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Há qualquer coisa nele em que não se acredita. As frases: longas e perfeitas, de uma construção literária. O que elas dizem: entre a pompa e a crueza desarmante. Cheias de boa educação e de estilo. A tentar vincar a sua singularidade, mas sem denotar uma excessiva vaidade. Que talvez não exista. As frases são como ele é. Ele é como fala. E demoramos algum tempo a acreditar que esse é o seu ritmo, o seu modo, e que está a falar verdade.
Ele diz coisas que doem. Que lhe doem a ele pronunciar e a mim ouvir. E depois fuma e ri um pouco. Como quando diz que é certo que será suplantado, e que espera pressenti-lo para não sair empurrado. Ou que está sempre à beira do abismo, com as solas dos sapatos cheios da poeira do Grand Canyon.
Vive uma vida que se podia decalcar dos grandes romances. Uma destas tardes, durante horas, falou-me dela, falou-me da mãe com lágrimas nos olhos, do gosto da morcela, dos “caveaux” dos anos 60, do calçadão do Rio percorrido com esperança, da desesperança que conheceu depois da fortuna, do trabalho como forma suprema de adição.
Mário Assis Ferreira tem 63 anos. Entregou-se generosamente à conversa. Pediu apenas que não falássemos da vida pessoal (leia-se, amorosa). Fumou um dos seus muitos cachimbos, não sem antes perguntar se o fumo incomodava. Fez as fotografias com a mesma paciência e profissionalismo. Show must go on, meus caros... E este homem sabe como pôr a máquina a trabalhar. O que se faz nas páginas seguintes é a dissecação da sua máquina.
Miguel Baltazar
Pego-lhe por onde? “A Vida é um Jogo”, de Robert Rossen, viu esse filme? Com Paul Newman, a encarnação da juventude e do risco.
Vi. Não considero que a vida seja um jogo. Não creio que exista a sorte. Creio que o que existe é a ausência do azar, e essa dá um trabalho do diabo para conseguir alcançar.
É uma frase demasiada polida, essa...
A frase é minha. Só a utilizei porque corresponde a uma profunda convicção. A vida é um exercício de vontade, de determinação. A natureza pode ser mãe ou madrasta, em relação aos neurónios que nos concede, à saúde que nos dá e que podemos desenvolver, aperfeiçoar ou mitigar. Mas, para além de provações que temos que enfrentar, é a força da vontade que traça as verdadeiras fronteiras do caminho que havemos de percorrer. Se quiser, o parceiro que joga a vida pode fazer batota e influenciar o resultado.
E o parceiro é quem? Somos nós mesmos?
É o protagonista da vida, somos nós mesmos.
Aprende-se na derrota? 1974 foi o ano em que mais aprendeu? Aparentemente foi um ano de falência de projectos.
Tem toda a razão. Um homem aprende muito mais sobre si próprio e sobre a vida nos momentos de desaire. Em que se sente sozinho. Em que é obrigado, no exílio de si próprio, a encontrar regras que lhe permitam sobreviver. A encontrar forças para suportar as adversidades. Grande parte do que aprendi na minha vida e, sobretudo, as regras e os códigos de ética por que me rejo, foram encontrados mais nos momentos de desânimo do que nos momentos de sucesso.
Vamos então ao calendário de 74. Conte-me quais foram os grandes momentos, para a seguir percebermos o que é que mudou, o que é que aprendeu.
Estava no Ministério das Finanças e era chefe de um gabinete ministerial. Era também jurista da Direcção Geral das Contribuições e Impostos. Neste momento é fácil dizer que ninguém concordava com o regime então vigente. Eu tinha dúvidas metódicas e achei que devia servir a causa do interesse público, mas que jamais poderia aceitar qualquer função que fosse de natureza política. No dia 25 de Abril fui provavelmente das primeiras pessoas que teve conhecimento da revolução. Estava no Ministério e recebi, alta madrugada, uma chamada do Rádio Clube Português, dizendo que as instalações tinham sido tomadas por uma força militar.
