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Anabela Mota Ribeiro

Filipe Seems

26.05.13

Filipe Seems em conversa introdutória com Ana Lógica: «Como é que me encontrou?»/«Não sei, foi o primeiro nome que me apareceu... Foi por Acaso». A seguir escreve-se que os desígnios do acaso são insondáveis. Ana Lógica é o tipo de mulher ondulante que aparece em escritórios de detectives particulares, com a luz certa a escorrer por entre as persianas. Este detective particular enreda-se em jardins labirínticos, de caminhos bifurcados, ao gosto de Jorge Luis Borges. Passeia de balão sob a luz dourada de Lisboa. Descobre-se cúmplice de uma conspiração que não preparou.

«Quando as emissões recomeçaram, as ficções estavam dessíncronas... Os enredos, as personagens, baralhados. Todas as histórias misturadas, desconexas... (...) Quem está por detrás da Conspiração? O plano da Conspiração é aberto. E faz interferir na teia de uma ficção seres de uma outra ficção, de uma ficção anterior... Tudo é ficção, acaso e destino, labirinto e jogo».

Os álbuns, «Ana» (1993), «A história do tesouro perdido» (1994) e «A tribo dos sonhos cruzados» (2003), escritos por Nuno Artur Silva e desenhados por António Jorge Gonçalves, são os três volumes disponíveis da sua auto-biografia. A peça «Conspiração», protagonizada por Nuno Lopes, Sandra Celas e Kalaf, revela em três dimensões o que é possível saber deste herói de BD (a música é de Armando Teixeira, a coreografia de Amélia Bentes). Diz de si que é um hedonista mental. Passeia pelos telhados de Lisboa com um gato chamado Schrödinger. Procura enigmas em estações de metro com estalagmites e estalactites. Discute por tele-sessão com o psicanalista Gustavo os sonhos enigmáticos que o perturbam. Encaixa na definição de Caetano Veloso de Objecto Não Identificado. Vive num tempo mítico. Siga as pistas e não, não se preocupe em descobrir o que isso é. 

 

 

Com o que é que sonhou esta noite?

[silêncio] Esta noite sonhei que caminhava pelo deserto. O deserto estava coberto de carcaças de peixes fossilizados. A cada passo que dava, sentia que existia um objecto debaixo da areia, com a ponta de fora. De repente já não estava no deserto. Estava numa cidade, olhava para cima e os prédios cresciam e tocavam-se no cimo, em direcção ao céu, como copas de árvores gigantescas. Subi ao topo de um deles, vi o dia entardecer e, de repente, acordei. Não sabia, na realidade, se tinha acordado ou adormecido. Não sabia se estava a sonhar dentro do meu próprio sonho.

 

Estes caminhos que se cruzam, o do deserto e o da cidade, conduzem-me a uma questão central, manifesta, por exemplo, nos caminhos subterrâneos do seu último álbum: perante uma sucessão de bifurcações, que caminho tomar?, que sentido encontrar? «Não sei de mim, não sei dos meus passos».

Eu não procuro, encontro. Havia um artista do século XX, do século passado, de que os meus pais me falavam, o Picasso...  

 

Cita-o no primeiro álbum. O «Ana» tem como epígrafe: «D’abord on trouve, puis on cherche” [«Primeiro encontra-se, depois procura-se»].

É uma tradução da mesma frase.

 

Como é que encontrou esta frase? Por que é que se agarrou a ela?

Essa frase tem a ver com Jung, um dos fundadores do pensamento psicanalítico, que me interessa muito, principalmente «Sincronicidade», e com a ideia de que a realidade, ou o caminho, não se encontra, revela-se. O que é preciso é estar atento, estar disponível, olhar.

 

Como é que nos esvaziamos daquilo que já temos, justamente para ter essa disponibilidade para as imagens que vamos encontrando?

A disponibilidade é ver em cada sinal uma pista para uma ficção, para uma história. Há uma espécie de religiosidade dos acasos. A relação causa-efeito é aquela sobre a qual se funda toda a ciência ocidental, cartesiana. Mas temos também a relação de sincronicidade. Ou seja, aquilo que acontece ao mesmo tempo. É isso que faz que, por exemplo, quando joga as cartas no Tarot, acredite que aquela conjugação de cartas traz uma ligação com a pergunta que fez. Há uma leitura que não é de causa-efeito, há uma leitura de simultaneidade.

