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Anabela Mota Ribeiro

Fernando Lopes

17.03.23

Fernando Lopes é cineasta. Fundou com mais uns poucos, poucos, o Cinema Novo que inspirou Portugal numa década de renovações. Na década seguinte sentiu intimamente a Revolução que nos marcou a todos. Fez um canal de televisão de quem todos ainda se lembram.

O normal seria passar a vida na terra, na Várzea, a cavar. Mas não. Quis o destino, por razões que se detalham, que a sua vida fosse outra. E a vida e a história são pungentes.

Tem cinco filhos. É casado com Maria João Seixas. É um entrevistado admirável.

 

Em que circunstância partilhou casa com o Alexandre O’Neill?

Quando me separei da minha primeira mulher fui viver para casa do Alexandre. Partilhámos casa durante um ano, quase. Éramos grandes amigos, e eu tinha uma imensa admiração por ele como poeta.

 

Como é que se conheceram?

O Alexandre veio com o Alain Oulman, com quem estava a trabalhar nos fados que a Amália veio a cantar, ver a primeira projecção que fiz do «Belarmino», no laboratório da Tobis. E quando me separei, em 67, ele deu-me acolhimento.

 

Partilharam a tal casa a que ele chamava «Cabine dos Irmãos Marx»?

Não. O primeiro sítio que lhe conheci foi na Rua Monte Olivete. Depois tivemos imensos encontros na famosa «Cabine dos Irmãos Marx», na Rua de S. Marçal, onde também conheci o António Tabucchi.

 

Como era a Cabine?

Era uma coisa pequeníssima onde se juntava toda a gente de Lisboa, do Zé Cardoso Pires ao Tabucchi. A casa tinha uma pequena sala, um pequeno quarto e nas traseiras um espaço muito pequeno onde o Alexandre fazia grandes sardinhadas. Depois passou para outra casa na Rua da Escola Politécnica.

 

Ele era o seu melhor amigo? Daqueles a quem se liga à uma da manhã a dizer «Saí de casa, posso ficar no teu sofá-cama»? Não sei bem como é que os homens funcionam neste registo.

Funcionam bem, nesse registo. A amizade entre homens é muito misteriosa, é muito íntima. Calculo que com as mulheres também seja assim. Mas sim, com o Alexandre tinha esse tipo de vida: íamos pelos copos dentro, pela noite dentro, sobretudo a noite.

 

O café era o espaço de discussão?

Havia tertúlias de café. A tertúlia do Café Chiado, a do Café Ribadouro (onde passei muitos anos com o Baptista Bastos, o Carlos de Oliveira, o Cardoso Pires, o António Pedro, que era encenador do Teatro Experimental do Porto e que vinha todos os fins de semana ter connosco). Havia a tertúlia do Monte Carlo, que era uma mistura de tertúlia de escritores, artistas, aspirantes a políticos e também de forcados! Havia a tertúlia do Versalhes e a do Aviz, que eram de Direita.

 

E a do Vá-vá?

É posterior. É do meio dos anos 60. É francamente uma tertúlia de cinema, quando se começa a falar de Cinema Novo em Portugal, mas também de política porque o Vá-vá não estava longe da universidade. Vivia muito perto do Vá-va, o Alberto Seixas Santos, o António Pedro Vasconcelos, o Lauro António, o Eduardo Prado Coelho também, o Paulo Rocha vivia por cima. E perto havia um laboratório, a Odisseia Filmes, onde revelámos e montámos os nossos primeiros filmes. Essa tertúlia teve a vantagem de conjugar gente que tinha entre 24/27 anos com jovens estudantes que, tínhamos a consciência, iriam ser os políticos do futuro.

 

Tinham deveras essa consciência?

Aquilo tinha de mudar. «Aquilo» era o Portugal do «Respeitinho é que é bonito», como dizia o Alexandre O’Neill. O Eduardo Guerra Carneiro chamava-nos «Os Guerrilheiros do Vá-vá», (não fazíamos uma guerra frontal mas uma guerra de guerrilha). De tal modo que se dizia «Quando isto mudar, o que é que tu vais querer ser?» Lembro-me do Medeiros Ferreira dizer que gostaria de ser Ministro dos Negócios Estrangeiros. E foi. Lembro-me do Jaime Gama, que estava sempre com o Alfredo Barroso, dizer que gostaria de ser Ministro do Interior. E foi Ministro da Administração Interna.

 

Eles eram tão evidentemente sedentos de poder?