Prenunciava um novo quadro para si...
Nunca fui perseguido, nunca fui defenestrado, todas as pessoas me conheciam e sabiam a forma como sempre me posicionei. Mas logo a seguir ao 25 de Abril senti que Portugal ia entrar numa crise muito complexa, e resolvi fazer uma experiência consentânea com as minhas crenças na economia de mercado. Resolvi emigrar para o Brasil. Sozinho.
Tinha família?
Tinha, mas ficou em Portugal. Fui para o Brasil para engrossar a legião de portugueses que percorriam o calçadão de Copacabana na expectativa de encontrar um emprego. Não conhecia ninguém e concorri a todas as oportunidades que havia. Ao fim de uma semana, consegui um lugar de consultor jurídico num grupo empresarial. A partir daí, foi uma ascensão muito rápida. Ao fim de seis meses ocupava um cargo na administração. Depois passei à vice-presidência do grupo.
Quanto tempo durou a aventura?
Oito anos. Só foram passados no Brasil quatro, os outros quatro foram passados dentro de um avião a abrir fronteiras para esse grupo. Consegui abrir 36 empresas, em 36 países e ajudei a transformar aquele grupo no segundo maior exportador de café solúvel do mundo, logo a seguir à Nestlé.
Consta que em 74 perdeu uma fortuna na bolsa. É verdade?
Perdi tudo o que tinha. Aliás, não foi alheio ao facto de querer buscar novos horizontes noutro país. A verdade é que todos os rendimentos que tinha estavam investidos na bolsa e tinha empréstimos bancários titulados por esses títulos. No dia 26 de Abril, tudo aquilo que podia representar um património significativo ficou reduzido a zero, e sobrava o débito que tinha assumido. Tinha que ganhar um salário que me permitisse pagar esses débitos. Desde o primeiro salário que tive, cerca de 50%, transferia-o para Portugal, para pagar os meus encargos. Demorei oito anos a pagar tudo o que pedi à banca.
Voltou quando pagou tudo?
No último dia e na última prestação, regressei a Portugal. Quando cheguei, os presidentes do Conselho de Administração dos dois bancos credores fizeram questão de me dizer que eu tinha sido o único português que tinha liquidado todos os débitos de origem bolsista pré-revolucionários até àquela altura. Orgulho-me de o ter feito.
Com quem é que aprendeu a honrar os seus compromissos?
São coisas que se aprendem desde o berço. Para já, há um cromossoma genético que não pode ser despiciendo. Depois há uma educação que os pais nos transmitem e que se transforma em regras de convicção absoluta. Por exemplo, sou diariamente obrigado a negociar e a assumir compromissos, e tenho a convicção de que qualquer coisa que diga ao meu interlocutor, não preciso de a reduzir a papel nem de a assinar, porque sabem que me sinto mais comprometido pela palavra do que por um papel. A credibilidade, a confiança, é um dos patrimónios mais valiosos que se pode ter.
Fale-me de Arganil e do seu pai e da sua mãe. Quando se pensa em Arganil, muito preconceituosamente, traça-se o cenário de um rapaz que vem da terra, tira um curso superior e, mercê dessa ferramenta, traça um destino diferente. Corresponde à sua história?
Não tenho o mérito de me considerar um “self made man” que conseguiu ultrapassar as provações de um nascimento aldeão para ganhar acesso, no meio urbano, ao êxito. Nasci de um pai que era secretário de finanças e chefe de finanças em Arganil e que nessa qualidade conheceu a minha mãe. A minha mãe vinha de uma família da nobreza rural. Nasci num solar lindíssimo de uma aldeia ao pé de Arganil chamada Sarzedo, que não vem no mapa, mas fica debruçada sobre o Rio Alva. A minha avó, obrigada a casar pelo seu pai, que era visconde, com outro nobre, foi a primeira mulher portuguesa que conseguiu, ao abrigo das novas leis da república, ser divorciada por não consumação do casamento.
