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Anabela Mota Ribeiro

Joana Vasconcelos (exp. Versalhes)

17.02.19

Não serão servidos brioches em Versalhes. Mas pastéis de nata, sim. Ministro Álvaro e estratégias de internacionalização do que é nacional e bom à parte. O menu está decidido? “ O Avillez é que sabe”. O Avillez é o José Avillez, uma estrela Michelin no currículo e dois restaurantes referenciados como tesouros de Lisboa num artigo recente do The New York Times. E será servido pão. “Os franceses são tarados com o pratinho do pão? É um pratinho bué estúpido. Vocês têm?”. Vocês é a Vista Alegre. É preciso cuidar do pratinho do pão. Do tamanho. E dos pratos, travessas, saladeiras, terrinas. “Uma bela terrina para fazer vista na mesa de apoio”. Um serviço inteiro, que de momento “está com um ar chato como o raio”. Demasiado clássico. Versalhes é Versalhes, dourado, vetusto, imponente. E Joana Vasconcelos é Joana Vasconcelos, exuberante, irreverente, iconoclasta. Capaz de meter o isomorfismo de Escher e o kitsch na mesma peça. Nas calmas.

O serviço Vista Alegre em que será servido o jantar de inauguração incorpora os elementos de Perruque, a peça mais icónica da exposição em Versalhes. Aquela que evoca as perucas escultóricas de Marie Antoinette e que ficará no quarto desta. Aquela que se inspira vagamente num ovo Fabergé e que é chamada por todos, no atelier e na Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, onde foi feita, “o ovo”. Os pratos têm folhas pretas (em ébano, na Perruque) e desenhos a ouro. Paula, da Vista Alegre, trouxe um exemplar de cada peça.

Joana usa uma caneta de feltro para desenhar directamente num prato. Daqui a pouco mais de uma semana será servido o banquete na Orangerie. “Um dos luxos que ela curtia era laranjas”. Marie Antoinette mandou vir de Portugal centenas de laranjeiras e no jardim, ainda hoje, há áleas de laranjeiras. La reine por estes dias será a artista plástica portuguesa. Foram enviados 300 convites.   

O ministro Álvaro vai? Apoiar Joana Vasconcelos é bom para a economia portuguesa? Joana Vasconcelos montou uma exposição de dois milhões e meio de euros. O ministro Portas vai? Joana Vasconcelos é uma embaixadora da cultura portuguesa. Joana Vasconcelos leva a Versalhes as rendas do Pico (a revestir lagostas e leões), as tapeçarias de Portalegre (na peça Vitral), os têxteis de Nisa (nas Valquírias), a iconografia de Bordalo Pinheiro, a filigrana de Viana recriada em talheres de plástico, a louça da Vista Alegre, o trabalho de mestre Pena que trabalha na Fundação Ricardo Espírito Santo Silva desde os 12 anos, o trabalho de dezenas de pessoas, “uma equipa de luxo”, apoios institucionais, um imaginário colectivo. O secretário se Estado da Cultura vai? Mariza vai cantar. Valter Hugo Mãe escreve o texto do catálogo. Os criadores portugueses Dino Alves, Filipe Faísca e Storytailors vão vestir toda a equipa. “O Dino disse que está a fazer um vestido com cauda!”. Quem é que não vai estar?  

Joana Vasconcelos é a primeira mulher e a mais jovem artista a expor no Palácio de Versalhes. Versailles, como ela sempre diz. Talvez por ter estudado na école française. Talvez por ter nascido em Paris. Talvez porque tem mais sainete dizer Versailles. O mais certo: porque os interlocutores dela dizem Versailles. Versailles é universal. Versalhes, não.

Como é que ela chegou lá? “Só consigo chegar a Versailles porque Portugal me apoiou e porque levo o melhor de Portugal”. O país está no centro do seu discurso artístico. Le pays c’est moi? O presidente Cavaco falou em Joana no discurso de 25 de Abril. Um ano e meio de trabalho são traduzidos numa exposição-embaixada que pode ser vista a partir de 19 de Junho.

Primeiro dia de Junho, 18 dias antes da inauguração. O atelier parece subitamente desolador. De manhã havia ainda marcas de pó desenhadas no chão, resquícios da agitação dos últimos meses. A um canto estão os castiçais que são também porta-garrafas, “estruturas verticais gémeas, que resultam da acumulação de milhares de garrafas de champanhe iluminadas do interior”, lê-se na descrição feita pela artista. “Alguém sabe quantas garrafas são?”. À volta de cinco mil.

