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Anabela Mota Ribeiro

Isabel Moreira

17.05.13

Isabel Moreira nasceu em 1976. Licenciou-se em Direito, fez um mestrado em Direito Constitucional – Direitos Fundamentais. Quando apareceu, era a filha rebelde de Adriano Moreira, ex-ministro de Salazar. É deputada independente pelo PS. Publicou três livros, de género indefinido. "Pessoas Só", "Quando uma palavra não basta" (candidato ao Prémio Saramago) e "Ansiedade". 

 

“O dinheiro não traz a felicidade. Manda buscar.” – Millôr Fernandes. O poder não dá felicidade. Mas manda buscar?

O poder político não tem por função “dar” felicidade a ninguém ou, noutro sentido, “criar” felicidade. Questão diferente, e muito actual, é esta: esse mesmo poder está constitucionalmente obrigado a remover obstáculos legais e injustificados ao desenvolvimento pessoal, livre, de planos de felicidade.

 

“Dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro.” – Nelson Rodrigues. O que é que o dinheiro e o poder não compram?    

Os incorruptíveis e os que não guiam a sua acção por um projecto pessoal de poder. Neste último caso, “comprar” é excessivo. Quero com isto explicar que a ideia de um poder pessoal futuro modela decisões individuais e tornam, para muitos, silêncios relativamente a matérias que lhes mereceriam voz alta um preço compensador. Não é assim que faço política, mas não me considero moralmente superior por isso. 

 

“Se quiseres pôr à prova o carácter de um homem, dá-lhe poder.” – Abraham Lincoln. Isto equivale ao nosso: “Se queres ver o vilão, põe-lhe a vara na mão.”?

As duas frases parecem a dogmática ultrapassada da vertente positiva e negativa dos direitos fundamentais. Aprisionam-me.  


“Usa o poder que tens. Se não o usares, ele prescreve.” – provérbio chinês. Só o poder formal prescreve? Que poderes não prescrevem?

O único poder que não prescreve é aquele de que os outros são servidores: só o povo tem poder; só no povo reside o poder. Noutro nível, nunca prescreverá o poder imenso da consciência individual, o único consolo que Stig Dagerman encontrou na sua obra desconsolada.


“Mantém os amigos por perto; e os inimigos, mais perto ainda” – Don Corleone, “O Padrinho”. Conhece bem os seus amigos e inimigos?

Conheço melhor os meus amigos. Tenho sido surpreendida quanto a inimigos que não sabia que sabiam de mim. Mas os meus verdadeiros inimigos são qualquer rosto que faça da justiça, da igualdade e da liberdade desvalores, passando a impor um prefixo nestes alicerces. Depois tenho inimigos internos, como todos, fragilidades que exponho sem pudor, no meu corpo e nos meus livros. Penso que é assim que os venço, fazendo dessas bestas um motor e nunca um ponto final.


“O poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente.” – Lord Acton. Porquê? Ter demasiado poder é inebriante?, provoca um desfasamento da realidade?

E uma solidão que advém de não haver com quem dividir o poder. Sem separação de poderes há apenas vontade e nunca responsabilidade. A única palavra é a palavra “eu”. Eis a condenação à alienação e ao abuso.


“Yes, we can” – Obama. Foi a força das palavras que elegeu o primeiro presidente afro-americano nos Estados Unidos?

A frase. Mas também o poder da voz. Um sentido de representação e de mudança naquele apelo à primeira pessoa do plural: we. Dizemos poucas vezes “nós”. Dizemos mais vezes “eu” e “eles”. O “tu” e os “eles” deviam ser as primeiras palavras no espírito de qualquer político.


Quem é que tem poder em Portugal? Os banqueiros, os políticos, os artistas, a construção civil, as pessoas que aparecem na televisão?

O povo através dos seus eleitos. Depois há distorções como as conivências obscuras entre o poder político e o poder económico, o corporativismo em tantas áreas. Há sempre distorções, mas penso que nunca houve tão pouca corrupção em Portugal – apesar dos casos sonantes – e tanto escrutínio dos políticos.


Sem falsas modéstias, e partindo do princípio que, pelo menos no nosso quintal, todos temos poder: considera que é uma pessoa poderosa? Em que é que se baseia o seu poder?