Conheceu essa avó?
Conheci. A avó Máxima. Era uma figura de tal maneira importante que quando fui para o Brasil, faleceu entretanto, e nunca mais fui ao Sarzedo. Sou sentimental, gosto de preservar as memórias tal como elas estão no meu espírito, e porventura engrandecidas pela distância. O tempo é como um óculo que engrandece o que está longe.
Qual foi a reacção da sua avó Máxima quando teve de ir para o Brasil?
Um enorme desgosto. A minha mãe é um produto da minha avó Máxima. A minha mãe era uma pessoa com um grau de sensibilidade e inteligência que ainda hoje me fazem ter por ela uma admiração ímpar. Foi a pessoa que mais me influenciou. Até aos nove anos, a minha vida foi feita entre a escola primária de Soure, ao pé de Coimbra, (para onde o meu pai foi transferido), e a viver com a minha avó, um ano e meio, na escola primária do Sarzedo.
Que marcas essas raízes rurais lhe deixaram? Quando o vemos, não é imediato que seja um “aldeão”...
Ainda hoje não se separa de mim o gosto por coisas como subir às árvores, andar à caça das rolas e dos pardais com uma espingarda de pressão de ar, apanhar dores de barriga por comer fruta verde ou demasiado quente, arranhar-me a cair da ribanceira abaixo, tomar banho no rio, assistir à matança de um porco, ver como se fazem enchidos. As pessoas quando me vêem a jantar no Pragma, o restaurante gourmet do Casino Lisboa, talvez não desconfiem que gosto ainda é de morcela e de bucho, e outros condimentos que fazem parte dessa origem. Um homem sai do campo, mas o campo não sai do homem.
Quem eram os seus amigos? Eram do seu meio social?
Não, eram filhos dos nossos empregados. A minha professora da instrução primária era inquilina de uma das nossas casas, e o marido empregado no jornal A Comarca de Arganil, do qual o meu tio era director. Uma das coisas que me preocupava era nunca ter apanhado palmatoadas, e a minha avó e a minha mãe foram falar com a professora, D. Sofia, para que ela começasse também a cascar em cima de mim!
Era um principezinho daquelas terras...
Sentia-me, às vezes. Mas se calhar vem daí a minha vocação democrática: nunca me senti bem nessa pele. Eu queria ser tratado como todos os outros e tinha que me inserir no meio. Não tinha que conquistar um lugar, tinha que desconquistar um privilégio.
Como é que se aprende a prescindir do privilégio e a procurar a dificuldade?
Tem que ser um exercício genuíno. Sempre houve no meu espírito esta ideia: toda a carreira de êxito que parecia encaminhar-se para mim, seria o produto de mim próprio ou seria o produto de circunstâncias? O que me fez bem no Brasil, para além de, na solidão e na dificuldade, ter decantado as regras que me ensinaram a ser aquilo que sou hoje, foi a confiança que ganhei.
Tudo foi conquistado por si, sem passado ou genealogia.
Eu não conhecia nada nem ninguém, entrei pela porta dos fundos. E numa empresa com milhares de pessoas, demorei poucos meses a conseguir uma posição determinante. Se há mérito que tenha é uma capacidade de trabalho e de sacrifício em nome de qualquer coisa em que acredite.
Antes da passagem pelo Brasil, era inseguro? Questionava-se sobre o que lhe era devido e o que resultava de circunstâncias familiares e sociais?
Questionava. E questionava ainda por outra razão: porque fui um jovem extremamente bem sucedido. Andava no liceu, no quinto ano, e decidi fazer um conjunto que foi a coqueluche em Portugal.
Viremos a página do Quinteto Académico...