Não. Estavam, como todos, sedentos de mudança, de liberdade. Muitos dos meus companheiros da época foram presos, foram perseguidos, exilaram-se, e outros foram para a Guerra Colonial. O Nuno Brederote dos Santos foi para Moçambique.

 

O Zeca Afonso foi dar aulas para Moçambique. Foi professor de Geografia do Mia Couto.

Foi também visitante do Va-vá. O Vá-vá tinha também o grupo dos músicos, (os Sheiks nasceram lá), que tinham como guru o Luís Villas Boas do jazz. Sendo que nós, cineastas e associativos, olhávamos para os músicos com alguma distância. Mas com o Maio de 68 mudou muita coisa. Já nos dividíamos entre quem era Beatles e quem era Rolling Stones. A música introduzia novos elementos.

 

Claro. O menear de anca do Mick Jagger.

As relações que tínhamos com as meninas que paravam no Vá-vá mudaram a partir de 68. Mesmo numa sociedade com um peso moral tão opressivo como era o da Igreja.

 

A partir da libertação erótica constatou uma série de sinais que o levaram a concluir que o país ia mesmo mudar?

Percebi, todos percebemos. Percebemos que aquele Estado ilegítimo já não tinha capacidade para resistir à pulsão do mundo. Era uma questão de um ano, dois anos, três anos.

 

Exactamente um ano antes da Revolução assistiu-se a uma exibição do «Roma, Cidade Aberta» com a presença do Rossellini. É espantoso que fosse permitida a exibição de um filme como este num país fascista. Como foi o acolhimento ao filme?

O João Bénard da Costa dirigia a área de cinema da Fundação Gulbenkian. Resolve fazer uma retrospectiva do Rossellini, de que gostávamos todos muito. Eu era director do «Cinéfilo», uma revista um bocado especial e maluca; tinha como director o Fernando Lopes, como chefe de redacção o António Pedro Vasconcelos, como redactor principal o João César Monteiro. Já vê! Decidimos fazer dois números seguidos, que são hoje históricos, (são mesmo!), sobre o Rossellini. Bom, hoje nenhuma empresa jornalística permitiria que dois números seguidos fossem dedicados a um autor!

 

O empenhamento político de Rossellini, ainda que numa fase anterior da sua carreira, deve ter sido extremamente inspirador para o grupo.

Sim, mas ele veio já quase no final da sua vida. O João Bénard conduziu aquilo muito bem. O problema foi conseguir passar o «Roma, Cidade Aberta», foi uma longa batalha com a censura. A sala estava cheia, estavam os dignatários do poder, estava o Rossellini. Quando a sessão acabou, em estado de comoção, começou a ouvir-se «Abaixo o fascismo, abaixo o fascismo». O director da Cinemateca Francesa, que estava presente e tinha cedido a cópia, comentou «Isto é um sinal. Isto vai mudar». Um ano depois mudava.

 

Tudo isto vinha a propósito dos ventos de mudança e da alteração nas relações entre homem e mulher.

A partir daí, diria que deixou de ser pecado ter uma relação sexual, por exemplo.

 

Também para os homens da sua idade, havia o estigma do pecado a cobrir a sexualidade? Ele não era apenas pertença da mulher?

Não era bem o estigma do pecado. Julgo que para os homens se repensou a ideia do marialva.

 

Foram educados para ser marialvas.

Sim. Julgo que a partir de coisas que lemos, que vimos, que ouvimos..., a partir do «I can’t get no satisfaction» percebemos que tínhamos de jogar de outra maneira com as mulheres. Tudo isso foi potenciado a seguir ao 25 de Abril. Suponho que nunca houve tantos divórcios e separações como a seguir ao 25 de Abril.

 

Os homens tinham, apesar de tudo, uma outra realidade sexual. Os homens iam às putas, e era normal que fossem às putas.

Tinha um professor que me marcou imenso, novíssimo, que viria a ser um grande poeta, o David Mourão Ferreira. Foi ele, por volta dos 14/15 anos, que me levou ao número oito da Rua da Barroca. Porque havia números e havia ruas. Havia o Cem da Rua do Mundo. E pagou a relação, de resto. Esse era o mundo dos homens. Até aos anos 60, a iniciação fazia-se nos prostíbulos. Havia ritos iniciáticos, se quiser. Éramos levados pelos mais velhos, e depois se via. No meu caso, ela foi para mim, muito fellinianamente, uma Puta-Mãe.

 

Como no «Amarcord»?

Sim. Não é por acaso que é um dos filmes de que mais gosto do Fellini. Reconheço-me naquilo.

 

Aquele era o ideal de mulher, mamalhuda, com um regaço protector?

