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Anabela Mota Ribeiro

António Câmara

12.05.13

António Câmara teve uma vida aventurosa. Ele é o académico que diz que o sistema de ensino por imersão é uma seca do pior. É o empresário que acredita que cinco mil pessoas são suficientes para arrancar o país a uma letargia (e um atraso) de séculos. Tem 52 anos e é um homem do seu tempo.

Estudou engenharia civil no Técnico, partiu para os Estados Unidos no final dos anos 70, doutorou-se na Virgina Tech. Mas do que ele fala, mais que tudo, é da passagem pelo MIT, o prestigiado Instituto de Tecnologia de Massachussets.

Durante anos, viveu como um pé rapado (e perceberão que a expressão merece uma leitura literal), fanou cartões perfurados de computadores, andou de autocarro com os pobres da América. Também foi adoptado por uma lenda da engenharia, entrou para a aristocracia estudantil, penetrou em todos os circuitos com uma raquete de ténis debaixo do braço. Foi jogador profissional, e sabe que se isto correr muito mal pode sempre dar umas aulas no Estádio Nacional.

Quando no fim dos anos 90 voltou a Portugal, após sucessivas idas e vindas, encontrou no lamaçal do Monte da Caparica o cenário ideal para o filme que queria fazer. A Ydreams nasceu em 2000. Como explica para o fim, n’ “A Rosa Púrpura do Cairo”, [Woody Allen], havia um actor que saía do filme. O meu sonho passou a ser pôr um actor dentro do filme”.

O actor e autor do enredo é ele mesmo. Um homem sem medo. Se é inevitável, de que adianta ter medo? Um homem com gosto pela aventura. Conversámos dias depois da atribuição do Prémio Pessoa, que pela primeira vez distinguiu alguém na área das empresas. Foi uma conversa instigante e saí de lá com vontade de fazer coisas! Quem é ele? Creio que não se pode dissociar daquilo que ele faz.

 

 

Na primeira conversa que tivemos enfatizou a ideia de a sua vida ser o que é porque pôde escolher. Gostava que desenvolvesse a ideia da escolha, para começar.

Um professor que tive nos Estados Unidos dizia sempre: “A vantagem de estudarem e adquirirem mais capacidades é que passam a poder escolher. Podem escolher trabalhar aqui ou noutro sítio, e no sítio onde trabalham passam a ter um leque mais alargado de opções”. Foi algo que retive, porque poder escolher é a liberdade, e prezo muito a liberdade.


Isso vem de trás e da sua família, também? Nascer na família em que nasceu permitiu-lhe essa liberdade, esse conforto de poder escolher.

Venho de um meio privilegiado, não posso negar isso. Tive todas as possibilidades de poder optar desde cedo. Essa é uma base que depois tem de ser consolidada. Tenho familiares que não estudaram e o curso da vida deles não teve as mesmas opções que eu tive. O estudo e a investigação são fundamentais.

 

Vasco Pulido Valente escreveu numa crónica recente que os pobres raramente podem escolher, raramente ousam e raramente podem pensar além do horizonte estrito da sobrevivência.

Tem razão. É óbvio que para uma pessoa poder ousar tem que ultrapassar o limiar da sobrevivência. Abaixo, não há grandes hipóteses. Nasci num meio que estava muito além desse limiar, e era quase o meu dever ter ousado e desenvolvido.

 

No texto que escreveu para o Expresso com os seus desejos para 2007, falou da aventura – e de estarmos mais talhados para o conforto. Penso que essa característica (dominante) tem uma relação íntima com o facto de sermos desde sempre pobres.

Sem dúvida. Um pobre, a primeira coisa que deseja é o conforto. Isso acontece mesmo nas famílias mais privilegiadas em Portugal, porque houve sempre uma memória de tempos difíceis. O que penso é que já ultrapassámos esse limiar em grande medida, há uma percentagem significativa da população que vive confortável há muitos anos. É altura de passarmos à aventura.

 

Conforto significa uma casa com luz, electricidade e esgotos, significa ter comida na mesa todos os dias?

Isso são condições básicas. Nós temos quatro a cinco empresas tecnológicas na China, os finlandeses, que têm metade da população, têm quatrocentas; e porquê? Porque há pelo menos 395 finlandeses que resolveram empreender uma aventura. Multiplicando por dois, em Portugal é necessário haver mais mil empreendedores. Não me refiro à generalidade da população, mas de mil portugueses que se aventurem. Para uma taxa de sucesso de uma empresa à volta de 20%, estamos a falar de um horizonte de cinco mil pessoas. Ora, há cinco mil pessoas em Portugal que vivem num conforto suficiente, e têm a formação suficiente, para empreenderem uma aventura.

 

Quem são essas cinco mil pessoas?

Podem ser desde professores universitários a estudantes. O país mudava. A vantagem do empreendedor é que cria empregos. Directos e indirectos. Hoje, na Ydreams, temos empregos directos, aqui, e temos um ecossistema de empresas, na sua generalidade portuguesas, que trabalha connosco; e esperamos, com o nosso desenvolvimento, contribuir para o seu crescimento.

 

Estamos a fazer esta entrevista no início do ano, nos dias em que se fala da entrada da Roménia e da Bulgária para a União Europeia; e, a propósito, falava-se na rádio esta manhã do salto da Irlanda. O sucesso irlandês deve-se, também, à reforma que foi feita na educação e nas universidades – que é o que defende para Portugal.

Gosto muito de falar, não só sobre a Irlanda, mas sobre a Finlândia. É óbvio que houve reformas de base extremamente importantes, em termos políticos, na saúde e na educação. Mas a reforma fundamental deve-se a pessoas. A Finlândia, se o antigo presidente da Nokia não tivesse imaginado que o futuro iam ser telemóveis... Aliás, a história desse presidente é trágica: suicidou-se. Estava à beira da falência, a Finlândia estava à beira da falência, e só dois anos mais tarde [depois da sua morte] a Comunidade Europeia adoptou o GSM, e a Nokia explodiu, e com ela toda a economia finlandesa.

 

Não conhecia essa história. É como se sentisse o peso de um país nas costas.

Sim, mas foi essa pessoa que transformou a Nokia. A Nokia é cinquenta por cento do PIB, tem um impacto brutal. É óbvio que, por ter havido as reformas de educação e saúde, o país estava preparado e surgiram os milhares de empreendedores que deram origem a mais quatrocentas empresas tecnológicas. Na Irlanda, mais do que as reformas na educação, houve uma liberalização total, um esforço dos irlandeses por irem buscar o investimento americano, utilizando a comunidade irlandesa nos Estados Unidos; e houve a aventura de criar empresas. As pessoas que fizeram a nova Irlanda são para aí duzentas. Criaram duzentas empresas de grande significado.

 

Tudo está, então, nas mãos das pessoas, e menos nas medidas do governo?

Toda a gente pôs assente que vão ser as políticas do governo que vão mudar. E vai ser um conjunto finito de pessoas. Depois, toda a gente beneficia, há um efeito de arrastamento. Tendo dado seminários pelo país inteiro, acho que já existe uma massa enorme de juventude pronta para isso. Portugal tem uma vantagem em relação a outros países, porque tem uma economia muito pequena. Se houver um sucesso, a contaminação é total.

 

Acredita deveras que seja possível fazer essa mudança?

Quando eu jogava ténis, fui jogar com o Luís Cruz à Checoslováquia, que era a campeã do mundo; e ele disse-me: “Vamos ganhar, já houve maiores surpresas no mundo”. Perdemos. Mas é verdadeiramente possível Portugal dar a volta. Como ele dizia: “Já houve maiores surpresas no mundo”.

 

Essa percepção, tem-na agora. Já a tinha quando decidiu voltar dos Estados Unidos? 

Não. Quando voltei no meio dos anos 80, Portugal era um país mesmo pobre. E nessa altura, eu próprio, era muito pobre. Não tínhamos dinheiro para ir a um país nórdico. E não tínhamos recursos humanos treinados. O grande progresso de Portugal nos últimos vinte anos, diga-se o que se disser da educação, é que temos hoje uma massa crítica de pessoas. A nível de formação avançada houve dez mil, quinze mil bolsas conferidas. Há os tais milhares de pessoas que podem fazer a diferença. Quando cheguei, não havia ninguém.

 

Então, porque é que insiste na mudança das universidades como a grande aposta que Portugal tem de fazer?

A maior parte das pessoas que tinha estado no estrangeiro, (e fui um deles), não teve uma educação virada para o mundo empresarial. Eu era um teórico. Na universidade tentamos ensinar e investigar o melhor possível. No processo de organização das universidades, o fundamental é o contentamento democrático, é toda a gente estar feliz; mas não é, de nenhuma forma, a excelência, a competitividade, a criação de empresas. Era a universidade do passado. Não há nenhuma universidade portuguesa que permita ao país competir. A universidade portuguesa não cria líderes. A universidade portuguesa forma pessoas para serem empregados, docentes.

 

A mudança passa por aí, pela alteração de um paradigma, pelo empreendedorismo?

O caminho é abrir aos nossos estudantes o espírito de aventura.

 

Em Portugal, esse empreendedorismo é sempre confundido com uma ambição desenfreada. E parece mal ser muito ambicioso. 

Sem dúvida, e isso está completamente errado. Há um código de valores por que a sociedade portuguesa ainda hoje é regida que é desastroso para esse espírito. Mas esse código também está a ser substituído.

 

Estou a ouvi-lo e penso que a sua visão é muito mais optimista do que aquilo que se ouve na rua e lê nos jornais.

Por uma razão muito simples: nós estamos no meio da aventura e vemos que é possível. É muito difícil, muito duro, mas é possível. A maior parte dos empresários portugueses destas áreas tecnológicas tem uma visão mais optimista do país do que a maior parte das pessoas que não estão [nestas áreas].

 

Fiz recentemente um trabalho com imigrantes que vivem em Portugal, de diferentes proveniências. Três deles diziam que é triste o facto de os portugueses dizerem tão mal de si próprios, confiarem tão pouco em si, quando o país tem potencialidades incríveis.

Senti esse pensamento negativo quando era jogador de ténis e jogava por Portugal. A imagem no exterior, sempre, era a de que íamos perder. É impossível ganhar pensando que se vai perder. Se os portugueses querem ganhar, têm que arranjar forças para ter um pensamento positivo. Se eu tivesse um pensamento negativo julgando que a Ydreams ia falhar, não tínhamos sobrevivido o primeiro mês. Eu e a maior parte das pessoas na Ydreams achámos que íamos ter um sucesso estrondoso a nível global.


Ainda na universidade, pode especificar o que é que entende por “mudar”? O que é o que propõe?

Há uma medida, que o governo já anunciou, que é mudar o sistema de governação. Há um problema gravíssimo nas universidades: deixaram-se envelhecer. As pessoas foram contratadas há vinte anos, ficaram, e hoje em dia a média de idades na maior parte dos departamentos ultrapassa os quarenta anos. Isto ocorre quando Portugal, pela primeira vez, tem talentos jovens a quem pagou bolsas e que não consegue empregar. Se não houver professores novos, o que vai acontecer com Bolonha, é que os portugueses talentosos, novos, chegam ao terceiro ano e vão para fora.

 

E nunca mais voltam.

Vai ser a luta dos países no futuro: a luta pelo talento. O que as universidades europeias vão fazer é recrutar os portugueses talentosos. E os portugueses talentosos, vêem estes professores envelhecidos, vêem uma falta de excitação absoluta nos estudos e vão, naturalmente. Como não há dinheiro público, o que devia acontecer, (e está a acontecer em Espanha), era as grandes empresas portuguesas darem cátedras a juniores. A Ydreams vai colaborar nisso com a Universidade Nova, há três pessoas a quem pagamos o tempo de aulas, porque achamos que é decisivo.

 

Pessoas que vão dar cursos para a universidade?

Sim, o tempo de aulas é pago por nós.

 

Isso faz-me pensar no que é verdadeiramente a universidade portuguesa. Conto uma cena: assisti à arguição de uma tese de doutoramento na área da Filosofia de uma pessoa muito jovem. Um professor espanhol vinha muitíssimo bem preparado e durante quarenta e cinco minutos interpelou o doutorando. O português que a seguir interveio, e que era de uma outra universidade, a primeira coisa que sublinhou foi o facto de, na bibliografia, não constarem autores portugueses que se tinham debruçado sobre aquele tema, nomeadamente ele mesmo!

Isso é típico. É trágico. Em 92, eu estava a preparar a minha agregação e resolvi estudar a sério o método de ensino. Cheguei à conclusão de que, não só as universidades portuguesas, mas as universidades de todo o mundo, seguem o método da infecção. Nós tentamos infectar os estudantes e depois chegamos aos testes e testamos a infecção. E como é óbvio, dois ou três dias depois, as pessoas já deixaram de estar infectadas.

 

A matéria desapareceu...

Se formos ver, as universidades que têm melhores sistemas de ensino são Oxford e Cambridge. Têm um sistema de ensino por imersão. As pessoas estudam, reflectem, fazem trabalhos. O MIT tem esse sistema desde o primeiro ano, as pessoas para além das cadeiras têm um projecto de investigação.

 

Em Portugal, o paradigma é o da infecção?

Na maior parte das universidades, sim. Para além disso, a maior parte dos exames e das provas são baseados em perguntas convergentes. A pessoa face a um problema tem que arranjar a solução. Não somos ensinados, treinados, nem recompensados, a pensar divergentemente.

 

O conflito ainda é uma coisa a evitar.

Estudos mostraram que o ensino por infecção penalizava os alunos criativos, visionários, exactamente aqueles que são importantes numa sociedade; e promovia os rotineiros e os normais. Na universidade portuguesa, quem é que são os professores universitários? Aqueles que foram melhores no ensino por infecção. Replicam o sistema. E não são nem os visionários nem os criativos.

 

E cortam as asas a esses.

Se eu olhar para o meu curso, os mais criativos e visionários, nenhum deles é professor universitário. E esse é um problema gravíssimo.

 

Ouviu isto que eu lhe disse de cortar as asas aos criativos? É um aspecto muito sério: estou a falar da inveja, que é muito própria da natureza humana.

Não posso comentar. Nunca senti isso na pele e nunca fiz isso. Mais do que as pessoas, o sistema liquida os criativos, o sistema (que é feito pelos professores), não premeia os criativos.

 

Que tipo de professor é? Como é que avalia os seus alunos?

Sou um professor baseado na emoção e cada vez mais os testes e os trabalhos têm que ser abertos. O caso extremo a que cheguei foi fazer um exame que era para casa, [para desenvolver] numa semana: tinham que escrever as perguntas e responder às perguntas que eles próprios formulavam. Depois, eu classificava as perguntas e as respostas.

 

Estamos a falar de um filosofia de ensino completamente diferente da que existe.

O sistema de ensino tem que ser debatido e mudado.A forma de ensino de hoje é uma seca do pior.

 

Não se lembra de nada do que foi o seu curso de Engenharia Civil?

A única coisa de que me lembro é que, após as primeiras aulas, a minha vontade foi de nunca mais meter lá os pés. A opção era muito clara: era preferível ficar a jogar ténis no Estádio Nacional e depois estudar por mim.


Quando se olha para o seu percurso, impressiona a diversidade de vidas e territórios, e a rapidez com que passa de um a outro. Gostava que voltasse atrás, até à infância, se for preciso, para perceber esta abertura à mudança e este desejo de aventura.

Começo pelos meus pais. A minha mãe veio dos Açores e a família da minha mãe foi sempre aventureira. A qualquer parte do mundo onde eu vá tenho um familiar açoriano.

 

Nasceu em Lisboa?

Sim. Mas passava as férias nos Açores e a minha família dos Açores tinha esta condição viajante.

 

Então, o bucolismo e a insularidade, não o tocou?

Não. Só o outro lado, só o lado da aventura. Por outro lado, o meu pai era um rebelde a sério. Eu, a partir dos quinze anos, passava as férias sozinho, viajava, jogava ténis e era estimulado na liberdade absoluta. Nunca me forçou a estudar e compreendia até que eu não fosse às aulas. Mais tarde, fui influenciado pela vida e pelos professores que tive na América. Tive uma sorte imensa em ter sido adoptado por uma lenda, o Donald Drew; inventou a faixa Bus, foi um dos pioneiros dos semáforos, ganhou duas medalhas de engenharia nos Estados Unidos.

 

Parece-se com a figura do mestre e tutor, que desapareceu do nosso imaginário.

Ele convidou-me para ser assistente, para além de me ter dado uma bolsa. Quando cheguei, tinha uma bolsa miserável, vivia na pobreza, e com esta bolsa passei a viver na aristocracia estudantil, cheio de dinheiro. O que me permitiu comprar todos os livros que queria. O Donald Drew era exigentíssimo, mas tratava todos por igual. Tive vários professores, bem-sucedidos, que eram acessíveis. Combinavam essa acessibilidade com uma ambição extrema, que é algo que choca.

 

Já falámos de como a ambição cai mal...

Todos eles aspiravam a ser líderes no seu campo. Líderes mundiais. Quando fui educado por estas pessoas, sentia: “Tenho que ser bom no meu campo, senão o que é que ele vai dizer?, sou um falhado...”. Sempre que escrevia qualquer artigo, lembrava-me dos meus professores: “O que vão achar quando lerem esta peça miserável?”.

 

Habituou-se a ser zurzido, a ouvir: “Isto é uma porcaria, tem de fazer muito melhor”?