Além de me ocupar o tempo, e provavelmente dar azo a uma veia artística, de um artista frustrado que sou, permitiu-me começar a ganhar muito dinheiro. O meu primeiro Porsche tive-o com 18 anos. Não era um Porsche, desculpe. O primeiro foi um MGB descapotável.
Era um bocadinho exibicionista, nessa altura?
Quem não era? Imagine nos anos 60 um rapaz que tinha um conjunto que fazia todos os bailes universitário, todas as festas de finalistas, que tinha um clube de fãs e que ganhava mais dinheiro do que o próprio pai, que era o director de finanças zeloso e meticuloso...
O seu pai não via isso com bons olhos, pois não?
Claro que não. Não podia ver. Nem o meu pai nem a minha mãe. Viam com uma enorme apreensão. Fiz o Quinteto Académico com estudantes. Eu era um guitarra-eléctrica que cantava, mas que era apenas normal. O primeiro indivíduo que despedi fui eu, e fui substituído. Tive ao longo dos sete anos do Quinteto Académico 32 músicos. Fui buscá-los aos Estados Unidos, a Inglaterra, conheci os Beatles, os Rolling Stones.
Em casa, davam-lhe rédea solta?
Não tinham outro remédio, eu era independente economicamente. Frequentei “caveaux”, espaços e bares onde o cheiro a droga era uma coisa que movia espirais no ar. Nunca na vida fumei sequer um charro. Mas deve compreender que os meus pais viam isto com dupla preocupação: até que ponto eu era capaz de não me deixar tentar? E até que ponto é que o meu juízo estava estabilizado para não pensar que podia, através da carreira artística, deixar de tirar um curso.
Porque é que nunca experimentou? Teve medo de não ser capaz de recusar, se experimentasse e gostasse? Havia um risco, com no jogo?
Sou tendente a excessos. Gostava tanto de jogar King que me recusei a aprender Bridge. Não quero aprender nada que represente para mim uma ameaça. Não é que não seja capaz de resistir...
[interrupção para atender um telefonema]
Entro em divagações e é uma chatice.
Não acharia bem se as estivesse a ler? Não ficaria agarrado?
Depende da sensibilidade das pessoas. Falei-lhe em coisas que me comoveram. Percebeu?
Por que é que a comoção é um problema? É por causa da posição que ocupa? É suposto que os homens que ocupam um lugar de tanta responsabilidade, que mexem em tanto dinheiro, não exteriorizem sentimentos?
Exactamente.
Voltando à conversa do vício, neste caso de droga... Por baixo do sítio onde estamos, há pessoas que têm dependência do jogo. Em momentos diferentes da sua vida pôde lidar com pessoas que estavam, ou estão, à beira do abismo. Respeita completamente aqueles que sucumbem ao vício, aqueles que não conseguem manter a sua inteireza?
Um carro tanto pode ser um instrumento de locomoção, como pode ser um instrumento de destruição do próprio ou de terceiros. A percentagem de dependências que existem em várias áreas da vulnerabilidade humana é bem mais acentuada do que aquela que existe no jogo. Estatísticas fidedignas apontam para o seguinte: o grau de adição de frequentadores de um casino em relação ao jogo não ultrapassa os três por cento. Lamento que no regime tutelar que existe em Portugal, o Estado e a lei não nos permitam, face a sintomas que mostram que o indivíduo está a ficar dependente, proibir-lhe o acesso ao casino. Tenho imenso orgulho em gerir os nossos casinos porque os consegui transformar em muito mais do que salas de jogo com serviços anexos. São centros polivalentes de actividades sociais, culturais, artísticas. Fazendo parte do cromossoma humano jogar, se não houvesse casinos legais, existiam dezenas e centenas de casinos clandestinos, como sempre existiram em Portugal, e continuam a existir – até os casinos cibernéticos.
Não tem de convencer-me disso. Não estou a atacar o jogo, nem os casinos, nem a sua gestão. Voltando a esse tempo em que havia o perigo da droga, para si. Interessa-me perscrutar o jogo de si para si, de domínio sobre a sua vida.
