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Anabela Mota Ribeiro

Henrique Granadeiro

07.06.13

Henrique Granadeiro, alentejano, nascido em 1943. Três filhos. Formado em Gestão de Empresas, em Évora. Chairman da PT.

Um homem que faz de um texto de Max Ehrmann, de 1922, um guia seguro. “Sê tu mesmo. Sobretudo, não finjas afeição, nem sejas cínico em relação ao amor”. Ou: “Se te comparares com outros, podes tornar-te vaidoso ou amargo, porque sempre encontrarás pessoas melhores e piores do que tu”.

Ele não se compara (senão com ele). E ele é ele mesmo – sem dissimulação. Ele é ele e as suas circunstâncias. E disto fez uma grande história. Nas próximas páginas, conta-a na primeira pessoa.

Não houve nada de que não se tivesse falado, excepto do processo PT/TVI. Granadeiro volta à comissão de inquérito parlamentar na próxima semana.

A entrevista aconteceu em dois momentos, no seu gabinete. Com um Batarda de um lado e um Ângelo de Sousa do outro.

 

Henrique Granadeiro

fotografia: Miguel Baltazar 

 

 

Comecemos por uma frase – “E porque não eu?” – que anotou nas margens de um livro de um autor que o entusiasma.

Clausewitz.

 

Gostaria de a colocar como interrogação de fundo de toda a sua vida. A partir de que momento é que percebeu que podia ser um dos escolhidos?

Muito cedo. O contexto em que nasci e fui criado era bastante limitado. Ou nos conformamos com o que temos ou procuramos o que não temos. Não tendo hipóteses, por razões familiares, de aceder aos estudos habituais, na cidade, fui para um seminário.

 

Antes do seminário, explique-me essa consciência de que era preciso lutar por uma coisa que não tinha.

A minha avó era uma pessoa bastante culta para os padrões da época, lia e escrevia. E tinha uma vida espiritual intensa, bem como a minha mãe. A minha mãe era mais dada a ler coisas de ficção, romances. A minha avó era mais ligada, até pela idade, a coisas religiosas, à vida de santos.

 

O normal era que pessoas daquele quadro social fossem analfabetos. Porque é que não era?

A família tinha alguns meios, o que, divididos por vários, são meios quase nenhuns. A minha avó era casada com um galego, um homem enérgico. Acho que o detonador desta minha consciência de que há outros mundos, e que esses mundos são acessíveis, pela via do conhecimento e do trabalho, se situa aí.

 

A quem pertenceu a decisão de ir para o seminário?

A uma tia minha que encontrou uma forma de me abrir a porta. Era um ensino quase gratuito.

 

Foi o único dos irmãos que foi?

Fomos dois, mas só eu prossegui.

 

Consegue perceber porquê? Entre os vários irmãos, há um que segue um percurso diferente. Que fibra é a sua para que o seu caminho se faça no sentido da ascensão social?

Há aquilo a que chama “a nossa fibra”; mas também há um conjunto de circunstâncias que podem ou não favorecer e potenciar o nosso esforço. A nossa vida depende dos bons e maus encontros que vamos tendo, e que não dependem de nós.

 

Alguma vez, dentro de si, sentiu culpabilidade em relação aos seus irmãos? Por ter uma vida melhor do que a deles.

Não sei se tenho uma vida melhor. Nunca tive qualquer sentimento de culpabilidade, pelo contrário. Sempre senti que estavam associados a mim.

 

Explique-me isso melhor.

Eles contribuíram para que eu pudesse seguir o meu caminho. Contribuíram com o seu trabalho e com o seu apoio. Também sou um produto deles, na medida em que tiveram de fazer algumas renúncias. Os meus irmãos trabalhavam todos. Somos uma família numerosa, éramos oito irmãos (infelizmente hoje somos só seis).  

 

É o mais novo?

Não. Tenho cinco irmãs mais velhas, depois um irmão e uma irmã mais nova. Sou o filho varão, o primogénito a seguir a cinco meninas. Tive seis mães e isso tornou-me um bocadinho mimado e às vezes caprichoso. Todas as minhas irmãs me envolveram de ternura, de facilidade.

 

Os seus pais apostaram em si como alguém que podia ter uma sorte diferente?

Não, isso é racionalizar excessivamente as coisas. Um caminho escolhe-se e depois anda-se nele. Não sou muito dado a dúvidas nem a angústias existenciais. Penso que eles também me viam nessa perspectiva: foi feita uma escolha, não havia nada a rectificar.

 

Materialmente é inegável que a sua vida é mais confortável do que a dos seus irmãos, e isso conta quando se vem de um quadro de pobreza.

Não conta tanto como isso. No fundo vivemos com relativamente pouco. Na minha vida há vários dinheiros. Procuro ser módico e austero. Foi o ambiente em que fui criado. As coisas todas tinham um valor, por isso sou bastante cuidadoso no respeito pelo valor das coisas. (Outro dia falávamos do respeito que temos pelo pão, como símbolo do esforço do Homem e da sua continuidade, porque era com o pão que mantínhamos a vida. O pão era um objecto sagrado). Tenho esse respeito estrutural pelas coisas. Não desperdiço.

 

Quando é que tem pela primeira vez consciência de si?

Por volta dos seis anos, talvez um pouco antes. Não posso referir-me ao momento de que fala, em que me distingo do mundo, em que me começo a relacionar com o exterior. É mais uma atmosfera, um conjunto de ambientes, de sabores. Lembro-me do ambiente dos pastores que passavam com os seus rebanhos perto da minha casa, da conversa com eles, dos cães, das lavouras, que eram feitas com juntas de bois. Lembro-me de um facto que me marcou muito, teria uns sete anos: a morte de um miúdo da minha escola. Morreu por envenenamento com cogumelos selvagens. Lembro-me do choque e do absurdo que é uma criança que brincava comigo estar de repente estendido. Vi-o morto e foi uma imagem que me acompanhou, que ainda hoje está recortada na minha memória.

 

Com uma sensação: “E se fosse eu”?

Não, isso não. Há coisas que acreditamos que nunca nos acontecem – as doenças. Os optimistas acham que essas coisas acontecem aos outros. Embora algumas vezes tenha sentido arrepios ao ver determinadas coisas – “Que diabo, podia ter sido comigo” – isso não é paralisante.

 

Pergunto sobre a sua infância, não só porque ela pode conter elementos essenciais para perceber quem é, mas também porque se passa num território de que não se desliga. O seu envolvimento com o Alentejo, quer nos montes que possui, quer na ligação à Fundação Eugénio de Almeida, são uma forma de retornar a esse lugar matricial. Porque é que volta para meter as mãos na terra, para recuperar e construir?

