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Anabela Mota Ribeiro

Maria de Lourdes Modesto

04.03.24

«Quando alguém me ofende, tenho uma reacção diferente da reacção das mulheres com quem hoje lido. Não gostam de mostrar que foram ofendidas, gostam de mostrar que estão acima da ofensa. Eu não; eu gosto de dizer às pessoas que me ofenderam, que me fizeram sofrer. Gosto que saibam que tenho sentimentos. Eu gosto de ter sentimentos».

Foi dos sentimentos desta mulher que se falou pela tarde fora. 

Maria de Lourdes Modesto nasceu no Alentejo. Não se importa que se escreva a sua idade, mas prefere que as pessoas se deitem a adivinhar. Para que se não desfaça o mistério. É muito mais que a senhora das receitas, é quase uma afronta pensar nela, apenas, como a senhora das receitas.

(O mundo que vai nela...).

(E as receitas, o que dizem elas do que somos... Conheço alguém que poria os livros de Maria de Lourdes Modesto, em especial a «Cozinha Tradicional Portuguesa», na bibliografia essencial para aceder à portugalidade).

Eu não sei cozinhar. Não tenho vocação, a bem dizer; mas tenho pena. Não sou como certa mulher, inteligente, frisava a Maria de Lourdes, que não se cansava de dizer, com brio, que nem um ovo sabia estrelar. E desgravando a entrevista, devo confessá-lo, ouvindo-a falar dos alimentos, em particular do pão, de uma forma abençoada, fui invadida pelo mesmo prazer e corri à cozinha à procura do sabor.

O que impressiona é que o mesmo alimento possa produzir tão diferentes saciedades... Tudo importa: o modo como é fraccionado, a conjugação com outros alimentos, a ligação que é feita pela saliva.

Então, mais do que o sabor das Areias, especialidade de Cascais que se desfaz na boca e acompanhou o café, o sabor da entrevista será o do pão que eu comi a pensar na Maria de Lourdes. A pensar na tarde que passámos.         

 

 

Há um ditado que diz que os homens se prendem pela boca.

Penso que foi Napoleão a primeira pessoa a dizê-lo. Não direi que os homens se prendam pela boca. Mas talvez se conservem. Depende dos homens. Saber cozinhar é um trunfo muito importante para as mulheres.

 

Ainda hoje?

Ah, sim. As pessoas não mudaram assim tanto. As mulheres mudaram muito, sobretudo depois do 25 de Abril. Ainda ontem, numa manifestação na Madeira, uma mulher despiu a blusa e vestiu uma camisola em plena manifestação, e viu-se o sutiã.

 

Que idade teria a mulher?

Talvez 50 anos. Nem sequer era uma coisa bonita de se ver... Nem o modelo do sutiã era de se mostrar... E eu disse ao meu marido «Isto era uma coisa impensável há uns anos».

 

Como prendeu o seu marido? Foi com os seus dotes culinários?

De maneira nenhuma. Se é que o prendi. É evidente que quando dou um jantar que as pessoas gabam, fica contente. Mas sabe, eu era engraçada, gira, e fugia ao estereótipo: era professora no Liceu Francês, viajava, tinha uma mentalidade, não direi avançada, mas aberta. Conheci o meu marido na televisão, cujo ambiente não tem nada que ver com o ambiente convencional. Tinha 28 anos.

 

Já era uma estrela de televisão?

Estava no auge. Era a gracinha da televisão. Quando digo gracinha..., havia a Maria Helena, a locutora, muito mais bonita; mas eu era a coisa estranha, a rapariga nova a fazer cozinhados na televisão.

 

A sua singularidade decorria da espontaneidade na comunicação. O Mário Castrim escreveu uma crítica dizendo «Finalmente alguém que sabe falar em televisão».

O Carlos Cruz tinha uma receita para um bom comunicador em televisão, e um dos ingredientes era o dom para a comunicação da Maria de Lourdes Modesto. Penso que isso me vem de ter sido professora. Quando se acendia a luz vermelha, até a voz se modificava.

 

Tinha muitos pretendentes?

Não posso dizer que fosse de arrasar! Era magra demais quando se usavam as raparigas desenxovalhadas. Quando comecei a trabalhar com os franceses, recordo-me de terem dito que era a rapariga do ano que vem. Digamos que havia uma certa curiosidade à minha volta, recebia caixotes de correspondência. A coisa mais engraçada que me aconteceu foi uma mãe mandar-me o retrato do filho, com fraque e tudo, prontinho a casar, porque, essa sim, achava que os homens se atraíam pelo estômago.