Eu já era humilde nessa altura. Como é que se aprende a ser humilde? Essa é a dialéctica entre o instinto e a razão. Sempre consegui, em quase todas as áreas da minha vida, sobrepor a razão ao instinto. O instinto ajuda-me a descobrir horizontes, a razão ensina-me a diferença entre eficiência e a eficácia. Eficiência não é mais do que resolver os problemas que surgem, eficácia é antecipar esses problemas. O instinto é importante, mas a razão é, igualmente, fundamental.
Estamos sempre à beira do abismo. Caímos ou não caímos: o que é que segura, a razão? Ou sucumbimos ao instinto? É como estar perante o Grand Canyon.
É uma imagem interessantíssima, que está sempre presente no meu espírito. Acho que ninguém consegue ser melhor do que todos. Mas temos direito, e obrigação, de sermos diferentes. A diferença é sempre associada ao risco e a uma determinada margem de provocação. Isso só se consegue pela proximidade das margens do Grand Canyon. É o abismo que marca a fronteira. Sem o equilíbrio que a razão nos consegue dar, há a tendência para dar o passo em falso e cair.
Faz essa espécie de jogo consigo mesmo para se sentir melhor? Para se sentir melhor do que os outros? Diferente dos outros.
Não, isso é conclusão sua. Há uma coisa que sei: tenho potencialidade para ser diferente e potencio essa característica ao extremo. É como escrever: quando escreve um texto e não precisa de o assinar e as pessoas percebem que foi você que o escreveu. Está conseguida a diferença, está conseguida a identidade. Nisso não tenho pretensões de ser melhor nem pior. Tenho a obrigação de ser diferente.
Mas é um líder desde sempre, desde muito novinho, tanto quanto a sua história revela.
Não se nasce com uma estrelinha a dizer que se é líder. Eu não sou mais líder por ser presidente da Estoril-Sol (do que era quando era mero administrador). A minha liderança decorre do meu exemplo. Não existe nos milhares de trabalhadores que temos um único que se arrogue do direito de dizer que trabalha mais do que eu. Dedico a esta causa 16 horas do meu dia, todos os dias. Excepto ao fim de semana, que só dedico 12. Não tenho férias há muitos anos.
Por que é que isso lhe faz sentido?
É algo que é aliciante.
Essa é a sua adrenalina?
Se calhar, é. Pegar numa actividade que há 20 anos era apenas tolerada – salas de jogos misteriosas, onde as pessoas entravam disfarçadas, para não serem conhecidas – e transformá-la numa actividade de exposição mediática, lúdica, de animação, de geração de culturas, dá-me prazer.
Fá-lo sentir poderoso?
Não. Há tantas respostas para essa pergunta. Porventura, sim. O poder é uma coisa muito complicada de definir. O poder decorre de uma autoridade moral, do exemplo. Quem não sabe exercer o poder, facilmente resvala para a força, e a força deslegitima o poder. Diria que uma conduta coerente, orientada por princípios e regida por um espírito de missão pode conduzir a um poder. Nesse sentido, aprecio o poder.
Também é verdade que todos temos as nossas vulnerabilidades, e zonas de adição. Quais são as suas?
Tabaco.
É bastante mais inócua do que aquelas com que lida todos os dias.
O trabalho nesta empresa, as metas a que me proponho, também correspondem a uma certa forma de adição. Quando me meti na empreitada do Casino de Lisboa, conseguimos fazê-lo em 11 meses e três semanas – é um recorde digno do Guinness. Nos últimos dias, antes da inauguração, não saí de lá. Tinha muitas olheiras, doíam-me as pernas, mas não estava cansado. Será que isto é um fenómeno de adição? Se for, que seja vivido.
Parece que não consegue acalmar a vontade de fazer mais e mais. E pergunto-me se não é porque tem medo de ser suplantado.
