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Anabela Mota Ribeiro

Mario Testino

19.05.13

Mario Testino nasceu no Peru há 45 anos. É um dos maiores fotógrafos de moda do mundo. Para a Vanity Fair fotografou uma esplendorosa Princesa Diana poucos meses antes de morrer, fotografou uma embevecida Madonna com a sua Lola recém nascida. Para todos os cantos do mundo concebeu uma sensualíssima campanha para a Gucci quando Tom Ford deu novo fôlego à casa. Depois desta entrevista é impossível esquecer o seu nome.

Confesso que fiquei mais ou menos histérica com a possibilidade de entrevistar Mario Testino, o grande Mario Testino, numa manhã de sexta feira. O seu nome era-me familiar há anos, porque há anos sou viciada em fichas técnicas. Pois, fichas técnicas que anunciam pomposamente quem tratou dos pés da Meg Ryan, das mãos da Michelle Pfeiffer, das sobrancelhas da Jodie Foster. (Cito estas três por terem aparecido juntas numa fotografia recente). É uma tara, como a de outros que sabem a quantidade de cavalos que correm num carro ou conhecem as múltiplas funções de um aparelho de vídeo.

Eu sabia que tinha sido o Mario Testino que tinha dado uma volta à vida da Eva Herzigova, lhe tinha pintado o cabelo e dado um tom menos voluptuoso à figura. Se não viram, não sabem o que perderem! Ela estava maravilhosa, vestida de talhante (palavra de honra!), com um avental levemente conspurcado de miudezas.

Também sabia que tinha sido ele que tinha descoberto uma menina que se chama Jacquetta e que, além de tornar a Gucci mais apetecível de há uns meses a esta parte, tem uns braços que lhe chegam quase até ao joelho e que essa tinha sido justamente uma característica apreciada. Evidentemente sabia das muito famosas imagens da Princesa Diana, quando ela já tinha posto em caixotes para instituições os trastes que vestia por alturas do casamento e resplandecia uma felicidade que algumas mulheres só podem exibir quando atiram o peso da monarquia para trás das costas. Conhecia-lhe bem o nome por causa da tal tara pelas fichas técnicas, e é tudo.

O que não podia imaginar é que me iam telefonar a perguntar se estava interessada em falar com sua excelência que por acaso passava férias na Serra da Malveira. Adivinhem qual foi a minha resposta.

Em Outubro, Mario virá novamente a Portugal apresentar uma exposição de fotografias de moda, integrada na Moda Lisboa. Mas até lá, talvez esta seja a única oportunidade de o ver e ler e saber tudo o que há para saber do mundo que ele habita.

A conversa decorreu numa varanda virada para o mar e o infinito. Ele apareceu com uns calções e uma camisa verde talvez para não me fazer esquecer que estava de férias. No princípio o telemóvel ainda tocou ou tremeu por duas ou três vezes. Passou-o então a uma amiga, a mesma que ao fim lhe disse que tinha falado a Kate Moss a dizer que estava ali ao lado, de férias em Ibiza.

 

 

Conhece «O Retrato de Dorian Gray», de Oscar Wilde?

Sim, claro. Adoro o livro. Li-o quando tinha vinte anos, antes de mergulhar no mundo da moda.

 

Quando se vive num mundo como o seu, é muito fácil ficar ofuscado pela beleza.

Para ele [Dorian} ficou uma obsessão. Para mim, a obsessão da beleza é a dos outros, não a minha. Talvez a minha alma tenha ficado jovem, como Dorian Gray. Tenho uma curiosidade muito grande, que me faz ficar jovem. Mas a beleza é tão subjectiva. No livro é apenas uma. No meu trabalho a beleza muda. Tenho de mudar com o tempo.

 

Acontece-lhe folhear trabalhos de há dez anos e achá-los horríveis?

Faço isso com trabalhos que têm dois anos, um ano! Vejo agora: fui fazer um trabalho à Holanda, faz um mês e meio, para a L’Uomo Vogue. Tinha deixado de fazer homens. Quando comecei fotografei muito os homens; era mais fácil. Também para eles é mais fácil. A pobre mulher tem de fazer muito mais para aparecer como a sociedade espera que apareça. A mulher não pode deixar os pêlos na perna, debaixo dos braços.

 

Agora exibe-se a penugem dos sovacos.

Agora.

 

Você gosta?

Sempre apreciei a liberdade da mulher. Estou contente que tenha um maior controle sobre si mesma. Tantas vezes estou nas festas e vejo mulheres incríveis com homens horríveis ao lado. No homem atende-se mais à personalidade. Sempre gostei de uma ambiguidade, tanto num como noutro. Nunca gostei de um homem muito masculino, porque não acredito; como não acredito na mulher muito feminina, ela tem de ter um lado forte. Não gosto de mulheres que para chegar a um jantar ou a uma festa precisam de um homem ao lado; gosto da que chega sozinha.

 

O seu ideal de beleza é andrógino?

Sim. O ser humano tem um lado frágil e um lado forte, gosto das pessoas que estão em contacto com os dois lados.

 

Isto tudo vinha a propósito do trabalho que foi fazer à Holanda.

Sou fotógrafo há 20 anos e consegui agora fazer uma coisa em que sou mais eu que nenhuma outra que fiz. Sou muito democrático. Trabalho com outras pessoas e gosto de ouvir a opinião delas. Mas o trabalho da Holanda foi uma coisa muito minha. Estou muito interessado nas pessoas em geral (há muita gente nas fotos). Isso faz-me olhar o trabalho de Janeiro e achá-lo menos forte, mais banal; sai menos de mim. É muito difícil fazer sair o que está dentro.

 

Essa é uma das suas mais fortes características enquanto fotógrafo. Quando se pensa nos seus trabalhos, pensa-se nas produções que fez com a Princesa Diana ou com a Madonna, que até fogem ao universo da moda, e que aparecem como nunca tinham aparecido.

Procuro muito isso, sim. Procuro isso também em mim. Penso no que tenho para dar. As pessoas perguntam-me, «O que vais fazer agora que chegaste aí?» O que tenho de fazer é ficar bom fotógrafo, verdadeiramente bom fotógrafo.

 

Tem essa humildade, a de olhar para as suas coisas e dizer que algumas não são boas?

Não é humildade, é um facto. Eu olho ao lado, olho o que as outras pessoas fazem. Como compro fotografia, vou sempre às galerias. Vejo coisas fantásticas que me fazem pensar que o meu trabalho é efémero. A fotografia de moda tem um lado de ver e deitar fora. As revistas são feitas assim. Uma revista para ser boa, é uma coisa que você olha e põe de lado; não é uma coisa que se olhe e se guarde. Isso é para um livro. Perguntam porque é que a Vogue América tem o sucesso que tem. Acho que é por isso. Gosto da realidade das coisas, não gosto das coisas que tentam ser o que não são. Sempre critiquei os fotógrafos que fazem muito arte na moda.

 

O que acha do trabalho do LaChapelle? Ele representa o feérico, o delírio encenado.

Não gosto, é muito falso. Acho que tem talento. Tenho uma foto dele, de quando começou, e acho-a linda. Parece-me que, porque as pessoas gostaram, foi completamente por ali. Não estou muito convencido com o computador.

 

Não manipula as imagens?

Não, nunca. Estou mais interessado na pessoa que no computador. Entrei nesse negócio porque gosto das pessoas: de falar com elas, de rir com elas, de passar o tempo com elas. Os meus amigos dizem que não sou um solitário; é verdade, estou sempre com pessoas.

 

O nascimento da Magnum impôs uma nova linguagem fotográfica. A definição do Cartier Bresson para a fotografia era «Instantes Decisivos»; quer dizer, a realidade é aquele momento e é imutável.

O lado mágico da fotografia é num milésimo de segundo poder capturar uma coisa que não se dá antes nem depois. Mais a fotografia é assim, mais eu gosto. Voltando ao LaChapelle, (e não gosto de criticar os fotógrafos, acho genial que tenha tido o sucesso que teve, há espaço para todos e para todos os gostos); quando trabalha em computador, a foto já não tem essa magia de uma coisa que só pode acontecer num instante. Qual é a magia das fotos de Diana? Essas fotos não poderiam ter sido feitas seis meses antes, porque ela não estava naquele momento, e não poderiam ter sido feitas seis meses depois porque entretanto morreu. Gosto muito da ideia do instante e gosto do lado que documenta uma época. Olhamos para os fotógrafos que trabalharam antes e isso faz-nos aprender o que aconteceu, quem eram as pessoas.

 

Como consegue perceber em que fase é que as pessoas estão, qual a sua essência e mostrá-lo numa fotografia?

Faço o trabalho e a vida de uma maneira puramente instintiva: sigo o que sinto. De cada vez que não segui o meu instinto foi mau. Todas as pessoas que trabalham para mim, encontrei-as em cidades diferentes, e muitas não tinham feito antes o trabalho que dei para elas. Senti que eram bons para aquilo, e até agora deu certíssimo. Para lhe dar um exemplo. Uma amiga minha arranjou uma casa em Cascais, disse «Vem para Portugal». Vim no mês de Abril para ver e passei as melhores férias que tive em muito tempo.

 

Conte lá então como é que veio parar a Portugal.

Graças a uma amiga de há 20 anos, a Vitória Fernandes. Ela dá conselhos aos criadores de moda, aos estilistas. É colombiana, mas conheço-a de Londres (moro em Londres faz 25 anos). Eu tinha vindo já uma vez. Fui para Óbidos, Sintra, Lisboa; adorei, mas não voltei. Talvez porque como turista você não vê realmente o que é o país. Entretanto conheci pessoas que a Marta Mantero (amiga) me apresentou; abriu-me tantas portas, fez-me ver tantas coisas, e tudo muda: saber onde jantar, a que praia ir, que pessoas ver, que museus e que galerias.

 

As suas amizades são de há 20 anos?

Os meus melhores amigos, que estão aqui comigo, são de há 25 anos. É uma outra coisa em que as pessoas se perdem da realidade. Quando o trabalho corre bem, entra-se em contacto com muitas estrelas, celebridades. Mas não para deixar os amigos e fazer novos amigos. Porque afinal não são amigos. No dia em que não estiver em cima, eles deixam-no. Já passei por isso.

 

No seu mundo tudo é efémero.

Muito efémero. É preciso ter consciência desta realidade. [pausa] Voltando ao que falava antes, tenho a noção da importância do verdadeiro, do real.

 

A realidade é imperfeita. Uma das vantagens da manipulação computorizada, é tornar uma imagem absolutamente perfeita. Não sente a tentação da perfeição?

A perfeição não existe. Por muito tempo, a perfeição era para mim uma causa; as minhas fotos eram perfeitas. No dia em que decidi que o imperfeito é muito melhor, apareceram muito mais vida e energia nas minhas fotos.

 

Que momento foi esse?

Comecei em 1980. Em 82, 83, 84, tive imenso sucesso como jovem fotógrafo. Quando passa de moda, se não está preparado para sair com outra coisa, ninguém o quer porque há outro que apresenta uma coisa nova. Passa por um período em que não tem muito trabalho, e a qualidade do que faz começa a descer, descer, descer. Até ao momento em que ou trabalha para as piores revistas ou não trabalha.

 

Como é que deu a volta à situação?

Para voltar a ter trabalho, fiz muito os nus. Queria trabalhar a pessoa. Ouvi muitos conselhos, «Como é possível que tu que tens um feeling tão forte com as pessoas, faças a pessoa tão perfeita que não tem mais o feeling dela?» Vi que o problema era esse: a pessoa não era interessante. Talvez o décor fosse lindo, (tenho gosto, posso ver e mostrar as coisas lindas do mundo). Punha a menina no quarto e era como uma outra mesa ou cadeira, era só uma decoração. Comecei a fazer nus para trabalhar a luz, para fazer a pessoa mais bonita.

 

Despida de artifícios, para perceber como ela é na essência?

Nessa época encontrei Carine Roitfeld, a produtora com quem trabalho mais. Ela viu os meus nus e disse, «Vai a essa revista, a Glamour, e mostra à directora os teus nus, não leves o trabalho de moda». Porque, como não tinha trabalho, passei a fazer trabalho de menos nível, onde tudo tinha menos nível: a modelo, a produtora.

 

Como foi o encontro com a Carine?

Fiz um trabalho para a Vogue Bambini, e pegámos na filha dela que era amiga de. Foi assim que nos conhecemos. A nossa base de trabalho é a mesma, o gosto complementa-se. Ela, como francesa, tem mais de vanguarda; eu, como peruano, tenho mais de clássico. Foi com ela que comecei a fazer as fotos onde as pessoas são o mais importante.

 

A viragem aconteceu cerca dos anos 90?

Julgo que sim. Em 88, 89 não tinha trabalho. É impressionante como se pode subir e depois descer. Para mim foi muito bom, vi a realidade do meu mundo, que é um business; tem amizade, mas não pode ser misturada com o business. Podes ser um amor de pessoa mas se as fotos não são boas...

 

Ajuda trabalhar com quem se gosta, ou não?

Adoro as pessoas com quem trabalho, mas se não tivessem o talento que têm, não poderia trabalhar com elas. Percebi que a única maneira de uma imagem funcionar é fazer o que gosto. Só posso defender uma imagem com a qual me sinto bem. Por exemplo, não gosto de pegar num modelo se ainda não o vi, porque a personalidade é uma coisa muito importante. É também a minha vida, tenho de passar o dia com ele. Os dias são dez horas de trabalho, e podem ser as últimas dez horas da minha vida. Prefiro estar sempre com pessoas de que gosto e que me vão dar algo.

 

É mesmo preciso que as pessoas conheçam o melhor e o pior para perceberem o real valor das coisas.

É verdade. Fui para Londres como estudante com o meu pai a pagar-me tudo.

 

A sua família era confortável financeiramente?

Meu pai começou a trabalhar aos 15 anos. Trabalhou como um louco para fazer dinheiro. É um homem que ganhou bem a vida e que, em vez de gastar com ele, gastou com os filhos.

 

São seis filhos?

Cinco, morreu um entretanto. Tive a sorte de ter uma educação como poucas pessoas têm: estudar na melhor escola do Peru, viajar muito, ter poder aquisitivo. E tive a sorte de ter uns pais com ideias muito claras que não viviam num mundo de coquetéis. Sempre ouvi, «Trabalhei muito para te dar isto». Mas aos 17 anos só pensava nas festas, em gastar. Durante muitos anos não fiz nada. Meu pai disse-me que enquanto estivesse na universidade me pagava tudo. Então fiz dois anos de Economia, um ano de Direito, Relações Internacionais na Califórnia, e a seguir Londres. Fui para Economia porque era bom nos números, Direito pensando que ia entrar no corpo diplomático. Mas no Peru o governo era militar, um desastre, e fui para os Estados Unidos pensando que depois trabalharia nas Nações Unidas.

 

Quando jovem, tinha a consciência de viver num país cujo governo era militar e que funcionava como um espartilho na vida das pessoas?

Viajei desde muito cedo. Vinha de Nova Iorque e olhava para o Peru como se fosse uma província. Comprava roupa na América e no Peru as pessoas gritavam-me na rua. O Peru é muito clássico. Mudou porque tem televisão. As pessoas vêem hoje no Cabo o que antes tinham de viajar para ver. Ao mesmo tempo é muito convencional, gostam todos de vestir o mesmo. Lembro-me de na escola nos dizerem que havia uma festa e que toda a gente tinha de vestir um fato azul ou cinzento. Eu cheguei com um rosa e bordeaux. Perguntava-me porque me havia de conformar se já conhecia mais. Não podia fechar os olhos ao que a vida me tinha dado.

 

No Peru os conceitos de masculinidade e feminilidade são muito estanques. Há pouco dizia que é a androginia que o seduz.

Já nessa época era um pouco difícil. Comprava roupa nas lojas para menina. Não comprava vestidos, comprava calças. As mesmas calças, o mesmo feitio: para mulher faziam com muitas flores, para homem de uma só côr. Queria com muitas flores. Sempre gostei de chocar, chocar a sociedade. Percebia que era diferente dos outros jovens, que tinham de decidir muito cedo o que haviam de fazer com a vida.

 

Os seus irmãos também preferiam calças às flores?

Os meus irmãos são todos especiais. Não são tão extremados como eu, são mais convencionais. Não sei porque sou assim. Desde muito jovem tive gosto pela roupa.

 

Por causa da sua mãe?

Por causa da minha mãe. As pessoas vestiam-se muito bem. Quando vejo as fotos da minha mãe, das minhas tias, são como uma foto de moda. Vestidos perfeitos, que traziam de fora ou mandavam fazer no Peru. Tenho essa formação da imagem da minha mãe. Quando tinha cinco anos ouvia-a dizer, «É horrível como pôs estes sapatos com esta saia!». Há uma educação visual que se vai formando e que tive dela.

 

Significa que repara em tudo o que as pessoas usam? Ainda faz isso?

Eu olho tudo, tudo. Adoro olhar, ser inspirado. É também assim que apanho ideias. Eu como, vou digerir e depois vai sair numa outra coisa. É interessante porque depois não me lembro exactamente do que vi. Mas prefiro não me lembrar porque não gosto de copiar nada. 

 

Voltando à sua mãe.

Ela deu-me essa educação visual e eles juntos deram-me a liberdade de fazer o que queria. Para ir de fato rosa à festa tanta força tinha de ter eu para o pôr, como os meus pais para não pensarem no que os outros diziam. Depois de estar em Londres há quatro anos, o meu pai disse-me «Se não estudas, tens de trabalhar; não posso continuar a enviar-te dinheiro todos os meses». Era muito caro e o Peru teve uma desvalorização de 2000% ano, vários anos. Deu-me três meses para encontrar trabalho.

 

Fez o quê?

Primeiro fui empregado de mesa num restaurante. Depois comecei a fazer fotos porque pensei que tinha de encontrar um trabalho para a vida. Como gostava de roupa, pensei «Vou fazer roupa». O meu pai, que foi criticado por me ter dado tanto dinheiro para comprar roupa e fazer festas, fez sem saber o seu maior investimento. Porque foi disso que fiz a minha carreira. É interessante, não é?

 

É, e é tremendamente irónico. Mas porquê a fotografia?

Foi uma necessidade.

 

Não pensou ser estilista, ou mesmo modelo? Tem muito bom ar.

Pensei em tudo. Modelo não, porque não havia beleza em mim. Quando me vejo ao lado dos modelos, penso, «Que horror, não olhar para o espelho!» Ser modelo não tem muito futuro, é uma coisa passageira para alguém de 18, 19, 20, 22, 23 anos. Pensei ser estilista, é verdade. Mas não sei nem desenhar nem coser. Não sei fazer nada com as mãos. Tenho um bloqueio mental em relação às mãos.

 

É extraordinário num fotógrafo, mesmo que a sua sensibilidade seja sobretudo visual.

As ideias são a minha força. E tenho um gosto. A questão não é ter bom ou mau gosto, é ter um gosto. As pessoas que surpreendem mais não têm um gosto convencional, e muitas vezes, no começo, não é um bom gosto.

 

No princípio impera a excentricidade.

Há um processo: alguém que está a começar (um fotógrafo, um estilista), tem de fazer algo que vá chocar.

 

Qual foi a sua primeira imagem que chamou atenção sobre si?

Hoje vemos mais pessoas latinas no business. Na minha altura, em Londres, uma visão peruana era diferente (no gosto, na cor). As revistas pediam-me para pôr as meninas a rir. A minha resposta foi um riso ridículo. Fotografei durante um ano todas as pessoas com o mesmo rosto, rindo, fazendo o ridículo, não rindo de felicidade. Também fiz fotos muito estáticas, onde tudo era muito gráfico. Foi o meu primeiro sucesso e durou dois, três anos. Quando passou de moda, não estava preparado com outras coisas: não tinha qualidade, porque não sou muito técnico. Aprendi que preciso de ter uma pessoa que faz bem isso (técnica). Aprendi que preciso de ter o melhor maquilhador (sei o que gosto mas não sei fazer). Com a luz é a mesma coisa.