A obra, uma hommage-piscadela de olho ao célebre porte-bouteille de Duchamp, será instalada nos lagos rectangulares do Parterre d’Eau. As garrafas são de champanhe porque destinam-se a França. Seriam de sake no Japão. De cerveja na Alemanha. De vinho, em Portugal (a primeira declinação da obra, Néctar, feita em 2007, pertence à colecção Berardo).

Os castiçais são a última peça que resta no atelier, entre o Tejo e o Museu do Oriente. Um espaço onde há espaço para tudo. Deitados no chão, desmembrados, parecem um corpo que jaz. Ou então era a melancolia que se detectava no ar e que resultava do espaço deserto. O grosso da equipa estava fora. Trabalham ali em permanência 25 pessoas. “Vieram mais cinco dar uma forcinha” nos últimos tempos. Daí a dois dias partiriam para Versailles.

Joana está na secretária cor de laranja, posicionada no coração do atelier. Visível da porta de entrada. Graceja, diz que está a ver o expediente. Atrás de si, uma pega de cozinha, em tamanho gigante, tricotada – peça de 2002. Está a dar uma entrevista em modo relax. As interrupções são consentidas.

Um assistente mostrou uma imagem do garrafão e do bule, em ferro forjado, oxidado, “como se estivesse lá desde sempre”. As obras, à entrada do Parterre du Midi, “surgem como representações do homem e da mulher”. Madame de um lado, monsieur do outro. São as primeiras a ser montadas em Versailles e a imagem acabou de chegar. E por isso, ela tem de saber. A máquina está oleada, muito bem oleada. E por isso, ao mesmo tempo que desenha num caderno de capa dura, ao mesmo tempo que responde de modo articulado, pergunta a que horas o camião vem buscar os castiçais.

Joana Vasconcelos controla tudo. Faz, sabe fazer, manda fazer. Como quem respira. Ou seja, aparentemente sem esforço. Sem esbracejar e ameaçar que vai ter uma síncope. Como é que ela consegue? “É uma ginástica. É a chamada versatilidade”. 

A entrevista prossegue. Joana veste uma longa túnica de linho, uma flor tricotada, as unhas cor de tijolo. Ouvem-se desde a sala do lado Clarice e Ui, os pássaros, um amarelo, um azul. Não se ouvem as agulhas de crochet. Não se ouve o barulho da metalurgia. Quem está? Nuno Barão, “Baronette”. (No atelier ninguém é chamado pelo nome. Joana é facilmente “Juanita”. Ana Pedro, responsável pela engenharia financeira, é “a ministra” das finanças.)

Barão é o assistente pessoal que estende um rebuçado, um extraordinário rebuçado: “Quem é que tem duas malas Louis Vuitton à espera na loja da avenida [da Liberdade]?”. A artista é patrocinada pela marca. Nos dias de Versailles, entre uma visita guiada e uma entrevista, andará com elas. O sucesso de Joana Vasconcelos confirma que as portuguesas em França deixaram de ser a concièrge que usa uma valise en carton. Portanto, será uma valise Vuitton.

Os detractores olham-na como uma artista-empresa. Demasiado inclinada para o marketing. Ou uma pop star. E não, pop star não é um elogio. Estes atributos são usados em tom pejorativo. Apesar de Gilles Lipovetsky, o filósofo que disse que o trabalho dela materializava as análises dele. Apesar do sucesso repetido em Veneza – “onde nunca estive a convite do Governo português”, faz questão de sublinhar. Apesar de ser reconhecida na rua, o que não costuma acontecer com artistas plásticos. Apesar das exposições no mundo todo. Apesar de Versailles.

Porquê é que o meio artístico não gosta dela nem com molho de tomate? Porque a obra é demasiado imediata, pop, superficial? É da obra que se trata ou da persona Joana Vasconcelos?

A dissecação do fenómeno é complexa, e não vem ao caso. Entre as respostas possíveis, há quem aponte para o final d’Os Lusíadas – isto é, para a palavra inveja.

Joana Vasconcelos é uma one woman show que tem uma rigorosa noção de quem é, do que quer, do que é preciso para lá chegar. Se lhe deu o nervoso quando a convidaram para Versailles? “O nervoso é insegurança. E a insegurança não é bem vinda nestas coisas. Não posso gastar dois milhões e meio de euros com insegurança. Seria um atentado, não é?”. Demasiado dinheiro, demasiado prestígio. “Isto é once in a lifetime”.