Era como uma mãe, porque era carinhosa. Se calhar vou dizer-lhe uma coisa estranha, mas tenho um enorme respeito pelas putas. Uma grande ternura e um grande respeito. Na minha geração fomos todos iniciados assim. Havia outros inícios, nas classes altas, com as criadas. Mas não fazia parte dessa classe, não fui iniciado por uma criada. Pelo contrário, a minha mãe, sim, foi criada numa casa.

 

Quando foi a primeira vez que se apaixonou?

Aos 17 anos, pela minha primeira mulher. Eu trabalhava num escritório da Baixa que tinha a particularidade de ter 30 ou 40 costureiras que faziam gravatas, écharpes, coisas mais ou menos luxuosas. Isto parece um romance do Romeu Correia. Uma das raparigas chamava-se Maria Otília, víamo-nos todos os dias, enviávamos sinais um ao outro.

 

Pudicos sinais?

Muito pudicos. Ela era muito activa politicamente. Casámos muito cedo, daí que tenha tido tantos filhos; dela tive quatro, e tenho o Diogo da Maria João.

 

Segundo a cartilha do marialva, era comum a reprodução de conversas sobre a sexualidade. Em relação à afectividade havia um pudor. Mais depressa diria ao O’Neill «Olha fui às putas» que «Olha apaixonei-me»?

Boa questão. Mas não sou típico, sou pelas paixões. Nunca tive vergonha de dizer, «Olha estou apaixonado». Ao Alexandre, quando conheci a Maria João, disse «Eh pá...» [faz sinal de levantar voo]

 

Passados 30 anos, parece manter pela Maria João uma paixão avassaladora.

Mantenho. [pausa] Por exemplo, a «Abelha na chuva» não teria sido a mesma coisa se não me tivesse apaixonado quando comecei a fazer o filme. A meio do filme, a Maria João foi passar férias a Moçambique. Às tantas escreveu-me uma carta a dizer que íamos acabar. No entanto, tinha-me pedido para lhe arranjar um livro, «O Amor e o Ocidente» do Denis de Rougemont, que estava esgotado. Quando recebo a carta, o António Alçada Baptista consegue arranjar-me um exemplar. Decidi mandá-lo para Lourenço Marques com a seguinte dedicatória: «Variação sobre a Teoria de Lavoisier: em amor nada se perde, tudo se transforma» A Maria João volta, e casámos. Portanto, sou de paixões. Há um amigo meu, um amigo de balcão do Gambrinus, que diz que sou um Monogâmico Patológico!

 

Quando ouviu falar da Maria João pela primeira vez, soube que ela apreciava o seu «Belarmino». Extrapolando para um universo mais abrangente, acha possível dissociar o que é o homem e o que é o autor?

Não consigo. É, aliás, um enorme problema que tenho. Quando digo que sou fiel a paixões, significa que sou fiel a mim próprio, ao artista e àquele que está a falar consigo. Se as duas coisas não estiverem juntas há uma falha ontológica. O estarem juntas é um processo muito doloroso. Tenho essas dores com alguma frequência, mas não seria capaz de viver de outro modo. Mesmo que este viver ontológico me faça morrer mais cedo. Se fosse de outra maneira, era como dizer «Já não existo, já não sou o que sou».

 

Isso faz que na sua obra seja o Fernando Lopes abnegadamente.

Mas completamente. Não foi por acaso que no «Fio do Horizonte» fui buscar o Claude Barssin, que é parecido comigo e eu com ele, e os dois com o Belarmino. Foi como se tivesse trazido o Belarmino à terra outra vez. Foi como se tivesse feito uma longa viagem através da noite para me ver a mim próprio a morrer. Quando mostrei a primeira cópia à Maria João e ao meu filho Diogo, eles perceberam que tinha sido uma reflexão feita sobre mim a partir da personagem. A Maria João comentou «Esta é a tua viagem ao coração das trevas». Não concebo o meu cinema de outra maneira que não essa da permanente viagem ao coração das trevas que cada um de nós tem em si.

 

A viagem começa no «Belarmino» enquanto seu alter-ego?

Começa. No Portugal de 62, no fim do filme, quando lhe pergunto «E agora Belarmino, o que vais fazer?», ele diz «Agora vou fazer campeões». Há ainda uma esperança. Foi nessa frase que peguei para o «Fio do Horizonte».

 

Além de ser o Fernando, era o Portugal de então.

Era.

 

Como conhece o Belarmino? 

