grande da marca, das modas infantis e juvenis.

 

Vestir, exibir uma marca é uma senha de pertença.

É, e muitas vezes os pais entram com a criança nesse jogo. O outro aspecto de que falou, do arranjo do espaço doméstico, é muito interessante mas ainda pouco estudado. Há muitíssimos mais filhos únicos, e o quarto das crianças é um verdadeiro recreio tecnológico. Ecrãs, livros, material escolar, bonecos. Há uma preocupação em reconhecer em cada membro da família um indivíduo com características próprias. A pressão para um quarto para cada filho torna-se óbvia quando são de sexos diferentes, um é rapaz e outro é rapariga. Os filhos estão num quarto separado dos pais – isso nem se discute hoje em dia, coisa que muitas vezes não acontecia. As crianças precisam de um quarto, não dormem na sala. Depois, há meios sociais em Portugal, meios de exclusão e de pobreza, onde as pessoas se amontoam todas em divisões insalubres e onde tudo se faz na mesma divisão.

 

Numa família de classe média, esse recreio de que fala não está circunscrito ao quarto da criança. É normal ter brinquedos no meio da sala.

A partir do momento em que o casal tem o filho, essa criança é uma espécie de criança-rei. Está no centro de preocupação dos pais, do espaço doméstico, dos momentos livres. Quando a família sai ao fim-de-semana, muitas vezes sai com o objectivo de dar à criança experiências que sejam pedagogicamente úteis, levá-las aos museus, a exposições. E há crianças também nos hipermercados.

 

Como é que passámos tão rapidamente de um tempo em que as crianças eram um investimento braçal para passarem a ser um investimento afectivo?

Tem a ver com a possibilidade segura e efectiva de controlar a fecundidade, com o acesso à contracepção. [Ter filhos] não é um destino biológico a cumprir.

 

Os pais repetem que querem que os filhos tenham uma vida melhor do que a que aquela que tiveram. É uma expressão recente?

No trabalho que fiz no Barreiro, apanhei famílias de operários que cresceram nos anos 30, 40. A grande preocupação dos pais era assegurar a sobrevivência dos filhos, ter comida. Portugal era um país com sinais confrangedores de pobreza, de fome. Acha condenável que estes pais, que foram socializados em representações da modernidade, em que a criança é apresentada como um ser único, que é a grande realização afectiva do casal, queiram para os seus filhos uma vida melhor do que eles tiveram? Não.

 

A publicidade ilustra muitas destas mudanças. Dois exemplos do livro: um anúncio de uma máquina de lavar roupa que tem uma mulher, muito feminina, que não encarna a fada do lar, e que diz: “Livre, livre”. A mecanização das tarefas domésticas que estavam a seu cargo desaparece. O outro é um anúncio de pensos higiénicos que tem um grupo de jovens adolescentes que falam entre si. Era impensável as suas avós trocarem confidências sobre o tema ou isto ser matéria publicitária.

Para já, é uma publicidade dirigida ao público feminino. É interessante, as mulheres serem um target.

 

Significa que têm poder de compra.

É evidente que a entrada desses pequenos objectos no quotidiano vieram facilitar muito a vida das mulheres. A mecanização das tarefas domésticas é também, muitas vezes, um motivo que encoraja os homens na esfera da lida da casa, porque tem a ver com máquinas e tecnologias.

 

Os homens eram estigmatizados, não há muito tempo, quando desempenhavam tarefas domésticas. O modo como se é marido e como se é pai não é o mesmo.

Há estudos que estão a ser feitos no ICE sobre os novos pais em que, sobretudo no cuidar da criança, no cuidar afectivo, mas também no cuidar instrumental, os pais se envolvem cada vez mais. Os movimentos que têm reunido pais divorciados, que reivindicam para si uma presença tão importante no quotidiano quanto a das mães, é sinal desta tendência. Embora, e não podemos esquecer isso, ainda seja sobre as mulheres, mesmo as activas, que recai o grosso das tarefas domésticas.

 

Há uma expressão que diz qualquer coisa sobre isso: “Ele ajuda”. Se ajuda, não é co-responsável. É um estatuto diferente. Parte da sua boa vontade a participação.

E de um capricho do momento. Não é uma obrigação, não é uma tarefa.

 

Também ao nível da representação do corpo, nos homens, as coisas mudaram. É normal um rapaz de classe média, de 35 anos, usar roupas de cores coloridas, ou depilar-se, ou ter cuidados com a pele – gestos que remetiam para a homossexualidade. Já não tem essa conotação.