 

Imagino que correspondesse ao ideal em voga.

Não era o tipo de mulher com que o meu marido sonhava. Eu sim, interessei-me pelo meu marido. Tive sempre a preocupação de casar com uma pessoa muito bem-educada. Nunca tive a preocupação de que tivesse um grande emprego, um grande futuro, dinheiro, nada disso. Nunca pela cabeça me passou viver às custas de um homem. Fui sempre independente, comecei a ganhar a minha vida aos 19 anos. Tinha era a preocupação de casar com uma pessoa bem-educada. E na barafunda do dito restaurante da televisão, havia uma pessoa sempre muito bem sentada à mesa, a comer com o garfo e a faca muito bem, que era o meu marido. Depois ele tinha um certo desdém, até acho que olhava para mim como a rapariga da cozinha. 

 

O desejo de casar com uma pessoa educada, queria também expressar o seu desejo de segurança?

Não se esqueça que sou filha de pais separados. Graças a Deus a minha mãe conseguiu dar-nos segurança emocional, e preparou-nos, aos três, para ganhar a vida e conseguir, assim, uma segurança material.

 

É por isso que não gosta que pensem que foi educada para ser uma fada do lar?

O que não fui, de facto. Quando vejo pessoas a dizer que desde os quatro anos têm vocação para a cozinha...; mentia se dissesse isso. A cozinha alentejana alimentou-me, com a maior indiferença possível. Comia aquilo porque era aquilo que se comia. Quando vim para Lisboa estudar, comia o que me davam nos lares. Desenraizei-me do ponto de vista gastronómico. A cozinha quase que aconteceu por acaso.

 

Aconteceu como?

Houve uma altura em que apareceram uma série de cursos femininos, chamemos-lhes assim. Enfermagem, Assistência Social, por aí. Tirei o curso que foi possível, Educadora de Economia Doméstica. Permitia-me sair da província, que era a minha grande ambição, – não gostava nada da vida da província. E a minha mãe deixar-me vir... Vocês agora vêm sozinhas, vêm, governam a vida, alugam casa. No tempo em que vim, tudo isso era impensável.

 

Foi uma batalha que teve de travar com a sua mãe?

Não. A minha mãe sabia que o controle aqui era muito superior àquele que ela podia exercer. Vim para um lar da Mocidade Portuguesa. Ia todos os dias às aulas no Liceu Maria Amália, em grupo. Tinha 17 anos.

 

O que é que a desgostava tanto na província?

Olhe, tudo. Ainda no outro dia, num passeio ao Alentejo, via a planície, os sobreiros, e pareceu-me lindíssimo. Mas depois, olhando para os montes, para as fileiras de casas, pensei como deve ser sufocante o vizinho do lado saber o que estamos a comer. Saber tudo da nossa vida, dar-lhe uma interpretação... A vida no Alentejo não era nada fácil.

 

Dividia o quarto com a sua irmã?

Sim. A minha irmã é muito diferente de mim. Foi, e ainda é, muito dominada pela acção católica. A minha irmã era perfeita, perfeita demais. E eu nunca pretendi ser perfeita. Ela era a boa aluna, a que está sempre de acordo com o que a mãe diz, aquela a quem as modas não interessam. Eu queria saber a vida das artistas de cinema, olhava para o modo como delineavam as sobrancelhas.

 

Tinha ciúmes?

Sim, logicamente. Sobretudo quando não havia nenhuma compreensão relativamente ao que eu queria. 

 

No seu curso, por coincidência, é ensinada a ser uma mulher perfeita.

Sempre aprendi. Com cinco anos sabia fazer bainhas abertas, fazia luvas com duas agulhas. Aos sábados ia para as freiras onde aprendi a bordar. Tinha muita habilidade de mãos, e hoje não faço nada. Daí que quando surgiu o curso, percebi que era uma coisa que podia fazer.

 

O que queria ser quando era pequena?

Professora. Mas passei pela fase, por que todas as raparigas passam, de querer ser artista. De teatro, se ia uma companhia à província, de circo se ia ao circo.

 

Ser professora remete para a estabilidade, e artista para o glamour. Eram estas as suas opções?