Conheço o Belarmino em 61/62, acabava de chegar de Londres. Tinha feito a primeira curta-metragem, «As pedras e o tempo», que, de certo modo, é um prenúncio de um novo cinema português. Na altura já trabalhava na RTP como realizador. O grupo da RTP parava muito Ribadouro e no Parque Mayer. A noite acabava às seis da manhã. Uma noite vou com o (Baptista) Bastos ao Clube dos Artistas beber mais um copo. O guarda-costas, o Leão de Pedra como se chamava, era o Belarmino, que eu sabia que tinha sido um grande boxeur mas que já não combatia.

 

O que é que o impressiona tanto?

Achei que ele tinha um físico de John Garfield! E que se mexia como os portugueses não sabiam mexer. Passado pouco tempo, sai no «Diário de Lisboa» uma pequena notícia sobre um combate falso que o Belarmino tinha feito em Inglaterra, em que tinha sido pago para perder. Apanhei a notícia e disse ao Bastos «Temos de pegar nisto. Isto é um filme».

 

E foi falar com o Belarmino.

Nessa altura já não era segurança, andava a engraxar sapatos na Baixa. Fui ter com ele e disse-lhe «Quero fazer um filme contigo». Entretanto tinha aparecido o Cunha Telles, que estava a acabar de produzir os «Verdes Anos». O filme começou por uma enorme gravação, e a partir daí é que desenvolvi toda a ideia. Levámo-lo para a Tobis e filmámos duas noites.

 

Descobriu a posteriori que o Belarmino era o seu alter-ego. Como foi feita a sua aproximação àquela pessoa?

O meu encontro com o Belarmino foi absolutamente instintivo. Percebi logo que tínhamos duas coisas em comum: vínhamos de baixo, ele mais do que eu, ainda; e uma relação de paixão pela cidade onde vivíamos, Lisboa.

 

Como assim?

Comecei a trabalhar muito miúdo, com 12 anos, num escritório mesmo ao lado do Gambrinus, e fazia o trajecto da Avenida Almirante Reis a salto nos eléctricos operários. Conseguia sempre fazer a viagem até ao Martim Moniz sem pagar bilhete. Depois fiz a minha vida estudando à noite, é outra história. Tinha os truques dos putos lisboetas, ia às salas de cinema dos putos lisboetas: o Imperial, o Liz, o Rex, o Piolho, o Animatógrafo, etc. Os bilhetes praticamente não existiam, era carimbos na mão. Então trocávamos o carimbo na mão uns dos outros para entrarmos de borla. É um universo completamente diferente do que você conhece, as cidades já não são isto.

 

O que representava o cinema?

O cinema era para nós, e para mim sobretudo, uma forma de sonhar. «Eu, se calhar, posso vir a ser igual ao John Garfield. Eu posso vir a ser igual ao Fred Astaire». Trabalhava no escritório com gente muito boa e ganhava um x por mês, que era pequeníssimo, mas pagavam-me os estudos. Era todo um sistema paternal, repare.

 

Como é que vem parar a Lisboa?

Venho aos 12 anos, a minha mãe era a cozinheira do dono deste escritório. A minha mãe tinha fugido da Várzea, do meu pai. Saí da minha aldeia aos quatro anos, estive em casa de uns tios em Ourém, e quando acabei a instrução primária vim para aqui.

 

Foi acolhido na família? Sente essas pessoas como a sua família?

Sim, foi fundamental. Acontece que esse senhor era republicano, opositor, um grande engenheiro. Foi ele que me incutiu o gosto pela leitura, «É preciso instruir este rapaz».

 

Ele tinha filhos?

Tinha uma filha. Foi uma espécie de pai. Para voltar à história, eu ganhava dinheiro, e isso permitia-me ir aos domingos ao cinema, e não só aos cinemas dos putos, mas às grandes salas: o S. Luís, o Tivoli, o Éden, o S. Jorge. Eram salas onde, como diz o Carlos de Oliveira num poema, «O espectáculo, por fim, se transforma no espectador». Na realidade, era como se estivesse no filme. Foi por aí que comecei. Devo isso à necessidade que tive de sonhar através de um ecrã. Tanto assim que quando estava a entrar no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, em 1957, vejo que há um concurso para a televisão. Resolvo concorrer e fico em primeiro lugar. Concorri para funcionário administrativo da RTP, mas percebi que podia chegar lá.

 

Qual era a sua função?

Escrever os noticiários à máquina. Por acaso, já falava razoavelmente inglês, porque no escritório tinham muitos negócios com Inglaterra. Costumo dizer que uma das coisas que fez com que desse o salto na RTP foi saber escrever Washington! Para além de, no curso da Escola Comercial, ter tirado 20 a dactilografia! À pala disso, tornei-me tão importante na informação que fiz um contrato com o director: ok, mantenho-me neste papel, mas no fim do noticiário deixam-me ir para a sala de montagem ver como é que se monta, e deixam-me exercitar.