 

Não é diacrónica mas sincrónica.

Exactamente. E que tem a ver com essa mística do acaso: o que acontece neste momento, enquanto eu estou aqui. Há, na «Conspiração», uma altura em que faço um freeze às pessoas numa praça e digo: «Neste momento estão cinquenta pessoas a cruzarem-se». E exploro as possibilidades que nascem desses cruzamentos.

 

Esse jogo que lança – «A mulher que comigo agora se cruza é o meu grande amor e ambos ainda não o sabemos. O homem que saiu do taxi tem uma missão: vai salvar doze pessoas e ainda não sabe. O outro, que entrou no taxi, é um assassino, vai atrás da sua vítima, e sabe-o» – contém todas as possibilidades. A partir dele, todos os caminhos são possíveis.

O mundo é uma gigantesca máquina de construir histórias. Tem, permanentemente, as várias possibilidades. Se viras aquela esquina, és feliz. Se viras a outra esquina, és infeliz.

 

Mas como sabê-lo à partida?

Não se sabe. Lá está: primeiro encontramos e depois procuramos. Primeiro temos as possibilidades à nossa frente e depois temos que procurar, a partir delas, as histórias.

 

«Fizeste o teu percurso pelo jardim dos caminhos que se bifurcam. Estás agora no coração das fábulas. Aqui podes encontrar a raiz da tua história». Esta busca, encontrar o coração da nossa fábula, implica esventrar o passado?

Não, só implica aceitar cada passo pelo que é. Significa, quando se sai à rua, que o percurso deste sítio para o sítio onde se vai não ser simplesmente um queimar tempo até chegar àquele sítio, mas o sentir cada um dos passos e aproveitar todas as coisas que nesse percurso se atravessam, inclusive as que podem tirar-nos desse caminho.

 

Eu diria que o seu tempo é o futuro. Mas descobre-se preso ao presente, à instantaneidade, e à evidência de, ao forçar uma escolha, obliterar forçosamente todas as outras. Em que tempo é que se situa, afinal?

Em termos práticos, nasci em 1993, ano em que me inventaram. Mas as minhas histórias passam-se num futuro mítico. Será 2016, 2020? Se quiser, eu não tenho tempo, eu não tenho idade. Sou uma ficção, uma utopia. O que está por trás de mim é a ideia de que todos somos obras de ficção.

 

Só existe literariamente.

Exacto. Todos somos obras de ficção, no sentido em que vivemos segundo ficções; isto é, elaborações míticas em que inscrevemos a nossa vida mental. Tal como os gregos tinham mitos a partir dos quais explicavam o mundo, ou o interpretavam, nós temos mitos contemporâneos. Para mim, a personagem Anabela Mota Ribeiro é tão ficcional quanto a personagem Filipe Seems, ou a personagem Ana Lógica [do álbum «Ana»]. Aquilo que temos sempre é imagens. Não nos relacionamos com os outros senão através de mecanismos da percepção. O que é uma ficção? É o desenho que junta os vários pontinhos. E o desenho que cada um faz é diferente. Olho para as vezes que convivi consigo, para os pontos isolados que tenho acerca de si, junto os pontinhos e faço um desenho, traço uma ficção.

 

Então, eu, Anabela Mota Ribeiro, sou o pretexto exterior para que você, Filipe Seems, faça uma projecção de si naquilo que encontra em mim. Porque se o seu desenho é diferente do desenho de outra pessoa e eu sou a mesma, significa que a leitura que cada um faz é uma projecção exterior daquilo que essa pessoa é em si mesma.

A objectividade não existe. Tudo é ficção, tudo é hipótese, tudo é jogo. A objectividade só existe como uma abstracção estatística. Partindo deste princípio, o de que tudo é ficção, então há que viver literariamente. E fazer da nossa vida uma obra de ficção. Elaborar as ficções de maneira artística. Viver artisticamente. Estar disponível para as possibilidades do acaso. E fazer do encontro entre as pessoas, citando Bárbara Guimarães, uma obra de arte.