Também há várias respostas para isso. Vou dar-lhe a verdadeira: toda a gente tem medo de ser suplantado. A minha convicção profunda é que um dia serei suplantado. Assim que as minhas capacidades físicas ou intelectuais se reduzirem, necessariamente alguém irá suplantar-me. A única coisa que espero é ter a consciência da redução da minha capacidade para sair pelo próprio pé e pela porta grande, em vez de ter que ser empurrado por um terceiro.
Tendemos a fazer exercícios de extrapolação, a pensar nos filmes ou livros a partir dos quais penetramos nos meandros deste universo. Imaginamos cenários de traição...
Depende dos livros que possa ler. Pode ler Dostoievski ou pode ler o James Bond de Ian Fleming. Ser traído...[risos] Mas isso é um pressuposto! Eu não estou a fazer uma entrevista, estou a fazer um desabafo, a si. Conheço o mundo. E conheço o universo de seres humanos que o habitam. O factor determinante de motivação do homem é a ambição. Excepto em Portugal.
É a inveja.
É o único país do mundo em que mais determinante do que a ambição de ascender é a tentativa de deitar abaixo quem, partindo do mesmo patamar, conseguiu chegar mais alto. Independentemente do mérito com que tenha chegado. Quanto mais êxitos, mais pessoas eu tenho, próximas ou distantes, que me consideram um troféu de caça. Não estou habituado a ter aplausos. Não é pelo aplauso que meço o êxito do que vou fazendo. O que espero receber é sempre a crítica a relativos inêxitos que possa praticar. O êxito corresponde, num determinado estágio, ao puro silêncio de quem nos rodeia. Isto é estranho?
Não. Se conta ser traído, como é que confia nos outros? Ainda é capaz de confiar completamente nos outros?
Escolher um inimigo é dar-lhe um crédito, nem toda a gente merece ser inimigo. Ser traído, também corresponde a um estatuto. Só se pode ser traído por alguém em quem se confiou cegamente. Nesse sentido específico, não espero ser traído, nunca fui. Os amigos que tenho sei que são leais e que seriam incapazes de me trair. Porque é uma amizade feita de admiração recíproca, de entrega recíproca, de outorga de muitos sacrifícios. O conceito de traição que você utilizou é em relação a pessoas que podem adorá-lo e depois, num determinado momento, virar costas. Aí, faz parte dos livros...
E topa-os logo?
Claro. Eles não sabem que eu sei. Essa é a minha vantagem.
Lembra-se daquela cena maravilhosa do “Casablanca”, em que o Rick faz batota para favorecer um casal que desesperadamente precisa de dinheiro; revela que afinal aquele duro pode ter um coração mole. Mas isso só acontece na ficção, não é?
Só, só. As pessoas não vêm ao casino de smoking, as mulheres não vêm de vestido comprido e de decote. E não há qualquer possibilidade de um casino intervir naquilo que é fundamental para a sua credibilidade, que é a segurança e o rigor do jogo. Nem seria permitido pela própria tutela e pelo Estado que recebe, em cada noite, 50% da receita bruta do jogo.
Não pude não reparar na mini-saia da menina que veio trazer as águas e os cafés. Mas num casino, é suposto que ela se vista desta maneira. Ainda nota coisas como esta, ou está tão imerso nas regras do jogo que nem sequer discute o tamanho da saia da menina que serve água e café?
Noto e sou responsável. Sou eu que mando conceber o guarda-roupa dos nossos funcionários e, antes de o encomendar para produção industrial, peço um teste. Depois de ver, faço as correcções adequadas. Vai ver que a sensualidade que refere não é da mini-saia, mas é da bota.
Da bota? Reparei que tinha o cabelo pintado de louro e usava uma mini-saia, o que corresponde a estereótipos. Ainda não tínhamos falado de sexo, outra extensão deste universo.