Ouvi isso muitas vezes, claro. Nos anos 80 fiz o seguinte: escrevia para várias universidades onde tinha amigos, ficava em casa deles e ia dar seminários. Não tinha dinheiro nenhum e andava de autocarro. (Só um tipo pobre na América viaja de autocarro, os ricos têm carros ou andam de avião). Oferecia-me, ninguém me convidava para nada. Chegava lá, dava o seminário e tinha a agressividade dos estudantes sobre o que eu fazia.

 

Dos estudantes?

Ouvia tipos a dizerem: “Isso já foi feito há dez anos! Para que é que isso serve?”. E isso fazia o trabalho muito melhor, dava o “feedback” que nos permite ir longe. Essa lógica de ir para arena vem muito da experiência do ténis. Algo verdadeiramente importante na minha educação é o ténis. Uma pessoa aprende a perder e percebe que é quando perde que fica melhor.

 

Isso é de um estoicismo incrível.

Uma coisa importante é a pessoa não se levar a sério. Mas cá, é o oposto. Um gajo faz uma intervenção miserável, “congratulo-me por esta intervenção”, e aquilo não vai a lado nenhum. Tive aventuras incríveis nos States, porque eram todos tipos pobres [aqueles que encontrava no autocarro]. Uma vez ia com uma senhora que ia a fumar ao meu lado, fumava, fumava até ter a cinza deste tamanho [enorme]: depois punha a cinza na minha perna!

 

Essas aventuras e esses encontros foram importantes para perder o medo, também?

Por acaso, nunca tive medo.

 

Temos falado muito de aventura. Para a qual é precisa a coragem. Por que é que nunca teve medo?

Não sei. E mais, gosto de risco. Uma das coisas de que gosto na Ydreams é a enorme pressão que temos para ser bem-sucedidos.

 

Mas quando se pensa no medo, pode ser o medo da morte, da doença, da miséria, de ser desamado.

Todos esses acontecimentos finais são naturais e acontecem alguma vez na vida. De que é me adianta ter medo? É óbvio que tenho medo que pessoas de quem gosto, como a minha mulher ou os meus filhos, sofram. Essas são as vulnerabilidades. Agora em relação a mim, não tenho medo.


Quando foi para a América teve uma vida de pobre, depois de ter tido uma vida confortável...

Fui educado na austeridade. Trabalhei desde os quinze anos.

 

Como é que era a casa da sua infância?

Era uma casa na Infante Santo, em Lisboa, sem grandes luxos. Estudei no Pedro Nunes, tive uma excelente educação.

 

E a primária, onde fez?

Na Escola Ave Maria Cheia de Graça. Mas o ensino no Pedro Nunes fez a diferença. A partir dos quinze anos, dava aulas de ténis.

 

O seu pai tinha dinheiro?

Os meus pais tinham algum, mas não era uma fortuna. Vivíamos confortavelmente, mas não éramos uma família rica e nunca me deram dinheiro. Nunca tive um carro. O meu pai era arquitecto paisagista. E a minha mãe tratava das terras dela e das vacas nos Açores. Tenho mais quatro irmãs.

 

Quando foi para a América, presumo que tenha ido por sua conta...

Tinha uma bolsa baixinha, passei dificuldades. Só tinha um par de sapatos e o meu único par de sapatos teve um buraco. Não tinha dinheiro para pagar ao sapateiro!, era [equivalente a] comprar uns sapatos novos. Havia cartões que se usam nos computadores, e descobri que davam uma óptima sola! Passava a vida a roubar cartões perfurados, (tinha um stock em casa) e ia metendo no meu sapato. Durava uma semana. Um dia, houve uma tempestade de neve e dificuldades no abastecimento de cartões. O meu departamento precisava de fazer um programa e não tinha cartões; então, eu emprestei as minhas solas! Nunca expliquei que aquilo eram as minhas solas.

 

Seria aviltante?

Não sei. Não era nada dramático. Acho que achariam piada.

 

Isso hoje, contado, é uma extravagância deliciosa. Mas estou a tentar perceber como é que na altura lidava com este facto.

O primeiro ano foi duríssimo. No segundo ano comecei a dar aulas de ténis, eu e um colega. A maior parte dos nossos estudantes eram mulheres de professores. O meu parceiro meteu-se com a mulher do professor e fugiu! Não acaba aqui, a história: o professor foi atrás deles e enfiou-lhe três balas.

 

Isso é a América, mesmo.

A América pura. Enfiou-lhe três balas, veio dar uma aula e o xerife prendeu-o no meio da aula. De filme. Depois dessa sessão, não que me tivesse metido com mulheres de professores, mas disse: “Isto é um negócio perigoso”. Passei a ser treinador assistente da equipa de ténis – era mais seguro.

 

Foi sozinho, sem contactos de espécie alguma. É fácil para si criar uma rede?

Há uma fórmula, que uso sempre, que é imediata: a raquete de ténis. Os meus amigos eram todos jogadores de ténis.

 

A sua tese de doutoramento era sobre sistemas ambientais. Por que é que escolheu essa direcção?

Fiz um sistema para optimizar estações de tratamento de esgotos. Foi um programa muito inovador, comprado pela maior empresa sueca de engenharia. Eu podia ter continuado com aquele programa, a fazer todas as variantes, todas as combinações aleatórias, que davam cinquenta artigos. Mas era uma vida o mais secante possível! Vim a Portugal respirar, cheguei à Caparica e aquilo era um lamaçal descomunal, o edifício era miserável. “É exactamente isto que quero”. Aquilo era a fronteira.

 

A fronteira do novo mundo.

Nem sequer quis ir para outra universidade estabelecida. Ali, podia fazer tudo o que queria, e foi o que fiz. O nosso primeiro grande triunfo foi comprar um computador! Tínhamos um computador para o departamento inteiro, professores e estudantes. Comecei sem um tostão, com alguns projectos completamente loucos.

 

Se agora conhece o sucesso...

Ainda conheço o insucesso todos os dias. Numa empresa, publicitamos e celebramos os sucessos, mas temos imensos insucessos. Há propostas que submetemos que não ganhamos.

 

O que quero saber é se esse período americano pobre, em que as coisas não corriam bem, em que era zurzido pelos alunos, tem para si um sabor a insucesso ou a investimento.

A investimento. Também tive sucesso na altura, não fui só miserável. Descobri um erro no principal modelo de ambiente no mundo. Portanto, tive um grande sucesso, que me levou a sair para o MIT. Nunca pretendi o sucesso pelo sucesso.

 

Para que é que serve ter sucesso?

O sucesso serve para termos mais opções. Fora isso, não serve para nada.

 

Se pensarmos nas expressões do poder, (como o dinheiro ou a influência), curiosamente, a liberdade é a menos considerada.

Eu acho que a liberdade é importantíssima. Mas não me considero verdadeiramente bem-sucedido, ainda. A meta é colocar a Ydreams na bolsa internacional. Quando estive no MIT tive um seminário com o Bill Elliot, o fundador da HP (Hewlett Packard); tinha 73 anos, recebeu um cheque de oito milhões no final do seminário, morreu dois anos depois.

 

Porque é que ele o impressionou tanto?

Ele dizia que a universidade deve ser o sítio onde se estimula a criatividade. A filosofia da HP foi revolucionária. Investiu [no seguinte]: tratar bem os seus empregados. Quando foram bem-sucedidos deram 98% do que ganharam a inúmeras causas.

 

Para si, isso é inspirador?

No dia em que for bem-sucedido, o que me vai dar mais prazer é dar. Há um enorme gozo em dar. É quase aquela coisa católica de redimir os pecados.

 

Redimir o pecado do lucro. É católico?

Não. Quer dizer, tive uma educação católica, sou católico não-praticante, se um não-praticante se pode definir como católico.

 

Acha que se deve dar sem se responsabilizar aquele a quem se dá? Repete que a sua máxima é: “Todos iguais, todos responsáveis”...

Não vou dar assim por aí... Uma das coisas mais giras que existem no mundo é a nova filantropia.

 

Ficou contente com a atribuição do Nobel da Paz ao banqueiro dos pobres?

Fiquei. É importante uma pessoa dar inteligentemente. Pode ter um efeito multiplicador incrível. É um luxo enorme uma pessoa ter os recursos para fazer isso.

 

Fale-me do que deixa aos seus filhos, e dos seus filhos. Essa também é uma ideia muito portuguesa e antiga: o património que se deixa.

O principal é dar-lhes a possibilidade de poderem escolher. E isso vem na educação. Tenho sido particularmente activo na educação desportiva.

 

Está certo que foi tenista profissional e tem, por isso, uma relação forte com o desporto. Mas por que é que o acha tão importante?

Importantíssimo. A parte mais educativa é a do desporto de competição, porque ensina a perder, a ter o sentimento de equipa, ensina a pessoa a superar-se. O tempo livre que tenho tem sido a conduzir os meus filhos para o desporto. Não tenho ambição nenhuma em deixar-lhes fortunas.


Que idade é que eles têm?

Um tem 20 e outro tem 10. O meu filho mais velho está em Economia, viveu esta vida aventurosa, também, a saltar de sítio para sítio, foi um excelente jogador de basquetebol; e o mais novo também joga basquetebol. São enormes. O meu filho mais velho tem dois metros e o mais novo é capaz de vir a ultrapassar os dois metros.

 

O que é que gosta de ler?

Autores americanos. Portugal tem o melhor poeta da História, Fernando Pessoa. Um autor que me marcou muito foi o George Orwell. Do Aldous Huxley li imensos. John dos Passos. Também leio muita ficção científica, ainda hoje.

 

Há um conto do Philip K. Dick, que foi adaptado pelo Spielberg ao cinema. No filme, Tom Cruise entra numa loja e é identificado a partir da leitura da pupila. Lembrei-me do filme quando soube que um dos vossos projectos na Ydreams tem que ver com a mudança de padrões e de cores nas roupas, consoante os dias e as pessoas.

Sou completamente viciado em cinema. Passei grande parte do Técnico a ir às sessões clássicas do Monumental e do Império. Mas o filme que mais me influenciou, e influenciou muito a Ydreams, foi “A Rosa Púrpura do Cairo”, [Woody Allen], em que havia um actor que saía do filme. O meu sonho passou a ser pôr um actor dentro do filme. Muitos dos trabalhos que fizemos vêm desse filme.

 

Para terminar, gostava que fizesse uma pergunta e desse uma resposta.

O que eu fiz aos alunos? Essa é a pergunta mais difícil, inesperada.

 

Outra forma de colocar isto é: se não lhe der nenhum ponto de partida, do que é que falaria imediatamente?

O que me ocorre é o seguinte: sinto cada vez mais, sobretudo depois deste prémio [Pessoa], que tenho uma responsabilidade. Às vezes, no limite, sinto-me como o antigo presidente da Nokia, com a responsabilidade de contribuir decisivamente para ajudar a mudar o país. Tive todas as condições, toda a formação, todo o apoio que alguém pode ter. Sinto a necessidade de retribuir. Na Ydreams sinto a responsabilidade de sermos bem-sucedidos e constituirmos um exemplo que ajude o país em geral. É o passo mais difícil.

 

E acreditar que isso não é megalomania.

Sabemos que é totalmente exequível com o que temos hoje, com o que estamos a germinar em investigação, e o conhecimento de mercado que temos. Portanto, a minha pergunta é: “Qual é a responsabilidade?”. É a responsabilidade de contribuir para que Portugal seja um país completamente diferente. Custa-me este estado de espírito derrotista.

 

Nunca teve vontade de se suicidar?

Não, nenhuma.

 

Estou a pensar no presidente da Nokia, claro.

Aguento muito bem o falhanço. Se falhar, vou dar aulas de ténis para o Estádio Nacional com um balde de bolas. Não tenho nenhum desses ímpetos. 

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Junho de 2008

Pedro Santana Lopes

12.05.13

«Mas devo dizer-lhe uma coisa: estabeleci desde muito cedo que estava primeiro a procura da minha felicidade pessoal. Não é por causa da política que sigo um caminho e não outro. (...) E tenho um lema: se Deus nos deu esta vida – e acredito que sim e dou graças por ela constantemente – não podemos desistir de ser felizes, de tentar ser felizes. A acomodação, a resignação a uma situação em que não haja essa chama viva, não faz sentido. Tenho a obrigação de lutar por ser feliz».

Provavelmente nenhum outro político poderia dizer o que este diz. Nenhum ousaria expor os veios que o atravessam. Nesta entrevista não se fala do túnel das Amoreiras. Nem de promessas por cumprir. Nem do mandato que vai a meio. Pedro Santana Lopes fala da massa que o faz ser como.

Nasceu em 1956. Formação em Direito. Político. Presidente da câmara municipal de Lisboa.

 

Gostava que me contasse a história do seu pai e da sua mãe.

A minha mãe estudava enfermagem. A família vivia em Alcácer do Sal e, em Lisboa, estava em casa de uns tios, ali no Arco do Cego. Estava à janela e o meu pai ia a passar com o grande amigo dele, que foi depois meu padrinho de baptismo. Começaram com um galanteio para a janela. Depois casaram, muito novos, o meu pai com 21, a minha mãe com 23. Estiveram casados 40 anos. A família assentava na figura da minha mãe, que tinha uma personalidade mais marcada. Tornou-se diferente depois da morte dela, há quatro anos. Não digo que se desagregou, mas nada ficou igual. Foi uma história de amor bonita. O meu pai era uma pessoa mal aceite pela família da minha mãe. A família da minha mãe tinha supostamente um traço aristocrático e o meu pai era de família de operários da Beira.

 

Aos olhos da família da sua mãe, o seu pai seria o rapaz pobretanas que pisca o olho à menina de família.

É. E que não entrava nos bailes da família da minha mãe, no Saldanha. Entravam os namorados das primas da minha mãe, que eram oficiais de Marinha ou assim, e o meu pai não. A mãe do meu pai era porteira de um prédio da Avenida da República, o meu avô era operário da Central de Cervejas. O meu pai, apesar de estudar Direito, não tinha direito a entrar nessas festas.

 

O seu pai estava a estudar Direito com a intenção de ascender socialmente?

Ele era filho único, já devia ser atilado. É um homem muito calmo, ponderado e sensato. Mas depois perdeu-se. Por amor não chegou a acabar o curso. Casou e foi trabalhar como empregado de escritório para a Companhia das Lezírias.

 

Explique-me essa história dos bailes.

Eram bailes em casa de famílias. O meu pai levava a minha mãe até à porta e não podia entrar. São problemas de famílias, mais daqueles tempos, que não se esquecem. Embora o meu pai tenha perdoado. É um espírito generoso. A minha mãe viveu sempre em Alcácer até vir estudar para o Instituto de Oncologia. Na altura era um género de TAP: as meninas bonitas iam para enfermeiras do IPO.

 

Era bonita, a sua mãe?

Dizem que sim. Eu acho que sim, mas sou suspeito. Tinha classe, o que é muito importante.

 

O que é que acha que no seu pai encantou a sua mãe?

Acho que foi o facto de o meu pai misturar muito bem a inteligência com a ponderação. A minha mãe era muito voluntariosa, enérgica. Apreciava no meu pai principalmente o equilíbrio, o bom senso. E o meu pai era, como diria a minha avó, «Bem parecido».

 

Foi então da sua mãe que herdou o arrojo, o espírito voluntarista?

Mais da minha mãe. Do meu pai é mais o sentido do rumo, que é preciso ter um rumo. Sou muito parecido com a minha mãe.

 

É verdade que nunca ligou muita importância à família da sua mãe pelo facto de terem ostracizado o seu pai?

É. Os meus irmãos não gostam muito que fale disso, dizem que são assuntos de família, mas acho que sem revelar os factos mais reservados, devo contar. É verdade que nunca me aproximei nem nunca esqueci. Hoje em dia não me dou com ninguém, praticamente. Só com o irmão da minha mãe, mas esse passou pelo mesmo.

 

O que não suporta nessas pessoas, a sobranceria?

A distinção das pessoas em função da origem ou dos rendimentos é absolutamente inaceitável. E tenho veneração pelo meu pai, não consigo perdoar a quem o tenha tratado mal. Há coisas que perdoo e não esqueço. Há outras que não perdoo mesmo.

 

Foi distinguido, também? É distinguido no partido, no país, enquanto político, por não corresponder ao cânone?

Sim, embora tenham cada vez menos coragem para o dizer publicamente. Mas nos corredores e nos bastidores, acontece. É uma opção que fiz, de não me importar por não corresponder ao cânone. Também tenho que aceitar a contraparte.

 

Foi uma opção ou é tão naturalmente assim que não poderia ser de outra maneira?

Por mim, não poderia ser de outra maneira. Muita gente me disse que é importante na política não mudar de família; o próprio Dr. João Soares me atirou isso à cara antes das eleições. Diz o povo que pela boca morre o peixe... Eu de família, também não mudo. Da família de sangue não se muda. Em relação a um divórcio, é melhor evitá-lo. Mas não consigo. Não posso aceitar que se mantenham as situações em que não há o fundamento, a essência.

 

O que é o fundamento?

É o amor. Achando eu que a família é a célula fundamental da sociedade, não compreendo que se mantenham situações sem o que é a essência. Considero que tenho sido infeliz nesse lado da minha vida. Preferia ter uma relação de estabilidade. Ao contrário do que as pessoas julgam, não fico contente, não é uma opção pela inconsciência, ou pela alegria ou pelo divertimento.

 

Sofre muito realmente com os divórcios? Encara-os como falhanços?