 

As suas primeiras citações são de Jung e Bárbara Guimarães. Parece-me bem!

[risos] Uma das questões que em dada altura levantei é esta: as pessoas encontram-se, mas onde? Encontram-se através dos corpos e dos sentidos, através de. Mas onde realmente nos encontramos é nessas ficções a que chamamos amor, amizade, religião.

 

As pessoas encontram-se também na consciência que têm de si próprias, na consciência desta elaboração de acasos, na consciência de haver um mapa universal onde todos se cruzam. A consciência, então, é capaz de ser o maior dos espaços de encontro. «O que é a consciência? A minha pergunta é a minha resposta?»

Não sei se é a consciência. Não vamos tornar isto demasiado conceptual ou filosófico...

 

Está bem, mas não fui eu que comecei com o Jung... Voltemos ao início. E se a pergunta não fosse sobre o sonho da última noite, mas sobre o livro que leu antes de adormecer...

Nesse caso, respondo: «A Invenção de Morel», de Adolfo Bioy Casares.

 

O que é «A Invenção de Morel»?

É a história de um tipo que foge de uma prisão e vai ter, náufrago, a outra ilha. Anda fugitivo e começa a ver umas presenças na ilha. Esconde-se delas, observa-as. Depois percebe que aquelas figuras fazem o mesmo ritual, todos os dias à mesma hora. Vai-se aproximando cada vez mais e então descobre que aquilo não são pessoas, são imagens que se reproduzem diariamente, emitidas por uma máquina (que ele depois descobre ter sido inventada pelo tal Morel), uma espécie de cinema tridimensional e que ficou a reproduzir-se ad aeternum. É então que ele se apaixona por uma figura feminina, mas esse amor não tem futuro, porque ela é uma imagem, uma coisa imaterial e fixa, só uma imagem. A mim, parece-me uma belíssima história.

 

Sabe o que significa Morel?

Não.

 

Cereja.

Ai é?

 

Há um tipo de cereja chamado Morel. Cereja Morel.

OK, faz sentido. As palavras são como as cerejas. [risos]

 

Mas não será que todos nós vivemos, como no livro de Bioy Casares, iludidos por imagens que julgamos reais e afinal não são?

Eu, Filipe Seems, penso assim: vivo numa cidade mas esta cidade não é só a cidade real. Aliás, esta cidade é sobretudo a cidade irreal. É a cidade que eu posso transformar. É a cidade em que, na esquina, posso ter aquele jacarandá e imaginar tudo o que quiser: gôndolas no Terreiro do Paço, naves espaciais, golfinhos a nadar no Tejo. É nesta cidade que vivo: uma cidade que não existe, ou que só existe na esquina da cidade que existe. Então, esta cidade tem pessoas. Cada pessoa é uma obra de arte, uma obra de ficção. O meu cruzamento com essas pessoas tem que ser um cruzamento que provoque, que estimule, que inspire. Eu tenho que ter uma existência literária. Eu quero ter uma existência literária. Porque essa é a forma de viver inspiradamente.

 

Dar sentido às coisas?

De procurar sentido, sim, mas nos sentidos todos da palavra sentido. Só faz sentido procurar sentidos se tivermos todos os sentidos alerta. Dar sentido pode ser dançar sobre os sentidos. «Eu não leio a sina, eu danço».

 

É o que diz a cigana do álbum «A tribo dos sonhos cruzados».

A cigana não quer saber o futuro. Quer dançar sobre a hipótese do futuro. Depois, sou um voyeur, um espectador. Gosto mais do papel de realizador do que do papel de actor. Não gosto de estar no palco. Gosto de estar na primeira fila da plateia. Ou nos bastidores. A ver. Gosto de me envolver numa situação para logo a seguir me colocar de lado e simplesmente observar, seja a situação ou eu próprio. E a cidade é o palco de todas as coisas, é o sítio onde o passado e o futuro se encontram.

 

Filipe Seems padece de amnésia ucrónica, «o que me faz não distinguir o que recordo do que imagino. Se escrevo o que me aconteceu, não sei se o que escrevo é memória ou utopia».