Como é que adquiriu esta resistência psicológica, “por muito que gelem as mãos e que os nervos subam à cabeça”? Nos dois meses em que a equipa do Público acompanhou a artista, nunca foi visível um momento de pânico, o descontrolo. “Tive três experiências importantes. Uma família em que o culto da personalidade é forte. O karaté, que aprendi dos 8 aos 28 anos, e que me ensinou a ser resistente, a trabalhar em equipa, a liderar. E ter trabalhado no Lux durante dois anos. No Lux tive que lidar com pessoas nos estados mais improváveis. Convencê-las a descer aquelas escadas sem se matarem tornou-se um desafio [riso]. Era chefe de segurança. Tive de sair do pedestal intelectual e burguês a que estava habituada. Grande escola.”  

A caravana chegou a Versailles no dia 3 de Junho. Sete ou oito camiões, toneladas de material, dezenas de pessoas. Como é que tudo começou? “O convite vem da parte do Jean Jacques Aillagon, que contactou a minha galeria francesa, a Nathalie Obadia, e que chegou à conclusão de que o meu trabalho se integraria bem em Versailles.” O diálogo com artistas contemporâneos fez-se em anos anteriores com Jeff Koons ou Takashi Murakami. Aillagon era então o presidente do château. “Desde o princípio que estabeleci com as minhas galerias [a francesa e a inglesa Haunch of Venison London] que, ou me apoiavam na realização deste projecto, ou não tinha capacidade económica para o montar. A partir desse acordo, que se fez com as galerias e com Versailles, estabeleceu-se com o Jean-François [Chougnet] duas linhas: quais são as obras e quanto é que vão custar. Depois foram feitos contratos com as galerias, complicadíssimos. Há todo um jogo económico... Como é que se vai pagar. Quem é que fica a ganhar o quê, e como.”

A somar a isto, que representa a parte substancial do orçamento, há o patrocínio de instituições ou empresas: a Fundação Gulbenkian, a Fundação EDP, a Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, o Turismo de Portugal e a marca francesa de perfumaria Annick Goutal.

Chougnet é o comissário da exposição. Foi na qualidade de primeiro director do Museu Berardo que conheceu o trabalho de Vasconcelos. Um trabalho onde se inscreve uma “reapropriação de objectos do quotidiano” transformado com “técnicas inventivas e inesperadas”. No texto-porta de entrada para a exposição, o comissário fala de “uma reivindicação feminina, sem dogmatismos” que está presente na sua obra, “de um modo mais irónico que militante”.

Tradução: vamos lá pegar no coração de Viana e reproduzir a filigrana com talheres de plástico. Sim, talheres de plástico – por falar em quotidiano e em inesperado. Garfos e facas como os que se usam num piquenique. Ou nas festas das crianças. Em vermelho, em preto, em amarelo.

Para Versailles, vieram os corações vermelho e preto, símbolos de paixão e de morte. Um para o salon de la Paix, o outro para o salon de la Guerre. Suspensos do tecto abobadado. Imponentes, a despeito do material. Com Amália a cantar Coração Independente (título da peça) no áudio-guia do visitante.

E de permeio, entre a sala da paz e a sala da guerra, a sumptuosa Galerie des Glaces, a sala dos espelhos, com lustres que quase podemos tocar com as mãos, tão baixo estão.

Das janelas vê-se o infinito. A imensidão dos jardins de Versailles, de geometria invariável, os lagos que parecem chatos mas são profundos (Joana chegou a pensar em trazer uma caravela, mas a exorbitância do preço fê-la desistir do projecto), as árvores retocadas em forma de rectângulo, outras árvores, mais ao fundo, cujas copas parecem soltas, a perder de vista.   

É nessa galeria – outra tradução – que encontramos Marilyn. Vamos lá pegar em panelas Silampos, sobrepô-las e fazer com elas uns sapatos. Vamos pegar num objecto-símbolo atávico do papel das mulheres em casa/na sociedade, e vamos transformá-lo num objecto-símbolo de emancipação. É uma obra poderosa que promove uma oposição entre a cor do aço e o dourado de Versailles. “É uma ode às conquistas da mulher nos domínios público e privado”. Em 2010 foi vendida pela leiloeira  Christie’s por 573.964 euros.

O feminino é o músculo principal da exposição. “Interpretar a densa mitologia de Versailles e transportá-la para a contemporaneidade, evocar a presença de importantes figuras que habitaram o palácio, apoiando-me na minha identidade e na minha experiência como mulher, portuguesa, nascida em frança, será certamente o desafio mais fascinante da minha carreira”, escreve Vasconcelos no texto de apresentação da exposição.