Os falhanços das relações são a marca mais negra da minha vida. Procuro assumir as responsabilidades, mesmo dos erros, mas detesto falhar. Consome-me, e é uma grande frustração. Agora, não sou cínico, não sou hipócrita, não sou capaz de manter uma relação só por manter. E tenho um lema: se Deus nos deu esta vida – e acredito que sim e dou graças por ela constantemente – não podemos desistir de ser felizes, de tentar ser felizes. A acomodação, a resignação a uma situação em que não haja essa chama viva, não faz sentido. Tenho a obrigação de lutar por ser feliz. Mas sei as responsabilidades que tenho, as funções que exerço e entendo que a minha infelicidade – infelicidade entre aspas, infelizes são os que têm fome –, os meus problemas não devem gerar situações que choquem as pessoas, principalmente depois dos 40 anos.

 

Depois dos 40 passou a dizer que quer ser um exemplo para os seus filhos.

Exemplo tenho procurado ser sempre, e falo muito com eles sobre os meus falhanços nesse campo. Procuro transmitir-lhes que o ideal é conseguir uma relação de amor com uma pessoa para toda a vida

 

Qual é a sua definição de família?

Família são aqueles por quem temos amor. E os laços de sangue, com certeza que sim. Somos 6 irmãos, dou-me mais com um dos meus irmãos, o Paulo. Não vou dizer que é a pessoa mais importante da minha vida, mas é ex-aequo, isso de certeza absoluta.

 

O que é que ele faz?

Hoje em dia está no ramo imobiliário, fora de Lisboa. Em Lisboa não, como calcula. É um ser humano fantástico, o bombeiro da família.

 

Que tipo de conversas tem com ele que não tem com mais ninguém?

É a pessoa com que falo todos os dias quando acordo. Que tipo de conversas tenho com ele? Sobre tudo da minha vida. Sabe tudo da minha vida. Excepto os segredos de Estado que tenho de manter.

 

Não teria propriamente interesse em falar com ele sobre segredos de Estado, pois não?

Não. Ainda ontem estive em casa dele, lá fui almoçar. Ele e os meus filhos e o meu pai são o núcleo fundamental da minha família.

 

Tudo homens!

Tenho uma filha. Tive que ter gémeos para ter uma filha, como costumo dizer. 

 

Soube da existência do seu irmão Paulo porque vi uma fotografia sua num triciclo. Comentava que era das poucas de quando era pequeno em que não aparecia com o seu irmão, e que ele era a grande referência.

Se estou no estrangeiro, para além dos meus filhos, é a pessoa de quem sinto mais a falta. Crescemos muito juntos, temos 22 meses de diferença. Mas isso! Há irmãos que são mais próximos e não se dão tanto. Ele é muito o meu pai, eu sou muito a minha mãe, se quiser.

 

Algumas das suas mulheres aproximavam-se do paradigma da sua mãe? É forçado fazer um paralelo entre o casamento dos seus pais e os seus casamentos, quase sempre com meninas de família? A relação com Teresa Arriaga, (filha de Kaúlza de Arriaga), por exemplo, mereceu a oposição dos pais dela, que não assistiram à cerimónia

É verdade. Talvez, talvez tenha acontecido.

 

 

 

Não me diga que nunca tinha pensado nisto assim?

Não! No paralelismo com o meu pai, nunca tinha pensado. Mas isso aconteceu inconscientemente. Quando as encontrei não sabia que ia ter oposição da família. No caso da Teresa Arriaga, tive por ser divorciado.

 

Foi por ser divorciado? Ela era uma rapariga de uma família conservadora que namorava com um rapaz arrojado, disposto a partir a loiça.

Sim, mas foi mais por ser divorciado. É uma posição religiosa, que respeito. Depois aconteceram mais divórcios na família...

 

Nessas alturas pensa outra vez: «Pela boca morre o peixe»?

Não vou dizer que não. Sofri na pele, eu e os meus filhos, os efeitos dessas distinções. Não interessa dizer com que família, mas cheguei a ir jantar a casa dos meus sogros a dias diferentes dos dias a que iam os outros filhos, por ser divorciado. 

 

Li algures que teve uma conversa com o Sá Carneiro, numa altura em que ele já tinha assumido a relação com Snu Abecassis, em que lhe dizia que as pessoas tinham uma expectativa em relação ao comportamento dele, e que não podia decepcioná-las. Como é que um miúdo de vinte e poucos anos diz isto a alguém que é para ele um ídolo?

Deixe-me fazer uma ressalva: eu disse-lhe isso não por causa da Snu, mas por causa do que ele arriscava a viajar de avião. Foi uma vez em que íamos a aterrar no Porto. O comandante do avião veio dizer-me que não tínhamos tecto para aterrar, que tínhamos de ir para Viana do Castelo. O Dr. Sá Carneiro deu um salto: «Nem pense nisso. Não temos tempo para ir para Viana do Castelo. Arranje lá um buraco para aterrarmos no Porto». Ficámos todos um bocadinho assustados. Ele era assim, um homem de algum risco. E ao almoço, no Solar do Vinho do Porto, ele foi fumar um charuto, que era uma coisa que eu não percebia e achava insuportável... Só gostava de ver a maneira como fumava charuto.

 

Como é que era?

Era lindíssimo. Muito calmo. Os gestos eram muito lentos, vagarosos. A maneira como levava o charuto à boca e como dava a sua passa, o prazer com que o fazia, a cadência daquele gesto… Era um homem de um charme quase insuperável. Um príncipe, como dizia a Natália Correia.

 

Apesar da altura.

Apesar da altura. Mesmo torto. Mas a força daqueles olhos era uma coisa… Eu disse-lhe aquilo a propósito do risco. «O senhor doutor não pode fazer estas coisas. O senhor doutor representa muita gente». E ele respondeu-me, nesse passeio: «Ó Pedro, é capaz de ter razão, mas a vida sem risco não faz sentido».

 

Como foi a primeira vez que o viu? Sá Carneiro é a sua figura tutelar em termos políticos. Era uma espécie de pai putativo para si?

O meu pai não simpatizava com ele. Tinha sido mais ou menos contemporâneo dele na faculdade.

 

Andaram juntos no primeiro ano, não foi?

Penso que sim. O meu pai não simpatizava com ele mas dizia-me para ler os seus artigos. Acho que sei perceber muito bem as pessoas que têm carisma, passe o pretensiosismo; quando o ouvi a primeira vez fiquei absolutamente siderado. Ele não era um grande orador, mas tinha uma força impressionante. O que lia sobre as intervenções dele, sobre os direitos humanos, sobre a coragem de ser deputado à Assembleia Nacional e ir visitar os presos políticos a Caxias, de lutar contra o visto prévio, de chamar «O Visto» àquela coluna do Expresso, achava tudo aquilo notável. Gostava muito do estilo de escrita dele. Escrevia com períodos curtos e vocábulos impressivos. Como o Lenine também fazia. Eu achava-o politicamente genial. Um dia conheci-o. Resolvi ir a um congresso do PSD para o defender, em 76, quando ele foi afastado do partido.

 

Foi com que intenção?

Fui defendê-lo e abrir o caminho em que acreditava e de que queria fazer parte.

 

Tinha portanto uma intenção clara de lhe ser apresentado e de fazer parte da «entourage».

Oiça, gostava que isso acontecesse. Fui defendê-lo por defender. Hoje em dia há muitos Sá Carneiristas. Não estou a dizer que sou mais do que os outros, mas sabe quem me conhece que foi o único ídolo que tive na vida. Com certeza que gostava de lhe ser apresentado, um dia. Mas sou muito orgulhoso. Nunca olhei para ele antes de mo apresentarem. Passava e desviava a cara, não cumprimentava. Não queria que ele pensasse que me estava a insinuar.

 

Foram apresentados em 78 no Cinema Roma, num congresso.

Ouviu muitas palmas e perguntou: «Quem é que está a falar?», «É o tal miúdo de Direito» – eu era presidente da Associação [de Estudantes] em Direito. Mandou-me chamar: «Gostava que a partir de hoje ficasse a trabalhar comigo, e para já na área da revisão constitucional». Eu ia caindo para o lado! E a partir daí, de facto, nunca mais me deixou. Logo depois fui para a Alemanha com uma bolsa de estudo e ele nunca preencheu o lugar de assessor jurídico. Fui para a Alemanha para me doutorar, para ficar 3 anos ou 4. Resisti uns meses, mas depois não aguentei. Vim cá na Páscoa, encontrei-o na Assembleia, «O lugar está vago à sua espera». Quando a vida nos diz isto, não podemos virar as costas.

 

É uma interpelação directa? Foi isso que sentiu?

É uma interpelação directa da vida, exactamente. A vida estava a dizer-me que eu tinha que vir. Se não tivesse vindo, a minha vida seria completamente diferente. E a minha vida era para ser isto.

 

Na Alemanha viveu num colégio da Opus Dei.

Na altura, em Colónia, não se conseguia encontrar casas. Comecei por estar fechado numa aldeia da Floresta Negra a aperfeiçoar o alemão.

 

Já sabia alemão?

O meu pai sempre achou que eu ia ser político ou algo do género. E sempre se preocupou em formar-me como deve ser. «Saber línguas é fundamental. Quanto mais souberes, melhor». Falo várias línguas. Tive alemão no 6º e 7º anos e depois o meu pai manteve uma professora. Apesar de não ser rico, nunca foi. Tinha essas preocupações comigo. No Verão mandava-me para Inglaterra aperfeiçoar o inglês,

 

Não havia casas em Colónia.

Não queira saber o que era! Consegui arranjar um quarto num lar da Opus Dei. Não se podia ver mulheres. Acabávamos de almoçar e de jantar e tínhamos que passar os pratos por uma janela para as empregadas da cozinha. Eram as regras.

 

Que tortura!

Mas era engraçado. O director até esperava por mim à noite, para me abrir a porta – saía até às três, quatro da manhã. Isto coincide com as insistências do doutor Sá Carneiro. Curiosamente consegui depois encontrar casa graças a uma amiga do sogro do doutor Durão Barroso.

 

Quer dizer que não foi um investimento da Opus Dei?

Não, não, não! Concorri por mim. Fui às provas a um concurso da Embaixada alemã e fui o único de Direito que entrou. O doutor Durão Barroso foi para a Suiça na mesma altura.

 

O doutor Durão Barroso tem a contenção do seu irmão Paulo e do seu pai. São menos emotivos e inconstantes.

O doutor Durão Barroso é uma pessoa muitíssimo importante na minha vida. Temos uma amizade com períodos muito difíceis, como é público, de confrontação até, outros muito bons. Hoje em dia é dos grandes activos que tenho na minha vida e que não quero nem pouco mais ou menos pôr em causa. Acho que até é importante para alguma harmonia na vida dos dois esta reconstituição, o nascer de um tempo novo na relação.

 

Sofria quando estava zangado com ele?

Bastante. As pessoas não sonham, mas no Congresso de Viseu estava a sangrar por dentro. Acho que ele também. E por isso lhe correu tão mal; disse uma série de coisas disparatadas que o iam fazendo perder o congresso. Na noite em que achei que podia ganhar não dormi até às 8 da manhã. Custou-me fazer o que fiz, mas achei, pelo país, que tinha de o fazer. Achei que ele estava a liderar mal o partido, que eu podia fazer melhor e que, por isso, ele devia sair. Embora estivesse convencido que a maioria do partido ia ter outra posição. Mas custou-me muito. O que é natural é o que está a acontecer hoje. Era disto que falávamos aos 20 anos. Sabíamos os dois que algo parecido com o que se está a passar ia acontecer nas nossas vidas.

 

Como é que tinham essa impressão?

Por nos conhecermos. Ele já era líder na faculdade. Eu também liderei. Liderávamos em campos opostos.

 

Fazia-lhe espécie que ele estivesse tão à esquerda?

Não, não! Quer dizer, havia coisas que ele dizia que achava completamente sem sentido. Mas tinha admiração por ele, sempre tive. E quando saiu do MRPP, aproximámo-nos. Foi algo automático, instantâneo. Diria que a partir daí nunca mais nos largámos. E por isso, os quase 9 anos em que estivemos afastados foram duros e difíceis. Hoje em dia ele está mais parecido comigo e eu mais parecido com ele. Eu estou mais racional e ele está mais emotivo, mais sentimental.

 

Impressiona-me a relação que Durão Barroso tem em público com a mulher. Há uma imagem de há poucos anos muito forte: ele procura a mão dela. Tacteia e vai à procura da mão dela.

Eu lembro-me dessa imagem, por acaso.

 

Isto para dizer que um homem que procura em público a mão da mulher não é só contido e frio.

Mas não é, nem pouco mais ou menos. Não quero entrar na intimidade dele, mas acho que não é mal nenhum dizer que essa imagem revela muito. Ele gere é de uma maneira diferente da minha o equilíbrio entre razão e emoção. A diferença entre as pessoas está aí.

 

Como é que eram há 20 anos? Tenho alguns relatos fugidios que os dão como uns rapazes que andavam muito à pancada.

Um com o outro?

 

Não, não. Que participavam…

Ah, em cenas de pancadaria? Sim, sim, mas isso mais há 25 anos que há 20. Há 20 já estávamos formados. Fazemos 25 anos este ano que nos formámos.

 

Hoje ninguém anda à pancada na faculdade.

Na altura a faculdade era muito difícil e havia cenas de imposição física.

 

Imposição física é um bom eufemismo!

Imposição física é por exemplo a Juventude do PCP e também do MRPP procurar impor situações que não deixavam liberdade às outras pessoas – eles proibiam outra propaganda que não a deles. E quando se começou a furar esse cerco houve cenas de confrontação física. E aí nunca me coibi, é um facto. Ele também teve situações de grande confrontação. No nosso último ano de faculdade, vivi em casa dele.

 

Não sabia.

Não é muito público. Vivi na Cova da Piedade em casa dele. O pai tinha morrido, a mãe casou outra vez e foi viver para o Alentejo, ele vivia sozinho. Fizemos o quinto ano na mesma casa, vivíamos juntos. Entre aspas, não é? Chegávamos a casa às 3, 4 da manhã e estudávamos o resto da madrugada. Ele era um aluno sempre 2 valores acima de mim. Acabou o curso com média de 17, eu acabei com 15. E sempre nos divertimos à grande e à francesa.

 

Porque é que decidiu sair de casa dos seus pais e ir viver com ele?

Achei que seria bom. Os pais gostavam que andássemos com pessoas que estudavam. «Podem estar descansados que vou para casa de uma pessoa que é responsável. Eu também sou, por isso está tudo bem». Os meus pais gostavam dele. O meu pai ainda gosta dele. Estávamos sempre juntos, de manhã, à tarde, à noite.

 

Quem é que tomava conta das vossas coisas, das vossas vidas?

Das roupas? Ele tinha lá uma empregada, mas eu levava a roupa para casa dos meus pais. Vivíamos nisto. Lá em casa dele havia muito os pudins.

 

Pudins? Instantâneos?

Era, era. Havia também o irmão dele do MRPP, que chegava a casa ainda mais tarde que nós, vinha das acções revolucionárias, já o Zé Manel não era do MRPP. E aquele irmão comia os pudins! Tínhamos que comer alguns pudins antes dele, porque a acção revolucionária dava-lhe fome e limpava 3 pudins assim de seguida!

 

E o que é que comiam? O que é que cozinhavam?

Batidos, pudins, ovos estrelados e pouco mais.

 

E cheta, como é que era?

Ele tinha dinheiro, o normal, como se estivesse em casa da mãe. Eu tinha a semanada que o meu pai me dava. E já ganhávamos dinheiro, é verdade! Éramos os dois monitores do professor Jorge Miranda. Ganhávamos três contos e duzentos. Verba com que comprei o meu primeiro carro, um Honda 600: CA-81-57, que depois lhe vendi a ele.

 

Ganhou dinheiro na venda?

Não. Pedi 30 contos emprestados a um tio para comprar o carro, porque o meu pai não me dava dinheiro. Achava que não me podia desviar do estudo. Uma injustiça tramada: tinha boas notas e não tinha nada, o meu irmão, que se via aflito para passar, tinha uma vespa. Pagava dois contos e tal de prestação por mês com esse dinheiro da faculdade. E um dia vendi-lhe o carro, que ele gostava muito do Honda, e comprei uma Diane a um então cunhado dele. Isto para dizer que partilhávamos tudo. Fazíamos viagens ao estrangeiro juntos…

 

É verdade que tiveram uma mesma namorada, uma Petiz?

Não, não. Essa história correu, mas não é verdade. Não foi namorada dele nem minha. Não gosto de ter louros que não me cabem.

 

Há 20 anos prognosticavam esta vida que têm agora?

Sim. Não como tontos, fúteis. Ambos dizíamos que queríamos ter intervenção política, que queríamos fazer vida pública. Falávamos sobre as pastas que cada um gostava de ter ou o tipo de cargo que cada um gostava de ter.

 

E então?

Ele sempre foi talhado para os Negócios Estrangeiros, pasta para a qual nunca tive especial vocação. Mas falávamos muito de coisas que estão a acontecer agora. Lembro-me de irmos de carro ao cinema, eu, ele e a mulher dele, a descer para São Sebastião da Pedreira, e de a Guida já na altura dizer: «O problema é que vocês, politicamente, ou se entendem ou vai ser muito complicado». Tenho essa imagem gravada. Devíamos ter 22 anos.

 

Eram os dois igualmente ambiciosos?