Isso é só mais um desenvolvimento do conceito de viver literariamente. Viver literariamente é pensar que, do nosso passado, consciente ou inconscientemente, retemos imagens e com elas construímos uma história. É como se retivéssemos fotografias e, com elas, ficcionássemos o que foi o nosso passado. Mas é sempre uma ficção. Quando se diagnostica que sofro de amnésia ucrónica, coisa que aliás não existe, estamos só perante o prazer de uma palavra: ucronia – segundo o grego, aquilo que poderia ter acontecido mas não chegou a acontecer. Então, isto tem a ver, outra vez, com as hipóteses, só que retroactivamente. E se eu em vez de ter virado naquela esquina, tivesse virado na outra? Será que conheci mesmo a Ana? Ou estou só a inventar? A imaginação e a memória confundem-se. É como se a imaginação fosse uma memória do futuro ou a memória uma espécie de imaginação do passado.

 

Há uma palavra fantástica a que recorre: serendipidade. «Faculdade de fazer descobertas felizes e inesperadas, por acidente.»

Foi assim, aliás, que descobri essa palavra. [risos]

 

Como é que a descobriu?

Foi numa comédia romântica americana, chamada «Serendipity». Eu pensei: que palavra gira. O que é que isto quer dizer? E é isso que disse.

 

O Miles Davies também tinha um tema chamado «Serendipity». Acho graça quando diz que escolheu ser detective porque é aquilo que mais facilmente lhe permite viver literariamente. Mas porque não um escritor? Ou um desenhador? Porquê um detective?

Porque é um cliché. É tão insólito e tão retro a ideia de ser um detective observador, não é? Acho que é um papel que me fica bem. O detective. O que procura as pistas. Como dizia o René Char: «O poeta deve procurar as pistas e não as provas».

 

Nesse caso, pergunto: o que é que procura? O que é que desvenda?

Procuro sobretudo as histórias que me seduzem. Encontro, e depois procuro o sentido através das histórias.

 

«Sou um detective particular, mas as provas não me interessam, só as pistas. Porque só as pistas fazem sonhar». Ou: «Se és verdadeiramente um detective, procura o enigma, não a solução». Um detective tem sempre um mistério, um enigma para desvendar. Qual é o seu?

Sou detective por razões meramente estéticas! [risos] Gosto da atmosfera dos filmes B de meados do século XX. É um estilo que me agrada e que ficou completamente fora de moda, agora no século XXI. Agrada-me a gabardina. Agradam-me os saxofones. Adoro os clichés de que já ninguém gosta, que foram abolidos. Se bem se lembra, a partir da década 10 do século XXI decidiram abolir todos os clichés.  

 

Há um momento num dos álbuns em que o seu perfil se aproxima muito do perfil de Corto Maltese. É uma referência quase romântica que me fez pensar na atitude do viajante.

O meu problema é que estou sempre a ver-me a mim próprio. Eu adorava ser as personagens que vejo, mas sou sempre um observador, um narrador. Fascino-me com as personagens, gostava de ser personagem, mas sou narrador. Dou sempre um passo atrás. Nesse sentido, sou pessoano. Estou sempre ausente.

 

Numa das pranchas, lembro-me, anda a ler o «Livro do Desassossego».

Sim. Sou melancólico, nostálgico de não sei bem o quê. E extremamente desassossegado. Vivo fascinado pelas pistas, com uma enorme sedução pelas personagens que têm força, convicção, energia e uma inteireza que eu, se calhar, não tenho.

 

A si, o que é que lhe causa tristeza?

Talvez o facto de não ter tristeza. [risos]

 

Vá lá, a sério...

Mas isto é a sério. Sou melancólico mas não sou necessariamente triste. Também sei rir. Acabo por rir imenso com a ironia das coisas. E sou uma figura lúdica. Sou capaz de marcar encontro com a Ana e ir ter com ela de bicicleta por dentro do Aqueduto das Águas Livres e depois apanhar um balão. Ou de tomar banho numa banheira transparente. Ou de encontrar uma mensagem dentro de uma garrafa, que só diz «Encontramo-nos no Desejo», e descobrir que esse Desejo é um eléctrico. Um eléctrico chamado Desejo.