 

Trabalhava sozinho ou coordenava uma equipa?

No princípio fiz tudo sozinho. Depois tive assistentes.

 

A luz é mesmo fundamental, não é?

Sou louco da luz. Enquanto o assistente está fazendo a luz, estou trabalhando com o maquilhador, com o cabeleireiro. No primeiro dia não faço uma foto. Com as modelos que já conheço, trabalho muito o look, o que vou dar para elas, qual é a pessoa que vou fazer. Gosto de criar caracteres para elas. Um pouco como no cinema onde se dá uma personalidade ao actor.

 

O seu papel é o de um realizador que põe todas as partes a funcionarem?

Sim.

 

Que influência tem o cinema em si?

A minha maior influência é o cinema italiano. Visconti, Antonioni, De Sicca. Talvez seja o meu lado clássico. Pasolini, por exemplo, tem coisas muito loucas mas ao mesmo tempo é de um classicismo exterior muito forte. Há pouco falámos no LaChapelle; ele trabalha o décor, eu trabalho a pessoa. Mais interessante que ter uma loucura ao redor da pessoa, é ver que a pessoa é louca. O cinema italiano tem muito isso, é o que se parece mais a mim. Venho de uma sociedade conservadora, mas a minha cabeça não é nada conservadora.

 

Voltemos ao arranque da sua carreira nos anos 90.

Os nus fizeram-me trabalhar a luz. Comecei a trabalhar com pessoas de um outro nível. Todas as pessoas dão conselhos, ou ouve ou não ouve. Uma falou-me, «Quando fotografas a Christy Turlington ela vai dar-te o que deu ontem ao Peter Lindbergh. Tens de fazer com que essa foto seja tua e de nenhum outro». Outro falou-me, «Se fazes dez páginas de uma modelo, o rosto tem de ser diferente em cada página». Outro ainda, «Tens de aprender a fazer a luz porque vai abrir-te muitas portas». (Durante 15 anos só tinha feito luz natural!) Passei seis meses sem gostar do que fazia; mas depois de experimentar meio ano, encontrei uma porta que me possibilitava fazer qualquer luz.

 

Foi nessa altura que trouxe o seu irmão para trabalhar consigo?

Ele era agente de barcos, e não gostava do seu trabalho. Disse-lhe, «Vendes espaço para barcos, é a mesma coisa que vender fotógrafos». Pu-lo, para aprender, numa agência de modelos, depois numa agência de fotógrafos e por fim passou a ser o meu agente. Alugámos um escritório pequenino numa agência de modelos, que acho que era o sítio onde eles colocavam o material de limpeza. Existimos aí. Foi muito bom trazê-lo porque tem um olhar exterior. É importante porque estou rodeado de pessoas com um gosto muito sofisticado, que sai da realidade das pessoas normais. E comecei a crescer, crescer, crescer.

 

Publicar na Vogue ou na Vanity Fair é prestigiante, é uma montra do trabalho desenvolvido. Mas é na publicidade, nas grandes campanhas, que se ganha verdadeiramente dinheiro. Não é assim?

A América é o único país onde se ganha um bom dinheiro nas revistas. É um negócio gigantesco: A Vogue América vende 1,3 milhão, a Vogue France vende 80 mil. Os europeus não têm dinheiro, mas têm muita liberdade. Com os americanos é o inverso. É verdade que essas revistas são o nosso portfólio. Mostram o que fazemos, o nosso gosto. Se vejo uma menina na rua e a ponho numa revista, isso mostra o que estamos fazendo, o que estamos gostando, onde estamos indo. É assim que conquistamos as campanhas e é nas campanhas que fazemos dinheiro. Por isso nunca deixei de fazer editoriais, mesmo quando tinha todas as campanhas. Penso sempre a longo prazo. Na moda muito facilmente te substituem, toda a gente é substituível.

 

Descobriu há uns meses a nova menina da Gucci, a Jacquetta. O normal é que seja o Mário a encontrar os modelos?

Escolho tudo! Foi difícil, uma luta de anos, escolher as modelos que gosto, fazer as fotos que gosto.

 

Quando fez as campanhas da Calvin Klein, a Kate Moss e a Christy Turlington eram marcas da casa.

São meninas de que gosto, trabalhei muito com elas. Várias meninas dizem que as fotos que faço delas são as mais bonitas.

 

A Kate Moss diz que é o melhor.

Ela fala sempre isso. Pu-la em todas as revistas. Crio um mercado para elas também. Trouxe a Eva Herzigova para a Calvin Klein. Quando falei no nome dela pensaram que estava louco; mas quando trouxe as fotografias, disseram que era uma nova menina.

 

Que é que lhe fez, mandou-a perder kg e pintar o cabelo de escuro?

Não era gorda, quando a conheci era perfeita. Sempre a puseram assim (evidenciando o peito), porque é o que o mundo gosta. Mas ela não é assim; anda de t-shirt, sem o wonderbra em baixo. Falei com a minha equipa e concluímos que o problema era a cor do cabelo, esse louro falso. Fi-la voltar à cor dela, cortei um pouco, e disse-lhe, «Não quero mais esse look glamour, quero fazer de ti uma nova menina». A Anna Wintour (directora da Vogue americana) diz que encontrei muitas delas. Cada semana recebo 200, 300 compositos de modelos de todo o mundo, do Brasil à Suécia, de Londres a Milão.

 

Tem paciência para esses 200, 300 ou tem alguém que lhe faz uma triagem?

Eu faço. É muito trabalhoso, mas é o meu gosto, o meu olhar. Tantas vezes encontro pessoas, mostro à minha volta e dizem, «Ah não, é ruim». Ela chega, faço o cabelo e todos, «Uau!». É um instinto. Sou muito receptivo ao que está a acontecer. Faz um ano e meio vi que todas as meninas que saíam tinham cabelo longo e o corpo com formas. Fui dos primeiros a pegar nelas para as revistas. Normalmente faço as coisas grandes, entre 16 a 20 páginas. As directoras têm medo de dar 16 páginas a uma menina que nunca ninguém viu. Agora têm mais confiança, creditam que tenho olho para o que vai vir.

 

Tem medo que as coisas voltem a piorar?

Ah sim, sempre. Nunca dou nada por seguro.

 

É pouco provável que aconteça.

É pouco provável se trabalhar dez horas por dia como faço agora. Se começar a trabalhar menos, meter-me nas festas e pensar «Eu sou o Mário Testino», muito facilmente pode ser. Já vi muita gente desaparecer. Quando comecei havia pelo menos 30 fotógrafos da minha geração; não tem ninguém hoje. 

 

O segredo é trabalhar?

Trabalho como um louco, das oito da manhã às dez da noite todos os dias, sábado incluído.

 

O método e a disciplina são fundamentais. Mas curiosamente uma das imagens mais fortes que temos do mundo da moda é o da mundaneidade, com o champanhe e as linhas de coca.

Se há pessoas que levam essa vida, são os jovens. Os mais velhos não conseguem ter essa vida e trabalhar. Toda a gente critica as modelos por causa das drogas, mas os jovens todos consomem drogas. É normal que uma rapariga de 20 anos se queira divertir. A maior parte das meninas de 18, 20 anos não estão trabalhando. Estão na universidade ou em casa. É muito duro o trabalho de uma modelo, não é o que as pessoas pensam. Têm 20 pessoas que lhe estão tocando todo o dia, todo o momento. Tem de ter uma paciência infindável! O Calvin Klein? Gosta de festas, mas trabalha! Não dá para não trabalhar e controlar aquele império.

 

O Mario Testino é uma empresa.

Tem muitas pessoas que dependem do que ganho para ganharem o seu dinheiro. Tenho um escritório com oito pessoas fixas, que contrata depois muitas outras.

 

Está rico?

Eu? Não sei o que quer dizer rico. Tenho amigos riquíssimos, industriais de vários pontos do mundo; se me comparar com eles, sou pobre. Não me vejo rico, vejo-me confortável. Já passei por períodos em que não tinham nem para comer nem para apanhar um autocarro. Hoje posso apanhar o Concorde para ir aos Estados Unidos trabalhar. Mas posso não ter nada amanhã.

 

O facto de ser uma pessoa tão influente, deve fazer com que esteja sempre muita gente à sua volta a bajulá-lo, a mostrar-se. Acontece-lhe permanentemente?

É normal, não? Sempre achei que a fama não era para a pessoa famosa, era para a pessoa que olha a famosa. Não sei que ideias têm de mim, mas tudo o que faço é trabalhar. O maior luxo é a liberdade de decidir. Decidir o que faço, quando faço, com quem faço. Esse é o luxo; não é o dinheiro. Não tenho tempo para gastar o dinheiro!

 

Nesta fase ainda corre atrás de campanhas?

Os agentes fazem isso, os fotógrafos estão preocupados em fazer a foto. Há uma competição enorme. O mundo ficou muito pequeno. Os fotógrafos franceses não vão ter os trabalhos franceses. Os trabalhos franceses vão para todo o mundo. Um cliente italiano escolhe um fotógrafo de Londres, de Nova Iorque, de qualquer lugar.

 

Como é a sua relação com os outros grandes fotógrafos de moda, o Demarchelier, o Meisel? Tem amigos fotógrafos?

Amigos, amigos, é verdade que não. Cada um cria o seu núcleo, o seu mundo. Tenho muitos amigos na área da decoração, no cinema. 

 

Tem uma fotografia preferida?

Estou louco com as que fiz agora em Amesterdão! Vou fazer uma exposição delas em Londres, no mês de Setembro.

 

Que vai ser a exposição de Lisboa?

Vou trazer o meu trabalho de moda. Não gosto quando a personalidade do fotógrafo é mais importante que o trabalho dele, tento controlar muito isso. As pessoas dizem Mário Testino, Mário Testino, mas não sabem porque é que o nome é conhecido. Acho importante que conheçam o nome com o trabalho, e não pensem que sou um social (di-lo com acento americano) que sai para as festas.

 

Onde tem a sua casa?

Em Londres, que é a minha base. E tenho uma outra em Paris, onde fico quando estou a trabalhar. Na América fico sempre no mesmo hotel, no mesmo quarto.

 

Que tendências julga que vão acompanhar o virar do milénio?

Voltamos a um glamour, a uma celebração da vida. Fiz agora 24 páginas para uma revista sobre o sorriso, uma coisa positiva. Up!

 

Quem são os seus fotografados predilectos?

Adoro a Kate Moss, nas modelos é a minha favorita. E adorei a Princesa Diana. Foi a Christies que me pediu para a fotografar para a Vanity Fair, para promover o leilão de vestidos. Numa mulher linda, rica, que tem tudo, o seu lado humano era extraordinário. Tenho que dizer que adoro a Madonna. Gosto de pessoas que trabalham, trabalham, trabalham; como ela.

 

 

Publicado originalmente no Diário de Notícias 

Londres

18.05.13

Fortnum and Mason

Tem a fama de ser o melhor armazém de comida do mundo. Tem 300 anos de história que o comprovam. Que comida? Geleia de pétalas de rosa. Sopa de tartaruga. Caviar Beluga. Cogumelos raros. Manteiga de cognac para acompanhar o Christmas Pudding. Trufas de champanhe. Queijos franceses e italianos.

O Fortnum and Mason é um armazém vitoriano a dois passos da frenética estação de metro de Piccadilly. Os empregados abrem-nos a porta, as passadeiras são vermelhas, o ambiente é selecto. A variedade é imensa. No piso de entrada encontram-se chás e cafés, chocolates e compotas, biscoitos e bolos. No andar de baixo estão a fruta, vinhos de todo o mundo, os chutneys, os peixes fumados, as mostardas. Em cima, serve-se o five o-clock tea com requinte: começa-se por uma flute de champanhe, escolhe-se o chá, e faz-se a degustação de diferentes sandwiches, tarteletes e bombons. O piano acompanha, discreto, ao fundo. Custa, em média, 40 libras, mas é uma experiência inesquecível!

Stella MacCartney toma chá no Fortnum Mason, mas prefere o restaurante St. James (fica uns degraus acima da zona das comidas). A relação dos londrinos com o armazém é antiga e fiel. Churchill comprava aqui o champanhe, Dickens gostava de empadas e carnes frias, Eduardo VIII preferia as compotas. Qual é a nossa preferida? O mais difícil é escolher…

www.fortnumandmason.com

 

Jo Malone

Um perfume pode não ser, apenas, um perfume. Os Jo Malone funcionam como uma peça de roupa essencial, um sofá preferido no canto da sala – algo de que não se prescinde no dia a dia. “Trata-se de envolver o corpo ou a casa com uma fragrância que acompanha os humores, as fantasias, a individualidade de quem a habita. Há um cheiro que nos acompanha e que persiste. Nas memórias, nas gavetas, nos recantos da casa. As velas potenciam essa singularidade. Funcionam como a música que se ouve ao fundo de um jantar. A sua presença não se impõe, mas o ambiente não seria o mesmo sem ela” – pode ler-se nos prospectos da marca.

As embalagens são sóbrias. As fragrâncias são intensas. As combinações improváveis. A inspiração pode ser um vestido de seda vermelho e o carácter intrigante da romã! – que resultou no Pomegranate Noir.

Mas o mais surpreendente em Jo Malone é a sugestão de combinar dois perfumes, ou duas velas, em permanência. Pretende-se ir ao encontro da personalidade do cliente, do seu cheiro corporal, do seu ritmo diário, do seu gosto. É uma adaptação que cada pessoa pode fazer, com a ajuda das funcionárias da loja, além das sugestões-base. Por exemplo: para um resultado mais fresco, para o dia, a sugestão é misturar o Pomegranate Noir com o Orange Blossom; para um efeito mais quente, de noite, propõe-se uma mistura com Blue Agava & Cacao.   

A casa-mãe fica em Mayfair. Vende-se em todos os grandes armazéns.

www.jomalone.co.uk

 

Borough market

Onde é que o londrino faz as compras da semana? No Borough Market. Um mercado que é, na verdade, uma amostra de mundo. Secular, democrático, cosmopolita. O dia forte é o sábado.

Fica junto à London Bridge, na zona este, mas há quem atravesse a cidade para aí comprar os legumes mais frescos, carne de avestruz, queijos holandeses, sal francês, presunto e carnes espanholas, ameixas de Elvas, mel de todo o lado, raclette, cidra da Normandia, cafés de certa parte de África, massa fresca italiana, pães com azeitonas, alperces, sementes, de diferentes cereais, sabões artesanais, bolos de chocolate como a nossa avó inglesa – se a tivéssemos – faria.

É possível provar quase tudo, porque oferecem pequenos cubos disto e daquilo. Há pequenos restaurantes, há pequenos bares, há filas para hambúrgueres, há smothies deliciosos. Muita gente aproveita para tomar o pequeno-almoço ou almoçar.

Há quem atravesse a cidade simplesmente para ver o espectáculo. Famílias inteiras que vêm ao mercado, casais adeptos da comida biológica, mulheres que parecem tias solteironas; mas, sobretudo, londrinos. Orientais, africanos bem sucedidos, europeus com diferentes cores de cabelo. Ou seja, gente do mundo todo que vive na mais fervilhante capital europeia e exibe o orgulho de fazer parte desta urbe. São os londoners. Não vão a Portobello Road: este mercado fica para os turistas! O Borough continua a ser pertença de quem vive na cidade.  

www.boroughmarket.org.uk

 

Tate Modern

É um monumento à modernidade. É um dos sítios mais estimulantes do planeta. Porque nos interpela. Porque nos mostra o menos óbvio, e o melhor. Está para Londres como o Pompidou está para Paris e o MoMA está para Nova Iorque.

A Tate Modern não é só a extensão da Tate Britain (uma instituição no panorama museológico inglês) para a arte moderna e contemporânea. É um espaço com identidade própria e uma intensa agenda cultural. O edifício começou por ser uma central eléctrica nas margens do Tamisa; os arquitectos suíços Herzog e de Meuron reconverteram-no em museu em 2000.

A colecção permanente está subdividida em quatro núcleos temáticos e a entrada é gratuita; é possível ver obras de Picasso, Rothko, Louise Bourgeois ou Francis Bacon. As exposições temporárias são dedicadas a artistas consagrados como Hopper ou Frida kahlo ou a artistas menos conhecidos do grande público – como o brasileiro Oiticica ou o espanhol Juan Muñoz; as entradas são pagas, neste caso.

O espaço central, a Turbine Hall, é ocupada por uma instalação mais ou menos inter-activa. Uma das intervenções mais famosas foi um escorrega gigante! A livraria do museu é preciosa e abrange áreas como Artes Plásticas, Fotografia, Cinema, Filosofia, Sociologia. A oferta é criteriosa, irrepreensível. Os cafés são espaços de convívio e intervenção artística. Ao fim de semana, há quem venha aqui como quem vai ao parque.

A direcção artística da Tate Modern é do espanhol Vicente Todolì, que transitou do Museu de Serralves directamente para aqui.

www.tate.org.uk/modern

 

Hampstead

É um bairro e um parque na zona norte de Londres, pouco acima de Camden. É lá que vivem intelectuais como a prémio Nobel da Literatura Doris Lessing ou a pintora portuguesa Paula Rego.

Tem uma rua central, a partir da qual se erguem pequenas casas e se vive num ambiente de aldeia. Há uma mercearia fina que ganha consecutivamente o prémio de melhor do ano. Há uma extensão da famosa livraria Daunt (onde os livros são arrumados por países; por exemplo, na secção Portugal encontra-se Saramago, Fernando Pessoa, guias turísticos, livros de fotografia e de arte portuguesa). Há cafés de esquina onde é possível encontrar a actriz Helena Bonham Carter. Há lojas como a Gap para nos lembrar que a globalização existe. De outro modo, não acreditaríamos que estamos dentro de uma cidade onde vivem dez milhões de pessoas, a seis km do centro.

O parque, o Heath, é maior que todos os parques de Londres. Ao fim de semana fica cheio. Há quem corra, há quem dê caminhadas, há quem alimente os esquilos, há quem dê braçadas no lago quando este não está gelado, há quem brinque com os filhos, há quem passeie carrinhos com os filhos dos outros. No meio deste parque imenso, naquela que era a casa da família proprietária, funciona um restaurante. Com buffet, a preços acessíveis.

Não muito longe, há uma colina da qual se pode ver a cidade: o Parliament Hill. Dali, parecem estar ao alcance da mão o Big Ben, a Roda Gigante, a poluição.

 

Harvey Nichols/ Liberty/ Selfridges

São os três grandes armazéns onde fazem compras todas as pessoas com estilo (Nota: o Harrods é a meca de milionárias sauditas e russas… As londrinas não compram os jeans Acne ou 7 For All Mankind no Harrods).

O Harvey Nicks – como é chamado – fica a dois passos do Harrods e faz esquina com a exclusivíssima Sloan Street (onde a Prada ou a Chanel têm loja). No piso térreo, como todos os outros armazéns, tem perfumes, cosmética, malas e acessórios. A selecção Balenciaga é poderosa… Nos pisos superiores há primeiras e segundas linhas: Marc Jacobs num piso, Marc by MJ no outro. Há criadores ingleses como Joseph ou Nicole Farhi, francesas como Vanessa Bruno ou Sonia Rykiel. Há um piso para os jeans. Há um piso com roupa para a casa. Há um restaurante debaixo de uma cúpula envidraçada no último piso. A mercearia fina é excelente.