Vou contar isto, ele vai ficar zangado, mas não me importo porque tem graça. Eu era presidente da Associação em Direito e convidei-o para uma organização, uma coisa das Nações Unidas. Foi o primeiro acto político dele quando saiu do MRPP, e aparecer comigo na faculdade foi muito falado.

 

Ainda por cima, estava muito conotado com a direita. De tal modo que ao seu Movimento Independente de Direito chamavam Movimento Independente de Direita. Para os maoístas, deve ter sido uma traição.

Sim. Mas eu já era do PSD. Fui presidente da Associação já com o PSD. E propus-lhe: «Eu fico como presidente, tu ficas como secretário-geral». Secretário-geral era o cargo onde se mandava. Presidente, naquela organização, era uma figura decorativa. E ele disse: «Isso não faz sentido. Tu já és presidente da Associação, acho que devo ficar eu presidente dessa entidade». (Ele nessas coisas não brinca em serviço). E eu disse: «Ó Zé Manel, desculpa lá, mas não tenho tempo para ser secretário-geral dessa associação; os estatutos dizem que o secretário-geral é que manda». «Está bem, mas as coisas têm que ser equilibradas entre nós». Portanto, já na altura percebia-se que ou éramos inteligentes e nos entendíamos, ou então dava faísca.

 

Eram os dois igualmente ambiciosos e queriam a mesma coisa.

Talvez. Com certeza que sim. E houve um dia, depois do Congresso de Viseu, em que tivemos a certeza os dois que não queríamos a mesma coisa. Eu não queria voltar a disputar a liderança do partido.

 

Porque é que não quis? Para mim é um enigma.

Tudo tem um tempo. As pessoas dizem que fui várias vezes candidato. Não fui. Candidato mesmo, fui uma vez, nesse congresso de Viseu. Outras vezes desafiaram-me e estive quase para ser. Não podia ser candidato a líder do partido sendo presidente do Sporting, como foi no congresso de Santa Maria da Feira. O Marcelo [Rebelo de Sousa] bem se fartou de me picar. Acho que não fazia sentido voltar a ser [candidato], principalmente sendo ele o presidente do partido. As cenas fratricidas são horríveis. Se ele chegou lá primeiro do que eu, é a vida, é o que está escrito. Não faço questão, há outras coisas.

 

Que outras coisas são igualmente estimulantes?

O que me fascina mais, ao contrário do que as pessoas sempre julgaram, não é ser líder partidário. Não é esse o estilo de trabalho que mais gosto de fazer. E desde que descobri o trabalho autárquico, que permite mexer com a vida das pessoas, mais me distanciei disso. Não gosto de rituais nem de unanimismos, nem de regras estereotipadas, e os partidos são isso tudo. Sou vice-presidente do partido, mas é dos cargos que menos se adequa a mim. Não tenho jeito para dirigente partidário. Não tem a ver com a minha maneira de ser. Sou demasiado heterodoxo para poder ser...

 

Mas está resignado à sua heterodoxia?

Estou. Faço, por exemplo, aqueles comentários de televisão ao domingo. É uma grande dificuldade conciliar o que sou com o que devo ser. Ainda ontem critiquei um ministro, como já critiquei várias vezes. Isto do ponto de vista da ortodoxia partidária, não cai bem. É evidente que as pessoas já se habituaram que comigo ou é assim ou não é.

 

Dão um desconto.

Se calhar, chame-lhe assim.

 

Dar-lhe um desconto não é uma coisa muito simpática... Continua a fazer de si o «enfant terrible» que não é levado a sério.

É que não é ser «enfant terrible». O meu partido percebeu uma coisa finalmente – demorou, mas percebeu: ganha mais tendo-me como me tem, sendo eu como sou, do que querendo tornar-me diferente do que sou. Acho que ajudei o meu partido a mudar a situação em Portugal, a voltar a chegar ao poder. Foi o doutor Durão Barroso que chegou a nível nacional, mas dei um contributo forte para isso. E dei um contributo forte sendo como sou. Evoluindo como todas as pessoas, corrigindo alguns aspectos, com certeza. Estou mais maduro, a idade traz sabedoria.

 

Quando desiste finalmente de lutar pela liderança do partido...

Percebi como funcionam os partidos, e não gosto.

 

Não foi também para fazer as pazes com Durão Barroso?

Também. Também. Eu tinha dito há muito tempo, numa entrevista ao Fernando Madrinha e ao Fernando Diogo que estava escrito nas estrelas que um dia nos havíamos de defrontar. E cumpriu-se. Juro que não fiz de propósito. Aquele congresso aconteceu porque eu, depois das eleições de 99, disse que o partido tinha de fazer uma reflexão profunda, não ganhava eleições há 10 anos. Ele achou que aquilo era uma provocação à liderança dele, resolveu fazer um congresso. E lá fui e lá fiz o congresso. E depois disse chega.

 

Explique-me o que percebeu do funcionamento dos partidos.

Desgostou-me muito o modo de funcionamento do partido. Quem está no poder, em princípio ganha. Porque tem o controle do aparelho. Eu gosto que tudo funcione livremente, sem regras viciadas. O meu irmão também era um bocadinho batoteiro; naqueles jogos da Majora que fazíamos em miúdos, às vezes ele era um bocadinho batoteiro. Sempre detestei isso. Prefiro perder com tudo certo. Não é por ser melhor ou pior que os outros. Nos partidos não gosto das coisas que estão viciadas à partida. Não é totalmente livre.

 

«Gosto de voar sozinho. Ao candidatar-me à liderança do PPD-PSD deixo de poder. Tenho de voar em bando». Mas porquê esta dificuldade em voar em bando? Ainda há três anos, depois do Congresso de Viseu, justamente, aventou a possibilidade de formar o seu partido. E mais atrás, nos tempos de faculdade, o seu MID não chegou aos 100 votos, mas recusou-se a fazer alianças.

Foi, foi.

 

Porquê esta dificuldade se os partidos não servem senão para congregar num bando aqueles que querem voar?

É por isso que o trabalho autárquico é bom. Gosto muito de trabalhar. Mas gosto de trabalhar à minha maneira. Nasci mais para coordenar, para dirigir, do que para ser dirigido. Aqui na câmara tenho a vantagem de fazer as coisas como entendo que devem ser feitas, com uma equipa de gente fantástica. Preciso muito dessa liberdade. Não me pergunte porquê, não sei. Só podia ter profissões liberais ou dirigir uma equipa ou lançar projectos.

 

É esse o seu talento? Mobilizar pessoas, formar equipas, mais do que a concretização?

Não consigo separar isso da concretização. Não concebo ter uma série de ideias e projectos e depois não os levar a cabo. É um falhanço. Tenho conseguido nos sítios por onde passei fazer obra, embora saiba que as pessoas têm uma ideia diferente. Dou-lhe um exemplo: fui secretário de Estado da Presidência do Conselho; quem lançou a reestruturação do funcionamento do governo, criou as reuniões, os conselhos de secretários de Estado, fui eu. Francamente trabalho muito. Muitíssimo. Mobilizar equipas? A quantidade de gente que trabalhou comigo noutros sítios e quis vir comigo para a câmara... O trabalho é em equipa, mas é também muito solitário. Estou cada vez mais sozinho.

 

Mais sozinho? Dá-se com as pessoas do seu partido?

Há muitos dirigentes partidários que fazem o culto do telefonema, do apoio, da cunha, do pedido deste, daquele. Nunca fiz. Não faço vida com a gente do poder. Faço vida com a minha família e com o meu pequeno círculo de amigos. Como imagina, podia passar os fins-de-semana em sítios muito fascinantes. Quando estamos no poder convidam-nos para passar fins-de-semana em sítios fascinantes. E não vou, não vou. Sei que tenho a imagem do social e detesto social. Não vou a festas.

 

Está numa fase nova?

Não. Tive essa imagem quando vivi sete anos com uma pessoa que gosta dessa vida. Eu, por tabela, levei. Não foi à força. Mas era uma fonte de problemas permanente. Quase não vou a jantares oficiais, quase não vou a recepções. Vou a um jantar oficial por ano, na Ajuda, do Presidente da República, para não ofender ninguém. Não gosto de vestir smoking.

 

Tinha noção que esse comportamento o descredibilizava?

Nessa fase em que aparecia nessas revistas?

 

Sim, e em que aparecia em figuras...

O quê? Está a dizer o quê? A história do lenço?

 

Sim. Continuamos a tê-la no Contra-Informação, continua a ser uma imagem de marca.

E já viu o que é preciso fazer para passar por cima disso tudo e ganhar? Já viu? É preciso muito.

 

É aí que gosta de si e que se admira? Podemos pôr a coisa nestes termos: «Gozam com a história do lenço, mas quem ganha eleições sou eu»?

Gostar de mim, não sei. Agora que me motiva ainda mais, sim. Foi isso que nunca perceberam. É que quanto mais me espicaçam, mais risco correm. Porque puxam pelo que pode haver de melhor em mim. Espicaçam o meu sentido de dever, de responsabilidade e de luta. Dão-me uma força quando me tentam destruir!... Mas dão mesmo, não estou a brincar.

 

Aquele princípio nietzschiano «Se não me mata, alimenta-me»?

Alimenta mesmo. Quando vejo essas coisas, como imagina vejo, até tem graça, a maior parte.

 

Ah, não me diga que tem graça! Imagino que veja aquilo e que não ache graça nenhuma!

O quê? Do lenço?

 

Sim!

No Contra-Informação ou o lenço? O lenço foi uma partida incrível. Pus aquele lenço para aí um minuto para entrar numa festa. Quando estava a tomar o pequeno-almoço e me trazem os jornais e vejo aquilo na capa da revista, nem queria acreditar. E nunca me esqueço de quantos chapéus pôs na vida o doutor Mário Soares. Agora o doutor Jorge Sampaio dirigiu uma banda. Olhe, não fui de mota para a inauguração do Hard Rock Café por causa disso. Não tinha mal nenhum, mas não me largavam 5 anos ou 10 se fosse de Harley Davidson.

 

Agora já se coíbe.

Já. Porque não vale a pena. Não quero ser cínico, mas acho que as pessoas preferem os calculistas. Quando era secretário de Estado da Cultura vinha todos os dias na Harley Davidson do meu irmão para o governo. As pessoas nunca souberam, nunca fiz alarde disso.

 

No Contra-Informação deixaria de aparecer o lenço...

Passava a aparecer de Harley com as santanetes à volta, na 24 de Julho.

 

E disso das santanetes, gosta ou não?

Acho graça. O político do amor, ou não sei o quê, isso acho graça. Dizem que tenho várias mulheres bonitas a trabalhar comigo, mas a única coisa que sei é que são genericamente fantásticos quadros. Como tenho homens com um rendimento espantoso a trabalhar comigo. Mas é evidente que os homens comigo não dão nas vistas. As pessoas só querem saber das santanetes. Corresponde ao estereótipo. Foi uma história que se criou e na qual tenho responsabilidades pela matriz atribulada da minha vida pessoal. Compreendo isso.

 

Tem assumidamente, e desde sempre, ambições políticas. Porque é que deixou que se vinculasse a si uma imagem que não é consentânea com o que se espera de uma figura de Estado? Porque é que não se protegeu?

Não se esqueça que sou o político que está há mais anos no activo em Portugal. Vinte anos e tal, sem interrupções. Estive sempre na luta, no poder, na oposição... Foi uma fase atribulada da minha vida pessoal. Vivi com uma pessoa, cujas irmãs inclusivamente dirigiam revistas desse meio. Era uma pressão constante, uma solicitação constante disto, daquilo.

 

E se arrependimento matasse?

[riso] Não... Acho que faz parte. Cada um tem os seus carmas, as suas contrariedades para ultrapassar, os seus pecados para descontar. Se não tivesse esses teria outros. Se me arrependo de algumas coisas? Não. Isso motiva-me para ser melhor. Posso ter dado trambolhões, ter-me distraído e saído da estrada, mas, na essência, tenho vindo pela estrada da minha vida.

 

O que é que quer ser?

Quero ser feliz. Quero sentir-me realizado. Sei que dizem que quero candidatar-me a isto e àquilo. As pessoas não me conhecem. Não é assim que funciono. Fui presidente da Câmara da Figueira. Não sonhava ser e fui. Dediquei-me e trabalhei loucamente. Não tinha nos meus planos candidatar-me a Lisboa. Acabei por ser candidato a Lisboa.

 

É verdade que foi num jantar, organizado pelo seu grande amigo Rui Gomes da Silva, que foi espicaçado para se candidatar à câmara de Lisboa? O próprio João Soares, que estava presente, teria dito qualquer coisa como: «O senhor seria o único que me faria frente».

Ele já me tinha dito isso numa entrevista que lhe fiz em 1997, para a PM. Até abona a favor dele, com graça, com humildade. «Tenho este palpite, este pressentimento que você pode ganhar as eleições cá. Candidate-se à Figueira, candidate-se onde quiser, mas aqui em Lisboa não». Em 2000, num jantar em casa do doutor Gomes da Silva, perguntou-me se era candidato a Lisboa. «Não tenho nada previsto. Andam a desafiar-me para ser candidato a Coimbra. O mais natural é candidatar-me à Figueira». Ele voltou a dizer-me aquilo, e eu disse: «Não sou capaz de me candidatar sem ver a sua obra». Não sou capaz de me candidatar contra quem tenha feito uma boa obra.

 

A sério?

Se chegasse à conclusão que ele tinha feito um bom trabalho, não fazia sentido ser candidato.

 

Porque não alinha para perder?

Se concorro é para ganhar mesmo. E para ganhar tenho que ter a convicção de que devo ganhar. Ganhar só porque o meu clube tem que ir para o lugar do outro não tem graça. Se alguém jogou bem não deve ser substituído. A democracia obriga a que se dispute.

 

Sim, mas eu queria dizer outra coisa. Não se candidata contra alguém que fez um bom trabalho porque essa pessoa, supostamente, vai ser reeleita.

Mas não é por isso! Por esse lado até me espicaça. Dou-lhe a minha palavra de honra. Com o doutor João Soares: «Acho que o senhor fez bem algumas coisas. Acho também que vou fazer melhor do que o senhor fez». Tem que ser assim. Até para sair da Figueira para Lisboa... Porque gosto muito da Figueira.

 

Até disse «Esta é a decisão mais difícil da minha vida»! Diz coisas assim, como disse que se ia retirar da política por causa do sketch do Big Show Sic, como se fosse um personagem trágico, como se fosse o fim do mundo.

Viu aquele filme, não me lembro do nome, em que uma mulher chega atrasada ao metropolitano e perde o metro e a vida se divide em duas?

 

Sim, o «Sliding Doors», com a Gwyneth Palthrow.

Tenho permanentemente essa sensação. Sempre tive, desde muito novo. Em determinadas alturas sinto muito fortemente que estou a escolher um caminho e a excluir outro. Sofri imenso para tomar essa decisão. Havia uma componente de gratidão muito forte. Devo muito à Figueira e àquela gente. E sabia que eles adoravam que eu ficasse.

 

Deve-lhes muito porque eles o quiseram, porque lhe deram uma oportunidade quando o partido o deixou cair? Foi para a Figueira porque Pacheco Pereira, presidente da distrital, não o quis pelo círculo de Lisboa.

Também. Não darmos valor a isso é mau. Acho a gratidão das duas ou três coisas mais bonitas da vida.

 

Quais são as outras duas?

Saber ser amado. É das coisas mais bonitas e mais difíceis da vida. Normalmente quem é muito amado tende a não saber dar valor a isso. E pormo-nos no lugar do outro.

 

Foi uma pessoa muito amada? Não estou a referir-me às relações amorosas, mas à sensação de que somos queridos, desejados, reforçados.

Sim. Tenho a sorte de ter muita gente que gosta muito de mim. Como tenho muita gente que, infelizmente, não gosta nada de mim. Mas não é fácil estar ao meu lado.

 

O poder que tem é afrodisíaco para as mulheres?

Dizem que sim. A partir da altura em que me tornei um personagem público, procurei manter a lucidez sobre aquilo que interessa do personagem público e aquilo que interessa do personagem privado. Quando era mais novo chamavam-me muito Pedro Miguel. Hoje em dia sou Pedro Santana Lopes. Não deve haver diferença entre os dois, mas há. Com certeza que sei que o poder interessa a mulheres e homens. Mas não tenho ilusões. Já me deram como politicamente morto, hoje em dia tenho poder. Quando saí do Sporting passaram-se semanas em que o meu telemóvel quase não tocava. Procuro viver esses momentos até ao fim. Devemos sangrar as feridas todas. A vida é assim, já conheci os dois lados. 

 

É preciso ter uma boa dose de auto-estima e segurança.

Mas isso tenho. Lembro-me sempre da máxima «Conhece-te a ti mesmo». Procuro ser muito consciente das minhas qualidades e defeitos. Não devemos ter nem vaidade nem daquilo com que nascemos. Não podemos fazer nada quanto a isso. Podemos ter orgulho naquilo que fazemos por nós, com as armas que Deus nos deu. E afasto-me. Nestes centros de poder há muita gente fútil, muita gente que se preocupa com coisas que não me interessam nada. Adoram dinheiro.

 

E o dinheiro? A ideia que tenho é que não gosta particularmente dele, mas que é fulcral na sua vida.

Fulcral como?

 

Porque acabou por determinar umas quantas opções. Tem 5 filhos e ex-mulheres, tem encargos mensais consideráveis. Foi por causa desses encargos que decidiu aparecer nos «Donos da Bola», por exemplo?

Não foi um factor determinante...

 

Mas pesou.