 

Percebeu instintivamente a importância da montagem?

O que queria perceber era a essência do cinema, que vem da montagem, do meu ponto de vista. Como é que uma imagem e um som criam outros sinais e suscitam outras leituras. Uma imagem pode contrariar um som e vice-versa. Depois havia as outras grandes questões, a da narrativa, a da representação.

 

Essas aprende em Londres?

Tive uma bolsa e um apoio da RTP e fui para Londres. Estive lá dois anos. Num ponto de vista de abertura ao mundo, foram anos fundamentais. Tive ofertas para ficar, tive muito boa classificação. A Shell fez-me um convite no sentido de fazer documentários na Nigéria. Mas não me apetecia. A ideia que tinha, já nessa altura, é que seria possível fazer outras coisas no cinema português que arrumassem de vez com o que tinha existido até ali, que esteticamente, tecnicamente, eticamente estava morto.

 

Era também entendido como uma missão política e de cidadania?

Sim, interessava-me estar em Portugal, para que isto mudasse. Tinha a ambição de ajudar a mudar. Penso que foi pela mesma razão que o Paulo Rocha veio de Paris, o António da Cunha Telles, todos os que estávamos lá fora e regressámos. Achávamos que íamos mudar tudo com os filmes que íamos fazer!, coisa que não aconteceu! Mas ajudou.

 

Já lá vamos, ao desencanto. Chegou a estagiar com o Nicholas Ray.

Sim, durante um mês, num filme chamado «Sombras Brancas». Para já, admirava-o muito enquanto cineasta, mas para além disso era fisicamente um homem belíssimo. Durante muito tempo usei umas camisas de veludo de um vermelho que só ele usava. Agora não tenho nenhuma, dei a última que tinha ao meu filho Diogo. Era um mestre. Vê-lo um mês a filmar foi das coisas mais bonitas que me aconteceram, e nos intervalos falava connosco, alunos daquela escola. A noção de mestre que tenho vem dele.

 

Como digeriram, então, a desilusão do cinema e de Portugal e do mundo?

Não digerimos. Fomos tão sonhadores que não percebemos o estado do país. O país começava a ter acesso à televisão, que era o cinema dos pobres. Convencemo-nos que entrando outros filmes nas salas, iam descobrir outras imagens. Tínhamos um público de base que era criado pelos cineclubes e que valia dez mil, quinze mil espectadores – o cineclubismo foi importantíssimo em todo o país, fazia parte da chamada resistência cultural e política. O que pensávamos era que íamos conquistar uma outra base, e aí enganámo-nos. A classe média-alta, por uma razão estritamente cultural, nunca teve respeito pelo cinema português; mesmo o Manoel de Oliveira existia miticamente. O público dos filmes populares não conseguia entrar nas nossas imagens. Eu, o Paulo (Rocha) e o (António) Macedo tínhamos inspirações que vinham de filmes da Nouvelle Vague, do Godard, do Cassavetes, do Renoir. Eles não se entendiam com as nossas imagens e os nossos sonhos.

 

Ao fim de três filmes, as produções Cunha Telles faliram.

E com isso praticamente ia falindo o Cinema Novo Português. Fomos sobrevivendo fazendo filmes de publicidade, filmes de encomenda para grandes empresas. Lutámos muito. Como diz o Vasco Pulido Valente «Tu tens alma de sobrevivente». Depois apareceu a Gulbenkian e, numa reunião no Cineclube do Porto, com os cineastas todos, aparece o Centro Português de Cinema com o apoio da Gulbenkian. Torna-se possível continuar não só o que tínhamos começado a fazer em 61/ 62 como também trazer outra vez até nós o Manoel de Oliveira. Isto deu a volta toda ao cinema português. Hoje ele faz um filme por ano. Eu não faço um filme por ano, tenho, enfim, um ritmo diferente do dele.

 

Gostaria de fazer um filme por ano?

O Manoel de Oliveira tem um mundo próprio tão forte que pode fazer dois filmes por ano. No meu caso, cada filme é uma experiência de tal modo intensa que altera a minha vida. Não foi por acaso que quando fiz a «Abelha na chuva» me separei da minha primeira mulher e me casei com a Maria João.

 

Tem 64 anos e sete longas-metragens. Não se sente frustrado?