O Liberty fica junto a Oxford Circus, num edifício lindíssimo que vale, só por si, uma visita. A secção de perfumes, velas e cremes é imbatível. Há uma pequena secção com peças vintage onde se encontram Kelly’s da Hermès em estado impecável. A secção Dries van Noten é talvez a melhor da cidade. O bar, recuperado o ano passado, é ideal para uma pausa ao fim da tarde; servem ostras e champanhe. A florista, à entrada, é romântica.

O Selfridges fica numa das pontas de Oxford Street. A selecção de sapatos é de cortar a respiração; ocupa um piso inteiro e vai das jóias raras de Louboutin às criações futuristas da Marni.

Talvez seja o melhor armazém; é, pelo menos, o preferido de modelos e pessoas da moda. Porque tem tudo e a selecção é fabulosa. De consagrados e emergentes. Se quiser encontrar um criador pouco conhecido, mas com dez peças que valem a pena, é provável que este seja o sítio certo. Oferece atendimento personalizado.

www.harveynichols.com

www.liberty.co.uk

www.selfridges.com

 

Lemon Curd

Uma compota sumptuosa, feita à base de limão e manteiga. Cremosa, talvez a melhor compota do mundo. Experimente em tostas neutras – para melhor sentir o sabor. Também existe na variante Lime Curd – ou seja, com lima. A melhor, consensualmente, é a do Fortnum and Mason. Mas encontram-se em qualquer supermercado.

 

Agent Provocateur

Lingerie provocantíssima, pecaminosa, irresistível. Sedas que apetece tocar, rendas que sugerem mais do que revelam, laços para atar e desatar. Cuequinhas, soutiens, ligueiros, corpetes, camisas de noite, mascarilhas... Kate Moss emprestava o corpo à marca: era a incarnação da lascívia. Lojas nos bairros mais posh da cidade e nos grandes armazéns.

www.agentprovocateur.com

  

Mulberry

As malas mais copiadas e desejadas pelas fachion victims são as Chloé e as Marc Jacobs. As malas Mulberry não. São sinal de outro estilo. Nunca passam de moda. São sólidas, chiques, de qualidade superior. São um pouco como os ingleses, quando os ingleses são upper-class.

Custam em média 500 libras e duram uma vida. Vendem-se nos grandes armazéns ou nas lojas da marca. A loja principal fica na rua do Harrods; é requintada, tem artigos em pele para homens e mulheres.  

www.mulberry.com

 

Starbucks versus Nero

É uma questão essencial para os londrinos: é-se do Starbucks ou do Caffè Nero? Há ainda o Costa. Mas a grande disputa é entre os dois primeiros. Cadeias poderosíssimas, instalaram-se em força na cidade. O Starbucks tem uma presença hegemónica em todos os quarteirões. O Nero tem a fama de ter o melhor expresso a oeste de Milão. Há quem se instale nas mesas para ler o jornal ou tomar pequeno-almoço. Mas o habitual é pedir um capuccino e bebê-lo pela rua, no metro, no parque. Com leite magro ou meio-gordo, com cacau ou com canela, pequeno, médio ou grande. Com copo duplo ou cinta, para não queimar os dedos.    

www.caffenero.com

www.starbucks.com

 

Como circular?

O táxi inglês, negro, iconográfico, é uma experiência charmosa que pode arruinar o porta-moedas. A maneira mais prática de circular em Londres é o metro. A rede é eficiente, rápida, e chega a todo o lado. Há autocarros de dois andares a circular por todo o lado – outra experiência. Mas no centro da cidade o trânsito é caótico e é normal ficar parado numa fila. Se ficar muitos dias, compre um Oyster Card – o passe. Senão, há passes diários. Na escada rolante, ceda a esquerda a quem está com pressa.  

 

Onde comer?

O Ping Pong é uma cadeia de restaurantes que servem comida oriental. Encontra-os nos bairros mais frequentados – como Notting Hill ou Oxford Street. Toda a comida é confeccionada no vapor e pode ser classificada como asiática de fusão. Os cocktails são inventivos, alcoólicos e não alcoólicos. Servem um chá com a flor de jasmim: o espectáculo da flor a abrir é encantador. Muito saboroso e nada caro, atendendo aos valores médios praticados em Londres. Cerca de 25 euros por pessoa.

O Food for Thought é o mais carismático vegetariano de Londres. Funciona numa cave da Neal Street, (número 31), junto a Covent Garden. O espaço é exíguo, por isso é normal que as pessoas se sentem nas mesas umas das outras – e não entabulem conversa. Não há serviço de mesa. É um espaço para comer, não é um espaço para estar. As doses são abundantes. Todos os dias há pão com alecrim, paprika ou queijo. Há scones salgados. À sobremesa, há um crumble de banana, morango e requeijão que não se esquece… Baratíssimo.

www.pingpongdimsum.com

 

Onde ficar?

O mais problemático em Londres é o alojamento. Pedem por qualquer hotelzeco uma fortuna. Consideram ser um hotel uma espelunca que em Portugal não passaria da categoria de pensão. Mas não há nada a fazer. Prepare-se para gastar aqui uma parte substancial do orçamento. Os bons hotéis – e há-os fabulosos – podem custar tanto, por dia, como a totalidade da viagem. Se tiver amigos, aproveite e peça para ficar no sofá ou num colchão – nesse caso, não se esqueça de levar os lençóis e toalhas, que é o que os londrinos fazem. Tente organizar-se com a agência de viagens e reserve com antecedência. A cidade está sempre cheia. Experimente modalidades alternativas, como a www.homeholidays.com.

 

 

Publicado originalmente na Máxima

D. Manuel Clemente (2012)

17.05.13

Portugal, se fosses só três sílabas, escreveu Alexandre O’Neill, olhando o país com raiva, zanga e ternura. Portugal, rectângulo com que temos uma relação passional, à beira do precipício, na iminência de soçobrar, e agora? Portugal, eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir como se tivesse
oitocentos,
queixou-se o poeta Jorge Sousa Braga. Portugal, país de velhos do Restelo, de egrégios avós, do Zé Povinho, de ilustre gente lusitana. O bispo do Porto, D. Manuel Clemente, acredita no futuro de Portugal.

 

Um dos seus títulos e objecto de reflexão: Portugal e os Portugueses. O senhor tem 63 anos, Portugal mudou substancialmente desde o tempo em que aprendeu a ser português. O que é que destacaria como gritantes diferenças?

Na minha infância, e mesmo na juventude, Portugal era mais visto de dentro, pelos critérios internos, e agora é muito mais visto de fora. Tudo o que aprendíamos, desde a história de Portugal, aos reis cujos nomes decorávamos, os rios e os afluentes, e o então chamado Ultramar Português, era de dentro. Tínhamos a noção de que existiam outras coisas para além da fronteira com a Espanha, mas a Europa para nós acabava na Alemanha, e o centro era Paris. Até se apregoava que Portugal, nos seus territórios ultramarinos, sozinho, era quase metade da Europa. O estrangeiro entrava aqui se entrasse às boas. Se entrasse às más não era bem considerado.

 

Quando é que isso mudou?

A partir do final dos anos 60, mas sobretudo nos anos 70 e depois com a integração europeia. Hoje somos vistos a partir de fora. Basta ver que o que determina a vida nacional, quer do ponto de vista político, quer do ponto de vista económico e financeiro.

 

Era sobretudo um isolacionismo o que marcava a vida do país e a percepção que o país tinha de si próprio?

Mas era um isolacionismo com fundos de um imperialismo que já não existia. Tinha dez, 11 anos quando foi a tomada de Goa pelos indianos: aquilo foi um desastre nacional. Sentimos e chorámos durante dias. Logo a seguir começaram os problemas em Angola e no resto do Ultramar; tudo isso era sentido internamente, e do ponto de vista português que nos era apresentado na escola primária. Só a pouco e pouco é que foi alargando, para nos vermos a partir da Europa e do mundo. Foi uma longa mudança, mais cronológica do que mental. Mentalmente vamos mais devagarinho. Ainda hoje temos alguma saudade daquilo que não fomos [riso].

 

Alguma vez fomos? Isso que descreveu como a nostalgia do império, ainda nos alimenta?

Tínhamos um sentido muito triunfalista do nosso passado. Mesmo quando havia crises, como Alcácer Quibir, depois vinha a Restauração, e cantávamos a plenos pulmões: “Os valentes de 40 que lutaram com ardor…”. O passado pátrio, como me chegou, como fui educado, numa vila de província, era assim encarado. Como um triunfo inédito. Como é que tão poucos tinham feito tanto pelo mundo além.

 

Então predominava essa narrativa épica?

Claramente. Havia hinos para tudo nas escolas. Quando entrávamos no ensino secundário éramos, quase forçosamente, inscritos na Mocidade Portuguesa, que tinha hinos. Não havia nada que não fosse pontuado epicamente. Também havia outra narrativa, igualmente épica – a resistência – de que a pouco e pouco me fui apercebendo. Não era o ambiente em que crescia.

 

Era a resistência do Partido Comunista em relação ao antigo regime?

Sobretudo do Partido Comunista. Também tinha um hino. Tudo o que acontecia na Europa, até chegarmos a estes tempos pós-modernos em que essas narrativas se esfumaram, era apresentado em termos épicos, deste lado ou daquele, em grandes contrastes. Cantava-se o Avante Camarada, a Internacional. Tudo isso era sintomático dos grandes movimentos colectivos.

 

Quando é que começou a emergir o sentimento de que o país se vai afundar no abismo, de que não existe amanhã? Um sentimento que nestes anos de crise conhece o apogeu.

Se olharmos a literatura, que regista a memória colectiva, um certo sentimento de que teríamos tido ao alcance, mas não conseguimos lá chegar, ou chegando não conseguimos manter, vem do século XVI. Encontramos isso no Camões. O António José Saraiva dizia que Portugal viveu até ao século XVIII à volta do que ele chamava o mito da cruzada. Portugal tinha um destino de cruzada mundial que havia de protagonizar. Quando começaram as naus e as caravelas a regressar e a não partir outra vez, foi-se afirmando o contra-mito da decadência. Afinal Portugal não tem possibilidades para tanta coisa, e mesmo quando teve algumas, acabou por não ser capaz de as agarrar. Tudo isso aparece e contrasta.

 

É um discurso corrente: o de que malbaratamos possibilidades. Uma forma de morrer na praia.

No século XIX encontramos os fumos do Império, a realidade triste e dura daquilo que não conseguimos fazer ou fizemos mal, ou que não nos deixou crescer à medida desses sonhos. Entretanto aparece uma outra coisa entremeada, quando começa a Revolução Liberal, a partir de 1820, e que vem até aos nossos dias: que podíamos voltar ao viço, aos genes originais que nos criaram, voltar à nossa terra, voltar ao nosso povo. Essa ideia da regeneração a partir de nós próprios ainda hoje está patente. E julgo que tem razão, tem mais razão do que as duas outras coisas opostas.

 

Porquê?

O povo português, naquilo que vai fazendo, que vai perdendo, que vai ganhando, mostra uma grande capacidade de se refazer. Não digo que seja um caso único, mas é um caso muito interessante. Não é por recorte geográfico (não temos nenhum, estamos integrados nessa grande unidade que é a Península Ibérica). Nem por recorte étnico (que também não temos, somos uma grande mescla de aportações, daqui e dacolá). Do ponto de vista genético, não temos grande originalidade. Nem do ponto de vista dos recursos naturais, (também nunca tivemos nada por aí além). Nada nos fadava para sermos uma entidade autónoma e tão resistente ao longo de tantos séculos.

 

É verdade que temos fronteiras estáveis há oito séculos, e uma língua única.

E uma nacionalidade assumida em termos de sentimentos básicos e de mitos colectivos. Facilmente os reencontramos, às vezes fora daqui. Nesse título que referiu, Portugal e os Portugueses, menciono encontros no estrangeiro com portugueses, e imediatamente estamos a contar histórias comuns. Como se fôssemos da mesma família.

 

Haver uma narrativa comum, que funciona como pano de fundo, dá um sentimento de pertença?

Dá, e é muito importante. Em países mais pequenos do que o nosso, como é o caso da Bélgica, não existe; entre os valões e os flamengos não é a mesma narrativa. Não é uma questão de extensão territorial. Portugal existe aqui, somos cerca de 15 milhões e um terço não está cá, está no estrangeiro.

 

Quais são as narrativas mais constantes e duradouras, e que nos dão essa sensação de pertença?

Há um contraste entre a santa terrinha, o nosso rincão, a que com simpatia ou aparente antipatia nos referimos, onde há sempre alguém que é conhecido de alguém, e acabamos por ser todos primos; e a grandeza e universalidade que nos fazem sentir facilmente, em qualquer lado, em casa. Ter uma certa consciência própria dá-nos, confessado ou não, o gosto de ser de cá. Mesmo que não estejamos cá, ou que tenhamos que ir lá fora à procura do que aqui não temos. É como quem anda: só mete um pé para a frente se o de trás estiver seguro, senão estatela-se.

 

Na literatura, caso paradigmático, há expressões pouco abonatórias acerca de Portugal e dos portugueses. “A choldra” é um dos mais violentos. Grassa uma falta de auto-estima.

Mas depois temos o Ilustre Casa de Ramires e A Cidade e as Serras

 

A verdade é que o personagem Jacinto de A Cidade e as Serras

volta para Portugal depois de uma vida em Paris.

Volta. Aquela primeira conversa quando o comboio entra em território português: “Anda aqui, anda à janela, vem ver o teu país”. Chega à janela: “Cheira bem” [riso]. Há qualquer coisa que cheira bem em Portugal, sabe lá a gente dizer porquê.

 

E a si, o que é que lhe cheira bem em Portugal? Que é também uma maneira de perguntar como é que aprendeu a ser português e a gostar disto.

A memória histórica que se contava, a convivência, os ritmos, as celebrações. Tudo isso era aconchegante e criava um caldo de cultura onde apesar de tudo nos sentíamos bem, nos reconhecíamos portugueses. Uns contavam a nossa história com mais glória, outros com mais pena, mas havia uma história nossa. O que Portugal tem de melhor são os portugueses. E isso não desilude. Não desiludia na minha infância dos anos 50, e continua a não me desiludir hoje. O português é um tipo humano excelente.

 

Pode concretizar isso?

Posso concretizar na capacidade com que facilmente adere a boas iniciativas e a boas propostas. Na capacidade de valorizar coisas pequeninas que são capazes de nos dar muita alegria. Não é só o facto de o Fado ser agora Património Imaterial da Humanidade, é o próprio fado que de uma maneira ou de outra todos cantamos. Esta maneira de nos cantarmos também nos une. Há uma sensibilidade comum que facilmente manifesta carinho e vontade de ajudar, e que é muito bonita.

 

Queria que me contasse algumas histórias particulares que marcam o seu contacto e relação com o país.

O meu país é muito o meu povo, o povo a que pertenço. Até pelo rumo que tomei, pela dedicação à vida da Igreja como seminarista e como padre, como bispo. Fui de História, um bom curso de memórias. Tudo isto me põe em contacto directo e permanente com o povo, em particular com o povo cristão e católico, nas suas variadíssimas expressões.

O povo português manifesta uma grande disponibilidade para acreditar e para se integrar em boas causas, desde que não sejam muito abstractas, desde que sejam quase impulsivas – do impulso para o bem. Verifico-o todos os dias. Verifiquei muito antes, durante, e continua, na crise em que estamos. As pessoas continuam disponíveis, o que requer por parte das lideranças uma atitude comprometida, pedagógica, clara, para estar à altura dessa disponibilidade que as pessoas têm. Hoje é uma questão de sobrevivência drástica num mundo complexo, onde já não há um pretexto exterior tão forte como foi a Europa dos anos 80.

 

O que é preciso é uma liderança para essa disponibilidade que, em si, é existente?

Sim, e que esteja constantemente, não só com muita integridade naquilo que faz, mas também com muita convicção naquilo que diz. E creio que vamos lá. Somos capazes de nos encontrar colectivamente e de nos refazermos. Creio que há na sociedade portuguesa capacidade para aterrar.

 

Aterrar?

Aterrar é muito perigoso. É uma linguagem aeronáutica, mas tem a ver com uma velha conversa que mantemos connosco entre a terra e o mar, entre o partir ou tomar a sério o que temos aqui. O mar é sempre um enorme desafio. Tem-se dito, e bem, que é uma fronteira aberta. Já referi algures que Portugal parece um povo-cais, que está constantemente a partir ou a chegar. Mas falo de encontrarmo-nos aqui, no que é o nosso território, assentarmos os pés na terra, naquilo que podemos, e vivermos menos a crédito, e acreditarmos mais em nós.

 

Levantou pistas interessantes. A vocação para a aventura, nem que seja por uma motivação desesperada (parte-se para as descobertas porque este território não nos basta, e depois vêm África, Índia, Brasil). Mas o gigante ficou com pés de barro. Não resolvemos um desnível entre a dimensão do sonho e uma falta de solidez nisso que é o ponto de partida.

Não sei se alguma vez o conseguiremos resolver. Isso é que é a tragédia portuguesa. Mas também é a beleza da história de Portugal. É uma espécie de claro-escuro. Nunca fomos este território a que hoje teremos de voltar, onde hoje nos temos de encontrar, bastantes para nos sustentar. Há sempre um impulso para ir mais longe, a necessidade de fazer outras coisas, noutro lugar. É uma velha tensão. Quando digo regresso à terra, é levarmo-nos mais a sério como povo e como capacidade de inovação e de criação. Essa, temos, às vezes, e sobretudo empurrados pela circunstância. Gostamos muito de divagar, da festa, da praia, daquilo que não puxa imediatamente por nós e que nos deixa sonhar.

 

Somos propensos à lassidão, se nos deixarem.

Também, com um território destes, tão bonito, não admira [riso]. Mas, nas circunstâncias, temos capacidade de nos refazermos.

 

Crescemos para as ocasiões, é essa a sua convicção?

Uma convicção constatada. Porque é que Portugal não foi absorvido pela monarquia espanhola? Porque é que não desapareceu no Império Napoleónico? Por que é que não desapareceu quando o Brasil se autonomizou? Por que é que Portugal continua? Por que é que Portugal, que vive a crédito no final do século XIX, apesar de tudo, consegue sobreviver? E já estamos no século XXI a crédito, também. É porque há aqui uma vitalidade própria, senão desapareceria. E não é o facto de ser uma finisterra da Europa. A Bretanha, cheia de cultura própria, identidade, literatura, foi absorvida pela França.

 

Essa vitalidade fez-nos sobreviver a todas as crises. Mas vivemos um momento particularmente agudo, em que há uma dependência do exterior muitíssimo maior. E falta-nos um desígnio, e alguém que encaminhe.

Hoje o “alguém” só pode ser colectivo. Os sebastianismos não nos fizeram bem. Eles simbolizavam o destino colectivo que se tinha perdido no areal de África, e voltariam numa manhã de nevoeiro. Esse tipo de liderança muito personalizada hoje não nos serviria. Esta liderança plural que todos fazemos – e é isso que uma democracia requer, pela participação, pelo risco assumido, pela inscrição na realidade social e política, e depois com os governantes que vamos tendo, porque os escolhemos ciclicamente – é que é fundamental para nos recriarmos.

 

O grau de imprevisibilidade é imenso. E, insisto, a ligação a uma rede é impossível de desligar. Dois contras.

O que temos em relação ao futuro é um campo aberto. O que puxa pela nossa capacidade de inovação. Sabemos que vamos ter que viver com apoio externo mas sobretudo com esforço interno. Teremos que ser mais módicos e frugais nos gastos, teremos de explorar outras zonas de nós próprios que estão inexploradas. E o campo artístico e cultural é imenso; mesmo que requeira algum investimento, é sobretudo de nós que depende. Temos que nos recriar em termos de vizinhança; perdemos a antiga e não criámos uma nova, sobretudo nos grandes espaços urbanos.