Há uma relação com o corpo completamente diferente. Num dos capítulos do livro, o Vítor Ferreira mostra como impera a ideia do corpo feita à medida do indivíduo que o habita, tanto homem como mulher. Um corpo construído como sinal de uma biografia através da qual as pessoas se individualizam. Se olharmos para uma rua da baixa lisboeta dos anos 60, e a compararmos com uma artéria movimentada de uma grande capital europeia, percebemos que era muito diferente.

 

Isso é notório nas fotografias que Cartier-Bresson tirou em Portugal. Parecem fotografias de um tempo longínquo, sobretudo se fizermos a comparação com outras cidades europeias.

Aí é que está. Lisboa era uma cidade provinciana, fechada. Hoje, os nossos filhos, ao desembarcar em qualquer capital europeia, sentem-se em casa.

 

Efeitos da globalização.

São os efeitos da globalização, da escolarização, os efeitos de um progresso e de uma modernização da sociedade portuguesa. Quando fiz o liceu, no Liceu de Oeiras, que não era dos mais conservadores da área metropolitana da de Lisboa, não se podia usar calças. Lembro-me do dia em que um decreto permitia às raparigas irem de calças para o liceu. Não tinha turmas mistas. As raparigas tinham aulas de manhã, os rapazes tinham aulas à tarde. Se os rapazes tentassem entrar no liceu de manhã tinham suspensões. Tenho 54 anos, isto aconteceu no tempo da minha vida.

 

Cristiano Ronaldo, que se transformou num ícone, ou Beckham, mexem com a maneira como se comportam outros homens? Movimentam-se num mundo viril, o do futebol, usam brincos ou tatuam-se e afirmam a sua heterossexualidade.

Acho que a geração do Cristiano Ronaldo já faz o que ele faz. Vejo-o mais como um produto geracional do que como inculcador de novas maneiras de olhar para o corpo.

 

No domínio da sexualidade, a grande diferença é tudo estar mais explícito?

A sexualidade é um tema muito vendável. Há uma produção de narrativas sobre a sexualidade, há até um incentivo a essa produção, testemunhos, confissões. Há um papel importante que determinadas revistas tiveram, que determinados programas de televisão tiveram, para dar informações sobre aspectos da vida das pessoas dos quais muito desconfortavelmente se falava. Por outro lado, [assistimos a] uma medicalização da sexualidade, a uma vigilância na gravidez, no parto.

 

Nascia-se em casa, agora nasce-se no hospital, com apoio médico.

Os progressos da baixa da mortalidade infantil são os indicadores que mais nos podem orgulhar em termos europeus. Isso consegue-se graças à vigilância médica.

 

O assunto da sexualidade deixou de ser um tabu?

As pessoas entendem que a sexualidade deixou de ser algo de que não se fala, e é um direito que as mulheres reivindicam também como seu.

 

Passou a haver uma dissociação entre aquilo que era um destino biológico e reprodutor e a sexualidade. No livro fala-se também da dissociação entre política e religião. No Estado Novo, o destino de uma mulher ligava umbilicalmente o seu papel político e o seu papel religioso.

Com a democracia acontece uma separação total das águas, entre o estado laico e a igreja católica. Não há receitas pré-fabricadas, a mesma receita para todos. Vivemos num tempo em que os indivíduos são incentivados a construir uma biografia única. Misturam-se num puzzle, muitas vezes híbrido, complexo, valores tradicionais com valores modernos. No passado, os comportamentos que não se coadunavam com a tal cartilha virtuosa eram muitas vezes censurados, olhados de soslaio, vigiados.

 

Hoje, o sujeito, sabendo-se peça integrante de um puzzle, valoriza mais do que tudo a singularidade que ele representa.

Sem dúvida, é uma procura de verdade individual, de autenticidade.

 

Que é uma palavra que se passou a usar. Diz-se muito, num sentido positivo, que uma pessoa é autêntica.

É uma pessoa que reflecte sobre a sociedade que a rodeia. Implica uma capacidade de reflexão crítica. E de escolher. A ideia do pluralismo de valores é fundamental nas sociedades democráticas, e não existia no passado. Há vários valores que muitas vezes são cúmplices, outras vezes estão em tensão, e outras vezes são completamente antagónicos, e as pessoas têm que fazer escolhas. Cada um escolhe os seus deuses e os seus diabos. E com esses valores faz uma mistura única que faz parte da sua individualidade. Há pessoas que votam CDS e que defendem a adopção por casais do mesmo sexo. E PCs que são contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo. São configurações de valores mais imprevisíveis, mais complexas.