Não. Pelo meio fiz outras coisas. Talvez seja um caso especial. Adoro colaborar nos filmes de colegas, como montador, por exemplo.

 

Não o incomoda a tecnicidade da função? Não se sente um técnico?

Não, sinto-me um músico. A montagem tem que ver com a música. E depois estive muitos anos na televisão. Esse é talvez um problema: talvez tenha passado demasiados anos na RTP.

 

Envaidece-se quando, ainda hoje, as pessoas falam do seu segundo canal?

Dá-me gosto lembrar que o Rolo Durte, pai do Pedro, chamava ao canal o Canal Lopes. Entristece-me que a televisão pública não tenha percebido o que isto significava: os canais têm de ter personalidade, imaginação, criação. Não podem ser entregues a gestões jornalísticas e tecnocráticas. Os canais têm que ter uma impressão digital.

 

Era mais feliz nessa altura, trabalhando todos os dias num projecto, apaixonado pelo projecto?

Há dois momentos felizes: um foi o «Cinéfilo», (ainda hoje tenho nostalgia de não ter uma revista semanal para fazer); e o Segundo Canal.

 

Imaginaria que me falasse de pelo menos um dos seus filmes, do prazer inexcedível de fazer um primeiro filme.

Eu era ainda mais novo que você, tinha a impunidade que se tem aos 20 e tal anos de achar que se é imortal. Estava casado, tinha filhos, não sabia muito bem como é que ia arranjar o dinheiro para viver, mas sabia que ia passar para lá disto. Não era sobreviver a isto. Sabia que era mais forte, que ia ganhar.

 

O seu tempo parece agora muito mais dilatado.

Sobre isso tenho alguma hesitação. Sinto que o tempo me escasseia.

 

Sente-se cansado?

Cansado não é o termo. Nesta estação da vida a gente percebe que afinal já não pode dizer, como Cocteau dizia, como se diz n’ «O Acossado» do Godard, «Devenir immortel et depuis mourir». Sei que vou morrer, que não me resta muito tempo. É sobre isso, provavelmente, que me vou debruçar nos meus filmes. Mesmo este que fiz agora para o Porto 2001, que se chama «Cinema» e que é uma reflexão sobre a morte, e, ao mesmo tempo, sobre a perenidade das imagens. As imagens, como as civilizações, são mortais. Mas renascem. Este jogo é talvez aquele que hoje mais me toca.

 

O jogo da morte.

O que quer dizer que estou a reflectir sobre a desaparição da minha própria imagem. A partir do «Fio do Horizonte» comecei a perceber isso. (pausa) Mas ao mesmo tempo admito a hipótese de deixar de lado o cinema, ter uma câmara muito pequenina e fazer um diário: «Hoje nasceram as primeiras flores do pessegueiro que está à porta da casa de minha mãe». Pode ser tão simples como isto. Gostaria que ficasse com um ar exaltante a imagem de ver nascer as flores do pessegueiro.

 

O pessegueiro existe realmente?

Existe, existe, e tenho que o apanhar.

 

Era o pessegueiro da sua infância, onde costumava sentar-se com a sua mãe?

Exactamente. Dovjenko, se quiser cinema, isto é Dovjenko. A árvore. A minha mãe. Hoje é dia 25 (Outubro), daqui a seis dias vamos festejar todos juntos os seus 91 anos. Penso que vai ser muito bonito. Mas penso sempre na história do pessegueiro, está lá desde que me lembro.

 

Do que se trata sempre é do retorno a elementos da infância, à sua simplicidade e inocência.

Se já fiz dois filmes sobre ela, o «Nós por cá todos bem» e o «Se Deus quiser»... A terra é a minha mãe.

 

A terra é a Várzea?

Não, a terra mesmo. Quando ela desaparecer, sei que vou ficar muito mais frágil. Não apenas porque é a minha mãe, mas porque a noção que tenho de sobrevivência e de relação com a terra vai ser diferente. O meu pai era mais que um marialva. Era um personagem camiliano: um senhor da terra, aristocrata rural, que tinha estudado em Coimbra. Era o senhor que escolheu a minha mãe para viver com ele; ela trabalhava nas terras. Isto não se passou assim há tantos anos... O meu pai tinha cavalos, tinha terras, e tinha as pessoas. O meu pai é como o Tomás Palma Bravo do «Delfim»; a Maria das Mercês é da mesma classe, só que ele mantém-na presa. A minha mãe não era propriamente uma reclusa do meu pai, era propriedade do meu pai. Quando ela decide fugir em direcção a Lisboa, ia fazer quatro anos...

 

Lembra-se da fuga?