Na escrita. A escrita não é uma função, um dever, uma defesa: é “eu”. Só sou escrevendo, só me integro escrevendo. Não sofro a escrever, não acredito no “escritor sofredor”. Escrever é um acto sublime e de devolução. Sem a escrita seria um fantasma.


O que é ter uma agenda poderosa? É ter o telemóvel de Fernando Ulrich? É ter andado na escola com o Paulo Portas? É ser convidado por Ricardo Salgado para um almoço na Comporta? É conhecer o primo da mulher do assessor do ministro que manda?

 É ter tudo isso por irrelevante. É uma atitude ideológica. Não suporto distinções sociais, circos sociais para aparecer/ser nem quaisquer sinais de privilégios ou luxos. O poder está no despojamento.  


Ter poder é mandar prender? É contratar, é despedir? É saber mais? É ter relações?

Ter poder é escolher. É poder escolher. Daí que a pobreza mate a liberdade, mate a democracia.


Marcelo Rebelo de Sousa/ Ricardo Araújo Pereira: qual deles tem mais poder?

Cada um na sua área tem o mesmo grau de um específico tipo de poder.


Muito poder torna uma pessoa impopular? Embirramos com o chefe porque ele tem poder, porque invejamos o seu poder, porque insuportamos a maneira como exerce o poder?

Claro. Quanto mais longe estamos da palavra “tu” mais perto estamos da submissão ou da ideia que nos invade de que nos estamos a diluir.


A vaidade tem razões que a massa encefálica desconhece? É o desejo de reconhecimento, mais do que tudo, que instiga o desejo de poder?

Cheguei – dirão muitos cheios da adrenalina da luta política. A primeira alegria é o cumprimento de um sonho de carreira pessoal. Por vezes recordam-se de que são servidores do povo. O desejo frenético do poder político é-me misterioso. Vejo-o como um êxtase sexual. Irreversível.


O desejo de poder é indissociável de úlceras, cabelos brancos, rugas na testa? Ser ambicioso ainda é pecado? Porque é que se aposta “naturalmente” a palavra “desmesurada” a ambição?

Nada tenho contra a ambição política se nunca se desligar do bem-comum. Será desmesurada em função dos métodos do percurso. Os cabelos brancos podem ser muito bom sinal. Nada é linear.


Quando é que o poder se torna perigoso? Quando se torna insaciável? Quando se alia à inteligência (e à competência) a falta de escrúpulos? Quando à embriaguez do status se associa a falta de bom senso?

Tudo isso. O poder nas mãos da inteligência deficitária também é mortal. Ou antes disse tudo, quando nada há de corrupto, mas encontramos um poder que vive para números e estatísticas e esquece totalmente a razão de ser da sua existência: pessoas de carne e osso.

 

Ter poder é poder escolher não ter patrão?

Também. Liberdade é poder. O mesmo é dizer que a liberdade está altamente comprometida. Na pobreza somos todos escravos. É também por isso que não admito a separação rígida entre direitos de liberdade e direitos sociais. Os primeiros são fórmulas vazias sem a concretização dos segundos. De que me serve o direito de petição ou a liberdade de iniciativa privada se entreguei a minha casa ao banco numa situação de desemprego e fiquei a viver ao relento?

 

O poder, como a política, produz sempre inimigos? Os inimigos são os invejosos?, os insubordinados?  

Há inimigos para todos os gostos, coisa que me causa horror. Na política tenho adversários. Posso cortar relações com alguém numa situação ultrajante, mas nos mesmos termos em que o faria fora da política. Penso que o pior tipo de inimizade que tenho visto na política é a mais rasca de todas: a que se funda na inveja.

 

Poder, dinheiro e influência são, no essencial, a mesma coisa?

Não. Poder político é funcional e democrático, serve o seu verdadeiro dono, o povo soberano. Os seus titulares podem perverter a sua função, coisa diversa, e usá-lo para influências não-éticas ou ilícitas; podem quebrar o contrato que têm com o povo e misturarem-se ilicitamente com dinheiros para fins de alguns. Daqui resulta que o poder é terreno fértil para dinheiros e influências anormais – donde a importância de todos os mecanismos existentes de controlo dos órgãos de soberania, dos seus titulares e da Administração Pública. Daí a importância da separação e interdependência de poderes.

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012