É verdade, tenho esse apelo e procuro pagar uma dívida. Sou dali, tenho de fazer alguma coisa para o progresso daqueles que são os meus companheiros de vida. Mas não vivo com a nostalgia de não estar lá. Vivo a minha vida de acordo com as perspectivas e oportunidades que se me vão oferecendo. Volto sempre porque aquilo faz parte da minha condição. Procuro ser um agente activo na valorização daquela terra e daquele povo.

 

Quando falei na culpabilidade em relação aos seus irmãos, por sobressair, por ter um percurso diferente, talvez devesse ter dito responsabilidade. E agora, quando fala de dívida em relação àquelas pessoas…

A responsabilidade é a dívida. Tenho-o com todos aqueles com quem partilhei segmentos da minha vida e que me ajudaram a construir a minha vida e a minha carreira.

 

É por modéstia que não diz: “Sobressaí porque sou especialmente bom e inteligente”?

Não é por falsa modéstia. É óbvio que no fundo dessa forma de pôr o problema há uma certa humildade, sabendo que o pivô dessa história sou eu.

 

Tem especial orgulho na construção dessa história, daquilo que foi capaz de fazer de si?

Não especialmente. Não acho nada de extraordinário. Se olhar para a história de Portugal, mesmo a recente, verifica que há milhares de pessoas que têm um percurso semelhante ao meu. Não me distingo com uma história singular. Faço parte de uma constelação de muitas pessoas que foram e são um dos factores de transformação do nosso país.

 

E o seu pai? Ainda não falou dele.

Era a autoridade, a referência inquestionável. Ouvir do meu pai ou ler na Bíblia era a mesma coisa. Respeitava o meu pai pela sua seriedade, pela enorme capacidade de trabalho. Trabalhou no campo e depois na extracção de mármores, que era um trabalho muito duro. Era o pilar da nossa estabilidade, assegurava os meios para podermos ter uma infância muito feliz, de grande harmonia, mas com limites.

 

Porque é que foi muito feliz, apesar da adversidade? O que é que conta mesmo e faz as pessoas felizes?

O quadro de adversidade definimo-lo hoje por referência a outros quadros que conhecemos e que não são tão adversos. Naquela altura era um quadro normal, era o nosso quadro e não vivíamos revoltados com ele.

 

A sua ascensão não radica num sentimento de revolta?

Radica num sentimento de ambição. Primeiro havia a consciência de que havia outros mundos, e que havia caminho para esses mundos – “E porque não eu?”. Nunca tive esse sentimento de revolta, [excepto] quando o Alentejo enfrentou a crise da luta pelas oito horas de trabalho (os horários eram de sol a sol, desde o romper da madrugada até ao “pôr do ar do dia”). Esse movimento dividiu o Alentejo. Não tive qualquer hesitação em ver de que lado é que estava: o da luta pelas oito horas.

 

Isso aconteceu em que ano?

Muito antes do 25 de Abril, eu estava talvez no 5º ano. Com a introdução de alguma industrialização, a base do trabalho passou a ser as oito horas, seis dias por semana. Muito mais tarde é que veio a semana-inglesa e não se trabalhava de tarde. A minha ligação à terra não vem de uma atitude romântica, de saudosismo; esse mundo era bastante duro. Nunca imaginaria a minha ligação a um sistema de exploração agrícola daquele tipo, de exploração do trabalho braçal, quase de bestialização do trabalho humano.

 

O seu pai trabalhava numa grande casa senhorial?

Não havia. Havia algumas lavouras grandes, mas sou de uma zona do Alentejo de minifúndio. Era uma sociedade de pobres e remediados.

 

Teve a tentação, já adulto, quando começou a comprar propriedades no Alentejo, de comprar o sítio onde viveu, o sítio onde o seu pai trabalhou?

O sítio onde nasci e vivi ainda é nosso. É uma pequena quinta de pouco mais de meio hectare. Não chega a ser uma quinta, é uma horta, em Santiago Rio de Moinhos. Ainda lá está um tio meu a tratar dela. Nunca senti essa vontade do regresso do triunfador. Se queria comprar uma herdade, então que fosse boa. Ser aqui ou ali, era-me indiferente. Nunca somos donos das coisas, isso aprende-se no convívio com a terra. Nós vamos e a terra fica cá. Não tenho uma visão dinástica das coisas, para mim e para os meus. Quero que cada um dos meus filhos encontre o seu caminho. A tranquilidade, vão ter de a conquistar, não vão herdá-la de mim.

 

Isso parece ser uma determinação muito forte.

É uma visão da vida. Tenho um certo desprendimento em relação às coisas materiais, sei que são precárias. A minha função é ajudar os meus filhos e proporcionar-lhes os meios para irem até onde forem capazes e até onde quiserem.

 

Em que momento da sua vida é que estava quando o seu pai faleceu?

Quando a minha mãe morreu, já era director-geral do Ministério da Administração Interna, em 1975. Quando o meu pai faleceu, era administrador de empresas. Já tinha sido embaixador de Portugal na OCDE, em Paris, onde ele esteve comigo algum tempo. Gostou imenso.

 

Eles assistiram a uma parte do seu sucesso.

Falar do meu sucesso é excessivo.

 

Aos 35 anos foi chefe da Casa Civil de Ramalho Eanes. Em 1979 vai para embaixador da OCDE, aos 30 e tal anos. Acha que não é sucesso?

É. Obviamente não foi por nenhuma razão senão a de me ter sido reconhecido mérito para fazer as coisas. Não tinha padrinhos nem nenhum partido. Seguramente que uma das alegrias que [os meus pais] levaram desta vida foi terem visto que o seu enorme esforço para que eu tivesse feito aquele caminho tinha tido sucesso. Ultrapassei aquilo que os meus pais esperavam para mim.

 

Voltemos à frase de Clausewits. Quando é que pela primeira vez escreveu na margem: “E porque não eu”? E como é que o livro vai parar à sua mão?

Fui um leitor precoce. Foi através de um advogado amigo, o Dr. Madureira, que tinha uma óptima biblioteca. Tudo o que eram autores franceses, russos, li. Literatura inglesa, ele praticamente não tinha, porque não falava inglês.

 

E isso com que idade?

Entre os 12 e os 18 anos. Estava no seminário, onde também havia muitos livros, mas destes, não. Havia um catálogo de livros proibidos ou desaconselhados, um Index. Livros como o “Crime e Castigo” ou “Os Irmãos Karamazov”. Nunca fui dado a respeitar essas baias.