Lembro-me muito bem. O meu avô negociava em azeite e tinha carroças com oleados pretos. Ficámos às seis da manhã a salvo, eu e a minha mãe, o meu pai a dormir, debaixo dos oleados pretos, e depois fomos a uma terra próxima apanhar uma camioneta para Lisboa. Lembro-me do ar destroçado e triste da minha mãe. E lembro-me que, a certa altura, os passageiros e o motorista pararam e foram buscar figos, era tempo dos figos, para nos dar. Porque é que não filmo isto? Porque há coisas que são infilmáveis. De maneira que estava a dizer ao Vasco, «Na prática, sou um erro sociológico e estatístico! Sociologicamente, não devia estar aqui!»

 

Teve sempre a noção de ser um outsider?

Tive. Classless. Não tenho uma classe própria. Não sou um excluído, isso não sou. Até condecorado sou!, que é uma coisa chata! Sociologicamente, devia estar na Várzea a cavar e a beber copos de vinho tinto. Não estou. Estatisticamente, e aquilo é ainda uma zona muito pobre, não teria a possibilidade de chegar onde cheguei. Ou seja, voltamos ao Alexandre O’Neill: «Estou onde não devia estar», Pluma Caprichosa.

 

O Vasco é o seu melhor amigo?

Desde há muitos anos. Alguns dos meus melhores amigos morreram. O Nuno Bragança morreu, o Alexandre O’Neill morreu, o Carlos de Oliveira morreu, o Zé Cardoso Pires morreu. Quando há pouco me falava da questão do tempo, o tempo também conta com isto, com aqueles que se foram embora. O Vasco é um amigo muito constante.

 

É com ele que almoça diariamente no Gambrinus?

Almoçamos pelo menos duas vezes por semana.

 

Porque é que almoça todos os dias no Gambrinus?

O Gambrinus faz parte da minha vida desde 1960. A Maria João tem enormes ciúmes do Gambrinus, diz «É a tua casinha» e no outro dia disse uma coisa espantosa: «Não é a tua casinha. O Gambrinus é o teu Casal Ventoso»! E é verdade, porque é tão caro como a droga do Casal Ventoso! E depois estabelecem-se relações de amizade. Você diz, «Tem estatuto e tem dinheiro», já tive ocasiões em que não tinha dinheiro e falava com a gerência e dizia: «Neste momento não tenho dinheiro. Vocês passam-me aí dinheiro?» E eles passavam. Além do mais, há um lado de confessionário no balcão. Podemos dizer coisas a empregados que conhecemos há 20/30 anos... É como em todos os bares, e sou um tipo de bares.

 

Estava a pensar que o dinheiro, sendo sempre um problema, nunca foi um problema. O dinheiro nunca o condicionou de uma forma definitiva.

Está absolutamente correcto. Tenho um relacionamento aristocrático com o dinheiro. Gasto de mais..., mas o dinheiro não é um valor para mim, de todo. Tenho necessidade dele, porque preciso de tomar o metro ou apanhar o táxi ou pagar o almoço. Mas não é uma questão que conforme a minha vida. Coisa que me tem criado, ao longo da vida, alguns problemas de ordem familiar. Porque eu tenho evidentemente obrigações. Mas não consigo levar o dinheiro a sério. Acho sempre que vai haver uma solução. Sou muito optimista. Tenho os meus amigos. Pode ser o Brito do balcão do Gambrinus, «Olha Brito estou atrapalhado. Posso trocar um cheque?», «Com certeza, senhor Fernando Lopes». Isto é, estamos em pleno cinema, não é?

 

Quem imita quem...

Claro! Ou posso ir ter com o João Soares Louro, ou com o Baptista Bastos, ou com não sei quem. Eles sabem que sou assim. Quando tenho dinheiro, é uma qualidade que tenho, sou igualmente generoso. Se quiser que resuma, e voltamos ao «Belarmino», é o puto que chega a Lisboa, vem fazer um combate de boxe e diz «Eu vou conquistar esta dama». Foi isso que fiz.

 

Sente-se um vencedor? Um sobrevivente?

Sinto-me um sobrevivente. Um vencedor, não. A menos que considere que todos os apaixonados são vencedores. Aquilo a que se chama um vencedor, não me interessa nada. O Belmiro de Azevedo é um vencedor. A Teresa Guilherme é uma vencedora.

 

Claro, mas o seu cânone não é esse.