Com certeza. Vivo do meu trabalho. Já houve alturas em que a minha família me ajudou. Tenho responsabilidades grandes e as remunerações do que faço às vezes não chegam. Uma vez uma jornalista foi ver a minha declaração de rendimentos ao Tribunal Constitucional e depois telefonou-me a dizer: «Já vi que tem um depósito de x milhares de contos neste banco, este noutro, este noutro». E eu disse: «Olhe, vá lá ver bem porque não são depósitos, são financiamentos. Está um bocado enganada. É que isso é o meu martírio, a minha cruz». Influenciar? Com certeza que influencia um bocadinho, mas não é o determinante.

 

Não o obriga a tomar opções.

Não, não, não! Nunca pode ser a razão principal. Tomar uma opção por causa do dinheiro, não.

 

Não é verdade que pediu para ir para o Parlamento Europeu em 87 para ganhar mais dinheiro?

Pesou, mas a razão fundamental foi detestar esses períodos. Comecei com o professor Cavaco Silva quase sozinho. Pelo país fora, de ténis, a escrever-lhe notas para intervenções. Quando ganhámos a maioria absoluta, vi chegar caravelas e caravelas, galeras e galeras de gente, tudo cavaquista desde sempre. Nessas alturas gosto de me afastar. Causam-me repulsa. 

 

Não estava ferido pelo facto de não ter sido escolhido para ministro? Tendo sido um dos primeiros, um dos que esteve sempre lá, não esperava esse tipo de reconhecimento?

Não é uma questão importante...

 

Nunca foi ministro.

Como nunca fui outras coisas e fui outras.

 

Mas gostaria de ter sido ministro? Comentava-se que Cavaco não o tinha convidado para ministro porque Maria Cavaco Silva não simpatizava particularmente com a sua inconstância amorosa.

Isso só o professor Cavaco Silva poderá dizer. Houve uma altura em que foi grave para Portugal a cultura não ter passado a Ministério. (O engenheiro Guterres fez bem). Em 92, quando presidimos à União Europeia, eu era o único secretário de Estado, todos os outros eram ministros. E disse ao professor Cavaco Silva: «Não deixe de fazer a Portugal o que deve ser feito por estar eu neste cargo. Se acha que não posso ser ministro por alguma razão, substitua-me, porque Portugal deve ter um ministro da Cultura. Não pense que me magoa ou que me incomodo por, em vésperas da presidência da União Europeia, me substituir».

 

E magoá-lo-ia?

Não. Eu sabia que nunca seriam razões que tinham a ver com o meu valor, com as minhas qualidades. Entregou-me uma secretaria de Estado que era na prática um ministério.

 

Então tinha a ver com quê? Com a imagem pública?

Só ele poderá dizer, ele é que era o primeiro-ministro. Ele entendeu que não devia passar a ministério. Deu-me uma explicação, que não vou revelar, que não tinha a ver comigo, tinha a ver com outros equilíbrios. E presidi ao conselho de ministros da União Europeia sendo secretário de Estado.

 

Foi muito penalizado?

Foi a altura mais complicada da minha vida pessoal. Acredito que isso tenha influído na opção do professor Cavaco Silva. Mas não posso deixar de dizer que o professor Cavaco Silva foi sempre de uma grande sensibilidade nessa matéria. Quero dar este testemunho público.

 

E a sua mãe, como é que reagia?

Sofria muito, coitadinha.

 

Contava com ela como cúmplice?

Ao meu pai contava os factos. Com a minha mãe discutia as explicações e as motivações. À minha mãe pedia ajuda. Conhecia-me como ninguém, éramos iguais. Nas alturas mais complicadas procurava explicar-lhe o que se passava cá dentro. Eram as alturas de maior proximidade entre nós. Ela era enfermeira, como lhe disse, e dizia-me: «Quando tens uma ferida ou uma dor, telefonas-me sempre». Se há falta que sinto hoje em dia... Se há uma ferida, não posso falar-lhe disso.

 

Como se chama a sua filha?

Carolina.

 

Que idade tem?

Tem 11 anos. É gémea do Diogo. Foi uma bênção da vida, poder ter filhos e filhas. A certa altura achei que não ia ter filhas nunca. Tive um, dois, três filhos. Quando soube que ia ter gémeos julguei que eram mais dois rapazes. Depois foi um e uma.

 

A que brinca com ela e com eles?

Com eles jogo muito à bola. Com ela brinco pouco, falo mais, passeio mais. Nas férias gosto muito de nadar. É muito séria, nunca ligou muito a bonecas nem a brincadeiras. É uma grande ginasta. Faz-me muita impressão ver a minha filha a fazer mortais pelos ares.

 

Faz-lhe impressão porque tem medo?

Sim. Quando a vejo pelos ares.

 

Há pouco falámos no querer ser um exemplo para os seus filhos. De que é que os seus filhos se podem orgulhar?

É muito estranho ser filho de uma pessoa com uma dimensão pública tão forte. Devem ter uma vontade enorme de privacidade, de reserva. Aquilo que podem gostar mais em mim é de ser verdadeiro. É de os respeitar. E acho que admiram a coragem que tenho, o não virar a cara à luta, o assumir as responsabilidades. É o que lhes procuro transmitir.

 

Trata-os a todos por você?

Por você.

 

E os seus pais como é que o tratavam?

Por tu.

 

Agora há muitos pais que tratam os filhos por você, um bocadinho a armar ao fino. Não estou a dizer que seja o seu caso, até porque as mães dos seus filhos são quase todas de boas famílias, onde o trato é muitas vezes esse.

Elas por acaso até os tratam por tu, eu é que os trato por você. Mas não é para armar ao fino, que eu detesto essas finuras. Eles estão uma semana sim, uma semana não em minha casa. E têm uma ligação enorme os cinco.

 

Com a menina é diferente, pelo facto de ser menina?

Até hoje não tem sido, agora começa a ser. Tem 11 anos, começam a querer que vá a festas... Tenho que ter um acompanhamento especial, isso tenho.

 

Agora tinha graça que fosse um pai muito conservador.

Sempre fui. Com as minhas irmãs era muito duro.

 

Não me diga que lhes delimitava o caminho?

Sempre, e até aos 18 anos a acompanhá-las.

 

Essa é boa! Então porquê?

Ao contrário do que possa pensar, não defendo a libertinagem.

 

Defende para si mas não para as suas irmãs.

Defendo a liberdade, mas tem que se ter regras. Com as minhas irmãs assumi essa responsabilidade. Muitas vezes os meus pais diziam que elas podiam sair para aqui e para ali e eu dizia que não. Se fosse preciso, ia com elas.

 

O que é para si uma rapariga séria?

As pessoas têm de ser educadas para serem responsáveis. Ser sério é ser coerente e ser respeitador de si próprio e dos outros. 

 

Na fase de estruturação é rígido, é rigoroso.

Muito. Com todos os meus filhos. O meu segundo filho aos 14 anos teve uma fase muito complicada e eu tive que estar muito, muito presente, deitar-lhe muito a mão, e graças a Deus consegui. Hoje em dia está em Direito, é bom aluno, e principalmente é uma pessoa equilibrada.

 

É curioso que não tenha conseguido esse equilíbrio para si, mas que tenha essa preocupação em relação aos que lhe são mais próximos.

Talvez por isso mesmo, por aprender comigo.

 

Porque é que acha que isto tudo, ou seja, todas as complicações na vida pessoal lhe aconteceram?

É a massa de que somos feitos. Tive muita coisa muito novo. Fui assessor de um primeiro-ministro com 23 anos. Fiz um projecto de revisão constitucional com 24 anos. Fui presidente da distrital de Lisboa do meu partido com 25 anos. Estive na vida pública, com poder, muito cedo. Não foi deslumbrar-me com o poder, mas...

 

Mas também. Deve ser inebriante para um rapaz tão novo.

Não é inebriante. É uma velocidade louca na vida. Isso perturbou alguma tranquilidade de que as pessoas precisam para a levarem da maneira certa. Isto consome-nos. Esta vida pública e política consome-nos a vida pessoal.

 

A instabilidade emocional funda-se antes. Na infância com a família, ou na adolescência quando se desperta para o exterior. A instabilidade emocional não tem uma relação directa com essa outra parte.

Mas acho que tem muito a ver com isso. Nunca tive tempo para a minha vida pessoal. Nunca tive tempo para cuidar suficientemente da minha vida pessoal, a não ser dos meus filhos. E não foi fácil, principalmente para pessoas que estiveram ao meu lado, conviverem com essa minha vertigem permanente, de vida e de política.

 

Alguma vez teve por uma mulher uma paixão tão forte como aquela que tem pela política?

São paixões diferentes. Mas devo dizer-lhe uma coisa: estabeleci desde muito cedo que estava primeiro a procura da minha felicidade pessoal. Não é por causa da política que sigo um caminho e não outro. Hoje em dia, com as responsabilidades que tenho, há coisas que deixo de fazer por causa da política. Não quero expor a minha vida pessoal, sou muito mais reservado. Com toda a franqueza, quando era secretário de Estado da Cultura, eram funções muito importantes, mas...

 

Mas era imaturo.

Não tinha as responsabilidades máximas de um país. Hoje não tenho as responsabilidades máximas de um país, mas sei que tenho um papel importante na condução dos destinos da principal cidade do país. E mesmo no país tenho algumas.

 

Tem agora um sentido de Estado mais apurado, é isso?

Se quiser chamar de Estado, sim. Tenho de ter esse sentido apuradíssimo. Tenho de respeitar a comunidade em que me insiro, os padrões fundamentais da sociedade onde pertenço. Seja a minha vida o que for tenho de ter esse sentido de responsabilidade permanente. São fases da vida. E nesta fase já não posso fazer o que fazia na outra.

 

É agora mais feliz do que era antes?

Mais sereno. Quando perdemos alguém como uma mãe, nunca mais sorrimos da mesma maneira. Concilio a serenidade e a tranquilidade com uma dor permanente. Também aí estou noutra fase da vida. Às vezes apetece-me ir sem gravata para a televisão ao domingo. É uma maçada naqueles debates com o engenheiro Sócrates ter de pôr gravata. Mas depois lembro-me da minha mãe. Quando a minha mãe ainda era viva, uma vez fui sem gravata para a televisão. E ela disse-me: «Nunca mais voltes a fazer isso. É horrível!».

 

Um elogio da sua mãe era diferente de um elogio de qualquer outra pessoa?

A minha mãe elogiava-me muita vez. Dizia-me: «Eu gosto tanto de te ouvir». E estava sempre, sempre a ouvir tudo. Era um bocado sentimentalona e repetia-me: «Eu gosto tanto de te ouvir». Um elogio de uma mãe é outra coisa.

 

É diferente de um elogio do seu pai?

É. O meu pai não é de dizer assim coisas bonitas. A minha mãe mexia comigo por dentro. Ia para o liceu com um terço nas mãos, a acompanhar as minhas orais. Não dispensava a minha mãe nas minhas orais.

 

Não se sentia embaraçado?

Não, não. Fazia questão que ela fosse e sentia um grande orgulho. Vi sempre a minha mãe com aquelas vestes de enfermeira, que sempre achei muito bonitas. (Acho a profissão de enfermeira muito bonita). A minha mãe era quem estava ali, sempre.

 

O anjo.

É.

 

Tem pena que ela não o veja, agora que está mais sereno, e em cima?

Eu acho que ela vê.

 

A fase que vive agora é um tributo à sua mãe?

Também é. Mas eu acho que ela vê. Lá de cima, ela vê.

 

 

Publicado originalmente no Diário de Notícias em Junho de 2003

 

 

 

 

 

 

 

Diogo Vaz Guedes

12.05.13

Segunda-feira de manhã. Há um desconforto evidente nos primeiros instantes do nosso encontro. Seria excessivo chamar-lhe tensão; mas era o suficiente para que o corpo dele me parecesse estático, rígido, e os braços desproporcionalmente tesos. Diogo, o Diogo, era ainda, nesses primeiros instantes, o Diogo Vaz Guedes, o fazedor, o empreendedor, que diz que “O poder advém da capacidade empresarial e de gestão que é reconhecida pelos outros. O meu poder consiste na capacidade de convencer uma série de parceiros a fazer negócio comigo”.

O desconforto. Talvez decorra de eu não ser uma jornalista “comum”. Não conheço a dimensão do império Somague. E mesmo que me apontem os números, não consigo entender a que é que correspondem. Como aquelas pessoas que só entendem o que é dinheiro miúdo. Não tinha intenção de falar da normalidade, da quotidianeidade da empresa. Tinha vontade de saber à luz de que pessoas e estórias este homem se fez o homem que é.

Espera-me à porta do gabinete com a surpresa, a desconfiança, a curiosidade que os meninos têm quando chega a casa alguém que não conhecem. Não se pode adivinhar o que dirão da disposição dos móveis ou do tempero da carne. Eu propunha-me fazer um retrato alternativo de Diogo Vaz Guedes, e não tinha propriamente intenção de falar da fusão com os espanhóis da Sacyr. Queria saber do avô Vaz Guedes que fundou a empresa no pós-guerra, e soube do avô materno, que lhe incutiu o gosto pelo Sporting, pela caça, pela paisagem campestre. Queria perceber o funcionamento desta cosa nostra, desta intrincada família, das reconfigurações dos núcleos em função do poder, dos casamentos, dos interesses, do dinheiro. Tudo dentro de portas. 

Pedra sobre pedra, para recorrer a uma óbvia metáfora da construção, a construção que ele detesta, que sempre detestou, que tem, na vida dele, um sabor acre, além do sabor do sucesso, avançámos pela manhã. Quanto a dinheiro, ele esclarece: «Gostava de dizer que tudo o que tenho foi conquistado e ganho por mim. Eu não sou rico, é uma falsa ideia. O que tenho resulta de alguns negócios que fui fazendo à margem da minha actividade empresarial, e ponto final». Acredita-se quando desvaloriza o peso do dinheiro. Era uma questão de honra, arrumar as contas da família, triplicar ou coisa parecida a dimensão do império.

Há nele um veio de limpidez, de pureza, que me desconcerta. Tem os olhos muito azuis e pode comover-se quando fala da família. Do amor que sente pelo pai, do orgulho pela mãe, da raiva pelas noras e genros. Da confiança a que, por fim, tudo se resume. Recupera os momentos em que ia para casa a matutar – como ousar? Como encontrar o seu caminho?

Surpreende-me que use a identificação presa no cinto das calças. Para dar o exemplo, certamente. Aqui fica o bilhete de identidade de um homem que agora quer viver a sua aventura. É ele que começa...

 

 

...Também gosto de conversar. Mas não sou muito expansivo. Gosto mais de ouvir do que de falar. Desde a infância que sou assim.

 

Quando era menino, punha-se a ouvir as conversas dos adultos?

Sim. E tentava falar, o que não era simples. Pelo menos na nossa casa. Não era suposto as crianças interromperem as conversas dos adultos.

 

Quem eram os adultos da sua infância?

O meu avô. Uma referência extraordinariamente marcante. Os meus pais separaram-se cedo, em 1968 ou 69, e eu não via muito o meu pai. Sempre tivemos uma relação especial, uma relação de amigos. Eu era muito responsável e precoce, e por vezes tive o papel de pai e ele o papel de filho.

 

O seu avô fazia as vezes de pai nos percursos iniciáticos, na descoberta do mundo?

Em tudo. Passava muito tempo em casa dos meus avós. Era um ritual: todos os sábados, a seguir ao almoço, íamos à quinta na Azambuja. O meu avô tinha um Ferrari, que era uma coisa rara. Levava-me ao futebol e à caça. Tudo aquilo era um enredo muitíssimo interessante. 

 

Onde era a vossa casa?

Na Azambuja. Hoje em dia está rodeada de fábricas. Mas era a lezíria do Tejo, e marcou imenso o meu gosto pelo campo. Até entrar na universidade quis ser engenheiro agrónomo. Foi por acaso que entrei em Gestão. Fiz a candidatura à universidade pública e decidi fazer o exame de admissão à Católica, que abria mais cedo. Entrei, comecei a gostar do curso e fiquei.

 

Usou a palavra enredo. Descreve o seu avô como uma personagem fílmica, de olhar magnetizante, que se passeia num Ferrari. No seu imaginário é uma figura mais poderosa do que a do avô paterno, José Vaz Guedes, que fundou a Somague no pós-Guerra.

Lembro-me vagamente do avô Vaz Guedes, que morreu quando eu tinha três anos. Tenho uma ideia, ténue, dele e da casa da família; foi lá que dei as primeiras braçadas e aprendi a nadar.

 

A família do seu pai e a família da mãe tinham dinheiro. Isso determinou a sua vida, a sua educação, o seu percurso?

A minha mãe teve uma vida austera, e obrigou-nos a ter uma vida austera. Os meus avós ajudavam-nos, mas não tínhamos muito dinheiro. Por exemplo, não comíamos manteiga, comíamos Flora, porque a manteiga era muito cara. Eu adorava manteiga.

 

Foram-se os anéis e os Ferraris...

Não. Quando íamos a casa dos avós, não faltava nada. Pelo contrário.

 

Era a sua mãe que era orgulhosa?

Era. E ainda bem. Tenho um enorme orgulho na minha mãe. Educou-nos de uma forma rigorosa, espartana, exigente. Ensinou-nos a valorizar aquilo que é realmente importante. Por variadíssimas razões, o meu pai não contribuía financeiramente para a família. Mas sempre houve uma relação muito forte [com a família paterna]. Outro dos adultos marcantes, para voltar à questão inicial, foi o meu padrasto, que trato por pai. Posso dizer que tenho dois pais.