Estamos a falar. Não descuro um estilo ligado, não propriamente ao sexo, mas à sensualidade, à beleza... Não há ninguém que consiga ver as pernas destas meninas mesmo que se debrucem de costas, sobre um balcão. O que a chocou, ou melhor, o que lhe chamou a atenção...
Surpreendeu. Não me chocou nada.
O que a surpreendeu foi outra coisa: esta menina não é “barmaid”, esta menina era bailarina no espectáculo que acabou há seis meses, estava sem emprego e sem dinheiro nenhum e foi-lhe dada a possibilidade de ser “barmaid”, num regime transitório. Ela tem um aspecto, uma cor de cabelo, um comprimento de cabelo, que não serão ortodoxos... Nada que não se corrija nos próximos tempos. Chama-se Irina e é russa.
Podemos voltar à juventude e ao momento em que um homem descobre que é um homem? Que é outra maneira de continuar a falar de sexo.
[Risos] Era nisso que estava a pensar?
Era. Poderia ser este homem que é hoje se não tivesse sido um rapaz bem-sucedido?
Não seria. Se me perguntarem o que é que valorizo mais, se o curso de Direito que tirei na Universidade Clássica de Lisboa, se o curso de Gestão de Empresas que fiz no Brasil, na Fundação Getúlio Vargas, ou os sete anos de estudante em que, com uma guitarra às costas, e depois como empresário, fui obrigado a negociar com as pessoas mais fantásticas, essa vivência foi a mais determinante para tudo aquilo que tenho sido na minha vida. E também o clube de fãs.
Pergunta-se porque razão as pessoas vêm ter consigo? Se é porque precisam de si, se é porque tem ascendente sobre elas, se é porque gostam de si?
Ah, pergunto-me sempre. É uma pergunta que qualquer pessoa sensata e racional faz. Um homem quando chega a uma determinada idade tem, no mínimo, a obrigação de ser lúcido. Tenho que medir qual é o verdadeiro significado de um exercício de aproximação.
Este rapaz teve várias vidas, só até aos 25 anos, teve pelo menos três. A vida do principezinho daquela família distinta de Sarzedo, a vida do rapaz bem sucedido que corre mundo e cultiva uma aura de playboy, a vida séria do curso de Direito. É como se tivesse uma personalidade múltipla.
É engraçado, o que está a dizer, às vezes ocorre-me isso. Acho que tenho para aí uns 126 anos, que é o dobro da idade que tenho. Talvez porque tenha vivido o dobro do tempo – durmo menos para aproveitar o mais possível.
Como é que se aguenta, bebe cafés?
Sou como os dromedários. Passo a semana a dormir cerca de cinco horas, às vezes seis, e ao fim de semana só começo a trabalhar a partir das cinco, seis da tarde, e durmo dez a doze horas. Já não almoço há vários anos – não tenho tempo para almoçar.
A fase Brasil, como disse, corresponde a outra vida. É outra ainda depois de ter encontrado Stanley Ho.
Encontrei-me com o Stanley Ho na qualidade de advogado, é engraçado. Foi na decorrência desse contacto que ele me fez o convite. Nunca tinha entrado num casino na minha vida. Foi há 23 anos. Eh pá, nunca fiz esta conta. 23 anos.
Quando aceitou, o seu objectivo era, mais do que tudo, enriquecer? Qual é o papel do dinheiro na sua vida?
É um papel meramente instrumental. Na perspectiva do accionista, o dinheiro, o lucro, é um fim em si próprio. Naquilo que me diz respeito, o dinheiro não é mais do que um meio, e limitado. Tenho muito pouco.
Como é que tem muito pouco?!
Ganho razoavelmente bem e, como bom contribuinte que sou, logo à cabeça tenho 42% de imposto que me leva praticamente metade daquilo que ganho. Em que é que gasto o dinheiro? Gosto de ter um carro bom.... Tenho dois, nada de especial. Continuo a ter um Porsche. Gosto de comprar uma roupinha.
Esse casaco é Yves Saint-Laurent, que eu já vi...