Havia todo um ambiente a condicionar-me. Tive sempre algum bom senso: não ultrapassar as regras porque podia trazer-me prejuízos. Por exemplo, perder o emprego. O trabalho, a segurança, eram muito importantes.

 

Tinha também que ver com um sentimento de honradez? Contou que a sua mãe, para que a sua reputação fosse intocável, não viveu mais o amor depois da separação.

Exacto. No meu tempo, ir à boite, um grupo de raparigas e rapazes, se calhar tínhamos de levar um chaperon; se não, os próprios rapazes que iam connosco já achavam que éramos umas libertinas. Havia muita hipocrisia, e tive de me sujeitar a ela. Não se usava alugarmos uma casa mesmo para vivermos em conjunto, seríamos umas doidas, umas levianas. Mas quando há pouco me falava dos rompimentos e dos recomeços de vida, vir para Lisboa foi muito importante, e depois foi importante ter ido para o Liceu Francês, dois anos depois de ter começado a trabalhar, quatro anos depois de estar cá. O Liceu Francês foi o trampolim para a televisão. Representei uma peça de Molière, e a televisão viu.

 

Os franceses acharam mais graça ao seu tipo físico que os portugueses, não foi? Era alta, magra, usava carrapito e umas sabrinas à Audrey Hepburn.

Completamente! Usava o traço nos olhos! Vocês agora copiam menos as artistas de cinema, nós éramos mais estereotipadas. Eu não tinha a graça dela, claro, mas cultivava aquele estilo. Era magra, tinha as maçãs do rosto salientes, os olhos enormes.

 

Lida mal com a sua imagem desde sempre. Quando os programas deixaram de ser em directo e pôde ver-se no ecrã, desenvolveu uma péssima relação com a sua imagem e caiu em depressão.

Não era bonita. Quando me vi, realizei uma série de coisas em mim de que não gostava. O lábio quando falava... Mas o que se passou foi muito mais grave: foi pensar que o que estava a fazer não tinha utilidade. Durante um tempo achei uma certa graça ser conhecida, que as pessoas se virassem na rua. Mas não durou muito. Trabalhava numa multinacional, e na televisão diziam-nos quanto custava cada minuto. A noção da utilidade, tive-a sempre muito presente. E comecei a achar que o que fazia não interessava nada a ninguém. Desgostei-me e pronto.

 

Com a distância consegue dissecar melhor o cansaço?

Conheci um sucesso muito grande. Passava a seguir ao telejornal e cheguei a estar 45 minutos no ar a pedido do público. Só havia um canal, de maneira que as pessoas eram mesmo obrigadas a ver. A exposição era tremenda!, uma coisa mortal! Se cortávamos o cabelo, era porque cortávamos o cabelo, o outro cabelo ficava-nos melhor... Toda a gente dava a sua opinião. Há um ditado que diz «De médico e de louco todos temos um pouco». Na cozinha acontece a mesma coisa: toda a gente acha que sabe, e não sei quê. E eu, que trabalhava numa empresa altamente profissionalizada, não me perdoava nada. Acabei por ter uma depressão muito forte, que é, de resto, uma coisa que acontece à maior parte das pessoas que fazem televisão. A televisão também teve muita culpa. Eu queria interromper e não me deixaram. Meteram-me na cabeça que no dia em que deixasse a televisão acabava, que nunca mais ninguém se lembrava de mim. Acreditei. Pensei que o meu próprio emprego numa multinacional, que me tinha conhecido justamente na televisão, estava em risco. 

 

Como é que a sua família assistia ao seu sucesso?

A minha mãe tinha algum orgulho, penso. Era extraordinariamente contida. Sou muito parecida com ela, fisicamente e não só. Mandei-lhe um telegrama a dizer: «Veja televisão hoje nove horas». Pronto. Ela foi a um café, que era onde as pessoas viam televisão, e viu-me _ não sabia que era eu que ia aparecer. Não faço ideia do que sentiu. Não era muito de me estimular, a minha mãe, era mais de me criticar, sabe. Deve ter gostado.

 

Como foi o seu primeiro programa?

Uma coisa terrível! Perdi a fala, uma branca autêntica. Saí de campo, o assistente de realização empurrou-me novamente para campo, e eu tive tempo de pensar nas minhas alunas, que tinham televisão, a maior parte, e nos pais das minhas alunas, «Eu não tenho jeito para isto, mas tenho de mostrar que sei ensinar». Foi assim. 