A opção da artista foi ocupar a ala da rainha. “Ouço ainda o eco dos passos de Marie Antoinette, a música e o ambiente festivo dos salons”. As 17 obras que leva a Versailles podem ser lidas, sumariamente, como um elogio à presença da mulher no palácio. Perruque é a jóia da coroa.

Peça bizarra. É um ovo que é uma peruca que é um móvel que é uma obra de arte.

Quando o Público visitou a montagem da exposição, Perruque estava já instalada, mas coberta com uma caixa de tecido cru. Um biombo que a esconde até à inauguração. Ao contrário de Coração Independente, o bule e o garrafão de ferro forjado, os castiçais ou a valquíria Mary Poppins, que ficam visíveis para o público assim que são montadas, Perruque é resguardada (como se fosse um tesouro) até dia 19.

O quarto da rainha é o espaço mais fotografado de Versailles, a par da sala dos espelhos. É provável que as duas salas sejam o espaço museológico mais visitado do mundo à terça-feira. A explicação é simples: todos os museus parisienses fecham à terça e o tipo de público que corre ao Louvre para ver a Mona Lisa ou ao Museu d’Orsay para ver os Impressionistas, desloca-se para Versailles.

Enxames de pessoas. Milhares de orientais, milhares de brasileiros, milhares de americanos, milhares de crianças em visita escolar, milhares de famílias inteiras. Não raro, é difícil mover uma perna, um braço, chegar sequer à barreira de vidro que permite ver a dois metros a cama de Marie Antoinette.

É exactamente ao lado que fica Perruque.

A forma oval da escultura remete para os nascimentos que aconteceram naquele quarto. Dezanove crianças. Entre elas, Luís XV e Luís XVII. O ovo, feito em madeira vinhático vinda do Brasil, mais mole e fácil de trabalhar, tem incrustações e aplicações, em preto e metal dourado. Demorou meses a ser feita. A ideia da artista, desde o princípio, é que tivesse a escala do mobiliário do quarto. Para que harmoniosamente se integrasse nele. Como uma cómoda ou um toucador.

Perruque, como o nome indica, faz também alusão às perucas inventivas de Marie Antoinette. Uma espécie de colmeia onde todos os adornos são permitidos. É aí que entram as protuberâncias cónicas das quais saem mechas de cabelo. Um cabelo solto, indómito, de uma mulher que o afirma como uma conquista.

Recordar que foram comprados numa loja duvidosa da avenida Almirante Reis dá vontade de rir. Nessa tarde, como quem está subitamente no recreio, Joana cantava os hits dos anos 80 que passavam no canal de música VH1. Na televisão do canto sucediam-se Madonna, Kate Bush, Sade. E escolhia um cabelo, e outro. E experimentava perucas. “Olhem para mim loura!”.

Já agora: a cama parece um canteiro. A parede de fundo, a colcha, o dossel são de um tecido floral. Com um ar tão aprumado como se as flores tivessem sido regadas e estivessem viçosas.

Quando montaram Perruque, foi preciso mexer na franja do cortinado e quiseram chamar conservadores para o efeito. “Olham para aquilo como se a Marie Antoinette estivesse ali na cama!, pá!”, exaspera-se Joana. (Ela diz pá. E bué. E cena. Tem um modo particular de se exprimir.)

Talvez seja o momento de falar da relação da artista com Versailles. “Não fomos recebidos como normalmente somos. Nos museus e nas galerias, as pessoas querem-nos lá. Em Versailles, a equipa não nos quer lá. Versailles tem um simbolismo, como eles dizem, universal. Trabalham ali 1000 pessoas; e a sua opinião é que a arte contemporânea não pertence ali. Acham que o local não deve ser profanado.”

Não muito depois do convite a Joana Vasconcelos, Jean Jacques Aillagon foi substituído na presidência da instituição por Catherine Pégard. 

“Passei de uma pessoa de direita, mas liberal, para uma pessoa de direita, conservadora, que olhou para aquilo de outra maneira. Ela é amiga do Sarkozy, trabalhou no Eliseu. Tomou algumas decisões para se defender. Mas foram decisões que iam dando cabo da minha exposição.”

O primeiro embate aconteceu a peça mais famosa de Joana Vasconcelos, o lustre de tampões. “A Noiva foi censurada. Em termos conceptuais, não conseguem decidir onde estão. Não há regra nenhuma. [Decide-se em função de] um estado de espírito. Primeiro a peça foi aceite, depois não foi aceite. Quando ela [Pégard] me disse que não podia levar A Noiva estive dois dias de cama-psicológico. Foi uma morte. Até reconstruir a minha confiança, levou uma semana.