Por acaso, é. Comprei-o em Paris. Mas não tenho propriedade imobiliária, não tenho nada.
Vive numa casa alugada?
O escasso património que comprei ao longo da minha vida, entreguei-o no momento em que decidi separar-me judicialmente. Não, não é importante ser rico. Nunca tive o sonho de ser rico. O que é importante é desfrutar uma vida similar à dos ricos.
Como assim?
Ganho o suficiente para tudo aquilo que me apetece fazer. O problema é arranjar tempo para uma semana de férias. Se tiver uma semana de férias, vou em primeira classe, pago do meu bolso, e se tiverem a melhor suite, fico nessa. Não preciso de ter um avião particular. Não preciso de ter um barco. Faço uma vida que parece a de alguém que é rico, mas sem o ser. Sou um teso que ganha bem.
Com que ideia é que acha que as pessoas vão ficar de si depois de lerem esta entrevista? Se estivesse a ler, o que é que diria deste homem que responde desta maneira, que tem esta vida?
“Ah, afinal este é o tipo que escreve os editoriais da Egoísta entre as cinco e as seis da manhã”. Não é tanto o empresário, não é tanto o presidente do maior grupo de turismo em Portugal, e responsável por casinos que representam 65% do mercado nacional de casinos. Afinal, também é um ser humano, que usa o editorial da Egoísta como uma espécie de psicanálise, para reflectir sobre aquilo que pensa, e sobre a realidade, tal como a interpreta.
E o seu lado sedutor, do qual não prescinde? Penso que constrói uma imagem dupla, de gestor impiedoso e de gentleman que arredonda a frase.
Eu não sou isso. E também sou isso. Sei fazer coexistir estes dois lados, numa convivência que julgo ser pacífica e harmoniosa.
Se fizer um balanço, em qual das várias vidas foi mais feliz? Sente nostalgia do miúdo que comia morcela, ou do playboy adolescente que tinha as miúdas que queria, ou do jovem que andava no calçadão, sem nada?
Tenho saudades de cada uma dessas personagens, sabe? Foi essa amálgama que me fez ser tudo o que sou; por isso estou grato e reconduzo-me a elas. Se alguma vez fui feliz verdadeiramente? Não tenho nada a certeza de ter sido. Talvez no Brasil, talvez aí me sentisse menos responsável. Só se consegue ser feliz ou quando não se pensa muito, ou quando se pensa errado. Eu, com franqueza, não consigo. Tenho uns instantes de felicidade e estou a tentar aprender a ser feliz. O método é aprender a desejar cada vez menos.
O que é que ainda deseja?
O único património a que nunca dei valor e que, subitamente, começa a ganhar valor. Saúde e longevidade. Gostaria que essa longevidade se prolongasse com a acuidade intelectual intacta. Agora faço análises, faço os check-ups. Não estou doente há 40 anos.
Tem medo dos resultados, quando faz esses exames?
É isso, é.
Próstata e pulmões. Certo?
Exactamente. Estou aqui a emergir de um TAC que fiz ontem. Felizmente, os resultados indicam que estou para dar e durar. Para um estratega como dizem que eu sou – e eu próprio me convenço disso –, toda a minha vida e tudo aquilo que tenciono fazer obedece a uma estratégia, que nem sempre é clara... Faço projecções a nunca menos de dez anos, e muitas vezes a cerca de 20 anos. E é aí que começo a ficar à rasca: já lá não estou. Essa sensação de frustração é que é realmente dramática. Dá-nos a percepção de que afinal a vida não é eterna. Não suporto a ideia do toureiro que sai da arena com uma marrada do toiro, não suporto a ideia do declínio, da decadência. Sei que existe, mas tem que ser reservado, não pode ser partilhado. Muitas vezes penso que a vida é um prémio e a morte o seu preço. Eu gostaria que esse preço fosse pago de uma só vez e não a prestações…
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Março de 2009