 

O que escolheu para primeira receita?

Realmente só uma rapariga que não percebe nada do que está a fazer escolhe cozinhar alcachofras! A alcachofra é hoje o meu talismã. Eu era muito influenciada pelos professores do Liceu Francês e pelas minhas idas a França, e pensei que os portugueses não conheciam alcachofras. Por um lado, era uma estupidez fazer alcachofras que ninguém conhecia, por outro, a televisão também serve para divulgar. A minha sorte é que o segredo está no molho e chupei a folha da alcachofra.

 

Isso nunca se tinha visto em televisão. E disse, «Hum, está delicioso», não foi?

«Hum, que bom», fiz eu. Tenho ali um cinzeiro de prata, que é uma alcachofra, que me custou um dinheirão.

 

A sua participação começou por ser uma rubrica integrada num programa feminino.

Pois. Da televisão viram-me representar a tal peça de Molière; falava dois patuás, comia uma maçã no palco, não me recordo se cantava, mas era um papel interessante. Dei nas vistas por ser a única portuguesa. Convidaram-me para fazer programas, «Só se for qualquer coisa para as mulheres», disse eu. Que era o meu universo, as mulheres. A pessoa que fazia o programa «Nós, as mulheres» aproveitou-me para uma rubrica. Ela própria, devo dizer, achou que era injusto eu estar ali metida, que devia ter uma programa em separado.

 

É irónico pensar que não tinha uma particular relação com a cozinha. No curso, aliás, a culinária não era o seu forte.

No primeiro ano não percebia nada daquilo. Como trabalhávamos em grupo, ficava para os arranjos dos pratos, para a louça – gosto imenso de lavar louça. Como digo, a minha mãe não nos preparou para a casa. Não sei passar a ferro, por exemplo. Quando fui de férias, percebeu que falava muito em lagosta e não sei quê, mas que não sabia o essencial. Ensinou-me a cozer umas batatas, a cozer um peixe, a fazer um ensopado. Ensinou-me as bases. Não posso dizer que a minha mãe fosse uma grande cozinheira. Sabia fazer bem feita a cozinha alentejana.

 

Quando começa a ser um prazer genuíno estar na cozinha?

Quando senti que sabia. Até lhe digo mais, e não me importo que me chamem vaidosa: quando percebi que sabia mais que os outros. Isto pode parecer ridículo, mas a minha empregada pode testemunhar. Faço sempre uma consoada à moda do norte aqui em casa e deixo só para o dia 24, além do bacalhau, o leite creme e os sonhos. Sei quanto tempo levo a fazer os sonhos, e este ano disse à minha empregada «Levei mais um minuto». Porque não faço por acaso. Quando junto a farinha ao líquido que está no tacho, sei exactamente o que vou obter. Não é uma surpresa. Faço deliberadamente, e é a isso que chamo saber cozinhar.

 

Quando teve essa impressão de saber fazer, estava já na televisão?

Ah sim, sim. Fiz coisas verdadeiramente inacreditáveis! Mas não me lembro de um programa em que não tivesse feito aquilo que as pessoas viram pelo menos três vezes.

 

Testava com a família?

Não. Na multinacional tinha uma cozinha e, durante muito tempo, um cozinheiro. Tive muita proximidade com profissionais, e lá fora também, fiz estágios com pessoas muito competentes. E comi em sítios muito bons, tudo isso ensina. E depois o afecto por livros bons – porque há bons e maus autores. Quando vou ao supermercado e vejo aquele lixo culinário, faz-me impressão. Há livros feitos por pessoas que não saem da secretária!, que mandam fazer uma massa levedada com fermento em pó e coisas assim. 

 

Gosta de comer fora?

Gosto. Mas é um exercício arriscado.

 

Para os chefes é uma grande responsabilidade, saberem que está lá e que vai provar os seus pratos.

Não sei se sentem isso como responsabilidade. Normalmente são amáveis. Poderia ter uma atitude pedagógica, mas não tenho; as pessoas não iam aceitar bem.

 

As ferramentas, a louça, as facas, tudo isso é importante?

É extraordinariamente importante. É preciso saber escolher. E o ambiente, o barulho.

 

Como são os seus, de que não se separa?