 

Foram essas leituras paralelas ou o “Bairro Vermelho” de Évora que o desviaram do seminário e da vocação que lhe estava destinada, a de ser padre?

[O seminário] era um sistema de ensino que segui.

 

Nunca pensou seriamente ser padre?

Quando pus o problema, decidi que não era aquele o meu caminho. Já tinha 20 anos e era preciso tomar uma decisão. Via mais o seminário como sítio de estudo do que como vestíbulo de uma carreira eclesiástica.

 

Estes dois momentos de inquietação, o “Bairro Vermelho” – ou seja, o sexo – e as leituras não canónicas, foram o que o fez perceber que o seu caminho era outro?

Terá sido tudo, foi a convergência de muitos factores que pesaram.

 

Quando é que foi a primeira vez que se apaixonou?

Foi muito cedo, logo na escola primária [risos]. Pela Joaninha, com os seus caracóis loiros. Andava apaixonadíssimo.

 

Quando é que se apaixonou a sério? Porque uma paixão muda uma pessoa.

Não me parece que isso tenha acontecido comigo. Não acho que uma paixão tenha transformado a minha vida.

 

Apesar de ser racional e extraordinariamente metódico, não é aquilo a que chamaríamos um homem frio. É sanguíneo.

Acho que sou um animal de sangue quente, mas treinado para ter os comportamentos de um animal de sangue frio. Tenho tendência para reacções instintivas explosivas. Às vezes são essas reacções de instinto que estão certas, mas só se devem adoptar depois de se ter experimentado todas as outras.

 

Dê-me um exemplo. Isso apareceu durante a OPA?

Apareceu, mas não sou capaz de identificar um caso concreto. Todo o processo da OPA foi isso.

 

Porquê é que procura racionalizar o que começa por lhe aparecer de forma instintiva?

É esse o caminho que acho que está correcto. Mesmo com essas cautelas, algumas decisões não têm sido certas. Fazem-se bons e maus negócios, o que é preciso é que no balanço, os bons sejam francamente superiores.

 

Esta conversa ajuda-nos a perceber qual é o seu processo decisional. Como é que decide?

A decisão é um exercício de poder e esse exercício é solitário. Mas o processo de decisão deve ser um processo democrático. Deve ouvir-se não como um ritual a cumprir, como muitas vezes se faz, mas com o espírito aberto. Ainda que depois se possa decidir o contrário do que se ouviu.

 

Nesse momento em que decide, e em que pode decidir contra tudo aquilo que ouviu, segue o seu instinto?

Não, procuro racionalizar o meu instinto. Mas já tomei muitas decisões de instinto.

 

Estávamos em Évora. Ter encontrado Manuel Espírito Santo foi determinante na sua vida?

O primeiro Espírito Santo que encontrei foi o Zé Manel, que era meu colega, praticamente um irmão adoptivo.

 

O pai dele é que desempenhou um papel importante na sua vida.

Não desempenhou um papel importante na minha vida. Era uma referência importante na minha vida. Tinha acesso a ele através do filho, num quadro que não era muito vulgar (almoço, jantar, fins de tarde). Ele era um pedagogo, tinha muitos filhos. O primeiro empréstimo que contraí na minha vida foi concedido por ele.

 

Para quê? Em que altura?

Já andava no Instituto [de Estudos Superiores de Évora], foi na altura da constituição das cimenteiras, da Cinorte e da Cisul, que vinham quebrar o monopólio dos Cimentos de Leiria e do grupo Champalimaud. O primeiro empréstimo que fiz foi para subscrever o capital da Cinorte.

 

Como era o jovem Henrique que pede dinheiro emprestado para subscrever capital de uma cimenteira?

Era bastante atrevido.

 

Isso é muito diferente de ter uma atitude subserviente em relação ao poder.

Nunca tive subserviência em relação a ninguém. Talvez contribua para isso um certo DNA alentejano, orgulhoso. O alentejano não é servil.  

 

Como é que pediu o dinheiro?

Estávamos a jantar na Quinta do Perú, em Azeitão, num fim-de-semana. A conversa foi: “Tio Manel, agora vai haver uma oportunidade de subscrever capital da Cinorte, mas não tenho dinheiro. Queria que o seu banco me emprestasse”.

 

Não era o tio que lhe emprestava o dinheiro. Era o banco dele.

Isso era completamente inimaginável. Tinha noção de que não se pede dinheiro ao tio para fazer um negócio. “Como é que depois me pagas?”. Eu disse: “Preciso é que me dê a garantia, que é mais barato, para, no caso de me saírem as acções, as poder pagar. Nessa altura é que quero o empréstimo”. “Não me parece mal pensado”, disse-me ele. “Como sabes, sou o presidente do banco, mas o banco tem uma estrutura de decisão. Vais propor essa operação ao gerente do balcão de Évora”. Na segunda-feira de manhã, à abertura do banco, já lá estava plantado há meia hora! O gerente prodigalizou-se em sensatos conselhos sobre o perigo que era investir na bolsa sem ter capitais próprios. Levei uma boa manhã a tentar convencer o homem. Aprovaram a minha operação. Passou-se exactamente como previsto. (Lembro-me de o Tio Manel ter puxado de um caderninho quadriculado de capa preta e com um lápis ter tomado uma anotação numa das páginas. Adorava que tivesse sido encontrado esse caderno para saber o que é que tinha anotado).

 

Foi o primeiro dinheiro que ganhou na vida?

Não, já tinha ganho muito, porque nas férias trabalhava em tudo o que havia no campo. Tinha que contribuir. Eram três meses de férias no Verão, e isso coincidia com determinados ciclos da exploração agrícola. Mais tarde ganhei uma bolsa da Gulbenkian, logo no 6º ano. A partir daí fui sempre bolseiro da Gulbenkian. Foi com ela que me formei.

 

Foi desde o princípio o melhor aluno.

É verdade que fui, mas não tinha essa importância que se lhe atribui. Tinha de ter boas notas para não perder a bolsa. Perdia-se a bolsa desde que se tivesse uma média inferior a 14. Não havia que arriscar, era cair do trapézio. Mas estudar para 14 ou para 20 é a mesma coisa. Tive sempre boas notas.

 

Mais para o 20 ou mais para o 14?

Mais para o 20. “Porque não 20?” [risos] Já que tinha de ser.

E quando saí do seminário, comecei logo a dar explicações. Entretanto também havia um prémio, da Sociedade Central de Cervejas, o Prémio Nacional D. Dinis, que ganhava sistematicamente. Eram dez contos, o que dava para pagar a pensão Policarpo, onde vivia em Évora.