 

A audácia que o fez assumir a presidência da Somague, e recentemente a fusão com os espanhóis, vem de onde?

Não faço ideia. Sempre fui um fazedor. Sou perseverante, às vezes irritantemente teimoso. Mas, feito o resumo, não me tenho dado mal. É preciso acreditar para tornar as coisas realidade, é preciso acreditar.

 

Estava a pensar que bebeu a rigidez e a preocupação com as regras no convívio com a sua mãe e o seu padrasto. E que herdou a dimensão de sonho e de aventura do seu pai.

Acredito que sim. A minha mãe, o meu padrasto e o meu avô são pessoas de rigor, de planeamento, conservadoras. São avessos ao risco. O meu avô [paterno] foi um empreendedor. Tinha uma família grande e abandonou o sector público para fazer a sua própria empresa. Correu riscos no sentido em que eu acho que se deve correr riscos: à procura do seu próprio caminho. O meu pai sempre quis fazer coisas. Não quer dizer que lhe tenham corrido bem, mas quis fazer lojas, quis fazer restaurantes, quis assumir os seus riscos.

 

Quando o outro é inconstante, hesitante, ou até infiável, é preciso que exista um amor redobrado para estar sempre com ele. Acho que gosta muito do seu pai.

Gosto imenso do meu pai. Não é o único, mas gosto imenso do meu pai.

 

Que outras pessoas são fundamentais no seu mapa?

O meu tio João. No gosto pelo trabalho, no gosto pelo conhecimento empresarial. Foi a pessoa que me deu as oportunidades, a quem devo muito.

 

Por que é que o seu tio João lhe deu as oportunidades a si, que era filho do irmão, e não à sua descendência directa? É preciso não esquecer que a Somague é uma empresa de matriz familiar.

Comecei a tomar conta da Somague em 1993, e em 1994 desafiei o meu primo a vir trabalhar comigo. Vivemos toda esta aventura em conjunto, partilhámos as decisões.

 

Como é que resolveram o problema da competição?

Nunca houve competição entre nós. Ele sempre aceitou, desde o princípio, e muito bem, a minha liderança. Eu sempre aceitei a importância dele no equilíbrio da família e do trabalho. Durante algum tempo tivemos a companhia do meu irmão e de um primo; depois cada um seguiu o seu caminho. O entendimento sempre foi de enorme confiança e cumplicidade.

 

Que qualidades é que o seu tio lhe reconheceu a si, e que não reconheceu no filho, para lhe dar este protagonismo? A família é a mais complicada das teias...

A racionalidade económica nem sempre está presente na gestão familiar. No entanto, a decisão do meu tio foi bastante racional e aceite por todos: não havia ninguém tão preparado quanto eu para tomar as rédeas do grupo. Eu já trabalhava com o meu tio, fiz um estágio na Somague antes de acabar o curso e elaborei um relatório altamente crítico. Ingenuamente crítico, até. Levantei um conjunto de questões, às quais ele estaria pouco sensível e atento, que foram importantes para reestruturar o grupo. Mas depois saí.

 

Por que é que saiu?

Não fazia parte dos meus planos envolver-me com o grupo.

 

Quer dizer, com a família?

Com a família. Eu não tinha nada a ver com construção, nunca na vida gostei de construção, continuo a não gostar nada de construção. É um mercado com uma relação muito próxima com o sector público, coisa que detesto. Acabei o curso e fui trabalhar com o Filipe de Botton, para a Logoplast, como director financeiro, cerca de dois anos. Depois tornei-me sócio do Filipe e do Alexandre Relvas e fundámos a Interfinança. A área financeira era aquela com que tinha mais afinidade. Mas o meu tio sugeriu-me que voltasse para fazer uma reestruturação no grupo. Foi uma opção de vida. Mais tarde, e ainda antes de a questão dos espanhóis se pôr, já tinha decidido deixar de trabalhar com a família e fazer as minhas coisas – outra opção de vida.

 

São opções de vida com um prazo de validade muito bem definido.

Tratava-se da transição da Somague. Os espanhóis vêm facilitar esta transição. Integrados numa multinacional, resolvido o problema patrimonial à família, que ganha uma liquidez e uma capacidade completamente diferentes, a família deixa de precisar de alguém com as minhas características. Nesse aspecto, a família, e eu próprio, ganhámos uma liberdade quanto às opção de vida. É neste ponto que estou.

 

Geriu os negócios da família. Geriu também as tensões da família?

A gestão das tensões, dos vários blocos da família, nunca foi feita por mim, mas pelo meu tio.

 

Aceitou trabalhar na Somague impondo como condição não haver noras nem genros. Só queria pessoas da família.

Exactamente.

 

Isso levanta várias questões. Como a da valorização do sangue. Mas também a da confiança.

Valorizo a não existência de intriga. Uma boa parte das tensões ao nível das famílias vem, justamente, dos genros e das noras.

 

Porque são de outro sangue?

Porque são de outro sangue. Trazem objectivos de poder e de separação dos núcleos familiares [já existentes].

 

Estamos a falar de interesses e de dinheiro?

Estamos a falar de interesses e de dinheiro. Os interesses de uma família gerem-se mais facilmente, embora com tensões, dentro dessa família, sem genros e noras. Esta questão tinha sido evidente na segunda geração. Era melhor que na terceira geração as coisas se mantivessem em família, como aconteceu.

 

Dê-me uma definição de família.

Família é o nosso primeiro universo. É um espaço de união e de protecção. Numa família interessa fundamentalmente proteger. Protegê-la de intrigas, de influências externas, de factores que são os separadores da família.

 

Vou fazer-lhe uma provocação: percebi, pela sua aliança, que é casado. Quando casamos trazemos para a família alguém que não é do sangue. Temeu ser olhado, cobiçado, gostado, não por ser quem é, mas por ter o que tem e o que podia vir a ter?

Nunca.

 

É disso que fala quando fala das ameaças das noras e dos genros...

A minha mulher tem uma enorme personalidade. A questão financeira é irrelevante para ela na tomada de decisão. Faz até muita questão de separar as coisas. O que faz com que seja possível trabalharmos juntos nas minhas coisas. Há um sonho comum de concretizar, mas nunca esse sonho se imiscuiu no nosso dia-a-dia.

 

A chegada de novos elementos implica sempre uma reconfiguração dos núcleos da família. Seria normal que duvidasse das razões porque estão consigo. É como as mulheres muito bonitas: se ficassem coxas, gostariam delas da mesma maneira? Ou seja, se fosse pobre, gostariam de si da mesma maneira?

Gostava de dizer que tudo o que tenho foi conquistado e ganho por mim. Eu não sou rico, é uma falsa ideia. Aliás, o meu pai, por um conjunto de circunstâncias, é o menor accionista do grupo. Todos os meus tios e tias têm 22,5% da sociedade familiar e o meu pai tem 10%. Eu não tenho nada. O que tenho resulta de alguns negócios que fui fazendo à margem da minha actividade empresarial, e ponto final.

 

E por que é que é assim?

Porque tem que ser assim. Não sou dono de um património que é da família e que continua na segunda geração - não foi distribuído.

 

Eu, só de olhar para obras com a dimensão da ponte Vasco da Gama, vinha com a ideia de que é riquíssimo!

Sou muito rico de espírito. E de experiência. Sem dúvida que o património do meu pai e dos meus tios, fruto da gestão que foi feita nos últimos anos, é importantíssimo, mas é deles, não é meu. 

 

Tem três filhos. O que é que lhes deixa? E nem estou a pensar nas acções da empresa que um dia hão-de herdar...

A coisa mais importante é investir numa educação sólida, em princípios e em valores. Foi aquilo que tive e foi o mais importante para ser quem sou. É errado o princípio de deixar uma fortuna colossal aos filhos. O mais importante é que tenham uma cultura de trabalho, de realização, de utilidade em relação à sociedade. Podem ser sapateiros, carpinteiros, engenheiros, economistas: façam-no é bem feito.

 

Se um filho seu fosse para Nova Iorque estudar dança e outro quisesse abrir um restaurante e ter uma vida simples...

Acho fantástico, não ponho qualquer dificuldade.

 

Mas gostaria que fossem excelentes no que fazem?

Julgo que qualquer pai tem como sonho que os seus filhos sejam o que quiserem, mas que sejam bons naquilo que fazem. O que me custa admitir é a mediania ou mediocridade. Não tenho respeito por pessoas que não tenham conseguido ganhar hábitos de trabalho.

 

Voltemos às pessoas com quem se cruzou. Diz que aprendeu mais com o Filipe de Botton e com o Alexandre Relvas, na empresa que fundaram, do que no curso da Católica. Porque é que eles foram determinantes?

São altamente empreendedores. Quer um, quer outro. Eu gosto de criar. Gosto do novo desafio, da empresa nova, de reestruturações, reorganizações. Não sou uma pessoa de rotina. Prefiro fazer coisas de raiz.  

 

Fale-me dessa sua vertente, de ser um homem empreendedor.

O que é que gosto de fazer? Gosto de fazer. Passo muito tempo a pensar o que é que vou fazer. Nos meus primeiros tempos com o Alexandre e com o Filipe, admirava-lhes a criatividade, a capacidade de inventar novos negócios. Muitas vezes ia para casa a perguntar-me: “Como é que isto se faz?, como é que eles têm essas ideias?, como é que crio em mim esta capacidade de pensar de uma maneira diferente?”. Achava que isto se aprendia...

 

E aprende?

Aprende-se, ou estimula-se muito. E foi esse estímulo que o Filipe e o Alexandre me deram.

 

Tudo isso tem que ver, intimamente, com a confiança que temos em nós. Não se sentia tão seguro de si, a ponto de ousar.

Esse é o ponto fundamental. Tudo na vida se resume a autoconfiança, a acreditarmos que somos, ou não somos, capazes de fazer certas coisas.

 

Se chegarmos a uma reunião cheios de confiança, se acreditarmos que os outros vão ser demolidos pelos nossos argumentos e pela nossa competência, isso funciona?

Funciona bastante. Vivi isso aqui dentro, porque em 1993 tinha 30 anos.

 

Sabia para o que vinha?

Esse é que é o estímulo da vida: se soubéssemos muitas coisas antes de as fazermos, não as aceitaríamos. Mas elas representam desafios, estímulos e superações sistemáticas daquilo que achamos que somos capazes. Tanto prazer e tanta adrenalina permitem conquistar essa confiança. Se conseguimos ultrapassar aquilo que púnhamos como obstáculo intransponível, acreditamos em nós: “Se fui capaz de fazer aquilo, porque não hei-de ser capaz de fazer o que vem a seguir?”.

 

A partir de que momento é que acreditou em si, disse: “Sou capaz”.

O momento que mais me marca é a conclusão de um processo de reestruturação muito difícil, muito complicado. Começa com a minha entrada na Somague em 1993 e acaba em 1996. [O intuito era] recuperar a Somague de um ponto de vista económico-financeiro e de intervenção no mercado. Isso fez-me ganhar confiança para o segundo objectivo, que foi em 1997, quando partimos para uma grande aquisição que nos faz dobrar de dimensão (Soconstroi).

 

Por que é que passou a falar no plural?

Falo do “nós” porque foi uma equipa. Há aqui um aspecto crucial. As decisões são tomadas sozinho, muito embora ouça as pessoas que estão ao lado e em quem confio mais.

 

Quem era a pessoa de máxima confiança?

O tio João. Não havia nada que não passasse pelo crivo dele. Mas a execução era de uma equipa. Era uma equipa excepcional? Somos nós que escolhemos a equipa. O líder, como escrevi recentemente num artigo, e dando como exemplo o Scolari, sabe que se ganhar o mérito é da equipa e se perder a culpa é dele.


Se perder a responsabilidade é sua. Quem é que, nessas circunstâncias, não o abandonará? Ainda o futebol: ontem [esta entrevista foi realizada no dia a seguir ao Portugal-Inglaterra] o guarda-redes Ricardo dizia que tinha o telefone entupido de chamadas, e que só ouvia aqueles que o tinham apoiado quando estava em baixo. É uma coisa de uma força incrível.

Revi-me integralmente naquilo que ele disse. Vivemos momentos muito complicados entre 97 e 2000, depois da aquisição da Soconstroi. Tentaram, durante muito tempo, denegrir a situação económico-financeira da Somague. É nessas alturas que sabemos quem são as pessoas que estão ao nosso lado e quem são os oportunistas. E chegamos à conclusão de que os oportunistas são muito mais do que as pessoas que estão do nosso lado. Os oportunistas estão sempre do lado do poder, do lado de quem lhes dá negócio, de quem lhes dá visibilidade. Sei com o que conto.

 

Nesses anos era muito novo. É mais fácil, quando se é tão novo, ser influenciável, vulnerável, inseguro. Depender mais do apreço dos outros.

Tem razão. Hoje, para a minha vida empresarial, que está a tomar um rumo muito activo, é importante ter essa noção muito clara: quem é que esteve connosco e quem não esteve. O Scolari deve ter o mesmo problema.

 

Falámos ao longo da entrevista, sobretudo, de família. A fusão da Somague com os espanhóis da Sacyr representou para si, em algum momento, uma machadada no espírito de família que lhe é tão caro?

Não, minimamente. Não houve nada que não fosse discutido em sede familiar. Estávamos conscientes, desde 2000, que uma parceria estratégica com um grupo espanhol, que veio a adquirir um dinamismo brutal de crescimento, viria, mais cedo ou mais tarde, a significar uma fusão. Não era o único caminho, mas era uma possibilidade. Durante muito tempo fomos pressionados por Espanha a avançar nesse caminho. E durante muito tempo resistimos. Resistimos enquanto sentimos que a capacidade de criação de valor do nosso lado era potencialmente superior à deles. Até ao dia em que nos convencemos do contrário. Estava na altura.

 

Pertence à terceira geração. Teme que na quinta geração, ou mesmo na quarta, a Somague já não pertença à família Vaz Guedes?

Não.


E se não for, não há problema?

Não há problema rigorosamente nenhum.

 

O provável é que não seja?

A economia mudou muito. O grande problema é que ainda não mudámos o chip. Em Portugal continuamos com um chip altamente conservador. Não compreendemos o que significa ter aderido à União Europeia, estar num processo de globalização, e isso tem-nos penalizado muito. Continuamos a viver numa economia fechada. A grande maioria dos países europeus virou-se para fora do seu próprio país; em Portugal todas as operações são de concentração interna. Não faz sentido, é desajustado em relação aos sinais que temos do exterior. Algumas pessoas já compreenderam isso: que o crescimento da nossa economia não vai ser baseado em campeões nacionais.

 

É imune às críticas que dizem “vendeu-se aos espanhóis” ou “vendeu a Somague aos espanhóis”? E estou a pensar até no Compromisso Portugal e na questão, muito discutida, de transferir centros de decisão para Espanha.

Absolutamente imune. Enquanto gestor só tenho um objectivo: proteger os meus accionistas, proteger os meus colaboradores e criar valor na empresa. Isso faz com que seja impossível pensar em centros de decisão nacionais, a não ser que os centros de decisão nacionais protejam os meus colaboradores e criem valor para os meus accionistas. Tive uma discussão com um amigo sobre essa questão, que dizia: “Prefiro ser maioritário de um grupo mais pequeno, e ser mais pobre no futuro, do que perder o poder”. Estamos a falar de alguém que não troca poder por criação de valor.

 

Convenhamos que não é o único a pensar assim...

A maioria dos gestores portugueses não troca poder por criação de valor para os accionistas.

 

Apesar de valorizar, sobretudo, a criação de valor, é um homem de poder.

O poder advém da capacidade empresarial e de gestão que é reconhecida pelos outros. É o nosso capital mais importante. O meu poder consiste na capacidade de convencer uma série de parceiros a fazer negócio comigo. Uma nota sobre uma coisa que disse, e que é sistematicamente vista dessa forma, mas que é a maneira errada: nós não vendemos aos espanhóis, nós trocámos. A diferença entre termos trocado e termos vendido significa cerca de 200 milhões de euros em termos patrimoniais. Cerca de 200 milhões de euros em activos, detidos por portugueses, capazes de injectarem esses activos na economia portuguesa, fazendo outro tipo de coisas.

 

Tem apenas 43 anos...

Ainda tenho direito a concretizar alguns sonhos.

 

Quais, nomeadamente?

Fazer aquilo que sempre quis. Não estar na construção. Eu disse-lhe há pouco que detesto construção.

 

Contudo, foi esta experiência que fez de si um ganhador.

Esta experiência é extraordinariamente gratificante. Fez de mim uma pessoa com experiências multifacetadas.

 

Insisto: foi o que fez de si um ganhador.

Seria estúpido da minha parte dizer que ser um ganhador, numa experiência empresarial riquíssima, não é relevante. Se o activo principal que temos é a nossa credibilidade, é melhor ser um ganhador do que um perdedor. Mais do que tudo, enriquece-me a experiência pessoal e profissional de viver 13 anos numa organização onde se faz reestruturação, desenvolvimento, aquisição, fusão, internacionalização, diversificação.

 

Um destes dias, quando isto for ainda mais extraordinário, diz: “Agora vou à minha vida”...

Tal e qual.

 

Vai viver outra vida?

Vou viver outra vida.

 

Sente um indisfarçável orgulho por ter arrumado as contas da família. É como se quisesse, agora, ser o Diogo e menos o Vaz Guedes.