 

O que é que suscita a sua paixão?

Como vivo num mundo de imagens e de ficções, tenho fascínio porque tudo o que é de carne e osso. Sexo. Música pura. Mas que me é estranha, ao mesmo tempo. Receio uma carnalidade com a qual não sei como me relacionar. A personagem da cigana, por exemplo, mexeu muito comigo. Porque não sabia muito bem como lidar com ela.

 

Não consegue ter sexo com ela. E diz que o problema não é dela, é seu...

Isso é com a Ana.

 

Tem razão, desculpe. [Ana é personagem do primeiro álbum, que reaparece no terceiro; a cigana é outra personagem do terceiro álbum].

Não faz mal. O bloqueio acontece-me porque eu, naquele momento, precisava de a desconhecer.

 

O que é que isso quer dizer?

É difícil. O que é que fica depois do desejo? Houve uma fase em que estava no meu escritório de detective, como sempre à procura de uma imagem, da corporização da imagem feminina que tinha na cabeça. Estava eu à procura de personagens femininas e entra-me uma pela sala adentro.

 

A Ana, cujo nome é propenso a anagramas e múltiplos sentidos.

E isto é real demais para ser verdade. De repente está ali a personagem. E eu desejo a personagem. Mas desejo-a de uma maneira difusa. Ainda por cima, a Ana multiplica-se, assume outros nomes, outras identidades, em declinações da figura feminina. Aquela entrada dela pelo escritório adentro deixou-me perturbado. É um cliché, novamente. Um cliché do cliché. A partir daí, a história adensa-se. Fico seduzido. Seduzido é pouco. Seduzidíssimo.

 

O mais sedutor não será essa diluição de fronteiras entre a realidade e a ficção?

Sim. Não tenho a certeza de não ter inventado a Ana. Provavelmente inventei. Chego assim a um ponto em que já se esgotaram as palavras, já se esgotaram as imagens. A uma zona de bloqueio. A questão do desejo e a questão sexual têm sempre a ver com um lado selvagem. Não basta uma imagem. É preciso um corpo. «No more images». É preciso parar outra vez com as imagens para poder voltar a acreditar. Ou seja, o desejo, naquilo que tem de selvagem, de incontrolável, implica um território que não pode ser domesticado. E nós vivemos na época das imagens domesticadas.

 

«O trabalho do prestidigitador é, por uns instantes, fazer as pessoas esquecerem-se da Grande Prestidigitação que são as suas vidas». Mas podemos fugir à formatação?

Devemos fugir.

 

Parece que estamos sempre numa cena orwelliana. Há uma passagem da «Conspiração» em que você, Filipe, se apercebe que está dentro de uma teia, montada por outros, de que não quis fazer parte, mas da qual se descobre subitamente cúmplice. Será que podemos fugir a esta teia? Até onde é que podemos evadir-nos?

Podemos, porque temos o nosso trilho, temos o nosso sonho, temos a nossa música para ouvir. E essa está lá sempre, em qualquer altura da história. Tivemo-la no passado, teremos no futuro. A ideia dos sonhos cruzados que os aborígenes usavam no deserto australiano, como conta o Bruce Chatwin nas «Songlines», é preciosa.

 

«... Descendentes dos índios, que dormiam com redes por cima da cabeça, para nelas ficarem presos os sonhos...».

Aquilo era um deserto mas eles guiavam-se por «songlines», por canções. Cada um tinha que seguir o seu trilho.

 

«O que eu pensava naquele momento não era um pensamento, era música, pura música, e isso não se pode descrever». Que canções eram essas, as dos aborígenes?