Vencedor? Sinto-me vencedor só no sentido em que não tenho feito truques com a vida. Não faço truques à vida. Faço-lhe frente. A vida responde a isso. Bom, essa é uma ideia. A outra, e é dos últimos anos, é a de que no fundo, no fundo a vida é sonho. Dou por mim, no balcão do Gambrinus, a ver passar as pessoas nas Portas de Santo Antão e a pensar: «Estas pessoas não sabem que isto não é tão real como lhes parece. Eles são parte deste sonho»

 

Que é sonhado por si ou por cada um deles individualmente.

Pois. Se não, não fazia filmes. Ou não se escreviam livros ou música. É isto que eu gosto.

 

Vamos, por último, ao «Delfim», que vai começar a filmar na Primavera. Está excitado?

Estou. É muito excitante, sobretudo por causa do trabalho sobre a matéria original, que é o livro, e sobre uma segunda matéria, que é o que era Portugal no final dos anos 60, quando se percebia que uma coisa ia morrer e dar nascimento a outra. Fiz um primeiro trabalho de adaptação com uma colaboradora; era talvez excessivamente respeitoso em relação ao livro do Zé. Dei-me conta que aquilo precisava de ser retrabalhado e pedi ao Vasco, que era também grande amigo do Zé, para trabalhar comigo. Já vamos na terceira versão, já estou muito contente com esta última. É menos reverencial, sem, por outro lado, perder o que há de essencial no livro. O livro ou o argumento são o mapa. O que quero é o território. Acho que já tenho esse território mítico na minha cabeça.

 

Vai ficar nervoso? Quando tem uma equipa em suspenso, à espera das suas decisões, fica nervoso?

Não, e é curioso. Eu, que sou um ansioso, quando tenho o filme todo na minha cabeça sou regradíssimo. Sou o primeiro a chegar, não gasto película a mais, não faço horas extraordinárias a mais. A Maria João costuma dizer «Adoro quando estás a filmar porque és regradíssimo: bebes menos, fumas menos, comoves-te menos». O que é verdade, porque bebo demais, fumo demais, comovo-me demais, e isso não ajuda muito.

 

É um problema para si, beber demais, fumar demais, comover-se demais?

É mais um problema para os que vivem comigo. Não é para mim, o que é muito egoísta da minha parte. Há um desregramento, sem dúvida. A ansiedade, a própria questionação de mim próprio... O que é que estou aqui a fazer? Sempre se pôs com muita frequência, devo confessar. Eventualmente não teria feito os filmes que fiz se isto não se tivesse posto.

 

Os filmes são a resposta a essa pergunta? Porque o ilustram a si e o fazem encontrar-se consigo?

Claramente. Para mim, um filme é uma questão de vida ou de morte. Admito que se façam outras coisas: telefilmes, séries, publicidade, e não é nada de pejorativo. Tal como se faz o Fiat Uno. É preciso ganhar a vida, com certeza. Mas a implicação ontológica é diferente. Nesse sentido, é como o famoso plano d’ «A Palavra» do Dreyer, quando ela ressuscita por via do amor e da fé. O cinema para mim é isso. Sei que nunca chegarei lá. Há tempos estava numa discussão com o meu filho e disse-lhe «Eh pá, há o Dreyer, há o Murnau, há o Renoir, há o Ford, o Welles, o Godard, o Rossellini; e depois Fernando Lopes há pelo menos cem mil pelo mundo fora».

 

Sente-se apaziguado com a sua condição?

Apaziguado não é termo.

 

Conformado?

Não estou. Espero ainda um dia ser capaz de fazer um plano, um plano, e isso justifica toda uma vida no cinema, que seja tão sublime como esse plano do Dreyer. We never know... Pode haver um milagre e um dia estar nas condições perfeitas, como diria o Rilke, naquela hora e naquele momento mágico.

 

Qual é o seu lugar no cinema português?

Poderia morrer e ser recordado estritamente por um plano. O Belarmino a atravessar um túnel a caminho de um estádio. Mesmo que na «Abelha na Chuva» haja uma coisa que gostaria de guardar e que tem a ver com a ideia da paixão: é o movimento de câmara para a Zita Duarte na carruagem da senhora, a arranjar o cabelo, e a gente a ouvir «Ó Teresa, Teresa, tão cedo nos vão separar». Pelo menos estes dois planos fiz. Não estou a dizer que isto me salve a vida. Mas dá-me algum direito, enquanto ser vivente, a não ter passado sem deixar um recadozinho. Uma pequena nota musical! O que há de fabuloso no cinema é aquilo que magicamente passa para cá do ecrã. Ou seja, de como esse sonho nos vem habitar e de como o habitamos.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2004

Fernando Lopes morreu em Maio de 2012