 

A família continua a ser a célula fundamental de sociabilidade e de entreajuda.

E de que maneira. É o nosso vínculo natural, as primeiras relações são as mais determinantes na vida. Muito curioso: mesmo nos romances e nas novelas, [as histórias são de] laços parentais torcidos ou distorcidos, ou desconhecidos; voltamos um pouco àquele tipo romântico em que toda a gente andava à procura de uma identidade que não sabia muito bem qual era, e que depois descobriam finalmente.

 

Se pensarmos em Portugal, à luz disso que diz, um caminho pode ser a procura dessa primeira vinculação, do que é o laço determinante, daquilo que, para além do acessório, nos dá o sentido?

Hoje, não só faz sentido, como é uma exigência absoluta. Darmos à família e à vida familiar aquela prioridade que ela tem é fundamental. Em meados do século XX, vivíamos em torno de duas abstracções: o indivíduo, o existir individualmente, sem grande referência grupal, fosse familiar fosse outra; ou então a massa, o eu diluído nas grandes massas colectivas e no seu destino, que assim se queria histórico. Mas não somos nem indivíduos nem massas. O melhor que a reflexão do século XX trouxe para o século XXI foi a reflexão de tipo personalista, que nos faz entender como seres de relação que tem vários elos.

 

O familiar é o primeiro.

Sim. O das vizinhanças também é importante. E depois os variadíssimos patamares comunitários onde nos recriamos. Esta nossa dimensão pessoal, personalista, em que me entendo na relação, em que a minha própria consciência é uma consciência reflexa (vejo-me pelo olhar dos outros, percebo pela compreensão que os outros têm de mim), é fundamental. Na presente crise, até laços familiares que estavam perdidos acabam por se recuperar, quanto mais não seja por sobrevivência.

 

Também temos um ditado que diz: “Casa onde não há pão, todos ralham, ninguém tem razão”. Muitas dessas relações acabam por ficar instáveis ou são desfeitas. Não são capazes de resistir à erosão da dificuldade.

Sem dúvida nenhuma. Mas mesmo depois de dispersas, ou se reencontram ou têm que encontrar outro tipo de relacionamento, porque sozinhos não sobrevivemos. É muito curioso o retorno à terra, a recuperação do lugar, das memórias locais.

 

O regresso à terra e o recentramento no que é essencial são feitos porque somos empurrados, por uma pressão desesperada. Isso traz consigo uma atitude amorosa?

Acaba por trazer. Pensamos, idealizamos, sonhamos, aspiramos. Isso define-nos como pessoas, e nem é preciso que sejam os poetas a dizer-nos tal coisa. Tanto caminhamos com projecção, com idealismo, como caminhamos como resposta a desafios a que temos mesmo que responder porque se trata de sobrevivência.

 

Insisto nesta falta de desígnio, que nos animou em 74, quando se fez a revolução, que nos animou nos anos 80 com a ideia da Europa – “Com a Europa é que vai ser”. E agora, falta um ânimo.

Aí iremos pela educação, pelo desenvolvimento da nossa potencialidade de nos recriarmos. Quando visito escolas e converso com professores e alunos [constato que] estamos prontos para partir. O que nem sequer significa deslocar-se do sítio em que estão, mas desenvolver as capacidades humanas de conhecimento científico ou especulativo.

 

Essa disponibilidade que encontra nas escolas, nas pessoas, nas empresas, é diferente da que encontrava há dez anos?

É mais qualitativa hoje do que quantitativa ontem. Ontem era no sentido de ir mais longe, fisicamente, hoje é cada vez, e necessariamente, ir mais longe naquilo que conseguimos descobrir, quer para nos melhorarmos colectivamente como sociedade, quer para nos aprofundarmos interiormente como Humanidade.

 

Na era da Internet, a possibilidade de estarmos com o outro, virtualmente, é ilimitada. Por outro lado, e é um lugar-comum dizê-lo, estamos cada vez mais confinados ao nosso reduto. São novas maneiras de estar socialmente e individualmente. Partimos com os outros numa aventura de modo diferente.

Por isso falava das vizinhanças, dos patamares de sociabilidade. Para não acontecer como o outro dizia: que estava tão apaixonado pela Humanidade e pela causa da Humanidade que não tinha tempo nem paciência para ninguém em particular. Tem que ser ao contrário. Não pensarmos na Humanidade em abstracto mas pensarmos em cada um de nós na relação que mantém com o outro, concreta, continuada, positiva, solidária (essas palavras bonitas mas concretamente vividas).

 

O seu discurso é mais optimista do que pessimista, o que não é surpreendente num clérigo. Mas tem também uma formação em História e por isso não pode escamotear a força da realidade. Teme que a História se repita e replique o seu pior ciclo? O da guerra, o do desencontro total, que é o que culmina uma escalada de crise, desemprego, instabilidade social, motins.

Tudo é possível no curto e no médio prazo. Há coisas que já podiam estar feitas no que tem sido o progresso humano se não tivéssemos perdido tanto tempo e tanta gente com lutas, com guerras, com tudo o que de sombrio a História nos demonstra como possibilidade. Acredito que possa haver demoras, que possa haver recuos, mas acredito mais que a Humanidade como um todo, e Portugal como parte, tem futuro.

 

Um título de Alexandre O’Neill, A Ampola Miraculosa, refere genericamente estas entrevistas no Negócios. Estamos à espera, e desde sempre à espera, dessa ampola miraculosa?

Se não houver uma expectativa, a pessoa não avança. Vivemos dessa ampola, todos nós, como seres humanos. A nossa expectativa, a nossa imaginação, ultrapassa sempre a nossa realidade, e é isso que nos faz viver e apesar de tudo esperar. E é isso que faz com que, mesmo já muito idosos, partamos, olhemos com expectativa para aqueles que entram no mundo, porque irão mais à frente do que sonhámos. Mas isso é a história da Humanidade, senão seríamos meramente repetitivos e ficaríamos como os outros animais. A Humanidade define-se com essa ampola.

 

Outra leitura para este título é a de procurarmos uma cápsula que nos resolva instantaneamente os problemas sem que isso implique forçosamente uma inscrição da nossa parte.

Aí entramos no campo das alienações que estão sempre disponíveis, arranjamos um pretexto ou um derivativo, uma maneira de não estar cá. Não é a isso que me refiro. Essa ampola, não a acho nada miraculosa, antes pelo contrário.

 

A expressão inscrição e não-inscrição tem sido usada desde o livro de José Gil, Portugal, Hoje – O Medo de Existir. Aí se descrevia os portugueses como um povo de não-inscrição.

Com medo de existir.

 

Como se estivéssemos um pouco fora da nossa órbita e pouco comprometidos com o nosso próprio destino.

Estamos muito perto de uma história que imaginámos grandiosa, e estamos muito perto das grandezas de outros (os países de ponta da civilização estão aqui ao lado). No passado já não nos podemos inscrever, o passado passou – se é que alguma vez existiu como o imaginámos. E nesse presente, só emigrando para lá, e alguns fazem isso. É mais fácil isso do que manejarmos o que temos à mão. Mas o que temos à mão é muito, sobretudo em nós próprios.

 

Estava a pensar numa frase famosa das Confissões de Santo Agostinho: “O meu amor é o meu peso, onde eu for, ele me levará”. O que temos de ponderar é onde o nosso amor nos leva? Que é uma maneira de saber para onde é que pendemos.

Lá temos a tal relação activa, que é outra maneira de falar do amor. O amor tem uma doença que é o amor-próprio; o amor que se retém em si próprio, e procura em si aquilo que só na convivência e na co-responsabilidade pode acontecer. Daí que esses vários patamares de sociabilidade seja necessária para efectivar o amor. É o que fica. E basta ver pela nossa memória: por mais ou menos anos que tenhamos o que ficou do outro senão essa relação e a convivência que mantivemos? O resto, devaneios, fumos. O sentimento compartilhado, a responsabilidade assumida com o outro, o destino que criámos conjuntamente, isso é que é a nossa verdade.

 

Fala da relação com o outro como sendo vital. Isso, passado a fase do pós-modernismo, em que havia a hegemonia do eu.

Não sou muito mau para os pós-modernos [riso]. A minha juventude é nos anos 60, e nessa altura começou a sentir-se o pós-modernismo, que ainda não sabíamos que se chamava assim. Ainda não tinha lido o Lipovetsky nem o Lyotard. Mas havia já propensão para o “eu” individual em contraste com as sociabilidades estandardizadas. Há alguma compreensão do pós-modernismo porque ele reage às ideologias estabelecidas, ferozes, que tinham tomado o campo e a sociedade até à Segunda Guerra Mundial, e que ainda se mantiveram na Guerra-fria. Todas prometiam que quando ganhassem seria maravilhoso. As famosas metanarrativas narravam mais do que realmente conseguiam.

 

Amanhãs que cantam.

Uns cantavam de uma maneira, outros de outra maneira, e as pautas eram muito diferentes, mas todas cantavam! Eu passei a vida inteira em movimentos, em grupo, em conversas que não me empurraram para esse intimismo pós-moderno. Pelo contrário, fizeram-me continuar a acreditar em desígnios colectivos mas personalisticamente concretizados. Creio que é o melhor caminho. No meu caso resultou.

 

Como se o “eu” fosse um lugar de partida e não um lugar de chegada?

Como um “eu” que só se encontra no reflexo do outro. Eu sou aquele por quem o outro pergunta.

 

A que é que as pessoas aspiram? A ambição era mais quantitativa, tinha mais que ver com o sucesso.

Com o sucesso, com o chegar mais longe ou ter mais coisas. Hoje, todos aspiramos àquilo que chamamos a nossa realização. É uma palavra muito bonita, talvez um pouco existencial. A consciência que temos de que cá dentro há uma vontade, uma disponibilidade, um desejo de criar, de ir mais longe, de fazer diferente – isso é que nos realiza, isso é que torna real o que seria apenas uma aspiração difusa, confusa.

 

Temos a percepção de que está tudo escaqueirado, em fractura. Estamos a desenhar uma outra ordem mundial?

Começámos um bocado desumanos, ainda estamos. Estamos a falar da esfera europeia, mas se alargarmos um bocadinho o zoom, o que é que fazemos da África, da Ásia, de regiões onde as populações ainda estão à nossa espera, e nós à espera delas? Não vai ser com o grupo da frente muito afastado do pelotão, em que uns conseguem sempre mais, e conseguem quase só para eles. Assim não vai ser, assim não pode ser.

 

Vendilhões do templo, e esses que estão no pelotão da frente, sempre houve.

Mas agora não vão ganhar competição nenhuma. Só poderiam ganhar se os outros subsistissem. Senão, não há frente porque não há trás. Temos que ser todos mais primeiros. E isso é outra maneira de olhar para as pessoas. Reparo no gosto e no interesse que há na nossa juventude, católica, em tudo quanto seja voluntariado, de trocar no verão a praia por acções cá em Portugal ou em África, a disponibilidade para fazer coisas juntos e lutarem por elas.

 

Há muitas situações em que as pessoas estão prostradas porque isto é uma lambada monumental. Contraria as expectativas de uma vida, obriga a redimensionar aquilo que norteou o seu percurso. A expressão das manifestações das Geração à Rasca é um sintoma disto. Há muitos que não têm ânimo para levantar os braços. E para esses?

É um facto. Não poderemos ir ao todo senão pela parte. O que devemos ter são as tais lideranças pedagógicas, que tenham em vista o todo, porque é essa a obrigação no campo político, económico e cultural. Mas isso tem que ser mediado por concretizações mais próximas, pela fermentação que mostre que é possível atingir objectivos mais satisfatórios.

Há dois caminhos sem saída: um é refluirmos, cada um para si abocanhe o que puder; o outro é estar à espera de um grande movimento de massas para resolver seja o que for. Nós agimos, reagimos e progredimos por responsabilidades compartilhadas, com vizinhanças activas, com projectos comuns. Não há outra maneira.

 

Na sua comunidade sente uma relação notoriamente mais próxima das pessoas nos últimos meses, nos últimos dois, três anos?

Há a proximidade da necessidade. Há cada vez mais pessoas que vêm ter com as instituições, no caso a Igreja, à procura de apoio, até de subsistência. Mas não era só a isso que me referia. Encontro muita gente longe de deixar cair os braços e muito menos de fechar o coração ou a imaginação. E comprovo muito do que estou a dizer: nesta escola não se deixa de avançar com este projecto, naquela associação não se deixa de manter aquele voluntariado, nestas paróquias as pessoas não deixam de se encontrar e de levar por diante a acção evangélica. E às vezes, vidas carregadas de trabalhos e de encargos, mas arranjam tempo.

 

Não são pessoas que se contentam com a aurea mediocritas, não é disso que estamos a falar…

Não, não. Mas acabam por se concentrar no essencial. Não é na mediocridade de querer pouco para manter alguma coisa, não. É perceber que há coisas mais importantes na vida do que o consumismo e ter a felicidade presa a este ou àquele objecto, embora alguns objectos sejam necessários.

 

Neste redesenho das prioridades, acha realmente que o paradigma do “ter”, que foi aquele que nos dominou, está a partir-se?

É mais necessário agora “termo-nos”, do que “ter”. Termo-nos uns aos outros.

 

O papel da Igreja em momentos de crise é importante porque, como disse, apoia uma necessidade mais imediata? Porque funciona como farol?

É sobretudo importante pela mensagem, pelo legado que transporta. Tem locais, tem disponibilidades, tem símbolos, tem tudo o que faz com que uma ideia perdure. A Igreja é o legado do que Jesus disse e fez, e isso hoje continua a ser tão estimulante, para os crentes, e até para a sociedade, como referência, em variadíssimos níveis de pertença, como foi há dois mil anos.

 

Não falámos ainda do fracasso, de como isso dissuade e massacra.

Mas o fracasso também pode ter vários patamares. São negativos os fracassos de coisas que sonhámos e depois não foi nada assim. Mas quando aquilo que sonhámos fomos nós próprios, o significado da nossa vida, isso, mesmo que aparentemente fracasse, se foi vivido e sofrido até ao fim, na nossa tradição cristã sabemos que é vencedor. Os cristãos existem porque aquilo que aparentemente foi um fracasso, a vida de Jesus de Nazaré, depois se mostrou viva, com a ressurreição de Jesus Cristo. É um fracasso vencido. Foi uma aparente derrota que acabou por redundar numa vitória daquilo que realmente valia.

 

Metaforicamente como é que ressuscitamos?

Dizia São Paulo que o verdadeiro amor nunca acabará. Quando é uma doação completa a uma causa verdadeira, e é por isso que é uma doação e não é um empréstimo, isso vence. E é por isso que histórias que ouvimos do passado, quando foram verdadeiras, quando foram de dádiva, de entrega ao ideal onde cabiam todos, continuam a enternecer-nos e a motivar-nos.

 

Queria que me dissesse um verso que seja para si iluminante.

Podia dizer um verso da Sophia sobre o que fizemos pelo mundo. Mas vou dizer-lhe uma quadra muito simples que vem na Liturgia das Horas, ao sábado, e é tão simples como isto: “Passa o tempo, corre a vida, hora a hora o dia foge, mas a fé nos anuncia que vem perto o grande encontro”. Na simplicidade de uma quadra tão banal, preenche muito a minha vida: a activação do encontro.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012

Isabel Moreira

17.05.13

Isabel Moreira nasceu em 1976. Licenciou-se em Direito, fez um mestrado em Direito Constitucional – Direitos Fundamentais. Quando apareceu, era a filha rebelde de Adriano Moreira, ex-ministro de Salazar. É deputada independente pelo PS. Publicou três livros, de género indefinido. "Pessoas Só", "Quando uma palavra não basta" (candidato ao Prémio Saramago) e "Ansiedade". 

 

“O dinheiro não traz a felicidade. Manda buscar.” – Millôr Fernandes. O poder não dá felicidade. Mas manda buscar?

O poder político não tem por função “dar” felicidade a ninguém ou, noutro sentido, “criar” felicidade. Questão diferente, e muito actual, é esta: esse mesmo poder está constitucionalmente obrigado a remover obstáculos legais e injustificados ao desenvolvimento pessoal, livre, de planos de felicidade.

 

“Dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro.” – Nelson Rodrigues. O que é que o dinheiro e o poder não compram?    

Os incorruptíveis e os que não guiam a sua acção por um projecto pessoal de poder. Neste último caso, “comprar” é excessivo. Quero com isto explicar que a ideia de um poder pessoal futuro modela decisões individuais e tornam, para muitos, silêncios relativamente a matérias que lhes mereceriam voz alta um preço compensador. Não é assim que faço política, mas não me considero moralmente superior por isso. 

 

“Se quiseres pôr à prova o carácter de um homem, dá-lhe poder.” – Abraham Lincoln. Isto equivale ao nosso: “Se queres ver o vilão, põe-lhe a vara na mão.”?

As duas frases parecem a dogmática ultrapassada da vertente positiva e negativa dos direitos fundamentais. Aprisionam-me.  


“Usa o poder que tens. Se não o usares, ele prescreve.” – provérbio chinês. Só o poder formal prescreve? Que poderes não prescrevem?

O único poder que não prescreve é aquele de que os outros são servidores: só o povo tem poder; só no povo reside o poder. Noutro nível, nunca prescreverá o poder imenso da consciência individual, o único consolo que Stig Dagerman encontrou na sua obra desconsolada.


“Mantém os amigos por perto; e os inimigos, mais perto ainda” – Don Corleone, “O Padrinho”. Conhece bem os seus amigos e inimigos?

Conheço melhor os meus amigos. Tenho sido surpreendida quanto a inimigos que não sabia que sabiam de mim. Mas os meus verdadeiros inimigos são qualquer rosto que faça da justiça, da igualdade e da liberdade desvalores, passando a impor um prefixo nestes alicerces. Depois tenho inimigos internos, como todos, fragilidades que exponho sem pudor, no meu corpo e nos meus livros. Penso que é assim que os venço, fazendo dessas bestas um motor e nunca um ponto final.


“O poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente.” – Lord Acton. Porquê? Ter demasiado poder é inebriante?, provoca um desfasamento da realidade?

E uma solidão que advém de não haver com quem dividir o poder. Sem separação de poderes há apenas vontade e nunca responsabilidade. A única palavra é a palavra “eu”. Eis a condenação à alienação e ao abuso.


“Yes, we can” – Obama. Foi a força das palavras que elegeu o primeiro presidente afro-americano nos Estados Unidos?

A frase. Mas também o poder da voz. Um sentido de representação e de mudança naquele apelo à primeira pessoa do plural: we. Dizemos poucas vezes “nós”. Dizemos mais vezes “eu” e “eles”. O “tu” e os “eles” deviam ser as primeiras palavras no espírito de qualquer político.


Quem é que tem poder em Portugal? Os banqueiros, os políticos, os artistas, a construção civil, as pessoas que aparecem na televisão?

O povo através dos seus eleitos. Depois há distorções como as conivências obscuras entre o poder político e o poder económico, o corporativismo em tantas áreas. Há sempre distorções, mas penso que nunca houve tão pouca corrupção em Portugal – apesar dos casos sonantes – e tanto escrutínio dos políticos.


Sem falsas modéstias, e partindo do princípio que, pelo menos no nosso quintal, todos temos poder: considera que é uma pessoa poderosa? Em que é que se baseia o seu poder?

Na escrita. A escrita não é uma função, um dever, uma defesa: é “eu”. Só sou escrevendo, só me integro escrevendo. Não sofro a escrever, não acredito no “escritor sofredor”. Escrever é um acto sublime e de devolução. Sem a escrita seria um fantasma.