 

As pessoas são potencialmente mais diferentes entre si do que eram?

Gostam de se representar assim.

 

Ao mesmo tempo, tendemos a achar que somos todos formatados, padronizados.

Tenho muitas dúvidas. Podemos todos usar as novas tecnologias de informação e comunicação, que são muitas vezes acusadas dessa homogeneização, de matarem a infância; mas fazemos um uso muito diferencial delas. A tecnologia não pode ser encarada de uma forma essencialista ou determinista. Há sempre esta angústia quando um novo média surge; a rádio, a televisão e o cinema, agora a Internet.

 

Uma coisa que foi acontecendo com todos estes média: uma intrusão cada vez maior no espaço da família e do indivíduo. Antigamente existia um telefone por quarteirão, no prédio, no café. Depois passou a existir por casa. Hoje todos temos telefone pessoal, televisão e computador no quarto.

É uma tendência recente. No estudo que fizemos sobre as crianças e a Internet notámos que as crianças que têm televisão no quarto são tendencialmente as crianças mais desfavorecidas. As crianças de famílias mais favorecidas são muitas vezes filhas de pais competentes, do ponto de vista das novas tecnologias, que têm uma grande preocupação de vigilância e de controlo dos seus actos no ciberespaço. O facto de não haver um computador ou uma televisão no quarto da criança é uma forma de controlar um bocadinho aquilo que ela faz. Mas, sem dúvida, entramos em casa de quem quer que seja e é uma casa cheia de ecrãs. As crianças crescem entre ecrãs.

 

As fotografias são uma espécie de ecrã, devolvem a imagem daquela família. Isto também é uma constante, e um fenómeno mais ou menos transversal: fotografias um pouco por toda a casa.

A fotografia é sempre uma forma de aquela família falar sobre si própria. Estão a posar. O que acontecia é que no passado as fotografias eram tiradas pelo fotógrafo, por alguém de fora da família. Hoje, quem tira a fotografia é alguém de dentro. Não é o olhar do repórter, é o olhar do protagonista.

 

Numa das fotografias do livro, olhando para uma mesa e para as pessoas à mesa, há uma série de sinais distintivos de classe. Nas imagens de época, era fácil perceber quem era burguês, quem era operário. Hoje, as diferenças estão mais esbatidas. Isso tem que ver com a televisão, com uma padronização do modo de estar?

Também vê isso a nível europeu. Há uma difusão muito forte de uma determinada maneira de vestir. Mas há detalhes. Resta saber quais. Acessórios, marcas, sítios onde se fazem as compras. Mas concordo, através da aparência é difícil distinguir classes sociais. Já não digo o mesmo se estiver numa praia, pelo corpo. 

 

Nas últimas décadas, e no mundo inteiro, a Zara uniformizou o modo como as pessoas se vestem. As marcas em que normalmente se inspira (para usar um eufemismo) são consideradas finas e globais, como a Prada. Recentemente surpreendeu-me que tenha feito uma colagem a uma colecção de um criador belga pouco conhecido, Dries Van Noten. Ou seja, o que era um nicho, aparentemente desinteressante ou inacessível para o grande público, deixou de o ser.

Haverá outros nichos.

 

Importa, depois, aquilo de que falava, o modo com cada um se apropria de peças standard e produz uma narrativa própria? E nesse caso, as franjas, o recôndito, ajudam a essa singularidade.

Exactamente. É o que cada um faz, os acessórios que tem, os brincos, o relógio, a pulseira.

 

No livro escreve-se sobre a configuração do espaço doméstico. Desapareceu, tal como existia, entre as famílias favorecidas, a presença daquilo a que se chamava o “pessoal”, a ala dos senhores e a zona das criadas.

Não conheço nenhum estudo sobre o pessoal de serviço doméstico nas famílias, hoje, nomeadamente nas áreas urbanas e entre os mais favorecidos. Mas há o recurso a empregadas domésticas residentes. São de outro tipo que não as do passado, aproveitando as vagas de emigração, de leste, de África e do Brasil. E temos o recurso a empregadas para fazer o trabalho doméstico, as chamadas mulheres-a-dias, ou para tarefas específicas, como seja tomar conta das crianças, dos idosos, e outras que vêm para engomar. O peso é muito menor do que no passado, mas não diria que tenham desaparecido.