Exactamente. Isso é o que me estimula neste momento. E o facto de saber que deixo as coisas organizadas e bem feitas e que toda a gente fica sem qualquer tipo de problema que venha de trás.

 

Tem um calendário para esse plano?

Não. O que está previsto é continuar a colaborar na Somague, enquanto presidente não-executivo, e representar a família na Sacyr, naquela que é a sua posição accionista. Isto não altera o meu desejo de constituir um grupo empresarial de referência, de base portuguesa, em Portugal, para operar internacionalmente. Isso é muito claro, já está em curso e está muito avançado.

 

Que outros sonhos tem? Não consigo imaginar o que é que faz num sábado à tarde.

O equilíbrio familiar é muito importante. Deixei de jogar golfe porque me retirava espaço para a família. Então, para que tenho mulher e filhos? Os meus fins-de-semana são sempre ocupados a andar de um lado para o outro, a ver o meu filho a jogar hóquei ou futebol, a ver o outro nos karts, a ver a minha filha nos cavalos, a saltar.

 

Ainda a família, que perpassou toda a conversa: que presente gostaria de receber do seu pai e da sua mãe?

É uma pergunta difícil. [pausa] Queria que a minha mãe me desse de presente mais fé do que aquela que tenho.

 

Para que é que precisa de fé?

É um elemento que nos dá força. E às vezes a fé faz-me falta.

 

Ainda duvida que é capaz? Por que é que precisa dessa força?
Não, não duvido. Mas ter mais fé ajudar-me-ia...

 

A sentir-se menos sozinho?

Talvez. Era um presente que gostava de ter da minha mãe. Do meu pai, que fosse um avô mais presente, porque faz muita falta aos meus filhos.

 

Seria um presente para os seus filhos, não para si.

Para mim.

 

Queria tê-lo mais perto de si, é isso?

De mim, não. Mesmo que a gente não se veja muito, ele está, ele está. Mas faz falta aos meus filhos terem um avô mais presente. Ele não foi um pai muito presente e sei que isso me fez falta. O que faz falta aos meus filhos, faz falta a mim, o que é um presente bom para os meus filhos, é um presente bom para mim.


Desconfio que, se um dos seus filhos se revelar um traste, não o deixará cair, que gostará dele à mesma...

É evidente. Mas tudo farei para evitar que isso aconteça.

 

Alguma vez experimentou a sensação de olhar para os seus filhos e não conseguir imaginar o que lhes passa na cabeça? De estar com eles à mesa e desconhecer em que mundo é que estão...

Acho que a minha mulher e eu conhecemos muito bem os nossos filhos e temos uma relação muito próxima com eles.

 

E isso é um tesouro para si.

É.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Março de 2009

 

Daniel Bessa

12.05.13

Quando saiu de ministro, a vida desacelerou. “Cinco meses depois tinha regressado ao ponto de partida, tinha prescindido de todas as relações profissionais, ganhava um sexto do que ganhava cinco meses antes, na faculdade de Economia não se arranja que fazer de um dia para o outro; fui parar à Comissão, sem saber bem o que fazer. Tinha vendido o Fiat Tipo e passei a andar num Peugeot muito velho que havia na Comissão de Coordenação da Região Norte, e que alguém teve a gentileza de me facultar”. Até ao dia em que Francisco Balsemão e André Gonçalves Pereira lhe fizeram uma proposta profissional para a SELBI. “Deixei então de andar no velho Peugeot e passei a ter um BMW. Eram pessoas com quem nunca tinha falado. Devo-lhes a atenção de um telefonema que me permitiu começar a respirar”.

A história começara três anos e cinco meses antes. Três anos de oposição, cinco meses de governo. “Mantive-me na reitoria da Universidade do Porto e nunca deixei de dar aulas, mas realmente o meu reitor foi um santo… Quase só fiz política”.

A história começara muito antes, quando a mãe impôs uma escolha com custos para a família: o mais velho dos quatro filhos iria para o liceu e daqui para a universidade. Sem esse gesto, a sua vida seria outra. Foi então um aluno exemplar, ganhou a vida como explicador profissional, foi professor universitário, aproximou-se da política, foi ministro da Economia.

É casado e tem uma filha. Gosta de filmes de Fassbinder. O que gosta neles? Da crueza. Ele também é assim. Cru. É um parte-a-louça, diz-o-que-tem-a-dizer, pão-pão-queijo-queijo. Há nele uma certa rudeza de pessoa do campo. Nasceu no Porto, é um citadino; mas tem a natureza indómita de uma avó que no campo, quando tudo lhe era adverso, se fez respeitar. Daniel Bessa não deixa nada por dizer: da política, da vida, da natureza humana. 

 

Miguel Baltazar


Estava a dizer-me que “isto” tem que ter piada…

Pois. A expressão que uso é “sentido lúdico”. Sem isso a vida torna-se um inferno, e já são tantas as contrariedades, cada um tem as suas agruras… Há quem diga que tenho uma vida stressada; mas não.

 

Mais do que stressado, parece irrequieto.

Isso sim. Encontrar prazer no que se está a fazer facilita muito as coisas. Tenho dificuldade em viver debaixo de uma tensão muito alta. Tensão dos desafios e objectivos?, claro. Quando a situação muda, e deixo de sentir-me emocionalmente confortável, torno-me impossível – seja na vida profissional seja na relação com alguém.

 

Foi por isso que foi ministro apenas cinco meses? De Outubro de 1995 a Março de 96.

Essa história pode contar-se de muitas maneiras… Já a contei a mim próprio de várias maneiras. A maneira mais simpática é que tudo tem um preço na vida, e esse não o paguei. Eu não conhecia o engenheiro Guterres quando ele me envolveu na política. Encontrámo-nos num colóquio ou conferência, dessas coisas que se fazem ao sábado à tarde, em Viana do Castelo. Passados uns tempos cruzámo-nos no aeroporto Sá Carneiro. “Se a vida me correr bem, hei-de chateá-lo muito”. Respondi à minha maneira: “E se não correr bem, chateie também”. Vivi sempre de falar e de comunicar bem. Acho que foi isso que o levou a pensar que eu podia ter alguma utilidade.

 

Isso associado à sua competência técnica.

Não sei se pensou nisso. Foi sobretudo o hábito de comunicar para muita gente, muitos públicos. Sou, fui, vivi de ser explicador profissional. Desde os 12 anos. Quando, mais tarde, já líder do PS, me telefona e tenta fazer de mim… nunca percebi bem se fui o porta-voz do PS ou de ele próprio. Acabei por não resistir e disse-lhe que sim. Esses anos foram fantásticos! Conheci muita gente, corri o país, o PS ficou muitas vezes com os cabelos em pé porque eu não consegui ver só defeitos no professor Cavaco Silva. O Dr. Soares chamou-me anjinho.

 

Mas isso é por causa do seu ar papudo e dos olhos azuis.

O ar papudo pode ajudar. Mas era a avaliação que ele fazia de um discurso que considerava ingénuo. Os meus colegas de escola dirão que sou tudo menos ingénuo. Mas à beira do Dr. Soares não passo de um anjinho, realmente.

 

Na Wikipedia li com estranheza que Daniel Bessa é um economista e político português. Político? Olhamos para si como político? Olha para si como um político? Eu olhava para si como um economista que teve uma experiência ministerial.

Nos três anos de oposição penso que fui um político eficiente. Na hora de sair, quando percebi que era inevitável sair, só falei a duas pessoas: a minha mulher e o Jorge Coelho. Não sei bem porquê, nem sequer era uma pessoa com quem tinha grande proximidade. Mas foi o ombro de que me socorri naquela hora – à procura de coisa nenhuma. E ele, em bom português: “Ó pá, não vá já embora, passei por tantas dores por sua causa. Andei a tentar convencer o PS que isto não vive só de ortodoxia e uma pessoa menos alinhada cumpre um papel…”.

 

Foi um político de feiras e comícios?

Nos comícios nunca me dei muito bem. Tem ali uma encenação… Há uma série de procedimentos esperados, e o povo bate palmas a certas tiradas... Corri a país a tentar construir uma alternativa. O meu contributo foi um entre muitíssimos, mas acho que foi eficaz.

 

Porque é que acha que foi eficaz?

As pessoas acreditavam que eram possível fazer uma coisa diferente. Esta prática política – vender ilusões, convencer as pessoas de que os outros são uns patifes – nunca fui capaz de a fazer. Lembro-me que na entrevista em que apareci – o engenheiro Guterres tinha dito que eu seria o porta-voz – disse que entre o PS e o PSD era mais o que os unia do que o que os separava. Fez cair o Carmo e a Trindade.

 

Dizia-me há pouco que algumas complicações da sua vida derivam de coisas que disse e que ficam ditas – que têm consequências. Como essa?

Tenho um prazer imenso em dizer que disse isto. Na Assembleia da República, o Dr. Manuel Alegre exigiu uma clarificação. Alguém comentou num jornal: “Mas será possível ser mais claro?”

 

Se tivesse sido o Prof. Cavaco a encontrá-lo em Viana, poderia ligar-se ao PSD como se ligou ao PS?

Aí há um problema, que é o meu velho passado de esquerda. Fui um idiota útil do PC – era assim que o PC nos considerava. Não era filiado, não participava das decisões, não pagava quotas, e andava ali, convencido não sei de quê. Participava em manifestações, abaixo-assinados, intervenções aqui e ali. Não era provável que tivesse sido convidado pelo PSD. Ao PS cheguei, havia alguma continuidade.

 

Voltemos aos cinco meses de governo. Disse que aquela era a sua narrativa simpática sobre o que aconteceu…

O extremo oposto é dizer que era um incompetente. E não me vejo mal de todo nessa. É o princípio de Peter: vamos subindo na vida até ao ponto em que atingimos uma função para a qual somos incompetentes. Vencemos as barreiras anteriores, foram pedindo mais de nós e depositando mais esperanças naquilo que somos capazes de fazer; ali atingi o limite em que me tornei manifestamente incompetente. De novo o sentido lúdico que me caracteriza e uma auto-estima que não é pequena: um dia o engenheiro Guterres concluiu que este tipo já não lhe servia para nada. Serviu mas já não serve. Foi útil para ajudar a tirar uns votos ao PSD e ao Prof. Cavaco Silva, e desde a tomada de posse nada do que ele fez me acrescenta um voto. Aprendi uma coisa muito importante na política que me ficou para a vida: não valemos pelo passado acumulado, valemos pelo que ainda podemos fazer.

 

Ou seja, pela utilidade.

Isso pode fazer com que o nosso valor caia do infinito a zero num momento. Uma empresa vale pelo rendimento que é capaz de aportar aos accionistas. Uma bela coisa, cheia de imobilizado e realizações, pode cair a zero no momento em que alguém diz: isto já não me dá nada.

 

E a credibilidade? Desaparece de um dia para o outro?

A credibilidade é importante para conquistar os infiéis. Já não era preciso ir buscar votantes ao PSD. Era preciso satisfazer uma clientela. Um tipo torna-se um inútil...

 

Se não está disposto a servir a clientela?

Se não paga o preço. Nunca sei quem são as pessoas que têm mais poder na política. O poder maior não é necessariamente o poder formal. Quando alguém telefonava – e acontecia quase todos os dias: “O primeiro-ministro disse que era preciso resolver aquela situação não sei onde…”. Resolver aquela situação não sei onde era sempre meter lá umas coroas. É o problema do presidente da câmara e dos seus clientes, é o problema do que não é presidente da câmara mas que quer ser e precisa de fazer uma excelente figura. Se puder aparecer perante terceiros como a pessoa que evita uma falência, óptimo, isso rende-lhe – e para isso precisa de um ministro que ponha lá não sei quanto, que nomeie alguém. Quando se está num cargo político, essas solicitações saem de todo o lado. No dia 5 de Outubro de 95 o engenheiro Guterres anunciou os seus primeiros quatro ministros; no dia 6 comecei a receber informações: quem era por nós, quem era contra nós.

 

As informações vinham de dentro do PS?

Não era preciso virem de cartão… Estão ligados, são amigos… E caem à nossa frente listas: quem são os idiotas úteis e os idiotas inúteis, quem deve ser mantido e quem deve ser mandado embora.

 

Jobs for the boys.

Claro. Um dia, tinha de nomear uma pessoa para dirigir um organismo público. Aparece-me alguém que era o mais jovem e o menos qualificado do corpo profissional que ali estava. Começou por dizer que queria ser presidente. “Mas você, com 20 e poucos anos, é o menos qualificado, porque é que há-de ser presidente?” E invocou a autoridade não sei de quem que lhe tinha dito que ele ia ser presidente.

 

Nomeou-o? Que é que lhe disse?

Tenha paciência, vamos tratá-lo bem. Mas não me ponha na posição de assinar um diploma onde, com a minha assinatura, o último passa para primeiro. Esse preço, nunca paguei.

 

Começou a ganhar a hostilidade do PS…

Total. O PS fez uma festa no dia em que vim embora. Deu por resolvido um problema com três anos e meio – se eu voltar à conversa com o Dr. Jorge Coelho. Para o PS profundo, foi como quem mata um erro genético. Nunca mais falei com ninguém.

 

No PS?

Sim. A não ser circunstancialmente, as pessoas encontram-se. Falei com o engenheiro Guterres quatro anos depois.

 

Não teve mais que dizer àquela gente e aquela gente não teve mais que lhe dizer a si.

Como lição de vida é difícil ter melhor. A política foi o ponto mais alto que atingi do ponto de vista da carreira. A política é o mais qualificado dos exercícios. Não me custa reconhecer que atingi ali o meu limite; porque são precisas muitas competências para fazer política bem feita. Se os três primeiros anos tinham sido interessantíssimos do ponto de vista lúdico, aqueles cinco meses foram de uma aprendizagem super-sónica. Nunca aprendi tanto em tão pouco tempo sobre as pessoas, sobre o mundo, como nesses cinco meses.

 

O Dr. Soares tinha razão quando lhe chamava ingénuo? Esteve três anos em política, entre “eles”, sem perceber que eram incompatíveis. O que é que muda tão radicalmente quando se tem o poder? O poder de assinar o despacho, de fazer a nomeação?

É a percepção da utilidade. Isto dá ao Dr. Soares a razão toda. Mas não me vejo mal: vivi o que nunca teria vivido, aprendi o que nunca teria aprendido. Em política diz-se que o que é bom é ser ex, que muita gente passa pela política pelo proveito que possa tirar depois. A minha vida, por exemplo, foi muito diferente da que tinha antes. Não sei se teria algumas oportunidades se não tivesse passado pela política. Não tanto para me retribuírem alguma coisa que tenha pago, porque não paguei, mas porque me deu uma visibilidade e me permitiu conhecer imensa gente.

 

Falou de incompetência. Foi uma narrativa que lhe quiseram colar, ou foi uma que fez de si para si: eu não era competente para aquela função?

Essa narrativa foi construída desde a primeira hora em que fui membro do governo. Um jornal qualquer publicou no primeiro fim-de-semana que eu não tinha mão nos meus Secretários de Estado. (Tenho o jornal, guardo tudo: acho um piadão!, é a minha história contada pelos media). Nessa altura, se essa narrativa faz sentido, não fui eu a construí-la. Vivia a minha lua-de-mel com o poder. A coisa foi trabalhada profissionalmente desde a primeira hora. Portanto, que me considero incompetente, claro. Que me revejo nas razões de incompetência que essa gente alegava, aí há uma distância enorme. Eu era incompetente pela simples razão de não estar disponível para lhes fazer os fretes todos. Até prezo muito que alguém me considere incompetente por isso, e rio-me.

 

Pagou por não estar disponível para fazer os fretes. Mas também pela sua ambição? Há nos três anos anteriores à assunção do poder uma ambição crescente. Sabia que tinha essa ambição?

Essa é uma visão talvez nova… Hoje tenho algum dinheiro…, enfim, tenho duas casas boas. Do ponto de vista material é nisso que se resume uma vida de 40 anos de trabalho. Se passei a ter alguma ambição material, foi nos últimos anos. Antes de ir para a política já ganhava bastante bem. Não foi o ter sido membro do governo que me deu algum desafogo material. A ambição do reconhecimento, de que as pessoas achem que somos úteis e demos o melhor de nós próprios…

 

Que fomos bons, que somos bons.

Talvez. Na televisão, na rádio, nos jornais, nos eventos públicos, encontrei imensas manifestações de reconhecimento. Ambição? No dia 1 de Outubro de 95 eu tinha uma única certeza: que o engenheiro Guterres teria que telefonar. Era impossível que não telefonasse. Fizemos muitos quilómetros juntos...

 

Não pôs a hipótese de ele ter mudado de ideias, de afinal já não ser possível?...

Peguei muitas vezes no Fiat Tipo às seis da tarde, para estar em Lisboa às nove, para ir a um jantar ou reunião; saía de Lisboa à meia noite/uma, chegava a casa às quatro e às oito estava na faculdade ou na reitoria. Aconteceu vezes sem conta. Os meus amigos mais amigos não percebiam como é que era possível… A partir de certo momento o Professor Teixeira dos Santos vinha também, (eram os Estados Gerais). Eu acharia uma enormidade que não houvesse um telefonema. Mas o telefonema podia ser para dizer muito obrigado.

 

No fundo de si, achava que ia ser convidado para ministro, e que essa era a recompensa?

Não tinha a certeza disso. A única coisa de que devia ter sido ministro era das Finanças. Basta ver os jornais em que se fazem apostas e aqueles dias frenéticos… Achava que era uma saída possível.