Depois mudou o helicóptero [Lilicoptère], que estava numa sala muito melhor do que aquela em que está – um cochicho. Mudou porque não conseguiu acordo com os sindicatos dos trabalhadores de Versailles. Depois foi a peça do quarto da Marie Antoinette... Pensei: acabou. Não faço.”

Foi para casa pensar no que perdia. “Perco a exposição, mas não perco as peças. Criei peças fantásticas, com ou sem Versailles fico sempre com a obra.”

Pégard cedeu, Perruque está no quarto da rainha. Se pesou no recuo de Pégard a vitória de Hollande nas eleições francesas? “Teve influência. Permitiu mais maleabilidade, mais tolerância. [Se Sarkozy tivesse ganho] ela teria endurecido o discurso e eu não teria feito a exposição.”

Catherine Pégard foi jornalista do Le Point. É muito fácil identificá-la, de sapato Ferragamo, saia rodada e coquette, casaco vermelho pela cintura. Estilo bem comportado. Segue-a uma corte de homens de fato e gravata, que caminham muito direitos, pasta debaixo do braço.

Ao longo do dia de montagem aparece no momento de içar Mary Poppins num cenário neoclássico ou para ver Lilicoptère, um helicóptero emplumado, todo cor de ouro e cristais Swarovski. Uma carrosse d’or para Marie Antoinette adaptada aos tempos modernos. Um coche que parece um pássaro, revestido a penas salmão e rosa. E um tapete no interior feito segundo uma técnica antiga de Arraiolos. “Ça est impressionnante!”. De facto. Mas é uma peça cujas imagens só podem ser divulgadas depois da inauguração.

Pégard não se cruzou com Alice.  

Entretanto chegou Alice.

Entretanto nasceu Alice.

Alice e Versailles aconteceram na mesma semana. “Soube no dia anterior à ida para a reunião em Paris que estava grávida.” Coisas do destino. Joana tem 40 anos. Como é que se tem um primeiro filho e se concebe e organiza uma exposição com a dimensão da de Versailles? “Tenho o apoio do meu marido. Sem ele, não tinha conseguido isto. Isto não é um emprego. É vida e obra, é tudo junto e a mesma coisa. Quando chegamos a casa, a coisa continua. Continuamos a falar.”

Mas não havia dúvidas quanto a prioridades. “Pensei: não há coisa mais importante do que ter esta criança. Trabalhei a gravidez inteira e fui fazendo a exposição ao longo da gravidez. Percebi que não podia continuar a trabalhar das oito às oito, e seja o que Deus quiser. Tive que controlar esse meu lado de fazer tudo e mais alguma coisa.

Tive montes de exposições no ano passado – no Mónaco, na Dinamarca, em Nova Iorque, em França, em Moscovo – a que não fui. Estou muito habituada a acompanhar a minha obra, e adoro. Países, culturas, pessoas. E de repente, tive que ficar quieta. Foi bom. A equipa tornou-se mais autónoma e mais forte. Estavam muito dependentes de eu estar sempre a decidir tudo.”

Alice nasceu em Setembro de 2011. E Joana é uma mãe apaixonada pela filha igual a todas as mães apaixonadas pelos filhos. No atelier, em Lisboa, junto à sua secretária está uma ovelhinha de balouço, no refeitório uma cadeirinha. No meio de uma viagem de carro pela cidade, interrompe a conversa para se perguntar, perguntando alto: “Será que este externato é bom?”.

Alice passa os dias com a avó materna. Instalaram-se em Versailles com toda a equipa. Chegaram pelo meio da tarde à Galerie des Batailles.

É um corredor imenso onde se percorre a glória de uma nação. As batalhas que definiram a história, os heróis que as travaram, o resfolegar os cavalos, os feridos tombados – tudo isso forra as paredes de um lado e de outro. Toda a história militar francesa está lá.

Delacroix foi um dos que pintaram este longo poema épico que vai ser acompanhado de três Valquírias. A Royal, a Dourada e a Valquíria Enxoval. São corpos exuberantes, volumosos, “indisciplinados de texturas, impondo no espaço o poder do hedonismo e da sensualidade”. Os tecidos podem ser uma chita barata, um brocado da melhor loja parisiense, os têxteis e o ponto tradicional de Nisa. Fitas, pendentes, franjas. Uma explosão de cor.

Estão por ora desmembrados, no chão, embrulhados em sacos vermelhos. Alguns homens trabalham no cimo de estruturas metálicas e preparam os cabos de aço que vão suster as peças. (“Estes espaços não-museológicos” – como Versailles, na sua essência, é, mesmo que exponha a obra de artistas contemporâneos desde 2008 – “levantam problemas técnicos. Será que o tecto aguenta? Será que a peça passa?”.) As mulheres retocam um tecido que esgarçou, um pedaço que descoseu. Por momentos, fazem uma transplantação do atelier para Versailles. Há recipientes com missangas, berloques, tecidos, linhas. Uma retrosaria em miniatura. A retrosaria gigante ficou em Lisboa, onde há uma caixa de plástico para cada coisa– até para “crochés sujos”!

Alto e pára tudo quando chega Alice.

Dá-se uma espécie de suspensão colectiva. Joana pega-a no colo. Alguém desempacota o andarilho. Duarte Ramirez, o pai, junta-se à mulher e à filha.

Não importa nada que Duarte seja arquitecto, que Joana seja artista plástica, que estejam em Versailles e que o mundo vá saber daquela exposição em breve. O que importa são os passos que Alice quer dar, pondo uma perna à frente da outra, a olhar muito atenta e curiosa para tudo à volta. Ficaria bem na história dizer que aprendeu a andar na Galerie des Batailles, mas não. Foram passos titubeantes, num andarilho cor de rosa. Peça anacrónica naquele mundo dourado e antigo.

O que ali se passa é aquilo a que os psicólogos chamam “quality time”. Dez minutos de quality time. Bem, talvez meia hora de quality time. Porque depois chegaram-se a um canto, banhados pela luz das quatro da tarde, e deram a papa a Alice. Joana, Duarte, a mãe e o pai de Joana. Esparramados no chão como quem está em casa. Casa pode ser onde uma pessoa quiser. Ou onde conseguir. Uma criança torna tudo mais imperioso e instantâneo.  

Teresa e Luís Vasconcelos exilaram-se em França em 1968 por razões políticas. “Havia a guerra colonial...”, refere o foto-jornalista que esteve na fundação do Público e que trabalha com outro fundador, o designer gráfico Henrique Cayatte, no catálogo da exposição, num ritmo de jornal diário. Fotogravam as peças depois das seis da tarde, quando saem os turistas, e fazem a paginação horas depois, num hotel em Versailles.

Joana nasceu em 1971 em Paris. Regressaram a Portugal logo depois da revolução, a 29 de Abril de 74. A primeira coisa que Luís Vasconcelos fotografou em Portugal foi a manifestação do 1º de Maio.

- “Se tivéssemos ficado, seria uma artista francesa em Versailles.”  

- “Se tivéssemos ficado, se calhar não estarias aqui, o curso da nossa vida teria sido diferente”.

- “Teria ido para uma école des beaux-arts e teria sido uma artista francesa. É muito mais giro ser uma artista portuguesa!”.

Ao contrário da mãe, Joana não põe sequer a hipótese de não ser artista, e de não estar ali. A confiança e a ambição são indisfarçáveis. Algum problema com isso? Foi esta confiança e esta ambição que a trouxeram a Versailles, um dos maiores palácios do mundo, mandado erigir pelo Rei Sol-Luís XIV, que recebe em média dez milhões de turistas por ano. (É quase Portugal inteiro). Multidões compactas vão estar de olhos postos nela até 30 de Setembro. Espera-se que a exposição receba mais de dois milhões e meio de visitantes, que acedem aos espaços interiores e exteriores; mas se a contabilidade integrar os que apenas acedem ao exterior, cujo acesso é gratuito, a estimativa é de quatro milhões.

Como é que tudo funciona? “Funciona como toda a criação: dentro de nós. Aprendi a pensar com o desenho. Na joalharia, que também estudei, aprendi o projecto. Decido tudo à partida, a peça quase não sofre alterações. As únicas mudanças a que sou aberta são as mudanças técnicas.”

Come uma bolacha de Alice. Ao almoço serviram carnes. A sala era bonita e havia peónias numa jarra. Foi em Versailles que Marie Antoinette disse para a posteridade: “Se não têm pão, dêem-lhes brioches”. Mas o tempo é de pastéis de nata. “Trataram dos vinhos? É preciso falar ao Comendador [Berardo]...”.

 

 

Publicado originalmente no Público em Junho de 2012