Eram a enumeração de locais e episódios passados em locais míticos, do tempo da Criação. Vêm do passado. Vêm daquilo que já lá está. Vêm das coisas que ainda continuam lá, como um poço de água, como uma montanha, como as árvores. Podem já só ser vestígios, mas ainda são vestígios de qualquer coisa que é ancestral. Isso é o oposto do momento em que nos propõem ocupar o tempo com coisas fugazes, consumíveis, perecíveis. Não vivemos no deserto. Vivemos naquilo que é precisamente o oposto do deserto. A sobreposição de gente, de máquinas, de ruído. Em certo sentido, é um deserto ao contrário. O problema continua a ser o mesmo: encontrar o fio da nossa música. No meio deste ruído, encontrar o tom da nossa música, para depois poder seguir esse caminho.

 

«Todos os seres humanos são uma obra única (...). Numas somos narradores, noutras somos narrados. Numas somos corpo, noutras somos sonho, fazendo fluir a nossa história na história do mundo». O que procura é o caminho da sua singularidade no mundo?

É isso que procuro. A minha singularidade.

 

Gostava de pegar nesta frase que encerra a trilogia: «E agora regressas a ela, como se a ela chegasses pela primeira vez». Como é que podemos aliviar a carga e fazer de conta que não sabemos, quando já sabemos...

Não é fazer de conta que não se sabe. É voltar a ter a experiência do desconhecido. É uma epifania. É quando se descobre uma porta no sítio onde havia uma parede. Do que eu gosto é da ambiguidade do «ela». A mulher. A imagem feminina. A cidade. As imagens. Ana. Dá para todas essas hipóteses. Voltar às imagens como se fosse a primeira vez. Voltar à imagem que se deseja como se fosse a primeira vez. O que é preciso para se conseguir isso? Que se faça silêncio. Acabar com o excesso das imagens. E depois, voltar a ouvir. Voltar a sentir que é possível novamente desconhecer, ter a sensação do desconhecido.

 

Uma criança é quem mais facilmente nos reconduz a esse estado de pureza. A outra possibilidade é qual?

Uma criança tem um «handicap»: ainda não percebe o seu lugar no mundo. Aquilo que é fascinante no facto de se ser adulto, quando se é capaz de salvaguardar um primeiro olhar sobre as coisas, é justamente saber ou pressentir-se qual o nosso lugar no mundo. Apesar de nunca ter tido uma actividade muito física, sempre me agradou nas disciplinas do corpo orientais, como o ioga, a ideia de estar atento. O corpo preparado. Não mole, mas preparado. E sereno.

 

O que é a fisicalidade para uma personagem que existe literariamente? Não é por acaso que lê o Pessoa, o poeta que abriga heterónimos e distanciado de uma existência sensual. Em si, tenho dificuldade em perceber qual é o papel do físico, da carne.

Vivo uma experiência quase religiosa das imagens e do desejo. Quase que prefiro deixar as coisas como estão. A distância pode ser a forma mais íntima de duas pessoas se encontrarem, digo eu a dada altura. No segundo livro, tenho uma experiência sexual à distância. O sexo também é a nossa relação com uma imagem. O que nos seduz é a imagem da pessoa. Só que o sexo traz outra coisa, que é esse lado físico. O «hardware» junta-se, não é uma coisa só de «software». O sexo é contaminação. O sexo é fluídos, interpenetração. Eu consigo isso com a Ana, na primeira história. Com a Selene, na segunda. E não sei muito bem se chego a ter com a Alma na terceira. Há quase um sentido de perda, no acto sexual.

 

Cada um perde a sua inteireza quando desagua no outro?

O acto sexual é o fim de tudo o que une. É o fim do desejo. É o ponto de chegada.

 

Então o que é o prazer?

O prazer, para mim, está na antecipação, na adivinhação. Sou um voyeur.

 

Por que é que as pessoas têm sexo?

Por instinto. O sexo é antes de mais uma coisa biológica. O instinto sexual tem uma carga extraordinária de prazer físico, mas que a mente humana recria e transforma numa elaboração romântica desesperada e literária, absolutamente literária. Portanto, na base está um instinto animal que é sublimado, no verdadeiro sentido da palavra, tornado sublime, pela espécie humana. O que acontece comigo é que me concentro tanto na hipótese ficcional do sexo que me quase me distraio, quase me esqueço do sexo em si.

 

Harrison Ford tem sexo com a replicant no «Blade Runner»? «Com que sonham os andróides hedonistas?» Numa das tiras do «Ana» surge uma cena do «Blade Runner». Harrison Ford está com a replicant, que lhe pergunta: «You think I’m a replicant, don’t you?»

Isso tem a ver com a história específica da «Ana»; a dada altura ela põe a hipótese de ser um clone. Esse filme reforça a minha ideia de que vivemos segundo as histórias em que acreditamos e só nos encontramos verdadeiramente nas ficções em que acreditamos. Só nos encontraremos verdadeiramente com as pessoas que acreditam naquilo em que acreditamos. Seja o amor, seja a religião, seja simplesmente a nossa história.

 

O que é verdade é aquilo em que eu acredito?

O que é verdade é aquilo em que eu acredito.

 

Há um sentido religioso nisto.

Há um sentido religioso nas ficções. A religião é uma ficção. A Natália Correia dizia que os deuses são da poesia, não são da religião. A religião é a ficção das ficções, é a mãe de todas as ficções. Só seremos livres quando acreditarmos em todos os deuses, dizia a Natália. E todos os deuses significa todas as personagens. Tudo tem existência enquanto personagem. Escolho acreditar nas que me seduzem, nas que me agradam, nas que me inspiram, nas que me elevam, nas que me dão tranquilidade. Escolho segundo a minha história pessoal. O amor é outra suprema ficção. Amar é acreditar que se ama. Amar é acreditar. E tal como nos actos de fé, o amor vive dos milagres. O milagre da comunhão, da identidade, da cumplicidade. Quantos mais milagres o amor produzir, mais acreditamos nele. Como na religião, somos meros crentes. E às vezes descremos. E às vezes somos agnósticos. E às vezes somos ateus.

 

Mas você ama? Você chega a amar?

Eu sou um panteísta [risos].

 

Mas pode amar?

O meu problema é que só com muita relutância sou actor. Quando estou para ser actor...

 

Recua?

Não. Coloco-me muito rapidamente no papel de encenador.

 

Isso não é um medo? Parece tão pessoano... Aqui estou eu, incólume, no meu quarto com vista para a Rua dos Douradores...

Fico fascinado com as mil hipóteses, esmagado pelas mil hipóteses, e acabo por não viver a minha hipótese. Acho que é isso.

 

O que é que toca? O que é que pode ser tocado por si? Tem controlo sobre este processo?

Não tenho controlo nenhum. Sou tocado pelas coisas, não o contrário. A dada altura, a cigana diz-me: «As imagens ferem o teu corpo».

 

«Não era o vudu africano praticado nas Antilhas... Não era a figura com os alfinetes espetados... O suporte era tecnológico, mas a essência era a mesma: ao interferirmos com a imagem, interferimos com o corpo».

Ao operar com as imagens, crio uma comoção no meu corpo.

 

Aí está uma palavra de que ainda não falámos: comoção.

A comoção implica um descontrolo. Gostaria de me comover. Gostaria de perder o controlo sobre mim mesmo. Mas não consigo. Comovo-me com as imagens. Só que de uma maneira distanciada.

 

É muito pouco português, muito pouco latino!

Olhe que não sei. Há muita contemplação, no português. Não me parece que haja assim tanta fisicalidade.

 

Qual é o seu passado? Que infância foi a sua?

Que quer que lhe diga? Em miúdo, vivi num bairro típico de Lisboa, fui o miúdo do Molero [«O que diz Molero», Dinis Machado]. Joguei à bola no meio dos outros miúdos. Depois fartei-me de viajar sem nunca sair do bairro. Depois isolei-me. Fartei-me de ler, de ver filmes. Continuei a viver no mesmo sítio, mas virado para dentro da minha cabeça. Foi esse o lugar onde sobrevivi.

 

Tem mãe? Foi embalado?

Não. Ou se tive, também foi uma ficção. Não esqueça que eu não tenho o problema de pagar a renda, não penso em dinheiro.

 

Mas se tudo é uma ficção, o que é que nos redime? O que é que o redime?

Não sei se tenho redenção. Sou apenas uma personagem perdida num labirinto de possibilidades, condenada a errar eternamente nesse labirinto.

 

 

Publicado originalmente no Diário de Notícias