 

Estávamos no tio Manuel Espírito Santo. A partir dele, sonhou com um percurso na banca?

Nunca quis trabalhar no Banco Espírito Santo.

 

Porquê?

Era bastante amigo deles, e como sempre fui arisco e atrevido, se houvesse um conflito estragava uma boa amizade. Não tinha problemas de emprego, tinha uma boa nota, decidi que não ia. As pessoas às vezes fantasiam a minha relação com o Espírito Santo; nunca lá tive nenhum cargo. Enquanto exerci a minha actividade em regime liberal, como consultor, tive casos de viabilização de empresas que me foram entregues pelo banco, como foram entregues a outros. Mas ser tropa do banco, nunca fui. Foi uma opção, por um lado, e por outro lado, como estudante no seminário conheci o Dr. João Salgueiro, que era Secretário de Estado do Planeamento Económico do Prof. Marcelo Caetano.

 

Aponta-o amiúde como figura tutelar nessa fase da sua vida. Verdadeiramente, como é que o marcou?

Foi um homem importante na Ala Liberal, que acreditava que era possível resolver o problema político pela via da transformação (como aconteceria em Espanha). Acreditei nisso. Eu, que era de Gestão de Empresas, em vez de ir para empresas, como o Banco Espírito Santo, resolvi ir para o secretariado técnico da Presidência do Conselho, onde fazia os planos de fomento. Estávamos na revisão do 3º plano, estávamos a lançar os trabalhos preparatórios do 4º. Fiquei afecto aos trabalhos preparatórios do 4º Banco de Fomento. No secretariado, convivi com pessoas com quem mantive uma relação toda a vida: o Vítor Constâncio, a mulher dele, a Maria José, o Cravinho, o Guterres, o Abel Mateus (que depois encontrei na OPA), o Carlos Filipe (que infelizmente já faleceu), o Miguel Caetano, o Alberto Ramalheira, o Mário Bruxelas. Uma quantidade de pessoas que povoaram os governos.

 

Uma parte desses seguiu uma carreira política, assumindo posições de protagonismo. Chegou a pensar em ser político?

Eu sou político. Podemos ter uma visão da nossa vida em sociedade, da nossa vida política, e podemos fazê-lo no quadro de um partido ou fora dele. Tenho intervenção cívica, tomo posição sobre problemas do meu país.

 

Nessa altura, a intervenção cívica era quase indissociável da intervenção, não só política, mas partidária.

Mas eu estava na SEDES. Entrei nos anos 60.

 

Queria que me descrevesse melhor a sua relação com a política, para perceber o que é que ambicionava para si. Até onde é que queria intervir socialmente? Até onde é que queria para si um lugar de destaque?

Não procurava um lugar de destaque. Procurava um lugar. O destaque depois era comigo: ou o conseguia ou não.

 

Não acredito que um rapaz tão atrevido não procurasse para si um lugar de destaque. O lugar estava garantido com as boas notas e o mérito. Tratava-se de perceber até onde é que podia ir.

Tive duas partes na minha vida: uma parte de serviço público, no secretariado técnico, no 4º Banco de Fomento e no lançamento das comissões de coordenação regional. Depois houve uma remodelação governamental e a Ala Liberal foi sacrificada para os chamados “ultras” da época. O João Salgueiro saiu do Governo e acompanhei-o para um organismo para onde ele foi, a Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (onde fui director de planeamento e projectos). Quando o 25 de Abril aconteceu, estava nesse cargo. Entretanto abriu uma vaga de director-geral no Ministério da Administração Interna, concorri, ganhei e fui empossado. No contexto do 25 de Novembro conheci o general Ramalho Eanes, e fui convidado para dirigir a campanha eleitoral dele.

 

Surpreendeu-o o convite?

Éramos jovens, atrevidos e achávamos que tínhamos capacidade para mudar o mundo. Não me surpreendeu e achei que era capaz. Lembro-me de termos conseguido um prédio, ao lado do Galeto, que não tinha nada. O general Garcia dos Santos, na altura coronel, tinha uma ligação a uma empresa de móveis e trouxemos cadeiras, telefones, e montámos a campanha do ponto de vista logístico e da comunicação.

 

Fala disso com o brilho de quem conta uma aventura.

Sem dúvida que aquilo tinha um lado de irrealismo e idealismo.

 

Nunca nada o acanhou, o intimidou, no sentido de não se sentir capaz?

Às vezes. Quando fui convidado para presidente da PT, no decurso de uma OPA, era uma situação completamente inédita. Até quem me convidou pôs questões. Achei que não estava preparado, mas alguém tinha de ser.

 

“Porque não eu?”

Porque não eu. E depois as coisas não correram mal.

 

É curioso que agora fale da OPA. Parece que quando é melhor é em situações de guerra, de adversidade.

A coisa mais difícil que há na gestão, seja no sector público seja no privado, é gerir a rotina. Estabelecer rotinas que funcionem e assegurar que elas não se pervertem. A vida das empresas é fundamentalmente rotina. E depois, ter uma visão estratégica do caminho a traçar. Essas questões são extremamente estimulantes e exigentes.

 

Mas os grandes momentos da sua vida, aqueles para que olhamos no CV, são momentos em que há um salto, não são momentos em que se gere uma rotina.

Fui cavaleiro. Num campo de obstáculos, o cavalo pontua se não derruba o obstáculo. Se o derruba, é penalizado. Aquilo a que damos maior importância é ao salto, porque é aí que se faz a pontuação, mas para se chegar ao obstáculo é preciso fazer-se um caminho. O caminho para chegar àquilo que é mais atractivo é muito desvalorizado. Ninguém consegue saltar um obstáculo se não tiver feito um bom caminho para lá chegar. Se deixarmos o cavalo descompensar, se ele não tiver o passo certo, se não medir bem a distância para depois lhe dar o impulso total, ele não salta. Esta imagem é um bocado equestre…

 

É o alentejano a falar.

Não, é a vida a falar. Não vivemos permanentemente em saltos, não somos gafanhotos. De vez em quando há um episódio que é necessário ultrapassar, que dá mais nas vistas. E é aí que as coisas se decidem: ou se salta ou não se salta. Se não tenho saltado a OPA, o que é que se seguiria na minha vida? Era a vida de um looser.

 

Quando é que perdeu, na vida?

Os ganhos e perdas têm essencialmente a ver com a minha vida pessoal, espiritual e familiar. Os grandes acontecimentos da minha vida são os nascimentos dos meus filhos, as grandes perdas são as daqueles que amava. Não quer dizer que aquilo que se consegue nos planos social e profissional não seja importante, mas mantenhamos a hierarquia das coisas: o nuclear é o que se passa na vida pessoal, familiar e espiritual.