São todos muito velhos. A maior parte dos meus instrumentos de cozinha são do tempo da televisão. Naqueles 12 anos tive tempo para fazer tudo e tive tempo para recorrer a todo o tipo de utensílios. E ofereciam-me muita coisa. Tenho um moinho de noz-moscada – nunca conheci a pessoa que mo mandou – que ainda hoje uso.

 

Tem com alguns dos objectos uma relação quase fetichista?

É muito importante serem aqueles. Mas também me adapto aos novos, sei cozinhar no micro-ondas.

 

Porque há uma relação sensual, a que alude frequentemente, com a comida, e com os objectos da cozinha.

Penso que tenho bem a consciência do que os alimentos representam. Os alimentos mantêm a vida, não é? Então, é uma espécie de gratidão constante relativamente aos alimentos. Diz-se que as cozinheiras são normalmente pessoas com formas sensuais, e diz-se até que são... amoreuses. É uma coisa que se diz mais relativamente às mulheres que aos homens.

 

Podemos voltar ao Liceu Francês? A cozinha francesa foi uma grande descoberta.

Na altura em que fui para o Liceu Francês, nos estabelecimentos hoteleiros só serviam uma coisa a que chamavam cozinha francesa. Digo coisa intencionalmente. Porque não chegava a ser nada. Era a cozinha de palácio, farinhada, pesada, muitos gratinados. Tive a sorte de conhecer a mulher de um professor que tinha feito um curso equivalente ao meu em França. Mostrou-me o livrinho dela e foi quando soube que havia métodos de cozedura, qual era a função das técnicas de culinária, que objectivos se pretendia atingir. A França, tal como nós, tem um conjunto de cozinhas regionais, e tem, mais do que nós e todos os outros, uma cozinha erudita. Aqui fazíamos uma má tradução dessa cozinha. No Liceu Francês aprendi a fazer a distinção entre as cozinhas tradicionais francesas, e aquela cozinha que tínhamos de aprender porque nos ditava as regras que nos permitiam fazer todas as outras. 

 

Há a cozinha das mulheres e a cozinha dos homens? Normalmente são as mulheres que cozinham, mas os grandes chefes são homens.

Vai deixar de ser assim. Aconteceu em todas as profissões, os homens tomaram conta de tudo o que era chefia, e, a pouco e pouco, as mulheres têm vindo a ganhar espaço. Em França já há muitas mulheres chefes em grandes restaurantes. Acontece que em Portugal, ocupar-se da cozinha ainda é uma coisa menor. Não me esqueço de uma colega sua que, em começo de profissão, me perguntou se não tinha complexos por fazer o trabalho que fazia. E eu perguntei-lhe, «Mas porque é que me veio entrevistar?», ela respondeu «Porque você é importante». Mas eu só sou importante pelo trabalho que faço. Portanto, em Portugal, as mulheres ainda se estão a libertar da cozinha. No outro dia na televisão, vi um programa onde ensinavam os ucranianos a ler; sabe que frase lá estava? «A mãe está na cozinha»!

 

Sentiu uma subalternização do seu trabalho?

Acontece constantemente, constantemente. Quando me entrevistam, raramente me revejo, raramente a minha família me revê. Só houve uma pessoa que me entrevistou e onde as pessoas que me conhecem me encontraram, que foi a Paula Moura Pinheiro. O meu trabalho é desvalorizado. Curiosamente é muito valorizado quando é feito por homens. Quando é feito por homens é intelectual, é arte. Ao passo que quando sou eu que faço, ou as mulheres, é uma coisa menor. Mas não posso ir por esse caminho e exagerar, não tenho sido injustiçada... 

 

Seja como for, há uma mágoa que não está completamente dissipada.

Honestamente, não está. Continuo a ser a senhora da cozinha, a senhora das receitas.

 

Os seus amigos e familiares não a revêem nas entrevistas que lêem. Como é que eles a vêem?

Acham-me um pouco louca! Mas tenho alguma responsabilidade nessa imagem que o público criou; eu, ao acender a luz, mudava o tom de voz, era a professora que aparecia, com grande responsabilidade. E falava para as senhoras donas de casa. Os homens que trabalham no meu ofício, estão-se nas tintas para as senhoras donas de casa. Falam de gastronomia e de prazeres.

 

Eles falam de prazeres, elas de economia.