 

O ministro das Finanças foi Sousa Franco.

Disse-me no dia 4 à noite, quando me telefonou, que tinha escolhido o professor Sousa Franco, e convidou-me para ministro do Plano. Fiquei de responder no dia a seguir, e no dia a seguir disse que ministro do Plano não ia com a minha cara. Ele disse que se ministro do Plano não ia com a minha cara, não podia dar a mesma resposta se me convidasse para ministro da Economia. Realmente não podia dar. Aterrei como ministro da Economia, para dizer a verdade, muito pouco preparado para o ser. Talvez a resposta mais inteligente tivesse sido dizer que não. Uma pessoa que me conhece bem disse: “Ministro? Ele dava bem era para Director-Geral”. Terá sido esse o momento em que a ambição falou mais alto e não fui capaz de ficar na berma? Foi o momento em que fui guloso.

 

Tinha 47 anos. Desejava isso. E desejava que lhe acontecesse alguma coisa.

Era a prova dos nove. Não resisti.

 

Disse que a sua auto-estima não é pequena. Contudo, parece ter uma enorme necessidade de confirmação exterior, do reconhecimento das suas capacidades.

Há duas validações. Conheço pessoas que têm uma enorme auto-estima e que ninguém reconhece. Necessito de um mínimo de reconhecimento objectivo. Todos os loucos estão contentes consigo próprios. Nunca me satisfez na vida estar muito contente comigo próprio.

 

Quem eram as pessoas à sua volta cuja aprovação e reforço mais procurava?

Isso é outra questão. Falo de uma aprovação mais ampla. O reconhecimento de terceiros a que me habituei cedo foi o dos alunos nas salas de aula. Uma boa aula é um enorme momento de realização. Ao fim de 40 anos, isso constitui um capital inacreditável… Ter sido professor de dezenas de milhares de pessoas. Coisa diferente são aqueles que nos são próximos. Sou uma pessoa reservada, não tenho muitos amigos.

 

Porquê?

Pessoas com quem nos abrimos completamente, partilhamos a vida, confessamos as angústias e esperanças mais profundas, esperamos que digam sinceramente o que pensam…, isso tenho poucas, e a aprovação dessas não é fácil de obter. A minha mulher foi sempre muito importante nisso. É economista. Não é impunemente que se vive com uma senhora há 40 anos… Não ousei dizer que sim [ao convite para ser ministro] sem ter isso absolutamente esclarecido em casa.

 

Que contava com o apoio dela, que ela concordava?

Tinha que concordar. Mas se a minha mulher me tivesse dito que não, eu não me atreveria. Não consigo imaginar a minha vida como [sendo] só minha. No mínimo, a coisa dizia respeito também à minha mulher. Passei a vir para Lisboa, ia a casa ao fim de semana – há uma barra pesada. Da mesma maneira lhe disse que, na hora de sair, foi a casa que fui. Meti-me num carro às nove da noite, cheguei à meia-noite: “Fátima, amanhã venho embora”. Essas pessoas não têm que nos reconhecer. Têm é que gostar de nós, ser minimamente críticas e confortarem-nos ou condescenderem; mas isso não tem nada que ver com o reconhecimento de mil e tal participantes na sessão de encerramento dos Estados Gerais. 

 

Conte-me como foi o encontro com a sua mulher e como isso mudou a sua vida.

Entrámos juntos em 1965 na Faculdade de Economia. Criou-se uma relação de uma cumplicidade grande, desde muito cedo. No fim do segundo ano ficou esclarecido. Tinha 19 anos.

 

Conte-me da vida que está para trás? Que passos são importantes para o conhecer?

Fui muito marcado por uma mãe, que tem agora 91 anos, a quem devo quase tudo. Era uma família modestíssima de quatro filhos, pai e mãe. A mãe era doméstica, o pai era empregado comercial e tinha o antigo quinto ano – que já era um activo interessante. O pai tinha traçado um caminho: que eu entraria numa escola comercial para, aos 15 anos, ir trabalhar e ganhar a vida. Foi a minha mãe que se impôs e disse que talvez o menino pudesse ir mais além. Fazer o ensino técnico ou o ensino liceal podia fazer a diferença em termos de expectativa de vida. É uma promessa de ascensão social.

 

Por via do estudo.

É à mãe que devo essa visão. O compromisso era que seguiria o estudo liceal até que reprovasse. Isso introduz um sentido de dever muito forte. E dar explicações desde os 12 anos tem que ver com isso: era a contrapartida. Era o pouco que podia fazer para diminuir as consequências materiais de ter escolhido a via de ensino, mais longa e com maior custo.

 

O que é que ensinava? Matemática?

Ensinava tudo. Das cinco às sete da tarde, todos os dias, de Outubro a Junho. Com o dinheiro, no fim, comprou-se um fato. A verdade é que a mãe nunca mais foi ao cinema, talvez nunca mais tenha entrado num restaurante. Foi o preço que ela pagou. Somos quatro irmãos, e todos chegaram lá. Um é médico, outro é engenheiro, outra é psicóloga.

 

Que presente ofereceu à sua mãe com o seu primeiro ordenado?

Não sou muito dado a presentes… Sinto um reconhecimento profundo. Que isso tenha que se exprimir num embrulho… Senti-me na obrigação de contribuir para a formação dos meus irmãos. A minha mulher olhou com dificuldade para isso. A minha mãe contrariou, achava que eu não tinha obrigação nenhuma; o meu pai sempre aceitou. 

 

Estava ainda a pagar-lhe a derrota que a sua mãe lhe infligiu…

Sou uma pessoa de contas e gosto de me apresentar como uma pessoa de contas. Isso fazia parte das contas. Ganhei algum dinheiro com as explicações, tornei-me profissional. Finalmente quem me sustentava, mesmo como aluno, era eu próprio. Casei no ano em que me licenciei.

 

Porque é que estudou Economia?

Eu queria ir para Direito, mas Direito era em Coimbra e não havia dinheiro para isso. Sou um jurista frustrado. Cheguei a pensar, mais tarde, tirar a licenciatura em Direito. No Porto, a confusão entre Economia e Gestão era total. A carreira profissional seria qualquer coisa numa empresa, logo se veria o quê. E depois, era o curso do Salazar. Não sei se isso credibilizava…

 

Dava segurança?

Era o curso do Salazar. Fugi aos meus pontos mais fracos. Fui muito bom aluno, no ensino secundário e no superior. Fui um dos dois melhores alunos do meu curso. Era bolseiro da Sacor – a casa onde estamos hoje [sede da Galp] – e fui convidado a trabalhar na empresa.

 

Porque não veio?

Eu dizia que sim à empresa e três ou quatro meses depois dava com as costas num quartel. Fui para o ensino para fugir à tropa. Se seguíssemos a via do ensino éramos declarados estudantes de doutoramento e isso adiava o serviço militar até aos 30 anos. Em 74 deixou de se pôr o problema. Foi isso que me impediu de seguir outra carreira melhor remunerada. Depois, fiz as asneiras todas, tornei-me idiota útil do PC, paguei um preço altíssimo por isso.

 

Como assim?

Por exemplo, tentei sair da faculdade. Cheguei a ser admitido no gabinete de estudos de um banco, cheguei a despedir-me da faculdade; e depois, por razões políticas, na reunião seguinte alguém disse: “Se esse tipo entrar, saio do conselho de administração”. E assim acabou a minha ida para o banco, e eu a voltar para a faculdade, a pedir imensa desculpa, e a dizer que já não ia para o banco… Há-de haver uma razão; se calhar a ambição – o termo que usou há bocado. Hoje levo-o à conta de estupidez. Fiz coisas mesmo estúpidas. Mas, lá vem a auto-estima, não estou descontente com o resultado final.

 

Era jovem…

Fui presidente do conselho directivo da minha faculdade logo a seguir ao 25 de Abril, tinha 26 anos. Fiz parte do pequeno grupo de pessoas que mudaram a faculdade de Economia e que fizeram esses disparates todos. Algumas pessoas desse grupo atingiram níveis de reconhecimento interessantes – o Fernando Teixeira dos Santos, o Alberto Castro. Aqueles que não cometeram os mesmos erros não passaram pelo mesmo processo de aprendizagem. Assim se tempera o aço.  

 

Nisso tudo havia um desejo de ascensão social e de não defraudar a confiança que a mãe depositou em si? Funcionou como motor da sua vida.

Sim. Foi o tema em que pensei hoje na viagem, de carro, do Porto para Lisboa: a mãe. Tenho uma dívida incomensurável.

 

Fala como se não pudesse nunca saldar essa dívida.

Não tem hipótese de ser saldado. Nunca falei com ela sobre isto. A mãe não é uma pessoa meiga.

 

Ela vai ler esta entrevista?

Não, está já muito diminuída. Se há coisa que não gostaria de ser, é ingrato. Mas nunca estive à espera de grandes carícias ou reconhecimento. Foi sempre bastante austera e contida na manifestação dos seus afectos.

 

É um pouco como a sua mãe? Há na maneira como fala disto um lado bruto – desculpe dizê-lo assim. Diz o que tem a dizer, mesmo acerca de si mesmo, sem contemplações.

Odeio iludir-me. A passagem pela política… talvez me tenha sobrestimado, mas sou incapaz de considerar um erro total. Fez parte de uma história e envolveu uma aprendizagem. Há coisas que sei sobre mim próprio e sobre os outros que não teria sabido se não tivesse passado por essa experiência. Esse lado mais rude tem muito que ver com a minha avó paterna. Foi mãe solteira numa aldeia no interior de Viana do Castelo há 90 e alguns anos. Foi capaz de construir um caminho próprio, tornou-se merceeira e padeira e tornou-se numa pessoa respeitadíssima e independente. Era duríssima. 

 

Era de uma grande tenacidade. Que o senhor tem.

Sim. Talvez me tenha marcado mais a avó do que o pai. O lado mais rebelde, de menor condescendência vem da avó. Ela interpôs uma acção de reconhecimento de paternidade e ganhou na primeira instância, em Viana, e perdeu na segunda, no Porto – é difícil ser mais humilhado. O avô estava ali a umas centenas de metros, manteve-se solteiro, o problema terá sido criado pela mãe do avô que não aceitou o casamento; quando a velhice se aproximou, o padre propôs o reconhecimento do filho e o casamento. Ela teria 70 e muitos anos. Fizemos uma festa pelo reconhecimento do filho – meu pai – e foi aí que conheci o avô. Mas a avó não aceitou casar. É fantástico! A avó morreu em 74, em casa do meu pai e da minha mãe, e o pai morreu logo de seguida.

 

Não o viram ministro, mas a sua mãe sim. Que lhe disse quando foi ministro?

Nunca falei com ela sobre isso. Nos meus velhos 127, e depois no Fiat Tipo, nunca tinha passado dos 140 km no máximo. No dia em que vim tomar posse vim num carro de Estado, nuns 170/180 km, e regressei a casa a 240. É impossível não haver um fascínio, por mais que se tenha os pés na terra. Mas não telefonei à mãe.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Janeiro de 2009

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dries van Noten

12.05.13

A primeira vez que um vestido Dries van Noten desfilou na passadeira vermelha dos Óscares foi por Cate Blanchett. A actriz estava muito grávida e o vestido cor de violeta ia bem com a sua cor de pele, diáfana. Foi considerada a mais bem vestida da noite.

Recentemente, outra australiana, ícone da moda, aderiu às criações de van Noten numa ocasião especial. Nicole Kidman usou um vestido branco e preto, bordado a pedraria, e o seu chique e sofisticação eram insuperáveis.

Não é por acaso que Dries van Noten seja pouco usado. A massificação não vai bem com ele. A vulgaridade e o consenso também não.

Não é por acaso que, folheando as revistas de moda, não se encontram páginas e páginas de publicidade do criador belga. Tal resulta de uma escolha.

A sua produção segue um curso quase artesanal e há um lado experimental nas suas colecções de que não prescinde. Criar é mais importante do que vender – diz-nos, numa entrevista exclusiva.  

Dries van Noten nasceu em 1958, em Antuérpia, onde continua a viver. Faz parte de um grupo de criadores belgas que em 1986 apresentaram a sua primeira colecção. Dele se destacam figuras como Ann Demeulemeester e Dirk Bikkembergs. Ficaram conhecidos como “os seis de Antuérpia”.

As suas peças são únicas, encantadoras, jogam com a subtileza. Não são para mulheres que se parecem a todas as outras.  

 

 

É um criador para quem a pintura parece ser um tema essencial. Seja no uso das cores fauve, seja na composição inesperada de uma paleta de cores. Fale-me da sua relação com a pintura e com artistas que deixaram uma marca na sua personalidade e no seu trabalho.

Quando estudei na Academia, éramos poucos alunos em cada aula criativa ou artística. Por causa disso, pudemos colaborar de forma muito próxima em temas escolhidos por nós. Permitiu-me então, e permite ainda hoje, apreciar diferentes tipos de expressão artística – não só na moda. Sou um fã ávido de muitos meios de expressão artística, e a pintura é um dos meus meios preferidos. Mas na realidade sou bastante indisciplinado no meu amor à arte e à pintura! Gosto de muitos estilos, períodos e escolas, interesso-me mais por trabalhos individuais ou expressões do que por um conjunto de trabalhos ou uma escola.

Tendo dito isto, tenho um interesse particular por pintores belgas, especialmente do início do século XX.

 

A textura dos tecidos é um elemento decisivo quando se pensa no seu universo criativo. Há um lado sensual e sensorial neles… É o lado táctil e físico dos tecidos que o seduz?

Tenho uma paixão incondicional por tecidos, pela forma como drapejam, como caem. A sua origem, o seu toque – são essenciais no meu processo criativo, contam histórias, e podem ser, muitas vezes, o ponto de partida para uma colecção. São e serão sempre uma pedra fundadora no meu amor pela moda.

 

Podemos falar sobre o lado sensual das suas criações? Especialmente as colecções femininas são sensuais, mas nunca de uma forma óbvia. Sugere mais do que revela.

Tal como disse, eu quero mesmo é sugerir, e não revelar – esta é a minha definição de sensualidade. Vulgaridade e discrição são conceitos muito subjectivos, mas tento desafiá-los e abraçá-los.

 

Na sua biografia, refere-se uma ligação familiar ao têxtil. A influência parece inequívoca. Contudo, o seu pai e o seu avô, que trabalhavam na área, não eram criativos…

O meu avô era alfaiate e o meu pai era dono do primeiro pronto-a-vestir de Antuérpia. Herdei deles a sensibilidade para fazer peças de roupa, as suas tradições e rituais. Eles acostumaram-me e criaram em mim a paixão por tecidos e pela subjectividade e por aquilo que é «bonito». Mais tarde, apresentaram-me à indústria, levando-me a Paris e Milão, nas suas viagens para comprar colecções. Esta foi a centelha do meu amor pela moda e pelo vestir, com o sentido íntimo de que queria criar, e não vender.

 

Pode descrever o guarda-fatos da sua mãe, tal como se lembra de olhar para ele em criança? O do seu pai era suficientemente interessante para que se lembre dele?

Eram individualizados, mas variados, adaptados a cada um, e casuais, para a época. Era evidente para todos quantos os conheciam que adoravam roupa e o seu ofício. No entanto permaneceram discretos, sem qualquer excesso na afirmação desse gosto.

 

Há uma influência marcadamente étnica em muitas das suas colecções. Vê-se como cidadão do mundo?

Eu vejo-me claramente como um cidadão do mundo, e acredito que não temos sequer escolha nos dias que correm. Acho também que a moda de hoje é global. Como tenho um enorme fascínio por outras culturas e trajes, tenho usado elementos de todo o mundo desde a minha primeira colecção.

 

Pode falar das suas viagens, dos livros e dos contactos que lhe passaram essa noção?

Gostaria de viajar mais do que consigo. Pelas dificuldades que o meu trabalho apresenta, é difícil. Na última colecção masculina, utilizámos tecidos feitos por artesãos com técnicas tradicionais, Ikat da Índia, Batik da indonésia, e tecidos de kimono japoneses. Tentei utilizar os tecidos tal como são hoje em dia, evitando associações com folclore e passado. As ideias que estão na origem da produção destes tecidos incríveis atravessaram séculos e são tão actuais hoje como sempre foram.

 

Muitas das suas peças envolvem um trabalho artesanal, e parece retirar disso um grande prazer. Verdadeiramente não saiu de Antuérpia porque não quis ficar global, indiferenciado, um resultado de uma produção em massa?

Estou ligado ao passado em termos de “tradição”. É muito importante para mim o uso de técnicas ancestrais no processo criativo dos padrões ou tecidos. Temos sempre que aprender com o passado. Claro que, viver na Bélgica, e especialmente em Antuérpia, dá-me uma perspectiva completamente diferente de uma série de coisas. Adoro a serenidade, a noção de espaço e tempo que tenho aqui, e por isso não poderia viver em qualquer outro sítio.

 

Desenhar roupa é a sua forma de expressão – como outros têm, por exemplo, a escrita ou o canto. Poderia “dizer” o que tem a dizer de outra maneira?

Tenho outra paixão, a jardinagem, que igualmente me permite exprimir-me. A jardinagem tem uma proximidade grande com a moda, na minha opinião. As flores têm tendências, e misturar ou cruzar as suas cores diferentes é um pouco como construir uma colecção, com um timming completamente diferente, e uma noção de longevidade muito maior. Também me permite manter os pés na terra e as mãos sujas!

 

 

Publicado originalmente na Revista Máxima em Julho de 2009