 

Sempre soube isso? Não houve um momento em que se deslumbrou com os sucessos que estava a conseguir?

Não. Já lhe confessei que era atrevido, arisco, mas nunca confessei que era deslumbrado. Como sou alentejano, sou por natureza um céptico.

 

Não conheço essa característica nos alentejanos. Porquê?

Relativizam muito as coisas. Já cometi muitos pecados, [o deslumbramento] não foi um deles.

 

Seria normal que, sobretudo numa primeira fase, existisse. Pelo menos contentamento.

Contentamento existe. Entre perder e ganhar, não há meio-termo. O sentimento de perda é bastante pesado e esmagador. O sentimento de ganho é exaltante. Mas nunca me deixei deslumbrar. Quando era chefe da Casa Civil, jantei com a Rainha de Inglaterra, com o Jimmy Carter, o Helmut Schmidt, o Giscard d'Estaing. Nunca deixei de ser quem era. E provavelmente nunca disse a ninguém que isso tinha acontecido. Também esteve cá o presidente Tito, da Jugoslávia, num jantar bastante restrito em São Julião da Barra. Convivi muito com o presidente do Governo espanhol, Adolfo Suárez, naquela fase de transição democrática em Espanha, e com o vice-presidente do Governo da altura, o general Gutiérrez Mellado, que resistiu de pé, como o Suárez, ao golpe de Tejero Molina nas cortes.

 

Voltando às pessoas com quem se dava, antes disso: Constâncio e Guterres politicamente assumiram posições de destaque (Secretário-Geral do partido, Primeiro-Ministro). Há um aspecto na política pelo qual não passou: ir a votos. Foi intimidatória a ideia de que podia ir a votos e não ser bem sucedido?

Não, isso não é verdade. Fui muitas vezes a votos, fiz parte de várias listas do PPD pelo círculo de Évora. Ia sempre em último lugar porque não queria ir para deputado e abandonar a minha vida, a minha carreira profissional. Fazia isso como um serviço cívico e político. Ainda estive filiado no PPD algum tempo. É conhecido que a família liberal na qual me sinto incluído, a maior parte, está no PSD. Há uns também no PS, até por uma questão de percurso pessoal. Mas não sou socialista.

 

Não entendi porque é que numa altura de definição do seu percurso foi mais para as empresas e para o ganhar dinheiro, e menos para a política.

Foi uma opção. Estive num dos mais altos lugares da vida pública. A partir daí, ou ficava a marcar passo ou ia retomar aquilo para que me tinha preparado. Mais de metade da minha vida profissional foi passada em empresas.

 

O que é que o faz pender para um lado e não para o outro? Não respondeu.

Nem eu sei. Não tinha grande jeito para a vida partidária.

 

Tem um enorme jeito para negociar e para gerir poder – isso é fundamental na vida partidária.

Sim, mas não é tudo. A rotina na vida política não é atraente para a minha maneira de ser.

 

É um homem de poder. Só não o quis exercer por essa via.

Há outras formas de servir o país, de ter actividade política e de assumir responsabilidades políticas.

 

Houve realmente uma altura em que sonhou ser Presidente da República?

Não, nunca pensei nisso.

 

Foi uma coisa que correu, não há muito tempo. Que o seu desejo íntimo era ser Presidente da República.

Não sabia que isso tinha corrido. Claro que a maior honra que pode ser concedida a um português é ser escolhido pelos seus cidadãos para ser Presidente da República. Ainda sou do tempo em que os símbolos da pátria eram o hino, a bandeira e o Presidente da República, pelo qual tenho um enorme respeito, seja ele quem for.

 

Nem quando foi chefe da Casa Civil pensou nisso? Ao rapaz atrevido, que era, nunca lhe ocorreu, olhando para o general Ramalho Eanes: “Um dia posso estar naquele lugar”?

No domínio das probabilidades talvez, mas nunca fiz nada por isso. Nunca foi um objectivo na minha vida. Sempre que havia uma remodelação governamental, em determinado período, e começava o tiro aos patos, lá vinha eu.

 

Porque é que, quando foi convidado para ministro, recusou?

Fui convidado para aí umas 11 vezes. [risos] Mas assim com a espada ao peito foi uma vez pelo Dr. Sá Carneiro e pelo Prof. Freitas do Amaral, (na Rua D. João V, em casa da Snu, onde já vivia o Dr. Sá Carneiro). Foi no governo da Aliança Democrática e o Dr. Sá Carneiro queria que fosse ministro da Administração Interna.

 

Como é que resistiu ao Dr. Sá Carneiro? Consta que era a mais persuasiva das criaturas. E era uma referência para os jovens PPD da altura.

Mas nessa altura eu não era PPD. Entrei no congresso do Porto, imediatamente a seguir à morte dele, por convite do Dr. Balsemão.

 

Porque é que não quis ser ministro?

Não estava preparado para essa vida partidária e para a forma como as coisas se passavam. A verdadeira razão foi porque já havia uma política de grande confronto entre o Dr. Sá Carneiro e o general Ramalho Eanes, e tinha acabado de sair da Casa Civil…

 

Voilà, agora estamos a falar a sério.

… e estava na OCDE há poucos meses. Achava que devia ao cargo que tinha exercido junto do General Ramalho Eanes o respeito de guardar um período de nojo. Conhecia bem o que se passava em Belém, e entrar num Governo que estaria em conflito directo com o general colocava-me em situações difíceis de arbitrar, de resolver dentro da minha cabeça. Disse isso ao Dr. Sá Carneiro. E ele disse: “Então, entre mim e o general Ramalho Eanes, escolhe o general Ramalho Eanes?”, ao que respondi: “Não, escolho o respeito pelo meu trabalho”. Tivemos um período de relação tensa por causa disso. Depois houve uma visita dele a Paris, na preparação da adesão de Portugal à Comunidade Europeia, jantei com ele e com a Snu, e pudemos ter uma conversa franca. A partir daí restabelecemos uma relação que era bastante próxima, cordial, porque ele também fazia parte da Ala Liberal.

 

João Salgueiro também. E Balsemão, com quem vem a trabalhar mais tarde.

Exacto, o Miller Guerra, o Mota Amaral, o Magalhães Mota, o Pinto Leite, pessoas com quem convivi bastante, embora fosse um puto ao pé deles. Conhecia bem o Sá Carneiro dessa fase, mas não era uma amizade entre iguais.

 

Foi uma fase da sua vida em que se deu com toda a gente. Quando é que aprendeu mais?