O que é ter uma agenda poderosa? É ter o telemóvel de Fernando Ulrich? É ter andado na escola com o Paulo Portas? É ser convidado por Ricardo Salgado para um almoço na Comporta? É conhecer o primo da mulher do assessor do ministro que manda?

 É ter tudo isso por irrelevante. É uma atitude ideológica. Não suporto distinções sociais, circos sociais para aparecer/ser nem quaisquer sinais de privilégios ou luxos. O poder está no despojamento.  


Ter poder é mandar prender? É contratar, é despedir? É saber mais? É ter relações?

Ter poder é escolher. É poder escolher. Daí que a pobreza mate a liberdade, mate a democracia.


Marcelo Rebelo de Sousa/ Ricardo Araújo Pereira: qual deles tem mais poder?

Cada um na sua área tem o mesmo grau de um específico tipo de poder.


Muito poder torna uma pessoa impopular? Embirramos com o chefe porque ele tem poder, porque invejamos o seu poder, porque insuportamos a maneira como exerce o poder?

Claro. Quanto mais longe estamos da palavra “tu” mais perto estamos da submissão ou da ideia que nos invade de que nos estamos a diluir.


A vaidade tem razões que a massa encefálica desconhece? É o desejo de reconhecimento, mais do que tudo, que instiga o desejo de poder?

Cheguei – dirão muitos cheios da adrenalina da luta política. A primeira alegria é o cumprimento de um sonho de carreira pessoal. Por vezes recordam-se de que são servidores do povo. O desejo frenético do poder político é-me misterioso. Vejo-o como um êxtase sexual. Irreversível.


O desejo de poder é indissociável de úlceras, cabelos brancos, rugas na testa? Ser ambicioso ainda é pecado? Porque é que se aposta “naturalmente” a palavra “desmesurada” a ambição?

Nada tenho contra a ambição política se nunca se desligar do bem-comum. Será desmesurada em função dos métodos do percurso. Os cabelos brancos podem ser muito bom sinal. Nada é linear.


Quando é que o poder se torna perigoso? Quando se torna insaciável? Quando se alia à inteligência (e à competência) a falta de escrúpulos? Quando à embriaguez do status se associa a falta de bom senso?

Tudo isso. O poder nas mãos da inteligência deficitária também é mortal. Ou antes disse tudo, quando nada há de corrupto, mas encontramos um poder que vive para números e estatísticas e esquece totalmente a razão de ser da sua existência: pessoas de carne e osso.

 

Ter poder é poder escolher não ter patrão?

Também. Liberdade é poder. O mesmo é dizer que a liberdade está altamente comprometida. Na pobreza somos todos escravos. É também por isso que não admito a separação rígida entre direitos de liberdade e direitos sociais. Os primeiros são fórmulas vazias sem a concretização dos segundos. De que me serve o direito de petição ou a liberdade de iniciativa privada se entreguei a minha casa ao banco numa situação de desemprego e fiquei a viver ao relento?

 

O poder, como a política, produz sempre inimigos? Os inimigos são os invejosos?, os insubordinados?  

Há inimigos para todos os gostos, coisa que me causa horror. Na política tenho adversários. Posso cortar relações com alguém numa situação ultrajante, mas nos mesmos termos em que o faria fora da política. Penso que o pior tipo de inimizade que tenho visto na política é a mais rasca de todas: a que se funda na inveja.

 

Poder, dinheiro e influência são, no essencial, a mesma coisa?

Não. Poder político é funcional e democrático, serve o seu verdadeiro dono, o povo soberano. Os seus titulares podem perverter a sua função, coisa diversa, e usá-lo para influências não-éticas ou ilícitas; podem quebrar o contrato que têm com o povo e misturarem-se ilicitamente com dinheiros para fins de alguns. Daqui resulta que o poder é terreno fértil para dinheiros e influências anormais – donde a importância de todos os mecanismos existentes de controlo dos órgãos de soberania, dos seus titulares e da Administração Pública. Daí a importância da separação e interdependência de poderes.

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012

 

Joe Berardo

16.05.13

Foi uma conversa you cá, you lá. Domingo de manhã, na véspera de inaugurar um museu com o seu nome, Joe Berardo concedeu-me duas horas do seu tempo. Gravámos uma hora e três quartos, transcritos ipsis verbis nas páginas seguintes.

Eu nunca tinha falado com ele. Tinha lido dúzias de páginas de prosa sobre a sua ascensão, cosida em português escorreito. Mas nunca tinha ouvido a língua que fala, a interferência constante do inglês, o what the fuck are you talking about?, que me parecia saído da boca de Tony Soprano. Mas máfia is not his style, e eu tenho mais simpatia pelo gangster de New Jersey do que ele. José Manuel fez-se outro na África do Sul, quando passou a atender por Joe, e o inglês é a língua materna desse homem de sucesso.

Decidi, então, fazer uma reprodução exacta do seu modo de estar. What you see, is what you get. Ele diz que cant handle com as criquices de Jardim Gonçalves – não diz que não pode com as peneirices do ex-presidente do BCP, embora o sentido seja o mesmo.

Ele diz que a relação com o filho não pode ser mais close. Que o “seu” judeu, guru dos tempos da África do Sul, lhe disse que pode even become God se viver longer, ahahah!

Mas depois, Joe pede-me que não chame às prostitutas prostitutas. Como se na minha terminologia (palavra que ele também usa) houvesse um julgamento moral; e eu não sei das condições dessas pessoas, do que as arrastou até essa easy life. Elas são entertainers.

Ou seja, o seu uso das palavras não é tão destituído e primário quanto isso. Ele tirou a quarta classe, mas sabe que as palavras têm um peso. E por vezes, sabe muito bem do seu significado íntimo.

Pensa que sabe tudo sobre este homem? Well, nos últimos meses ele apareceu tantas vezes nos jornais quanto o primeiro-ministro ou o presidente da república. Por acusa da PT, por causa do BCP, por causa do seu museu, por causa do Benfica, por ter dito “fuck him” sobre Rui Costa. De quem falamos quando falamos de Joe Berardo? É correcto o sentido literal que lhe atribuímos? «Se eu disser, “you son of a bitch”, não te estou a chamar filha da puta!», dizia-me ele, por fim.

Devo cortar a palavra “tesão” quando ele a usa referindo-se à África do Sul? Mas para os brasileiros, por exemplo, a palavra não tem a mesma conotação alarve. Chico Buarque usa-a numa das suas canções, e um uso grosseiro das palavras nunca poderia ser atribuído a Chico. Portanto, tudo segue como foi dito, sem frases arredondadas ou português corrigido.

Por fim, as fotografias. Berardo mostrava-se já impaciente, passeava por entre obras famosas, do Stella e do Picasso, uma pequena comitiva crescia em torno dele. Joe telefonava para a mulher a convidá-la para almoçar; pediu à assistente para book a table, e dirigiu-se ao carro que estava nas traseiras. Não mandou o motorista buscar a mulher a casa, foi ele mesmo buscá-la. Casca grossa? As senhoras são atentas a gestos como este, vão por mim...

 

fotografia: Miguel Baltazar

 

Ensine-me a jogar Pedro.

Ah, isso é muito complicado, leva muito tempo.

 

Li que era uma espécie de bisca que costumava jogar na África do Sul. O que me interessa no Pedro é a noção de jogo, e de risco.

Não é por dinheiro... É pela honra.

 

Que honra se joga no Pedro?

A honra de ganhar. Se é um game e não há dinheiro, é a honra de ganhar. É melhor do que o dinheiro. Quando estás a jogar pela honra, é something extra. Não tem significado material.

 

Ganhar, ganhar, ganhar: para si é uma espécie de lema de vida.

For sure! Ganhar não é tudo. Mas para mim, o segundo, o terceiro, o quarto means nothing.

 

De onde vem essa determinação de ter que ser o primeiro?

Não é bem de ser o primeiro. É de ganhar. Todos nós. Quem é que não gosta de ganhar? Há pessoas que têm na mentalidade: ficaste em segundo, ficaste em primeiro dos últimos... É uma consolação. Eu não quero ser consolado. Eu quero ganhar.

 

A sua fotografia, já famosa, à saída da reunião do BCP, com a pasta...

Ao meio das pernas.

 

E os polegares a fazerem sinal de vitória. O que parecia, mais que tudo, era que estava contentíssimo por ter estragado a vida ao engenheiro Jardim Gonçalves. Ter-lhe ganho. Mais do que ter ganho os 50 milhões...

Não, não. Aquilo era uma OPA ao banco sem ter metido dinheiro. Leste os estatutos?

 

Não.

Devias ter lido. Aquilo era um escândalo à inteligência dos accionistas, era um óbito de incompetência aos accionistas. O Jardim Gonçalves é madeirense.

 

O que se via na sua cara era um contentamento que estava para além do dinheiro. E nem me lembrava de que o engenheiro Jardim Gonçalves é madeirense!

Ya. Era contra mim fazer esta briga. Nunca tive desavenças com ele. Sempre foi uma pessoa digna, tratou-me sempre bem. Ainda hoje não reconheço que tenha sido ideia sua; ou foi dos advogados ou de pessoas com más intenções à roda dele. Era como se, tudo o que o Sócrates fizesse, tivesse que ser aprovado pelo presidente. [A nomeação dos] ministros, tudo. Um escândalo. E as acções ficavam prejudicadas. Não é fácil combater com uma associação muito poderosa como é a Opus Dei.

 

E estava sozinho no seu combate.

Senti-me muito feliz. Tinha muito dinheiro investido lá, que ia perder. E nem foi uma vitória tão saborosa assim..., que eu queria que aquilo fosse a votos. Eles retiraram a proposta. O folhetim ainda não está acabado.

 

Conheceu Jardim Gonçalves na Madeira? Na altura já era rico ou havia uma grande desigualdade social entre os dois?

Conheço-o há muitos anos. A primeira vez que o vi, eu era presidente de um banco na África do Sul. Senti nele uma certa arrogância. Ele viu que eu era uma pessoa comum. Que não vinha do clube deles. Tem uma memória muito short, porque quando as coisas estavam a quente, fugiu para Espanha... Já o Amorim, quando saiu do banco, disse que não estava para pagar o nível de vida do Jardim. Bem, isto já é velho! Outro subject.

 

Neste assunto só me interessa o que acaba de dizer: não serem do mesmo clube, e o prazer da vitória. De conseguir construir um império e de não recear ir para o terreno. O que me interessa é saber onde radica a vontade de ganhar.

[Berardo tosse]

 

Comendador... É assim que lhe chamo?

Tanto faz.

 

Como é que gosta mais?

Uns call me José Manuel, outros call me Joe, outros call me Comendador. A minha família call me José Manuel, o meu irmão, a minha irmã, os meus sobrinhos; estavam habituados desde pequenos. Quando fui para a África do Sul disseram-me que José Manuel não dava. So, call me Joe. I know who I am. A minha mulher chama-me Joe, que ela nasceu na África do Sul.

 

O seu filho chama-lhe Comendador?

Comendador, Joe, é conforme. Não há pai e filho com relações mais close do que nós. Nós somos um.

 

Nunca o ouvi falar da sua filha.

A minha filha está sendo mãe, outra vez. Ela perguntou-me: “Dad, filhos, como é?”, e eu respondi: «Uma mãe é indispensável. Podes ter maids, mas maids don’t replace the mother. Nunca é tarde, let your kids grow up, and then come back to business». Podemos ajudar a caminhar, mas os filhos é que têm que tomar a decisão.

 

Já voltamos à família. Falemos agora do Monte Palace, na Madeira. Conta-se que há muitos anos estava a cultivar hortenses no jardim do colégio, que olhou para aquela bela casa e desejou que um dia fosse sua. Isto é verdade?

Não. Eu ia visitar a minha avó, que morava na Santa Luzia, em baixo do Monte Palace, olhava para aquela casa e achava-a, até, um pouco assombrada. Menino. 

 

E cultivava hortenses?

Eu cultivava hortenses mas era na África do Sul. Quando ia visitar a minha avó, via a casa, a parede muito alta. Mas havia um ângulo de onde se via [o interior]. E dizia: «É uma pena uma casa assim tão grande estar abandonada, oxalá eu vivesse lá...». Mas é um dizer, mais do que um sonho. Nessa altura não sonhava assim. Nessa altura eu queria emigrar.

 

Para ter uma vida melhor, claro.

Era. Sentia-me limitado na Madeira. Muitas vezes ia para o cima das montanhas, via o horizonte um bocadinho mais longe, e não havia maneira de atingir os meus objectivos. 

 

Onde fez a escola primária? No seminário? Mas aí só esteve uns meses...

Na escola de Santa Luzia. Lembro-me muito bem desse tempo.

 

Memórias mais fortes...

[faz o gesto de uma palmatoada e solta uma gargalhada] Esta é uma delas. A maneira de manter o controlo nos miúdos, era assim. A pouca educação que tive, a quarta classe, serviu-me muito para o resto da vida. Primeiro fui para a escola ao lado da minha casa. Quando fui para a primeira classe, fui para o Colégio de S. Luís. Nessa altura, no Funchal era servida em todas as escolas a chamada “Sopa do Cardoso”. Era um prato de sopa com arroz e legumes, mas muito agradável. Seria em 1952. Serviam papos-secos, queijo que vinha de fora, talvez queijo americano, que doavam, e manteiga.

 

Ia para a escola sem tomar pequeno-almoço?

Não. A minha vida felizmente não foi tão rígida. De qualquer maneira, comia, e gostava. Ah, e era um copo de leite, leite que vinha em pó.

 

Conta isso com um tom de quem se lembra, ainda, de todos esses sabores.

Então não havia de saber? Nessa altura havia senhas para açúcar, senhas para tudo. Era duro. Eu era um privilegiado porque o meu pai trabalhava no Madeira Wine, tinha uma relação boa com os ingleses. O meu pai ia levar a bordo os vinhos que os ingleses escolhiam; e trazia sempre para nós coisas boas, queijo. E isso era muito bem vindo.

 

É o mais novo de sete irmãos.

Fui um engano! A minha mãe tinha 46 anos quando nasci. Pronto, next!

 

Next? A sua mãe.

Já morreu. A minha mãe ia à missa todos os dias rezar pelos irmãos que emigraram. Adoeceu, com leucemia, ficou cega. E eu dizia-lhe: «Se há Deus, e Deus é seu amigo, porque é que a mãe ficou cega? E vai à missa todos os dias, e é boa pessoa...», e ela: «Meu filho, olha que Deus usa os seus amigos para dar exemplos».

 

Que exemplo era o dela? O da resistência? O da fé?

Essas explicações... Cheguei a levá-la à África do Sul, a ver se a curava. Quando uma mãe diz isso a um filho, não posso pedir explicações, como tu estás a pedir. Eu compreendo bem o que ela estava a dizer. Lá por a mãe estar a sofrer, não quer dizer que vá abandonar Deus.

 

Era o menino da sua mãe?

Eu era o benjamim, todos iam trabalhar e basicamente eu ficava com a minha mãe e a minha irmã. Tive mais convivência com a minha mãe do que qualquer um dos outros. Há uns que nascem com os genes da mãe, outros com os genes do pai. Eu nasci com os genes da minha mãe. Era uma mulher culta. Sabia ler e escrever – o meu pai, não. Era ela que lia para o meu pai.

 

O que é que lia?

As cartas, os jornais. O meu pai era bom a fazer contas em letra romana! Nunca percebi como é que uma pessoa aprende a letra romana e não aprende a ler...

 

Porque é que ela pôde ir à escola e ele não?

Não sei esses pormenores. Aceitava-os. As coisas são como são. Os meus avós paternos tinham um negócio com verduras, plantavam, e depois iam vender para o mercado. Às vezes, ia com o meu avô e via a maneira de trabalhar. Era interessante. Mais!

 

Os avós maternos.

Só conheci a minha avó. Muito, muito minha amiga. Quando ia a casa dela, fazia-me uma festa infinita. Lembro-me que teria quatro ou cinco anos no enterro da minha avó, e não compreendia porque espetavam pregos – nessa altura eram pregos, não eram parafusos que se punham no caixão. Não compreendia aquilo, porque é que ela não falava... Os maiores viam-me a chorar, mas eu nem sabia bem o que perguntar... estava tão aflito. Foi uma coisa que me marcou muito. Já estás a saber muito da minha vida!

 

Começou por dizer que não tinha romance para uma hora e meia de entrevista! A sua mãe chegou a assistir ao seu sucesso?

Ah, chegou. Ela costumava dizer; «Nunca te esqueças de ajudar os outros. Deus deu-te boa sorte, também tens de dar boa sorte aos outros. Dá com a mão direita e que a esquerda não saiba». A ideia é: quando se ajuda uma pessoa não se deve dizer a outra. Os pobres, além de serem pobres, têm a mesma dignidade de um rei ou de qualquer outra pessoa. Esse sentido, aprendi-o com ela. Não é que o meu pai não o tivesse; o meu pai era conhecido de toda a gente como um homem de palavra, um homem correcto. Mas ela dizia: a dignidade é como a fé, ou temos ou não temos.

 

Que idade tinha quando ela morreu?

Ora, estava na África do Sul... Nessa semana, por acaso, estava na Madeira. Ela morreu há 22 anos. Já estava muito bem na vida, felizmente.

 

A sua riqueza impressionava-a?

Não! «Não deixes o materialismo subir-te à cabeça». Mas sentia-se orgulhosa por eu ser um winner.

 

Há uma história lendária, a da sua viagem para a África do Sul. Seguiu num barco com prostitutas...

Eu não lhes chamo prostitutas. Isso foi numa altura em que Salazar fechou as casas de lazer em Portugal, e queriam que elas fossem para lá entreter os soldados. Eu estava à espera de um barco cheio de soldados e veio um barco cheio de... pessoas de lazer, entertainment. Não quero chamar isso, é um nome feio.

 

Um nome feio?

Se te chamasse filha da puta, também não ficavas contente. Há nomes que são degradantes. E nunca se pode julgar os outros. Nunca se sabe as condições que tiveram, as necessidades, algumas eram forçadas. Ainda hoje, há crianças que são raptadas e forçadas a essa vida. Essa gente é puta? Não é! Em vez de chamares esse nome, chama outro.

 

Meretrizes?

Whatever!

 

Foi importante para si essa viagem? O que aprendeu com essas mulheres...

Ajudou muito.

 

Está a ver como tem importância? Pela vida fora, nunca deixou de ter uma “palavrinha” para as senhoras...

Elas também aprenderam comigo. Ensinei-lhes que quando uma pessoa anda numa certa vida, curta e mais fácil, o day after nunca se sabe. Que deviam procurar uma vida mais... E olha que ouviam... Essas mulheres não desapareceram. Às vezes casavam com pessoas de nível, mudavam-se.

 

Mas o senhor, aposto, não seria capaz de casar com uma mulher que tivesse tido essa vida...

Que eu soubesse, não. Se se pusesse essa possibilidade, teria de analisar, perceber as circunstâncias. Não seria só o meu coração a decidir.

 

Há um filme francês chamado «La maman et la putain». Ou seja, as mulheres dividem-se em dois tipos: as “maman” para serem mães dos nossos filhos, sagradas, e inspiradas na mãe que temos em casa, e as “putain” para as horas de lazer.

Na África do Sul, houve uma altura em que fazia muito a vida da noite. E havia muita gente num caminho de no return – drogas, easy life. A maior parte dessas pessoas vêm de família de vida dura e usam o corpo para não ter a mesma vida. Eu nunca fui a uma casa de putas. Não gosto.

 

Não era assim que os rapazes da sua geração perdiam a virgindade?