 

Desapareceu a história da moçoila que vem da província, com 13 anos, que fica até casar, ou fica para sempre e “faz parte da mobília”.

O perfil mudou. [As empregadas] são jovens mulheres, ou mesmo adultas, que têm a sua casa e a sua vida. Há formas de tratamento e formas de aproximação que não existiam no passado.

 

Talvez sintomático disso seja o facto de ser mal visto que alguém se refira a uma empregada doméstica como criada; diz-se empregada.

É um prestador de serviços e não uma criada no sentido em que ia crescer lá em casa. Havia uma relação de dependência, diferente.

 

E pede-se por favor, e agradece-se, mesmo um subordinado. Não era assim.

Claro, davam-se ordens.

 

Tratavam-se por “tu” as empregadas.

E as empregadas tratavam por “minha senhora”, o que também mostra bem a distância. Há uma mudança muito grande nas formas de tratamento. Democratizaram-se as relações entre as pessoas na sociedade portuguesa, entre pais e filhos, entre homens e mulheres. São relações hierárquicas, rígidas, pesadas, onde há estatuto e posições claramente assumidas, mas há também uma relação de maior proximidade e respeito em relação ao outro.

 

A mesa de refeições e a cozinha deixaram de ser o centro da casa?

Muita coisa se passa em torno da cozinha. Muitas vezes enquanto a mãe está a fazer a refeição, ou a pôr a loiça na máquina, ou a passar a ferro, e isso acontece sobretudo na cozinha, estão as crianças à volta. E entretanto vem o marido com o jornal. Um outro ponto de atracção do grupo familiar é a sala onde está a televisão e o computador. Serão uma espécie de lareiras domésticas hoje em dia. Depois há os quartos onde as pessoas se resguardam na sua individualidade, no seu isolamento. A mesa de refeições: há muito a ideia de que as pessoas comem com os tabuleiros à frente da televisão, mas não sei até que ponto esses comportamentos são generalizados.

 

Outro fenómeno recente: uma tabloidização da vida privada. É como se as barreiras que limitam o espaço privado se tivessem aberto para o exterior.

Há um esbatimento grande das fronteiras entre o mundo privado e o mundo público. Os indivíduos que estavam mais adstritos ou mais associados ao espaço privado (as crianças e as mulheres) saem de casa, para o emprego e para a escola. Logo aí há trajectórias de migração que vêm abalar a ideia da barreira intransponível da vida privada.

 

A Internet escancarou as portas do espaço privado.

A verdade é que posso estar sentada na secretária do meu quarto, com a porta fechada para o resto dos membros da família, e estar numa rede social, em contacto com o mundo global através do ecrã do computador. Não só a vida exterior, o espaço público virtual, entra em casa, como as pessoas que estão na casa dão de si informação para esse espaço público global. Na televisão, nos últimos anos, descobriu-se que a vida privada era um filão inesgotável de audiências, de lucro.

 

Isso é um apelo ao voyeur que há em cada um de nós? Somos iguais àqueles, não queremos ser iguais àqueles.

Veja programas de televisão onde se recriam espaços privados e domésticos, como o Big Brother e a Casa dos Segredos, em que se está em observação experimental. Tudo aquilo vive à custa das emoções, das paixões, dos ódios, das relações que se tecem entre as pessoas. E há a cobertura noticiosa dos vícios e virtudes das personalidades públicas, da tal casta dos famosos; tudo isso vende muito.

 

Aí está um sinal distintivo de classe: a noção de pudor é diferente.

As classes superiores, em sentido sociológico do termo, não são uma classe de famosos. Estão resguardados desse olhar intruso, desse olhar comercial. O que é interessante é perceber quem é que fala na televisão, quem são essas pessoas que produzem essas narrativas. Não são todas as pessoas, não é indistinto o meio social a que pertencem.

 

Por fim, a morte. Morre-se nos hospitais, não se morre em casa.

E morre-se muito mais tarde. O tópico da morte quase não é abordado no nosso livro. Também se fala pouco de envelhecimento, da Guerra Colonial, das memórias da guerra. Tem a ver com a investigação disponível. Morre-se em contexto hospitalar, nasce-se em contexto hospitalar. Morre-se em lares, em instituições de apoio à terceira idade. Quem visite cidades medievais percebe que a igreja está no centro da aldeia, junto à igreja está o cemitério. Hoje em dia os cemitérios estão remetidos para a periferia. A morte está muito mais afastada do centro da nossa vida.

 

 

 Publicada originalmente na Revista Pública, em Outubro de 2011