Foi no tempo em que trabalhei com o Dr. João Salgueiro, o meu grande mestre. Nessa fase tive uma grande decepção: fui admitido para fazer um MBA na Sloan School of Management e não consegui bolsa. No ano a seguir também admitido no Warthon College e também não arranjei dinheiro. Fiquei com essa mágoa de não fazer uma coisa que estava dentro da minha carreira. Se calhar depois tinha tido outro percurso de vida, melhor ou pior, não se sabe. Mas na altura foi uma perda. Em compensação tive a oportunidade de trabalhar todo esse tempo com o Dr. João Salgueiro, o que foi mais valioso do que o MBA. Foi ele que me ensinou a trabalhar, a posicionar-me e me ensinou o método para resolver problemas.

 

Quando é que volta pela primeira vez ao Alentejo, mas já com um estatuo de vencedor?

Não olhe para mim como aqueles heróis dos filmes americanos. Olhe para mim mais como o Forrest Gump.

 

Run Forrest, run!”. A correr para a frente.

Mas é um cidadão comum. Como eu. Antes era o tipo que matava os índios, que fazia coisas gloriosas, que levantava a bandeira em Okinawa. Forrest Gump começa a chamar a atenção para a heroicidade que há entre a common people. Quando diz “o vencedor”…

 

Volta para tomar conta da Fundação Eugénio de Almeida, que era pertença do Conde de Vilalva, é o obreiro da recuperação daquele espaço. Atendendo às suas raízes, não é senão o regresso de um vencedor.

Provavelmente. Mas assumir a responsabilidade da Fundação era muito arriscado. A Fundação tinha sido ocupada, tudo estava completamente destruído. Problemas era o que lá não faltava. E o que lá faltava era dinheiro.

 

Em que ano foi isso?

Foi quando vim da OCDE. Vinha de um lugar confortável, onde podia ter ficado mais dois ou três anos, porque é muito bom viver em Paris, com um bom ordenado, chauffer, mordomo. Mas era demasiado contemplativo, não se coadunava com a minha vontade de fazer e transformar. É justo dizer, e foi público, que depois tive um conflito complicado com a viúva do fundador [da Fundação], mas nos primeiros passos tive uma preciosa ajuda por parte dela.

 

Insisto: desafiam-no para regressar ao Alentejo, mas num estatuto diferente. É a primeira confirmação, naquele meio, da sua ascensão social.

Não vejo as coisas assim. Se calhar a leitura correcta é essa.

 

Para os outros, para aqueles que olhavam para si como um déclassé, essa era a leitura.

Não me importo nada com os olhos deles. Aceitei aquilo como uma forma de mostrar que, até do ponto de vista político, havia alternativas no Alentejo. O caminho não era o do antigo regime, nem o das UCP [Unidades Colectivas de Produção]; era o de uma agricultura empresarial. Foi esse o desafio que procurei obter na Fundação, felizmente com sucesso.

 

Reabilitou as marcas, os vinhos.

Já não havia, recriei-os.

 

É uma coisa de que se orgulha especialmente?

Naturalmente que me revejo nisso. Foi uma coisa que saiu bem. [risos]

 

O seu pai nunca foi comunista?

Não. Nunca me falou sequer nisso. Aliás, eu também não fui.

 

Seria normal os da sua classe serem comunistas.

Não era tão normal. Não é a zona típica do proletário agrícola.

 

Mas o vendaval comunista varreu tudo.

Nasci numa família de raiz católica em que o ateísmo não jogava. Mas tem graça que me diga isso… Quando saí da Presidência da República, para ir para a OCDE, fui despedir-me dos líderes políticos com quem trabalhava e convivia semanalmente. O Dr. Mário Soares, o Dr. Sá Carneiro, o Prof. Freitas do Amaral e o Dr. Álvaro Cunhal. Este recebeu-me ali na Rua António Serpa, (sempre acompanhado, nunca tive uma conversa com o Dr. Cunhal a sós), e disse: “O senhor sabe que não sou hipócrita”. (Tínhamos grandes divergências, sobretudo no que dizia respeito à reforma agrária.) “É com um certo alívio que o vemos ir embora. Você criava-nos bastantes dificuldades, e às posições do partido. De qualquer modo quero reconhecer que estava sempre por dentro dos dossiers, quero render-lhe essa homenagem”. E ainda disse: “Nunca compreendi como é que você, tendo a origem que tem, não é um dos nossos”.

 

Boa pergunta. Que é que respondeu?

“Porque considero que o vosso caminho não é o caminho da libertação dos meus, e que há caminho melhor”. Depois disso tive sempre uma boa relação com ele.

 

Gostou de ouvir esse cumprimento?

Gostei, claro que sim.

 

Estou a tentar saber até onde lhe era agradável, e dependia, de certa maneira, dessas confirmações do exterior. Das pessoas que lhe diziam que era bom, superiormente inteligente.

Isso nunca ninguém me disse.

 

Nunca precisou disso?

Não.

 

Isto tudo é para receber a confirmação de quem?

De mim próprio. Preciso de ter uma noção de que consegui e cumpri. Perante o espelho não há nada que nos engane. O que dizem de nós é importante porque cria uma reputação que nos permite fazer mais coisas. Mas o importante é o juízo que fazemos de nós próprios. Os outros podem enganar-se e também nos podem enganar.

 

É um solitário?

Sou. E preciso do meu território.

 

Porque é que só casou depois dos 40?

Sinceramente não sei a resposta. Deixei-me conduzir por situações confortáveis. Encarava casar e hoje até tenho pena de ter casado tão tarde, gostava que os meus filhos fossem maiores. Casei com 40 anos, no dia a seguir fazia 41.

 

Esteve uns anos a investir em si e nas suas formas de realização e afirmação profissional e social. Mas não no pessoal, no íntimo.

É verdade. Talvez não tenha feito a melhor equação. Podia ter-me casado com uma mulher muito rica ou influente. Podia ter procurado um casamento conveniente que potenciasse aquilo que estava a fazer.

 

Toda a sua aposta era no seu mérito. Se fizesse um casamento por conveniência, ficaria sempre na dúvida se tinha lá chegado com ajuda ou não.

À boleia. É verdade, não tinha pensado nisso dessa forma. Mas hoje ter namoradas e casar mais tarde ou não casar é o pão-nosso de cada dia. Tive um comportamento avant la lettre.

 

Pausa

 

Olhando para trás, só tenho falado de mim. A minha filha Catarina escreveu-me uma coisa engraçada no último Dia do Pai: “Os pequenos têm orgulho em falar de si próprios, os grandes têm orgulho de não falar de si”. Estive aqui a falar de mim.