Eu, não foi assim. Os outros, não posso falar. Sempre tive pessoas amigas, raparigas..., somehow, nunca tive essa necessidade. Casa de lazer: não me dá prazer nenhum chegar ali, pagar e andar para a frente. I’m not that sex fanatic para fazer isso. Eu gosto de falar, gosto de blablabla.

 

Gosta da conquista.

Exacto. Eu gosto de ter uma relação.

 

Valoriza o que não pode comprar.

Aquilo não tem nada que conquistar...

 

Não passa sem o desafio. Mais uma vez, trata-se de ganhar.

Nem todas as mulheres estão à venda. Quer dizer, há sempre um preço. Senão é dinheiro, é afectividade. Todos nós temos que ter uma relação que nos motiva de alguma maneira. Mas isto é uma entrevista para quê? [gargalhada] Unusual. Mais!

 

O senhor tem um pacote de histórias que se tornaram mitos. A da Mona Lisa é a minha preferida.

Quando fui comprar a mobília...

 

Tinha acabado de se casar?

Não, antes! Tinha de ter a mobília para me mudar para a casa, não? Fui comprar a mobília e tinha lá muitos quadros. «Gosto daquele quadro». Ok.

 

Já tinha massa?

Muita não, mas vivia confortavelmente. Quando me casei tinha ao suficiente para a minha mulher e eu vivermos juntos. E ela também ganhava. E logo que ficou pregnant... A minha mulher fez um trabalho extremamente importante no crescimento dos filhos. A personalidade dos nossos filhos tem de ser acompanhada. E fui trabalhar mais.

 

A Mona Lisa.

Mandaram as mobílias para casa e quando passei a mão pelo quadro vi que não era original, que era um print. «Porra, o primeiro quadro que comprei e já me enganaram!». E a minha mulher, que era auditora, que tinha outro nível que eu não tinha, respondeu: «Se quisesses comprar o original, tinhas que ir ao Louvre». O Louvre? «É um museu na França. Isso é a Mona Lisa».

 

Conta esta história no catálogo do Museu Berardo para dizer que a sua relação com a arte nunca teve que ver com o investimento. Para mim, a história serve sobretudo para explicar como é descomplexado em relação à sua ignorância.

Mas é fácil: se a pessoa admite a si própria quem é, nunca vai ter... Como é que se diz “nightmares”?

 

Pesadelos.

Pesadelos. Nunca vai ter pesadelos, depressões. You have to be yourself. O problema é quando a pessoa acha que devia ser aquela pessoa e não é. Eu sinto-me a melhor pessoa do mundo! Não é talvez a mais completa para muita gente. Mas esse é um problema deles. I feel good. Não tenho na vida tudo o que queria ter.

 

O que é que queria ter e não tem?

Isso não é importante.

 

É, é. Justamente, o que é que o dinheiro não pode comprar.

O dinheiro pode comprar uma percentagem muito pequena do que queremos. A nossa alegria, a nossa maneira de ser – que é o mais importante – não é o dinheiro que vai alcançar. Quando vivia com muito pouco dinheiro, na África dos Sul, era a happy person. Aproveitava aquele momento em que estava da melhor maneira. Quando me dizem: «Ah, em África era um homem rico, e agora, ai, ai ai...». So what? Em vez de estarem a perder energia, a pensar o que podia ter sido e não foi, turn the page e start a new one. O Horácio Roque e outros: perderam tudo na África.

 

Em 97, é verdade que teve um desaire?

Um desastre?

 

É verdade que perdeu uns milhões, é verdade que perdeu dinheiro?

Como é que podia perder dinheiro se tinha tanto? No fim do apartheid, quando cheguei ao meu objectivo, perdi o tesão da África do Sul. Parti para outra. E dei instruções aos meus advogados to sell at the best price.

 

Perdeu uns milhões ou não? O que quero saber é como reage quando perde. Neste caso, quando perde uns milhões.

Quando decido vender tudo at the best price, sabia que não queria continuar na África do Sul. Parto do princípio de que nada nos pertence. Nós viemos naked e com vida, e quando se vai, vai-se vestido, mas sem vida.

 

Blablabla.

Mas é verdade. Nem a nossa vida nos pertence. Estou aqui a falar contigo, de um momento para o outro dá-me uma coisa..., lá vai. So, what the fuck are you talking about? Dinheiro é bom, mas as pessoas que vivem só de atingir coisas materiais, é uma tristeza. É uma vida empty. Eu tenho uma vida full!

 

O que é que enche, mais que tudo, a sua vida?

Os meus sonhos. Amanhã vou abrir um museu. Está over, finito, tenho de arranjar outros sonhos. Depois de amanhã, que é que vou fazer aqui? Já não tenho nada para negociar, compreendes?

 

Nada para ganhar.

O meu trabalho é generate. Às vezes gostava de criar novos postos de trabalhos. Mas quando se vive numa terra como esta... Por exemplo, vamos fazer uma fábrica de canetas [pega na sua Mont Blanc]. Faz-se o desenho, põe-se dinheiro, assinam-se garantias, fazem-se as fábricas, faz-se o mercado, e tal. Em dez anos vêm os chinas e o custo disto passa de 1 euro para 50 cêntimos. Portanto, I’m fucked. Não posso vender o meu produto. Fecha-se a fábrica, e tenho de pagar indemnização às pessoas? Como é que este país pode desenvolver-se internacionalmente e criar postos de trabalho? – não estou a falar de empresas como a Volkswagen, que é de uma área tax free.

 

Surpreende-me que, ao contrário de outros homens muito ricos, não seja muito desconfiado. Não parece perguntar-se: porque é que aquela pessoa está comigo? O que é que ela quer? E não há almoços grátis.

Todos nós precisamos uns dos outros. Há dias estive a falar com o [Cristiano] Ronaldo: «És novo, vais ter muita gente que se vai aproveitar de ti. Mas tens de ter consciência que até uma árvore quer ter um raiozinho de sol. Mata as outras à volta para ter um raiozinho de sol». It’s a matter of life. So, vai haver sempre gente que de uma maneira ou de outra se aproveita. Eu preciso que as pessoas trabalhem para mim. As pessoas, se têm um filho, um problema, se precisam de um empréstimo, vêm ter comigo.

 

Toda a gente diz que não há quem tenha mão em si. Quem é que ouve mesmo?

Ouço opiniões diferentes, mas I know what I want. Senão, estava eu a trabalhar para eles. No fim, faço o que eu quero.

 

O seu filho é a pessoa com mais ascendente sobre si?

Eu quero que ele seja melhor do que eu agora! Eu quero que as pessoas que trabalham para mim sejam melhores do que eu agora!

 

Hum, mais ou menos. Se forem melhores do que o Joe, deixam de trabalhar para si e vão fazer os seus negócios.

E já aconteceu muitas vezes, good luck to them. A humanidade é assim. Achas que se não pensasse assim estava aqui a falar contigo? Também já trabalhei para outras pessoas. Mas nem todos são feitos para ser líderes. Eu não sei fazer nada. Sei escolher pessoas e ver coisas que os outros não vêem.

 

Isto vinha a propósito de não desconfiar das pessoas.

Não posso viver sem confiar nas pessoas.

 

Aprendeu isso com os judeus? Os judeus que encontrou na África do Sul foram fundamentais na sua aprendizagem?

Muito importantes. O judeu dizia-me assim: se tens um negócio que está dependente de ti, vende-o. Arranja um que seja um bom negócio, mas que possa viver sem ti. Os judeus foram quem me ensinaram a bolsa. [olha para o relógio].

 

Ainda temos tempo em relação à hora combinada.

Nunca tinha dado uma entrevista tão sentimental quanto esta, sabes? Eu não gosto que as pessoas saibam do style of life, de como é que eu vivo. Quanto mais souberem sobre mim, menos chances tenho de ganhar. [gargalhada]

 

Gosta é de mostrar o Rolls Royce e coisas assim...

Não, as pessoas é que sabem e falam disso. Não ponho as minhas casas nas revistas, a não ser que seja para promoção dos vinhos, ou assim. Hoje em dia, quanto mais tu mostras... Como aquela vergonha do Jardim Gonçalves andar com quatro ou cinco seguranças. Quase como o Papa!

 

Insisto na minha teoria: foi isso, mais que tudo, que o irritou e o fez ir à luta.

É um waste of money dos accionistas. Ele ganha bem. Se quer viver com quatro ou cinco seguranças... Não vejo razão. O homem da CGD não anda com segurança. Os Espírito Santo não andam com segurança...

 

Nunca pôs a hipótese de andar com segurança? Nem na África do Sul?

Nunca! Nunca tive alarmes na minha casa.

 

Nunca teve medo de ser assaltado, esfaqueado?

Não tenho medo. Se alguém me quiser fazer mal, não é a segurança que vai prevenir. Se alguém me quiser matar, kill me! If they can... I cant handle com aquelas criquices de andar com tantos seguranças de roda. Estamos num país tão peacefull.

 

Os seus netos vivem em Lisboa. Mas imagine que os raptam e pedem um resgate...

Mas disso ninguém está livre.

 

Não raptam crianças pobres.

Ah, estás a falar só de dinheiro. Mas uma criança pode ser raptada para outras coisas. Ninguém está livre desses maus passos.

 

Não deixa que essa paranóia o domine.

Então vou para uma ilha sozinho e que se lixe! Se eu fosse um actor de cinema, era diferente.

 

E se fizessem um filme sobre a sua vida?

Já tentaram fazer. E já entrei no filme do Joaquim de Almeida. E fiz o anúncio do American Express.

 

No anúncio parecia muito feliz e satisfeito por ser um vencedor. Não precisa dos milhares de euros que lhe pagaram pelo anúncio. Era muito mais um: estão a ver como sou bem sucedido?

Sou accionista do banco, pediram-me, pus as minhas condições, that’s it.

 

Um filme sobre si: o seu percurso tem todos os ingredientes de um american dream.

Mas não sou american dream. Sou um portuguese dream.

 

Via os Sopranos? Há qualquer coisa em si de Tony Soprano...

Não, não, eu detestaria manipular as pessoas assim. Máfias e assim, não é o meu estilo. O meu estilo é: as pessoas gostam de trabalhar para mim. Seja de dia ou de noite, basta chamar, they all come.

 

Os seus desejos são ordens, patrão.

Eles sabem que não abuso. Não me sentiria bem se abusasse, compreende? Mais! Em que é que estás a pensar?

 

Estava a pensar na sua mulher.

Ok.

 

Por causa da sua investida no Benfica, pensei no russo Abramovich. Agora divorciou-se e a mulher levou uma parte da fortuna.

So what?

 

Imagine que a sua mulher lhe pedia o divórcio...

Ficaria muito triste, Já sou casado desde 1969. A minha mulher é a minha melhor amiga. Sou casado com separação de bens. Eu era um playboy, andava sempre em discotecas, e o meu sogro disse para casarmos com separação de bens. Mas se, por uma razão ou outra, ela pedisse o divórcio, achas que ia chatear-me porque queria isto e aquilo? Impossível! É a mãe dos meus filhos. Se fossem mais mulheres...

 

Ainda não percebi quais são as suas perdições...

Nunca perdi a cabeça por mulher nenhuma senão a minha. Tenho pessoas amigas, faço comentários, mas sinto-me muito bem com a minha melhor amiga. Não quer dizer que, de hoje para amanhã, ela se canse de andar comigo. Mas não vou especular sobre uma coisa que não existe.

 

Só introduzi este tópico para o provocar. E porque não sabia se ficaria aborrecido por perder uma parte do dinheiro ou por ser abandonado.

Lidei com my mother’s dead, que foi a coisa pior para mim. Enchi a igreja de cima a baixo de flores, que a minha mãe gostava de flores. A única coisa de que tive pena foi que ela não pudesse ver as flores. [toca o telemóvel com a música “Nothing compares to you”]. Foi a coisa mais triste que aconteceu na minha vida. Depois disso, I’m ready for everything.

 

Foi a última vez que chorou?

Não tenho vergonha de chorar, mas depois da morte da minha mãe nunca tive razão para isso. Tenho uma vida boa. Uma pessoa não deve chorar se não tem razão.

 

A sua história é uma história de triunfo, conquista; não sei das suas vulnerabilidades.

Não te vou dizer. Todos temos vulnerabilidades, e há zonas de que nem sequer sei. Só quando somos confrontados é que sabemos delas. 

 

A sua história é a história de um rapaz que começou por colar rótulos no Madeira Wine e que enriqueceu a extrair ouro do entulho. Acreditou mesmo que ia conseguir extrair ouro do entulho?

Sou uma pessoa muito prática: se tinha sido extraído há cem anos...

 

O ouro foi o princípio de tudo?

Já antes tinha dinheiro. Tinha dinheiro para mandar fazer os planos de extracção do ouro. Tinha uma vida regalada com o dinheiro das verduras. Eu era o maior comprador de verdura no mercado. Comprava para dar de comer aos milhares de pessoas que trabalhavam na mina. Quando ia fornecer as cozinhas, com batatas, tomate, verduras, eu via aquelas minas abandonadas... Tenho tido a felicidade de as pessoas gostarem de mim.

 

Porque é que acha que gostam de si?

Gosto de me divertir, de falar, se é para ir a qualquer lado, vamos, não tenho complexos seja de que tipo for. Há pessoas que olham para uma mulher, um homem, um edifício e querem ver as coisas más. Eu quero ver as coisas boas. Está a ver a diferença?

 

Alguma vez lhe passou pela ideia comprar um transatlântico? Sei que em pequeno coleccionava postais dos transatlânticos que passavam pela Madeira.

Sim, mas não estou interessado nisso.

 

Há muito na sua vida de homem rico que vai atrás realizar os sonhos do menino pobre. Veja-se o caso do Monte Palace.

Eu gostava de fazer colecção de selos, de caixas de fósforos – era aquilo que naquela altura podia coleccionar. Para ti pode ser nada, mas para mim era muito. Era my capacity. Não tinha dinheiro e pedia às pessoas: «Ah dê-me a carta, que gostava de ter o selo». Entretinha-me a ver coisas bonitas. Aqueles barcos, então..., cheguei a ir algumas vezes a bordo.

 

O que é que lhe impressionava nos barcos? O luxo, as mulheres bonitas...

Era uma combinação de tudo. Era atravessar o mar.

 

Ou seja, sair dali.

Eram as pessoas que sabiam muito. Sempre gostei de me juntar a pessoas que sabiam mais do que eu, mais bonitas do que eu, mais ricas do que eu. Nunca gostei de me juntar a yes people. Os negros das minas: às vezes ia visitá-los e comia com eles um pedaço de bife. They love me!

 

E disso, precisa: que o amem.

Não preciso disso. Eles precisam disso.

 

Eles precisam de o amar?!

As pessoas gostam de gostar de alguém. Achas que eu tenho necessidade de ter milhares de africanos a amarem-me? Be honest.

 

Acho.

Mais vale ser desejado que aborrecido. Tu é que nunca foste pobre e não sabes o que é isso... Não sabes não, senão não dizias isso. A pessoa deve dar a cara, comer junto, para que os outros o possam tocar.

 

Para dar o exemplo? Para fazer acreditar que é possível?

Se eu cheguei aqui, vocês também podem chegar – é para isso. Ninguém pode dizer que é impossível atingir... O judeu dizia-me assim: if you live long enough, everything can happen to you. But if you can live even longer, you can even became God!! [gargalhada]  

  

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007

Que mistério tem Clarice?

12.05.13

Clarice, a misteriosa, esfíngica, uma das figuras mais fascinantes do século XX, a que se guarda firme no coração de cada um... Podíamos esgotar os adjectivos, e nem assim chegaríamos a dizer o que há a dizer sobre a escritora brasileira. A exposição na Gulbenkian e a reedição da obra em Portugal são o pretexto para celebrar Clarice Lispector no próximo Ler no Chiado. Com a escritora Lídia Jorge, a professora de Filosofia Maria João Mayer Branco e o jornalista e director do Jornal de Negócios Pedro Santos Guerreiro - leitores apaixonados de ClariceEu faço a moderação. Dia 16 de Maio, às 18.30, na Bertrand do Chiado.

Bagão Félix

12.05.13

«Longo e penoso é o caminho através de normas e leis, curto e eficaz é através do exemplo». António Bagão Félix recupera Séneca numa tarde de Verão. O Ministro do Trabalho e Segurança Social pretende ser um homem exemplar. Sem alguma vez o ter posto deste modo, pretende ser um honrado.

No interior transmontano, onde cresci, dizia-se abundantemente «Trabalhar é honra».

Por trabalho entendi sempre uma mobilização do eu para um qualquer projecto. Por isso também, falei da pretensão de ser. Tenho a impressão que o ministro conordará comigo que se trata de um esforço continuado, de uma estrada que não encontra termo senão no fim. O fim é a morte. E a morte era uma das minhas propostas para o arranque desta entrevista.

Nesta entrevista não se fala de despedimentos. A não ser do seu. Nesta entrevista não se fala da crise. A não ser da que faz um homem vacilar, e dizer à mulher que não se é capaz, que se é pequeno perante tanta imensidão. Nesta entrevista não se fala do Benfica. A não ser para reconhecer o clube como espaço onde se cortam amarras. (A propósito, os amigos da bola chamam-lhe «Tio Tó»!). Nesta entrevista conhecemos este homem que esteve para ser botânico, e sabemos porque não foi, e foi afinal este que reconhecemos do espaço público. Um homem com qualidades.         

 

 

Tenho três pontas por onde começar. A sua paixão pelas orquídeas, o seu despedimento e a morte. Prefere começar por qual?

A morte. É mais fácil porque já estou mais perto do fim.

 

Do fim de quê?

Da vida. A única certeza que temos quando nascemos é que vamos morrer. Já viu o que era não poder morrer?

 

No que é que resultaria?

Num grande sofrimento.

 

Porque não haveria objectivo para o caminho?

Sim. A nossa luta, o nosso combate, os nossos objectivos resultam justamente disso, de sabermos que temos um tempo limitado. Se fôssemos eternos, seria o tédio completo. A ideia de eternidade é medonha do ponto de vista físico. Mas eu acredito na eternidade noutro plano, que é o plano da fé. E acredito mais: a própria idade aproxima-me de Deus. Como dizia Jean Guitton, «Envelhecer é estar mais perto de Deus».

 

Como é que sente essa aproximação? É por uma pacificação interior progressiva?

É interessante a sua palavra, «pacificação». Eu ia chamar-lhe serenidade. Que significa a pessoa estar mais preparada para esse momento. E, tendo a sorte de ter fé, (para mim é uma felicidade ter fé), sofro menos com a ideia. Porque é sempre um desenlace, uma ruptura.

 

A fé é uma benção concedida ou pode ser procurada? Pensemos num agnóstico que preferiria gozar da felicidade da fé; poderá encontrá-la?

A fé é a crença racionalizada. Admito que a crença seja mais «genética» do que a fé. A fé precisa ser estimulada, vivenciada. A crença constrói-se da certeza. A fé constrói-se da dúvida. É nos momentos de dúvida que a fé se torna mais robusta. Nesse sentido, a fé tem que ser um exercício constante. Admito que haja alguma predisposição, como também admito que os tempos de infância, o ambiente social, familiar, paroquial sejam importantes.

 

Como é que se ensina alguém a Fazer? O trabalho implica uma mobilização, um fazer. É capaz de ser uma palavra fundamental na sua vida porque corresponde a um investimento, a uma deslocação. Como é que se ensina alguém a trabalhar, a estar de um modo empenhado?

Permita-me discordar da sua ideia de associar o trabalho ao fazer. Eu acho que a primeira associação do verbo ao trabalho é Ser.

 

Porquê?