Não é um aspecto a desconsiderar... As mulheres, não só para a comida, têm um sentido prático que não tem um homem. Por exemplo, uma coisa que as mulheres compram porque sai mais barato são as cenouras sem rama. Porque ninguém explicou às mulheres que a rama é que dá a referência da frescura. Porque ninguém lhes explicou que a rama pode ser aproveitada. Por aí fora. Tudo isto se resume, no fundo, àquilo que é o mal do país: a falta de cultura.

 

Quando lhe perguntaram qual seria a última refeição que escolheria, falou de um bom pão alentejano, de uma mancheia de azeitonas e de uma boa manteiga. Provou as coisas mais saborosas do mundo inteiro e escolheu sabores tão simples.

Tenho uma boa memória de paladar. O pão alentejano foi o primeiro que comi; não tenho dúvida que a primeira açordinha que comi foi feita com pão alentejano. Depois, como profissional, a cozinha alentejana é a mais imaginativa do país. E a base é o pão. Fazemos os cozinhados, mas depois fazemos-lhes uma caminha de pão. O pão é um alimento que foi sacralizado, e para mim é mesmo um alimento sagrado. Aprendi a dar um beijo no pão antes de o deitar fora quando está muito duro. Assim como não deixo comida no prato. Quando me põem pratadas no restaurante, mando tirar. A fome faz-me imensa impressão e é das coisas que compreendo menos bem. Quando vejo aquelas mulheres com as mamas secas e os filhos a chupar as mamas secas... Não posso deixar uma folha de alface no prato. Não me permito fazê-lo.

 

Há um lado religioso na sua relação com a comida?

Há alimentos que são especiais. O pão, o azeite, o vinho. É tudo o que representam. O primeiro livro de cozinha que comprei foi o Pantagruel, claro. Comprei-o com o dinheiro que ganhei num trabalho, bordado a ponto cruz, sobre as várias fases do trigo. O trabalho foi para a Suíça, ganhou um prémio, deram-me 500 escudos. Era o pão. É engraçado, o meu marido come imenso pão. Eu menos, porque cuido imenso da linha – a minha neta acha-me extraordinariamente vaidosa. Tenho uma filha e dois netos: o neto é gourmet, a neta é MacDonald’s. Ele tem 11, ela 14. 

 

Os homens continuam a ser estranhos para si? Onde se sente bem é nas conversas de mulheres.

Acho muito mais graça às mulheres. Os homens são aquilo que sempre foram: estão ainda espantados a olhar para nós. Eu vi as mulheres a abrir, e quando vejo que uma mulher dá mais um passo em frente, sinto orgulho. Sou feminista. Nunca me quis parecer com os homens e sempre achei que não eram superiores. Nunca lhes reconheci superioridade.

 

Os seus modelos, de masculinidade e feminilidade, eram o seu pai e a sua mãe.

A minha mãe foi exemplar, o meu pai não foi exemplar. Mas tive também a sorte, num tempo em que as mulheres não podiam mostrar-se tal qual eram, de ter conhecido mulheres muito inteligentes. Somos muito mais engraçadas, temos mais recursos. Homem e mulher da mesma idade? Não há comparação entre um e outro.

 

Esta conversa que estamos a ter, é uma conversa de mulheres?

De certo modo, sim. São muito diferentes as entrevistas que os homens me fazem. Eles contentam-se com a senhora da cozinha, você está a querer ir ao fundo de mim.

 

Sente-se incomodada?

Não, de maneira nenhuma. Não tenho vergonha de ser o que sou. Tenho a idade que tenho e estamos vestidas de igual; e penso que não estou a ser ridícula... Os homens, é a Senhora Dona Maria de Lourdes. Tenho muita dificuldade que me tratem por Maria de Lourdes. Estava a perguntar-me se gosto que a minha filha seja menina; gosto, gosto. Até há pouco tempo não achava graça sequer aos rapazes, nem às suas brincadeiras. O meu neto está agora numa fase que me faz perceber que os rapazinhos também têm graça.

 

Ele é o gourmet.

É. É muito doce. Eu não sou propriamente. Era mais para o bravo que para o manso; agora estou mais quebrada. Tenho sempre medo de me assanhar.

 

Ouvindo-a agora, é difícil perceber o que quer isso dizer.