 

Tem receio de parecer pequeno?

Tenho receio de parecer ridículo. Tudo isto pode parecer uma coisa açucarada.

 

Continuámos daí a uma semana.

 

Como é que ganhou a OPA? Além da estratégia, do empenhamento da equipa, daquilo que já se sabe.

Inicialmente fui convidado para presidente do Conselho de Administração (CA), e depois de feitos alguns contactos com accionistas e outras pessoas, entendi que devia acumular com o cargo de presidente da Comissão Executiva (CE). Tratava-se de uma necessidade de concentrar o poder de decisão. As minhas condições de partida eram bastante desfavoráveis. Havia uma certa euforia com o lançamento de uma OPA da Sonaecom sobre a PT. Era a história romântica do David contra Golias, do poderoso Golias que atacava a PT.

 

Nunca viu a Sonae como o temível Golias?

Não. Analisei friamente a oferta da Sonae e verifiquei que ela não valorizava suficientemente os activos que estavam sob a minha gestão.

 

Foi a partir da análise que concluiu que ele não era o temível Golias?

Foi a partir dessa análise que considerei que aquela OPA não era imbatível. Se a OPA tivesse um valor muito favorável, que premiasse os nossos accionistas, tínhamos obrigação fiduciária de apoiar a OPA. Não foi o caso. A oferta inicial era baixa, e apesar de ter sido apresentada como definitiva, foi revista por mais meio euro, o que descredibilizou a rigidez com que tinha sido apresentado o valor da PT.

 

O momento em que o Eng. Belmiro disse que só se houvesse petróleo ou diamantes no solo da PT é que aumentaria o valor da acção: foi o turning point?

Não. Penso que isso não foi, do ponto de vista da estratégia da Sonaecom, uma posição acertada. Não se pode dizer isso e depois aumentar a oferta. Houve uma inconsistência que não esperava. O Eng. Belmiro é um homem bastante cortante e definitivo.

 

Estou a tentar reconstituir os seus sentimentos e a maneira como foi percebendo a OPA. Essa afirmação, num homem que é habitualmente cortante, deve ter tido significado para si e para a sua equipa. Uma injecção de confiança?

Os investidores são bastante frios. Estava convencido de que tínhamos grandes probabilidades de ganhar a OPA, porque faço as contas do lado do investidor. Fizemos muito road show, visitámos os nossos investidores. Os investidores não são pessoas cerimoniosas nas perguntas que fazem e na informação que exigem. Foi esse longo processo que nos levou à convicção de que poderíamos sair daquela sessão com uma vitória.

 

Antes de ir para a assembleia-geral, teve dúvidas quanto ao desfecho, ou ia convencido de que ia sair ganhador?

Não estava absolutamente seguro, mas estava convencido de que iríamos sair de lá vitoriosos. A OPA não é um acto, é um processo, e este foi bastante prolongado, o que nos foi francamente favorável. O regulador perdeu-se em análises um pouco esotéricas, morosas, confusas, o que nos deu tempo para trabalhar com os nossos investidores e mostrar a valia do nosso plano; e também para mostrar as fragilidades da solução, no caso de a Sonae ser a vencedora. Mas, como disse, o ponto de partida foi desfavorável.

 

Em que é que isso era visível?

Há declarações de ministros que vêem naquela OPA uma manifestação de vitalidade da economia, como se o facto de uma coisa mudar de mãos representasse só por si um valor acrescentado. Um economista, que ensina numa prestigiada universidade de Nova Iorque, escreveu um artigo a demonstrar que havia valor acrescentado no facto de a OPA de uma empresa mudar de mãos. Um conjunto de opinion leaders e opinion makers, o ambiente da imprensa, eram favoráveis à OPA. O ofertante era uma entidade credível e estava apoiado num grupo financeiro muito sólido. Do lado de cá estavam um CA e um CE, aos quais presidi, e havia uma certa hesitação. O Sérgio Figueiredo, que é um óptimo economista, excelente analista e grande jornalista, chegou a escrever sobre o que é que eu, que praticamente não sabia ler nem escrever, estava a fazer neste jogo. A tal dúvida que muitas vezes tive de encarar sobre a minha capacidade de enfrentar determinadas situações, também assaltou outros. O Sérgio Figueiredo resumiu o que muitos pensavam: “Porque é que aquele alien vem fazer uma operação desta dimensão?”. No fundo, eu próprio me punha a pergunta.

 

E a resposta, qual foi?

A resposta foi uma vitória no mercado. Aqui presto homenagem ao Eng. Belmiro de Azevedo e ao Eng. Paulo de Azevedo. O Eng. Belmiro de Azevedo, como é normal, não gosta de perder. Mas é um homem de mercado, e percebeu que tínhamos ganho no mercado, não na secretaria.

 

Que relação tinha com Belmiro?

Nunca tive qualquer intimidade com o Eng. Belmiro de Azevedo. Tive variadíssimas reuniões com ele para o tentar conquistar como cliente, sobretudo na área de impressão do Público, quando era administrador de uma empresa do grupo Balsemão. Não consegui. É um homem meticuloso na precisão do investimento, e quis ver a máquina a funcionar mais do que uma vez; o que significa que íamos para Cabo Ruivo, à meia-noite, hora a que a máquina arrancava. E depois íamos comer qualquer coisa às tabernas de Moscavide.

 

E com Paulo Azevedo?

Era amigo dele, tenho por ele muita consideração. Podia ser um menino mimado a gozar os rendimentos do pai e é um trabalhador infatigável. Passámos por um confronto tão forte e tão pesado – 16 mil milhões de euros é muita massa – e isso não afectou as nossas relações. Quero dizer outra coisa: embora o Público fosse o jornal do grupo [Sonae], não tenho queixas. A verdade é que teve um bom desempenho e foi isento na forma como cobriu a OPA. Embora eu compreenda algumas tomadas de posição mais de natureza editorial.

 

Disse que não foi uma vitória de secretaria. Mas ficou na opinião pública a sensação de que tinha sido, também, por via da intervenção do Governo que a OPA se tinha ganho.

Isso não resiste à mais leve análise do ponto de vista económico e financeiro. O Governo tinha uma golden share, e quando assumi as minhas funções fui chamado ao senhor primeiro-ministro, que me recebeu juntamente com o senhor ministro das Obras Públicas e Comunicações (que geria as relações da golden share). Queria assegurar, desde ali, que se os accionistas aceitassem a oferta, o Governo não usaria a golden share para inviabilizar aquilo que considerava ser uma solução de mercado. O Governo respeitaria a decisão da assembleia-geral, e não a golden share. Na antevéspera da OPA foi-me repetida esta posição por parte do Governo.

É a primeira vez que o estou a dizer.

 

António Lobo Xavier, que estava do outro lado, numa entrevista ao Negócios, disse que percebeu que tinham perdido “quando comecei a ver certas alianças e ambiguidades, sobretudo de empresas relacionadas com o poder público”.

Estas acções [do Estado] não têm chocalho, como as outras, os votos são anónimos. Dizer que houve combinações de bastidores, é tentar reescrever a história. Como é que pode haver combinações de bastidores numa empresa em que o capital está disperso como nesta? 33% da PT transacciona na Bolsa de Lisboa, mas cerca de 33% é transaccionado em bolsas europeias, das quais 14% no Reino Unido e 27% em Nova Iorque. Quase 50 por cento dos nossos accionistas são estáveis, de longo prazo. Como é que pode tanta gente ser objecto de manobras de bastidores? Só na mentalidade portuguesa, que está sempre a ver mosquitos na outra banda. É impossível fazer jogos de bastidores a 100 mil accionistas! Esta visão conspiratória que [Lobo Xavier] apresenta não lhe fica bem.

 

Quem foram os seus grandes aliados?

Foram os accionistas que assumiram publicamente o apoio ao nosso projecto. A maior parte dos accionistas de Nova Iorque ou da Europa são anónimos, temos conhecimento deles quando se registam para a assembleia-geral. O que fazemos são os road shows, realizados por bancos, em que são convidados os investidores que nos ouvem. Fizemo-los sobre o nosso projecto, mas a Sonaecom também os fez. E todos falávamos com os mesmos. A decisão foi dos accionistas. Como sempre acontece nestas coisas, sabíamos muito bem o que é que eles diziam nos shows deles, e eles sabiam muito bem o que é que nós dizíamos nos nossos.

 

Foi durante o processo da OPA que inaugurou a sua adega, no seu monte no Alentejo. Foi uma operação de charme? Portugal inteiro, o poder inteiro estava lá.

Eram os meus amigos mais próximos, incluindo aqueles com quem tinha cruzado a minha vida durante 12 anos na comunicação social. É um projecto que tem muito da minha alma. Está ali investido muito dinheiro, algum do qual não tinha. Chamei àquele dia o dia de Acção de Graças, dentro do espírito do Thanks Giving Day: a celebração de um dia feliz. O Eng. Álvaro Barreto, grande amigo, perguntou ao Eng. Belmiro de Azevedo se não ia ao meu dia de Acção de Graças; e ele respondeu-lhe com todo o humor: que talvez fosse se fosse um dia de acções de graça! [risos]

 

Muito se decide numa festa, à mesa.

Não estou convencido de que ali se tivesse resolvido alguma coisa. Não é com uma boa operação de charme que se ganha um OPA numa empresa com 100 mil accionistas.

 

E depois dessa enorme vitória, passou para a retaguarda.

Só passei a chairman no momento em que saldei os compromissos com os meus accionistas. Entre eles, e aquele de que mais me honro, está o ter feito a separação das redes. Foi indiscutivelmente o maior acto liberalizador do sector das telecomunicações em Portugal. Esse mérito pertence-me, e à minha equipa.

 

Quando passou a chairman tinha 64 anos. Não se perguntou: “E agora o que é que vou fazer”? É um homem que precisa de grandes desafios.

Estou aqui como se estivesse para a eternidade, sabendo que a eternidade pode acabar amanhã. Não estou especialmente grudado a nenhuma cadeira, mas quando estou, estou para ficar. A PT está envolvida num grande desafio que me entusiasma. Não ser eu a principal locomotiva, não significa que viaje no vagão de trás. Estou na locomotiva e partilho com o presidente da CE esse desafio.

 

Não tem o poder todo, o maior poder, e é um homem de poder. Isso custa-lhe?

Não me custa nada, estou perfeitamente identificado com esta equipa de gestão de que faço parte. A gestão operacional está muito bem entregue e com muito bons resultados. Não há qualquer lamento ou saudade da minha parte.

 

Para onde é que quer ir? Ainda é um homem novo.

Quero cumprir este mandato e estes objectivos que são importantes. Daqui a 10 anos? Não me atormenta, hei-de fazer qualquer coisa. A pessoa envelhece no dia em que não tiver objectivos. O envelhecimento não é uma questão cronológica e de bilhete de identidade, é uma questão de atitude. Não estou cansado, não estou à procura da reforma. Nem sequer estou abrangido pelo sistema de reformas da PT (terei uma reforma relativamente modesta).

 

Os vinhos são uma reforma? É um caminho?

São um projecto que tem de ser analisado por si próprio e que tem de se auto-sustentar. Um projecto só se sustenta se for gerador de cash flow para poder crescer, para se modernizar e para remunerar os capitais que lá estão investidos.

 

A política activa é uma possibilidade?

Gostava de terminar a minha carreira ligado a um projecto de serviço público. Por exemplo, dar um novo período da minha vida à Fundação Eugénio de Almeida.

 

Como é o canto alentejano de que me falou?

“Sou devedor à terra e a terra me está devendo, a terra paga-me em vida e eu pago à terra morrendo”.

 

Nunca se vai abaixo?

Sou um optimista. Uma pessoa que faz o meu percurso, tem que ter uma grande reserva de energia, uma enorme capacidade de lutar contra a corrente e de desafiar a ordem estabelecida. Não sou lamuriento, não sou pessimista profissional, não tenho a convicção de que o meu país é assim e não tem outra hipótese. Pode ser muito melhor.

 

Como Kennedy: “Não perguntes o que é que o país pode fazer por ti, pergunta o que podes fazer pelo país”?

Essa é a minha atitude. O futuro do país não é construído exclusivamente pelos políticos, deve ser construído pelo conjunto dos cidadãos, cada um perseguindo os seus interesses. Aqui se dividem as grandes famílias; uma família política acha que o bem deve ser dividido às fatias iguais e distribuídas por todos; há outra família, à qual pertenço, mais liberal, que considera que o bem comum não é o bem abstracto que se pode dividir às fatias iguais, mas é uma realidade dinâmica que é o somatório do que cada um de nós pode fazer pela sua vida. Melhorando a nossa vida e a daqueles com quem partilhamos actividades e bens, melhora-se o país.

 

Para terminar, uma palavra que o defina. Resistente, lutador, trabalhador?

Isso são coisas obrigatórias. Defino-me por tudo isso e por um amor à vida, ao meu país, aos meus concidadãos. Gosto dos portugueses, do Alentejo, do meu próximo. E confesso que vivi, como diria o Neruda.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010