O trabalhar é imanente à natureza humana. A ideia do esforço, do combate, da espada não pode ser dissociada da nossa natureza. Como é que o Ser se reflecte? Nas várias formas de fazer e nas várias formas de saber. Nas competências e nas atitudes; em termos mais manufactureiros, nas destrezas. Muitas vezes trabalhamos sem fazer, no sentido estrito do termo. Podemos trabalhar pensando; mas pensar também é uma forma de fazer. Podemos trabalhar relacionando-nos.

 

Somos feitos para trabalhar?

Não posso deixar de ter a minha perspectiva de homem de fé. No livro de Genesis diz: «Amassarás o pão que vais comer com o suor do teu rosto». Ou seja, nada se faz sem esforço, é preciso trabalho. Depois, a Igreja diz: «Não foi o Homem que foi feito para o trabalho, foi o trabalho que foi feito para o Homem». Ou seja, o trabalho é um elemento decisivo para a nossa continuidade como espécie, para a realização pessoal, cívica, profissional, espiritual; mas não podemos transformar o esforço na escravidão.

 

Goethe dizia que o alvo da viagem é viajar. Ou, posto de outro modo, é muito mais interessante levantar a questão do que encontrar a solução. Concorda com isto?

Concordo. O Homem de hoje anda excessivamente preocupado com questões científicas, técnicas, que são muito importantes, mas que respondem ao como. Estamos cá para responder ao porquê e ao para quê. Para nos explicarmos. Porque é que estou aqui? Porque é que estamos aqui os dois a conversar? Porque é que nascemos?

 

Essas perguntas ocorrem-lhe amiúde?

Todos os dias. E ocorrem-me no alinhamento com a fé. Preciso de encontrar respostas.

 

Volto ao aforismo de Goethe: precisa de encontrar ou é mais importante a formulação? Para essas questões, não acharemos nunca resposta.

Pois não, o que significa a nossa limitação. Chego a Deus nessa procura. Deus é sinónimo de busca incessante, de ser melhor... Por isso é que não percebo o católico não praticante ou o religioso de outra religião não praticante.

 

Isso é o fazer do caminho.

É o caminho, exactamente. A senda. Cristo diz isso muito bem: «Eu sou o Caminho. Eu sou a porta». É a porta, mas não é a casa em vida.

 

A Viagem é uma excelente metáfora para a vida, então.

Estou inteiramente de acordo. O que distingue as pessoas é o rumo, é a velocidade, são os apeadeiros, as paragens. É isso que leva algumas à depressão, outras à euforia, outras à contemplação, outras ao suicídio. Uma guerra civil dentro de nós. A «gestão» dos nossos conflitos, todos os dias, a todas as horas é das coisas mais fascinantes. Às vezes mais dolorosas, mas também é isso que nos faz viver. É um martírio e um fascínio, é um extintor e um propulsor.

 

A maior parte dos católicos que conheço têm uma atitude auto-punitiva e castradora. Quando nos conhecemos, há meio ano, surpreendeu-me a alegria com que exprimia a sua fé. Reencontrei-a agora, na sua expressão. E o martírio, como se desenha no seu rosto?

Não direi que é um martírio, mas uma luta incessante na busca da felicidade.

 

A busca assume sempre um sorriso nos lábios?

Em primeiro lugar, procuro que assim seja. Em segundo lugar, há uma coisa que tenho aprendido com a idade: a felicidade tem muito a ver com a autenticidade, com a conformidade entre sermos, estarmos, fazermos, dizermos, pensarmos, transmitirmos. Esta coerência ou congruência entre as diferentes expressões de ser, quanto mais for conseguida, mais felizes somos.   

 

O que é a felicidade?

A felicidade é atingir o simples. E ao atingir o simples está-se mais perto do absoluto. E portanto está-se mais perto de Deus. É nos momentos em que nos mostramos mais simples que somos mais felizes. O momento de euforia não é um momento simples.

 

Pode-se encontrar no arrebatamento uma sensação de plenitude, ou não?

Mas isso é uma bebedeira. É um estado de embriaguês que pode ter a sua piada como momento de libertação. Mas é um momento. A felicidade não é uma fotografia, tem de ser um filme. Tem de ser sustentada.

 

Quer dizer que a sua noção de felicidade pressupõe continuidade, não é uma noção fragmentada?

Vou utilizar uma imagem provavelmente irritante porque excessivamente economicista: distinguimos os aspectos estruturais dos aspectos conjunturais. A felicidade é uma noção estrutural. Se me tirar uma radiografia do meu estado de alma, um electro-alma-grama (inventei agora uma palavra!), o resultado do dia-a-dia é irregular, tem altos e baixos. Mas se me puder fazer o mesmo exame ao longo da vida, ele é muito mais estável, no sentido em que me aproximo dessa ideia de felicidade. Que culminará com a morte, por mais estranho que pareça.  

 

Já alguma vez se sentiu fundido com Deus ou sente sobretudo a aproximação progressiva?

Há momentos, de grande serenidade, de grande quietude, em que sinto que tenho Deus dentro de mim. É muito difícil descrevê-los, sabe? É a sensação de que já estamos do lado de lá, ainda estando do lado de cá. É a intimidade completa com Deus.

 

Não há nada de particular a suscitar esse encontro e de repente sente-se fundido a Ele, é?

É. É Deus que constrói esses momentos, não sou eu. É Deus que vem ter comigo. Nunca consigo isso quando sou eu a procurar Deus. Não consigo isso na oração.

 

O que é que se consegue na oração?

-Temos tendência – faz parte da nossa vulnerabilidade – para fazer da oração uma conta-corrente com Deus. Oramos quando nos sentimos aflitos, perdidos. É um grande acto de injustiça, que eu muitas vezes cometo, como qualquer pessoa. Com o tempo habituei-me a procurar falar com Deus nos momentos em que aparentemente não estou a precisar Dele. A ideia da oração não é ir bater à porta, meter-Lhe uma cunha. Como aqueles «amigos» que nunca mais vimos e que de repente nos contactam e a seguir vem o pedido.

 

Está ainda muito sujeito a essas coisas?

Vou dizer-lhe uma coisa: detesto que me peçam coisas quando só se lembram de mim para pedir coisas. Adoro dar, (é dando que se recebe), quando percebo que a aproximação não foi por causa disso. A minha mãe, que já faleceu, o meu pai, a Romy, a minha mulher, evitam ser intermediários em pedidos, seja de que tipo for; sabem que reajo mal. Irrito-me.

 

Vamos pôr a seguinte situação: o seu genro fica desempregado...

Já ficou. Ele trabalhava numa empresa que encerrou. Esteve 4 ou 5 meses desempregado. Não mexi uma palha para conseguir qualquer coisa.

 

Não seria capaz de mexer?

Não. Inibo-me totalmente.

 

Mas porquê? Porque há sempre uma factura a pagar?

Não há almoços grátis, não há pedidos grátis. É quase uma regra universal. Mas não é por isso. É uma inibição natural, pedir para mim ou para as pessoas da minha família.

 

Quanto mais próximos maior a inibição, imagino.

Sim, em tudo.

 

As suas filhas não teriam coragem de fazer pedidos? Justamente por lhe reconhecerem essa inibição?

Melhor: elas também têm inibição de pedir. A minha filha é veterinária e tem uma clinicazinha. Devo ter aqui um cartão dela para lhe mostrar... [procura na carteira]. Não tenho. Ela apresenta-se como Catarina Félix. E Inês Félix.

 

Faria gosto em que usassem o Bagão Félix?

Faria gosto, mas não me importo. Compreendo e respeito que seja assim. É uma atitude de muita dignidade. E de muito respeito por elas próprias, sem desrespeito pelos pais. Olhe, descobri o cartão dela.

 

É muito giro.

É que a minha outra filha é designer e foi ela que o fez.

 

Mostre-me que outras coisas tem consigo, quais são os seus objectos. Esse santinho é da Nossa Senhora?

Sim. Tenho aqui uma fotografia do meu pai, das minhas duas filhas, da minha mulher e do meu genro. Tenho a última coisa que a minha mãe escreveu antes de morrer com um ataque cardíaco. Morreu em Janeiro de 97 e eu tinha tomado posse há pouco tempo como presidente da Comissão Justiça e Paz; ela perguntou-me exactamente como é que se chamava a comissão e escreveu e guardou no roupão.

 

A sua mãe escreveu no papel «Comissão Justiça e Paz». E guardou o papel no bolso.

Sim. Eu assisti à morte da minha mãe. Fui visitá-la ao hospital e assisti. Depois fui ao roupão e encontrei isso. Não mais me largará até ao fim da minha vida. Depois tenho uma coisa que se calhar não se usa, e que além de ser uma redundância é provavelmente uma intenção pia: «A quem encontrar esta carteira, agradece-se o envio da documentação pessoal para António Bagão Félix», e a morada. [risos] Olhe, e trago isto.

 

Isso é o quê?

É do livro do Vergílio Ferreira, uma das contas-correntes, a 654. Posso ler?

 

Se faz favor.

«Toda a gente admira a obra de um grande artista e ergue-lhe mesmo, às vezes, um monumento a confirmar, mas nunca ninguém ergueu um monumento a um homem e sua mulher por terem gerado um filho, que é a obra infinitamente maior».

 

Não tem nada do Benfica na sua carteira?

Tenho. O cartão de sócio, e o do Belenenses também. Mas vou mostrar-lhe uma coisa aqui num dossier. Que eu tenho a minha vida toda organizada.

 

Este é o dossier da sua vida?

De algumas coisas. De viagens. Tenho outros. É para prolongar um bocadinho a minha vida depois de deixar de viver com aqueles que deixo cá. Fazemos a eternidade através daqueles que deixamos cá.

 

Por isso é que tem esse recorte do Vergílio Ferreira.

Exacto.

 

Porque é que guarda umas coisas e não guarda outras?

Porque há coisas com as quais me identifico. Viagem, botânica...

 

Sim, mas porque é que, nas coisas que se inscrevem nos seus interesses, guarda umas e não outras?

Primeiro, tenho consciência do caracter finito das coisas. Segundo, acho que um ser racional tem de ser selectivo. Terceiro, porque o amor é livre. Amo, gosto de pessoas e de coisas. Interesso-me por coisas a que outras pessoas não acharão interesse nenhum. Mas olhe, aqui no dossier: «Família Félix em viagem». Tenho a simbologia das cidades: interessante, muito interessante. Hotel: muito bom, bom, razoável... Isto é discutido em família.

 

Como é que a elaboração dos dossiers se processa?

Vamos todos para o sofá e começamos a ler e a revisitar as viagens. A memória é o nosso cofre-forte. Gosto mais de passado do que de futuro. O passado já se viveu. Aqui tenho os países que já visitei por ordem alfabética. Mas não actualizo isto desde 2 de Janeiro de 2002.

 

Tem uma memória prodigiosa. Quando esteve doente, aquilo de que teve mais medo foi de perder a memória? Quando se está numa situação de perigo real, como é o embate?

Em termos de memória? Tive medo das anestesias.

 

E em termos de vivências? O que é que o aflige?

Há momentos em que parece que podemos morrer por qualquer razão, ou porque nos estamos a sentir mal ou porque vamos em viagem e nos dá para pensar nisso. Só há uma coisa que me aflige. Não é tanto a morte, é não poder despedir-me. Da minha mulher, das minhas filhas, do meu pai. Despedir-me fisicamente. Sinto isso como uma espécie de cuidado com as pessoas que ficam. Quero avisá-las: isto vai acontecer-me. É para ver se diminuo a dor da surpresa.

 

Isso foi acentuado depois da morte da sua mãe, que foi repentina?

Foi. Felizmente o meu pai ainda vive. A morte da mãe deve ser a morte mais funda que há, porque é o cordão umbilical a funcionar. É a nossa natureza que morre um pouco. Mas a morte de um filho - que felizmente não me aconteceu – deve ser a morte mais violenta. É o acto mais anti-natural. Como a canção do José Afonso: «Deus mo deu, Deus mo levou».

 

É curioso que cite uma canção do Zeca Afonso.

Tenho os discos quase todos do Zeca Afonso. Mas de quem gosto mais é do Rodrigo Leão, que conheci pessoalmente no sábado.

 

O que é que lhe disse? «Sou seu fã»?

A Jacinta [Oliveira, assessora de imprensa] assistiu. Entrei num restaurante no Alentejo e vi-o. Levantei-me e disse: «Admiro-o muito, é o músico português que mais admiro, tenho todos os seus discos».

 

O que é que gosta? Do carácter religioso da música dele? É uma música quase intangível.

O que mais gosto na música dele é a seriedade. Que é um misto de várias coisas: de serenidade, de misticismo, de não cedência ao fácil, à circunstância. E tem uns laivos de minimalismo. Gosto de música minimal. Adoro Philip Glass; por ser minimalista, posso pegar-lhe em qualquer momento. Ouço 50 vezes uma sinfonia de Philip Glass e 50 vezes ouço de maneira diferente. Porque sou eu que entro na música, não é a música que me agride.

 

[continua a mostrar o dossier]

 

A quem é que tem vontade de mostrar isto? À sua neta, que tem meses?

Tenho muita vontade. Também para lhe ensinar geografia, política... Tenho aqui o ranking das cidades, distâncias percorridas. Já dei o equivalente, pelo ar, a 22 voltas à Terra pelo Equador, ou fiz 2,3 viagens à lua.

 

O mais extraordinário é que tenha tempo para esta contabilidade.

É aquilo que lhe disse: quanto mais se trabalha mais tempo livre se tem. Que a pessoa não está num estado entediante.

 

Sabe estar sem fazer nada?

Não. É preciso um esforço brutal para não fazer nada.

 

Deixe-me voltar ao momento em que de repente se sente invadido pela presença de Deus. Pode acontecer quando está entretido a fazer um destes gráficos?

Sim, absolutamente. Vou-lhe contar uma coisa. Tenho duas semaninhas de férias, vou para o Alentejo; uma das coisas que estou a antever como mais «gozoso»?: actualizar isto, que já não actualizo há um ano e meio. Tenho aqui os nomes dos 123 aeroportos onde estive; roteiro de regiões, províncias, estados, territórios, ilhas e ilhéus; onde é que andei de comboio, de embarcação, de carro, de autocarro, de helicóptero, de trenó, de camelo.

 

A partir daí pode reconstituir-se a sua vida toda.

Toda. Tenho tudo escrito.

 

Não tem segredos?

Não, não gosto de ter. Gosto de partilhar conhecimentos. Gosto de redistribuir tudo. Já agora, onde é que apanhei a maior chuvada, a maior trovoada, mais frio, mais calor, mais humidade, o maior nevão. Os medicamentos que levei. Frases célebres das viagens. Por exemplo, no Brasil: «O senhor não é o doutor Bagão Eanes?», ou «Ainda não comprei nada para mim», que é a habitual queixa da minha mulher. Depois temos as cenas inesquecíveis: uma queda num hotel, a troca de pratos no restaurante...

 

Não lhe faz espécie alguma que a sua vida possa ser minuciosamente reconstituída?

Não, pelo contrário. As conferências que fiz, as entrevistas em estúdio, nas televisões... E depois as corruptelas de Bagão. Já vou em 80: «Bazão, Vagão, Gabão, Gamão, Rajão, Bayão, Bogas, Bagaúm, Bagas, Gabaião, Babão, Baigão, Barão, Baguão, Gagão, Bazão, Bagon, Aragão, Dagão, Beirão, Bangon, Bafão, Brasão, Baga, Borgão e Dragão Feliz...»!

 

Porque é que tem esta obsessão com o que fica de si, com a sua passagem?

É justamente para ficar marcada. Tenho esse direito. Tenho o dever de viver e tenho o direito de deixar marcas de ter vivido. Como as pessoas vão usar esse direito já me é indiferente. Não me é totalmente indiferente... Mas não posso fazer nada sobre isso.

 

Se tudo pode fazer parte desse dossier, isso quer dizer que tem permanentemente uma preocupação extrema com a sua imagem, com aquilo que deixa?

Sim, com o meu testemunho.

 

É como se não admitisse a si mesmo qualquer atitude indigna de figurar naquele dossier.

Esta corruptela mostra o contrário. Divirto-me com coisas que se calhar irritavam algumas pessoas.

 

As corruptelas são dos outros. Deixe-me fazer a pergunta de outra maneira: há coisas que fez das quais se envergonhe e sinta remorso?

Envergonhar? Remorso e arrependimento não, no sentido profundo das palavras. Envergonhar, no sentido superficial, isso tenho. Porque é que disse este disparate? Porque é que me precipitei? Isso toda a gente tem. Tenho uma coisa horrorosa que é o eco, estar a falar e, ao mesmo tempo, a ser auto-crítico. Muitas vezes há a obsessão doentia do perfeccionismo, que tenho. Estou-me sempre a ajuizar.

 

Não se permite falhar?

Falho todos os dias. Não o digo para ser politicamente correcto. A começar porque falho comigo. Estou em constante luta comigo próprio. Quando junto as duas partes da minha pessoa, as duas partes que estão em guerra, e elas se harmonizam, é exactamente nesse momento que me sinto com Deus. A falha faz parte da natureza humana. As falhas tectónicas, as falhas do nosso dia-a-dia. Mal seria se não falhasse.

 

Quando lhe perguntava pela vergonha, referia-me a qualquer coisa mais grave. 

Parece uma confissão...

 

É terrível para uma pessoa tão exigente consigo própria saber que há uma nódoa negra no seu íntimo. Em «Vanina, Vanini», de Stendhal, a personagem comete uma loucura por amor; e depois escreve-se que ela não contava com o peso da consciência: «Na véspera, ao trair, esquecera-se do remorso».

Pascal dizia que «a consciência é o principal livro de moral que raramente consultamos».

 

Porque é que é raramente consultado?

Porque há uma tendência para o efémero, o fútil, o superficial. Hoje para atingirmos a espiritualidade, para nos encontrarmos connosco, temos que fazer esforço. O que leva as pessoas a tomarem anti-depressivos e tranquilizantes e tudo isso é aquilo que todos temos, que são buracos na alma. Tenho a sensação dos buracos na alma, ou seja, das omissões. Isto é como quando se lê um jornal.

 

Explique-me isso.

Quando se lê um jornal, faz-se um juízo sobre o que se está a ler. Mas não sobre aquilo que não está no jornal e que poderia estar. O critério da omissão é tão forte ou mais poderoso – porque invisível – do que o critério da acção. E por omissão, na minha vida, naturalmente que tenho buracos. Tenho fragilidades. Por exemplo, não sou, no sentido tradicional do termo, muito afectuoso. Sou incapaz de fazer uma festa às minhas filhas. Faço-o em momentos muito críticos.

 

Que dificuldade é que tem em tocar? Fixei-me na sua expressão «acariciar uma orquídea» porque a textura da orquídea é muito particular; é, entre as flores, a que mais se aproxima da pele humana. E contudo, não é capaz de acariciar as suas filhas.

É uma boa questão. Provavelmente tem raízes infantis, recalcamentos, preconceitos, pudor. Não sei explicar, sou assim.

 

Está mais liberto?

Não. Ou talvez esteja. Estou a fazer em relação à minha neta o que não fazia com as minhas filhas.

 

O quê?

Estou apaixonado pela minha neta. Peço à minha filha, quase de joelhos, para ir dormir lá a casa. Estou apaixonado! Ouça, é um bálsamo.

 

O que sente quando vê a sua neta dormir?

Fico a olhar, só a olhar, minutos seguidos. Então estou no mar da tranquilidade. Também é uma expressão do encontro com Deus. O que é Deus? Deus é o Bom, é o Belo e é o Verdadeiro. É a perfeição. É a harmonia. A criança tem isso tudo.

 

A paixão que tem pela sua neta é uma coisa inédita na sua vida?

É.

 

Nunca esteve apaixonado assim pelas suas filhas, pela sua mulher?

Evidentemente gosto muito das minhas filhas... Mas é a diferença entre ter 55 anos ou ter 25. Uma diferença que até é física. Ás vezes revisito sítios, becos onde jogava futebol que na altura tinham a dimensão de um estádio. Como é que eu jogava futebol ali? Ou a minha escola.

 

Senhor ministro, conte-me como é que era aos 25 anos? O que era a sua vida aos 25 anos?

Aos 25 anos comecei a usar óculos.

 

Foi um acontecimento marcante na sua vida ter de usar óculos?

Foi uma descoberta. Realmente tenho uma grande memória. Lembro-me perfeitamente da primeira vez que pus os óculos na cara. Trabalhava na Companhia de Seguros Mundial, no 3º andar, sei quem é que tinha à frente. Comecei logo com 1,5 diopteria. «Mas é isto tudo que eu vejo?». Para lá dos óculos, nasceu a minha primeira filha, a Catarina, a 13 de Junho de 73. Acabei a tropa, vivíamos numa casa muito pequenina, mas que saudades que tenho!

 

De que é que tem saudades?

Tenho saudades de tudo. O tempo é o grande alisador dos sentimentos. É uma espécie de diluente das pontas de euforia ou de desânimo. Não lhe acontece também? Até ter saudades de uma coisa que naquele momento foi desagradável, mas que o tempo moldou?

 

Encontro regularmente em pessoas que têm uma vida folgada essa nostalgia do tempo em que o espaço era exíguo, o dinheiro contado. Explique-me porque é assim.

Escrevi no meu livro e vou repetir: a felicidade não se faz querendo ter mais, faz-se querendo ter menos. Faz-se pela renúncia, não se faz pelo excesso. Somos muito mais felizes quando temos de escolher. Quando tinha 25 anos, eu e a minha mulher fazíamos uma coisa de que ainda hoje nos rimos, que era a contabilidadezinha das despesas. A minha mulher era estudante, eu da tropa ganhava três contos e oitocentos, depois fui para assistente na faculdade onde ganhava mais seis contos, portanto nove contos e tal. Tínhamos de pagar três contos, setecentos e cinquenta de renda de casa, já tínhamos esta filha, um irmão meu a estudar que estava na nossa casa... E aquilo era saboroso.

 

Nunca quis coisas que não pudesse comprar?

Não. Procuro sempre querer menos, para poder usufruir melhor daquilo de que gosto. Nunca tive essa sensação. Até porque os meus gostos não são caros. Não gosto de automóveis. Os meus gostos é fazer isto [o dossier], são os CDs, os livros, é estar com pessoas de quem gosto. Os meus gostos são muito baratos. As viagens são um bocadinho mais caras.

 

O que é o dinheiro na sua vida? E estabeleço uma conexão entre dinheiro e trabalho. A maior parte das pessoas trabalham para ter dinheiro, e sentem-se mal remuneradas, e gostariam de ter uma vida diferente e não têm por causa do dinheiro. Essa sensação nunca a viveu?

Não. Nunca vivi zangado comigo próprio. Há pessoas que vivem sempre zangadas consigo e com o mundo. Reconheço que o dinheiro é importante porque é uma condição necessária, mas não é suficiente. Nunca será suficiente. Vemos pobres felizes e ricos infelizes, o que significa que o dinheiro não tem uma relação directa com a felicidade. Pelo contrário. Há muita gente que à medida que vai tendo mais dinheiro vai tendo mais infelicidade. Fica insegurança face ao património que tem.

 

No mundo da alta finança, dando-se com ricos, assiste a essa insegurança? As pessoas ficam com medo, e desconfiadas?

Tenho amigos meus assim. Digo-lhes: «És infeliz. Estás a tornar-te uma pessoa cada vez mais infeliz». Se fosse por isso [dinheiro], não tinha aceite este lugar.

 

Ganha dez vezes menos, não é?

Não, não. Ganho 20% do que ganhava. Mas não me queixo. Só me queixaria se viesse para aqui e não soubesse, o que seria uma irresponsabilidade.

 

Mas diga-me uma coisa: já tinha uns depósitos que lhe permitiriam manter o barco?

Sim. Neste momento gasto mais do que aquilo que ganho. Tenho de ir às minhas poupanças todos os meses. Não me preocupa. Não sou rico, mas tenho algum conforto. E tenho os meus objectivos materiais todos conseguidos: tenho a minha casa, tenho o meu Alentejo, tenho as minhas filhas formadas, a minha mulher trabalha. Não preciso de mais.

 

Em relação às suas filhas e à sua neta, não tem a preocupação de lhes deixar uma segurança material?

Estou a deixar-lhes em vida. Estou a dar-lhes a ferramenta para pescarem.

 

Para si, é mais importante que deixar a canastra com peixe.

Sem dúvida. Às vezes também ajudo materialmente. A minha filha tem a clínica e às vezes precisa de comprar os aparelhos, que são caros; se puder, gosto de ser eu a comprá-los. O que tenho é para elas. Não preciso de dinheiro, a não ser para o dia-a-dia. Isso dá-me uma grande tranquilidade.

 

Voltando aos seus 25 anos. Já conhecia Morais Leitão, que é uma figura crucial na sua vida?

Crucial. Estou muito grato ao doutor Morais Leitão. Foi com ele que aprendi a trabalhar.

 

Aprende-se a trabalhar?

Ah, sim. Trabalhar é mais que saber. Aprendi que o trabalho não é uma maratona, é uma estafeta; passamos testemunhos aos outros. Aprendi o que é o valor fundamental do erro, a pedagogia do erro. Paul Valérie dizia que ser competente é cometer erros de acordo com as regras. Também é muito verdade o que uma vez vi escrito: «Um bom gestor é aquele que acerta 7 vezes em 10. Um optimo gestor é o que acerta 8 em 10. Se disser que acerta 9 em 10 ou 10 em 10 é um mentiroso».

 

Conte-me o encontro com Morais Leitão.

Eu teria 24 e ele 34 anos. Sabe qual foi o aniversário que mais me marcou? 33 anos.

 

A idade da morte de Cristo?

Exactamente.

 

Teve medo de morrer?

Não sei porquê. Foi uma mistura de plenitude e de receio. Uma mistura estranha.

 

Já estive para perguntar várias vezes: tem a sensação de formar uma díada com Deus? Podia perguntar-lhe o mesmo quando falou da relação com a sua mãe.

Sim, sim, sim. Absolutamente. Quase me apetece dizer, embora seja enfático e até errado, que quase a sinto fisicamente.

 

E com a sua mãe?

Sentia. Com a mãe é a natureza. Tive sempre dificuldades em ser afectuoso. Via os meus irmãos a fazerem festas à minha mãe e eu nunca fazia.

 

Ela fazia-lhe a si?

Fazia.

 

Gostava disso ou sentia-se intimidado?

Quando era miudo gostava. Dou mais valor a um olhar, a um silêncio, a uma aproximação do que a uma carícia. Acho que é um excesso. Penso que é no Templo de Delfos que está escrito: «Nada demasiado». Ou como dizia Santo Agostinho: «A medida do amor é amar sem medida». Se é sem medida não precisa de ser verificado, certificado. É a vida, é o contínuo. Fui sempre um bocadinho alérgico a sinais exteriores de amor.

 

Tem que ver com o seu catolicismo? Porque essa repressão física, libidinosa até, é uma marca da religião.

Admito que sim. É a formação judaico-cristã, a ideia de pecado. O pecado está mais na intenção do que na expressão factual.

 

Recuemos à idade em que essas coisas se definem: até os 13 anos era mais solto com o corpo?

Era. Aos 6 anos escrevi a minha primeira carta de amor. E aos nove escrevi outra. Apaixonava-me com muita facilidade.

 

Tenho a impressão que não foi padre porque não conseguiu resistir ao amor.

Não lhe consigo responder. As pessoas mais velhas diziam: «Tu vais para padre». Comecei a namorar com a minha actual mulher aos 16, 17 anos. Já lhe contei como é que entrei em contacto com a minha mulher? Escrevi-lhe uma carta de amor e disse que era o número 64, da alínea G, do sexto ano. Ela teve de ir ver à pauta...

 

Voltanto ao doutor Morais Leitão. A presença dele teve um impacto religioso?

Ele também é católico praticante. Estava para sair da tropa, e dois colegas indicaram-me ao doutor Morais Leitão. Fui à entrevista.

 

Ia nervoso?

Eu estou sempre nervoso. Não parece, pois não?

 

Pois não.

Tenho grande auto-domínio. Se daqui a bocadinho tiver que ir fazer um discurso estou nervoso. E ainda bem: tenho a noção da responsabilidade. Mas essa pergunta que me faz é muito curiosa: na memória transportada devia estar nervosíssimo, mas a sensação que tenho é que não estava nada. E assim começou a minha vida. Ele era muito exigente. Tive os meus momentos de desânimo: não sou capaz, não sou capaz. Tive, tive. Agora, quando não sou capaz, não me preocupo, digo que não sou capaz, não sei, ponto final parágrafo. Na altura era o princípio da vida. A pessoa chora por isso.

 

E quem é que o levantava?

A minha mulher. Sentia-me muito pequeno numa imensidão.

 

Foi também com o doutor Morais Leitão que se estreou na política.

Em Dezembro de 79, depois das eleições em que o doutor Sá Carneiro ganhou, ouvi uns zunzuns que o doutor Morais Leitão tinha sido convidado para ministro. Cheguei a Lisboa e disse à minha mulher: «Olha, o doutor Morais Leitão chamou-me, vai para ministro, já sei o que ele quer: que seja chefe de gabinete». E afinal não era isso, era para Secretário de Estado da Segurança Social.

 

Há pouco referiu-se a si como sendo um político. Já se olha como político?

Não! Graças a Deus não!

 

Tem assim em tão má conta os políticos?

Não faz parte da minha natureza. É como se me perguntasse: «Gostava de ser patrão?». Responder-lhe-ia: «Não, graças a Deus». Nunca fui patrão no sentido de ter uma empresa minha. O meu pai tinha, era um industrial, e teve que vender; os meus irmãos que são engenheiros não quiseram e eu que sou economista também não quis. Tenho muita admiração pelo meu pai, mas não queria.

 

Como era o seu pai como trabalhador?

Incansável. Era no tempo em que só havia os domingos. Só me lembro de um ano em que o mau pai teve férias – foi a Paris, em 1963.

 

Esse exemplo de trabalho constante foi fundamental?

Sim. A vida só se consegue com esforço e com trabalho. Às vezes é preciso sorte, mas sorte sem trabalho não dá nada. Alguém dizia que a sorte só numa circunstância está à frente do trabalho: é no dicionário. Mas estávamos a falar dos políticos. Não é por acaso que não sou filiado em nenhum partido. Não é que não tenha ajudado _ toda a gente sabe que sou muito amigo do doutor Paulo Portas, ajudei-o muito no que me pediu, no que fui capaz. E não é por falta de consideração ou respeito. É porque não faz parte da minha natureza. Gosto de depender das coisas de que gosto, onde me sinto convictamente eu. E gosto de ser independente por liberdade porque quero exprimir aquilo que sinto em cada momento, em cada espaço.

 

Ficou contente quando foi convidado para ministro? Estava à espera? O seu percurso fazia prever que a qualquer momento poderia desempenhar as funções que actualmente desempenha.

Vou responder com toda a sinceridade: neste momento sinto-me muito orgulhoso de estar neste governo e de ser ministro. Mas tive de fazer um brutal esforço para aceitar.

 

Porque é que não queria ser ministro?

Já tinham passado 12 ou 13 anos, (saí de Secretário de Estado em 1991). Estava desligado e com o meu Alentejo, e tinha acabado de escrever um livro e quero escrever mais livros, e achei que era uma prisão... Aceitei, considerando o primeiro-ministro que me convidou e o doutor Paulo Portas. Aceitei porque não queria ficar catalogado como aquelas pessoas que palpitam, que dão opiniões, e que, quando chamadas para alguma missão, dizem que não. Ficava mal comigo próprio. Familiarmente, tive muitas resistências. A minha mulher detesta exposição pública. Eu também detesto. Alguma vez me viu numa festa social?

 

Em festas sociais não, mas o senhor é dos ministros mais populares.

Porque a minha pasta é esta! Trata com 10 milhões de portugueses.

 

A saúde também trata com 10 milhões de portugueses.

Tenho um antecedente: toda a gente me conhece como benfiquista. Sou geneticamente benfiquista. O Benfica é uma paixão assolapada. É o meu lugar de liberdade da forma. Consigo libertar-me das minhas amarras do dia-a-dia e ser mais químico, mais biológico.

 

É defensor da família tradicional. Imagine que há uma situação de anormalidade na sua família. (Uso a palavra para dizer que foge à norma, e sem um juízo moral). Não iria amá-las menos por causa disso, pois não?

Não imagino, que é uma forma de evitar a questão na minha cabeça. Não imagino. Confesso que não sei como reagiria. Acho que vinham ao de cima os valores mais altos que tenho.

 

Os valores mais altos são quais? A linguagem do sangue ou o catolicismo?

É uma mistura das duas, mas passa essencialmente pela linguagem do sangue. A linguagem do sangue é também uma expressão do catolicismo. Jesus Cristo é contra o pecado mas compreendeu, perdoou e apoiou sempre o pecador. É a diferença entre pecado e pecador, que às vezes as pessoas confundem. Sou contra o pecado, mas não tenho que ser contra o pecador, porque então estou eu a pecar. Já a minha mulher, estou convencido que se portaria melhor numa situação de anormalidade. As mulheres adaptam-se melhor às circunstâncias e ao tempo. Sou conservador, sou no sentido puro e duro, sou muito pouco elástico.

 

As suas filhas foram educadas nos colégios da Opus Dei?

Não, não. Não sou Opus Dei, se era essa a intenção da pergunta. Foram formadas na Escola Alemã.

 

Porquê? Rigor?

Rigor, seriedade.

 

Incomoda-o esta associação que fazem, por ter trabalhado de perto com o doutor Jardim Gonçalves, da sua pessoa à Opus Dei?

Não, nunca fizeram. Acha que fazem?

 

Acho.

É a primeira pessoa que me está a dizer isso. Até já publicamente disse que não era. Tenho amigos da Opus Dei, como tenho amigos ateus, como tenho amigos jesuítas. Não me sinto bem em círculos relativamente fechados e restritos. É a tal ideia da independência como expressão máxima da liberdade, também ao nível religioso.

 

É uma das razões para não ter aderido?

É. Mas devo dizer-lhe, em nome da verdade, que nunca ninguém me pediu para aderir. Já me pediram para escrever sobre o monsenhor José Maria Escrivá. Era um texto que começava por dizer: «Eu não sou da Opus Dei».

 

O texto sobre monsenhor Escrivá era abonatório? Tem simpatia por ele?

Tenho mais simpatias por outros santos. Desde logo por Santo António. No século XX perguntar-me-á, do ponto de vista religioso, quem foram as pessoas que mais me impressionaram: João Paulo II, Madre Teresa de Calcutá e Gandhi. E já agora posso dizer-lhe que tenho uma profunda admiração pelo Dalai Lama.

 

No fundo tem uma admiração por aqueles que buscam.

Por aqueles que buscam na dúvida. A dúvida é um elemento fundamental. E por aqueles que vivem pelo exemplo.

 

O senhor tem a preocupação de ser exemplar em tudo, enquanto trabalhador também.

Por isso ficou tão incomodado quando foi despedido?

Eu não fui despedido, fui exonerado das funções de vice-governador do Banco de Portugal. Aliás, fui despedido porque não quis ir para os quadros do Banco. Recusei.

 

Era uma questão de dignidade?

Exactamente. Não recebi a indemnização. Não quis. Houve um momento em que ainda pensei que poderia ser uma forma de «vingança». Mas não era um motivo sério e recuei.

 

Recebeu alguma justificação para o sucedido?

O que me custou foi a forma. É que fui despedido por telefone, em vinte segundos. Custou-me ser num contexto de um governo liderado por um primeiro-ministro de que tinha sido servidor como Secretário de Estado como melhor podia e sabia. E é um acto de ruptura.

 

Tentou saber com o professor Cavaco Silva os motivos?

Sim, ele teve amabilidade de me chamar.

 

Mas aí o caldo já estava completamente entornado. É verdade que depois ele o convidou para outras coisas e não aceitou?

Quando me convidaram já tinham passado dois meses, a animosidade já tinha passado um bocadinho. Fui convidado, quer pelo ministro das Finanças, quer pelo primeiro-ministro para vários lugares, quer aqui quer na Europa, e disse que não aceitava. Disse mais: disse que nunca mais aceitaria algum emprego público. Este cargo que tenho agora não é um emprego público.

 

É uma requisição de serviço, continua a ser um funcionário do BCP?

Sim. É mais um serviço militar, passe a expressão.

 

Como é que um homem diz à sua família que foi despedido? Como é que disse às suas filhas e à sua mulher?

Estava em Estrasbusgo e telefonei à minha mulher e aos meus pais a dizer o que tinha acontecido. Estava sozinho e tinha que partilhar a angústia e a dor com alguém. Partilhei com quem estava mais próximo e com quem sou mais confidente. No dia seguinte de manhã cheguei aqui e tinha as televisões à minha espera no aeroporto. Mas custou.

 

E por fim passamos às orquídeas. Não é tão forçado quanto parece porque, depois do ministério, tem intenção de se refugiar no Alentejo e dedicar-se à botânica, a sua grande paixão. Porque não foi um botânico? A sua vida podia ter sido outra.

Outra completamente diferente. Não estava aqui, provavelmente não me estava a entrevistar. Na altura, quando se passava do 5º para o 6º ano, tinha que se escolher a alínea para onde se ia. A alínea F era a que dava para Engenharia, Ciências e Agronomia. A G era a que dava para Económicas. Eu pus F e o meu pai perguntou: «Mas porque é que puseste F?». E perguntou-me porque é que não ia para Economia.

 

Qual era a ideia do seu pai? A Economia aparecia por via da segurança?

Nunca perguntei ao meu pai. Nunca precisei de perguntar. A razão que eu acho que ele tinha no íntimo é que prosseguisse a obra dele. Como o meu irmão mais velho já estava em engenharia química, deve ter pensado que se fosse para Económicas poderia ficar com a indústria. Acho que o meu pai teve sempre essa pena. E eu, filho obediente, (isto passa-se em 1963), fui para Económicas. Não fui contrariado... Também achava piada. Mas sabe uma coisa? Estava em Económicas e muitas vezes ia jantar sozinho à cantina do Instituto Superior de Agronomia. Gostava imenso.

 

Isso é comovente. A paixão foi exercitada desde essa altura. Hoje é como se fosse um agrónomo. Sabe tudo, não é?

Sei muita coisa. É raro o dia em que não estudo.

 

Mas que encanto é esse das plantas?

- Gosto de as acariciar, gosto de as sentir. A árvore é mais imponente e o amor tem de ser conquistado. Mas depois também é um amor para toda a vida.

 

Gosta particularmente das figueiras?

Gosto das oliveiras. No Alentejo tenho sobretudo oliveiras. Gosto de árvores que dão uma flor precoce como a amendoeira. Gosto tanto de árvores que quando a minha neta nasceu plantei uma árvore. Ela nasceu numa quarta e plantei uma árvore no sábado. É uma Lagerstromia Indica.

 

Porque é que escolheu essa?

Chama-se a Árvore de Júpiter e tem uma floração muito bonita, rosa a fugir para o lilás.

 

É particularmente bela?

É bela mas sóbria. Não tem muitas folhas, é esguia, é austera. Justar a austeridade com a beleza é o melhor.

 

 

Publicado originalmente no Diário de Notícias em Julho de 2003