Pois. Houve qualquer coisa que se passou comigo, pelos 45 anos, por aí. Recordo-me de um colega me ter dito que tinha mudado de expressão. Não lhe sei dizer o que se passou. Quando saiu o Livro da «Cozinha Tradicional Portuguesa» tive muito medo; foi sujeitar-me a um julgamento, novamente, depois da televisão. Não sei se sabe, mas havia bichas à porta da Verbo para comprar o livro. Durante seis meses andei a tremer quando as pessoas me diziam que tinham comprado o livro, «Vão dizer que não corresponde ao que se faz lá na terra», pensava eu. Tenho impressão que isso me deu uma certa confiança, «A partir daqui posso fazer coisas. Sem a televisão posso fazer coisas». Até aí, tinha medo de não ser capaz.

 

Como aparecem os livros na sua vida?

Aconteceu tudo ao mesmo tempo: a peça de Molière, a televisão, a ida para a Lever, os editores querendo que fizesse livros de receitas. Mas eu tinha sido professora, há uma noção de rigor que fica...

 

É por isso que não autoriza a reedição de alguns dos seus livros?

A cozinha para os franceses não é a mesma coisa que para os portugueses. Sentavam-se à mesa, vinha o soufflé e discutiam se o soufflé tinha no meio o pingo por cozer que devia ter, que queijo tinham utilizado, onde o tinham comprado. Era um ritual importante. Portanto, tinha noção que não tinha as minhas receitas para fazer os livros de receitas que os editores queriam. Até que me apareceu um editor, o Dr. Fernando Guedes, tinha nascido a Verbo naquela altura, para quem fiz um estudo da cozinha, assim uma coisa..., só o título... Chama-se só «Grande Enciclopédia da Cozinha». Infelizmente sabia muito menos do que sei agora. Por isso não deixo reeditar, percebe? Há muita coisa que era preciso refazer. Este livro saiu em fascículos e custava o mesmo que o livro do Picasso, o que me dava uns complexos que não faz ideia.

 

Quanto era?

900 escudos, se não estou em erro.

 

Nunca teve a volúpia do dinheiro?

Gosto de dinheiro. Mas não, senão tinha feito uma carreira diferente. Só se alguém compra os meus livros é que estou a ganhar dinheiro. Faço muito trabalho gratuito. Neste momento estou a fazer um trabalho para a associação dos diabéticos; não ia aceitar dinheiro. Mas dá-me o mesmo trabalho, faço-o com o mesmo rigor: é o meu nome que vai lá estar. As «Receitas da TV» não deixo reeditar. Nem é adequado ao tempo actual. O editor diz-me «São filhos que você rejeita»... Estou há 40 anos no mesmo editor porque mais nenhum me aturava estas madurezas. Às vezes diz, «Já reparou que não faz um livro há anos? E que há pessoas que metem um livro por ano nas livrarias?». Agora estou a fazer um sobre a cozinha dos vegetais. Quero gozar o meu trabalho. Agora, graças a Deus, posso fazê-lo; tenho uma reforma da Segurança Social. Lá está, segurança. Chega para o cabeleireiro, para o perfume, para essas coisas de que gosto – porque gosto do luxo, de coisas boas e bonitas.

 

Sabendo que temos várias cozinhas, que retrato antropológico faria dos portugueses na sua relação com a comida?

Curiosamente a cozinha não corresponde muito à forma de nos mostrarmos. É mais exuberante do que somos. Temos uma comida muito sápida, muito colorida. Poderá não ser muito estética, segundo os cânones actuais. Não gostava de dizer uma coisa que tenho de dizer... É uma cozinha viril. É uma cozinha que se impõe. E é de mulheres.

 

Como é que, sendo uma cozinha de mulheres, é uma cozinha viril?

É uma cozinha de família, feita pelas mulheres provavelmente a pensar nos homens, a pensar em agradar-lhes. É uma cozinha muito forte, com muito carácter e muito diversificada, o que se deve à nossa configuração geográfica. O facto de sermos uma língua, com o mar de um lado e a Espanha do outro, tem a sua importância.

 

O que é que lhe dá mais prazer cozinhar? Imagine um presente que quer dar a alguém.

Gosto muito de, na minha consoada, apesar de estar estafada, fazer um bolo para a bisavó dos meus netos que é da família do meu genro. Gosto muito de pessoas de idade. Todo o meu trabalho tem sido escutar essas pessoas. O que faço é transmitir os saberes dessas pessoas. Devo dizer que recebo umas cartas lindas em que diz que considera a minha filha um presente de Deus. Sinto-me largamente recompensada.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias