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Anabela Mota Ribeiro

Michelle Brito

26.06.13

“Gosto de pensar que sou uma miúda normal. Ao mesmo tempo é difícil pensar que sou uma miúda normal por causa da vida que tenho”.

Que vida é que ela tem?

A de uma tenista profissional. A primeira portuguesa a estar entre as cem melhores do mundo. A primeira a estar na terceira ronda de Rolland Garros e na segunda de Wimbledon.

Tem apenas 16 anos. Encontramo-nos em num hotel de Lisboa, quando ela está de férias. Está sentada com os ombros ligeiramente curvados. Responde com um fio de voz, quase infantil. É surpreendente que não exibe o corpo possante que vemos nos courts. Que do outro lado da mesa ela seja o que na verdade é: uma miúda.  

A partir de uma conversa com Michelle Larcher de Brito, elaborei um glossário essencial. Para a conhecer e compreender o seu sucesso.

 

 

IDENTIDADE

Quem sou eu? Sou divertida. Gosto de fazer as coisas que as raparigas da minha idade fazem, de estar com pessoas, com o meu cão. E posso ser faladora!

 

FAMÍLIA

Tenho dois irmãos gémeos, quatro anos mais velhos do que eu. O meu pai nasceu em Angola e a minha mãe é sul-africana. Na minha família, se tomamos uma decisão, todos são envolvidos nela. Mudar de casa, mudar de cidade – vamos todos. Quando se falou da minha ida para os Estados Unidos, os meus pais disseram: somos uma família, vamos para os Estados Unidos como uma família.

 

INFÂNCIA

Do que mais me lembro é de ter ido para os Estados Unidos quando tinha nove anos. Do fazer as malas. Da despedida da minha família (tenho muitos tios e primos) em Portugal. Foi o acontecimento mais marcante da minha vida. Implicou começar de novo. Entrei numa escola americana, não sabia escrever nem ler inglês. Mas fiz amigos logo nos primeiros dias.

Eu precisava de patrocínios. Finalmente encontrámo-los; o meu tio, que trabalha numa empresa de químicos, ajudou-nos. Mudámos-mos de Portugal para os EUA por causa do meu ténis. Recebi uma bolsa para a Academia Bollettieri, que é uma das melhores do mundo. Lá há mais competição.

 

PAI

O meu pai acreditou muito em mim. Não eram tanto as conversas, o que dizia. Era mais a maneira como trabalhava comigo no campo. Nunca disse: “Paramos, que isto não nos leva a nenhum lado”.

Sempre foi o meu treinador. Desde as primeiras bolas que bati.

Esteve num colégio interno, na África do Sul, onde o desporto era obrigatório: correr, natação, râguebi, ténis. O ténis foi sempre o desporto preferido.

Transferiu para mim o sonho que não conseguiu concretizar.

Ser profissional era o sonho dele, mas nunca teve o apoio que eu tenho. Tenho sorte! Os pais dele não o apoiaram assim. Viajar e jogar torneiros não era tão fácil como é hoje. E era preciso dinheiro para viajar, hotéis, comer fora, raquetes…

 

MÃE

Não sei a história do meu pai e da minha mãe. Conheceram-se na escola. Casaram. A minha mãe trabalhava numa companhia aérea. Quando os meus irmãos nasceram, ainda na África do Sul, parou de trabalhar. Eu já nasci em Portugal.

Em casa falamos inglês porque o português dela não é famoso.

 

ATLETA

Aprendi a andar e a apanhar bolas ao mesmo tempo! Com dois, três, quatro anos, andava pelo campo a apanhar bolas dos meus irmãos. E queria jogar. Comecei aos cinco anos. O meu primeiro torneiro foi aos sete. O meu pai decidiu fazer de mim uma atleta. Melhorei bastante rápido. E aos oito já ganhei o primeiro torneiro.

 

DERROTA.

No meu primeiro torneio, perdi nas meias-finais. Foi a primeira vez que perdi. Corri do campo a chorar e fui esconder-me. Estava mesmo zangada! A minha mãe veio à minha procura, e gritei: “Nunca mais quero perder!

No torneio seguinte, ganhei.

 

PERDER

É duro, sobretudo nos grandes torneios. Mas pode-se aprender mais do que se se ganhar. Quando perdemos, visionamos o que fizemos num DVD e no dia seguinte vamos para o campo melhorar. Por exemplo: se perdi por causa do serviço, vou para o campo trabalhar o serviço, trabalhar o serviço, trabalhar o serviço. Na vez seguinte não perco por causa do serviço.

É difícil ver o que fiz, especialmente quando perdi por um ponto… E é duro psicologicamente lidar com a derrota. Mas sou jovem. Estou a aprender. Sei que não é a última derrota, que vou sofrer muitas mais.

 

LUTADORA

Acredito que sou uma pessoa forte. Sou naturalmente forte porque cresci com dois irmãos mais velhos. São queridos, adoro-os, mas às vezes são brutos comigo. Isso ajudou-me a crescer e ensinou-me a defender-me a mim própria. Sou forte porque sei defender-me. Se tenho uma opinião, luto por ela. Não deixo as pessoas dizerem-me tudo sem levarem na volta. Não deixo que me pisem.

Não sei onde arranjei isto, isto de ser tão forte. É a minha personalidade. Isso é ser eu: lutar pelo que acho que está certo.

Sou lutadora.

 

QUARTO

Se os meus pais me mandam fazer alguma coisa, faço. Mas se é limpar o meu quarto, posso demorar uns dias até o fazer… [risos] O meu quarto pode ficar numa confusão! A minha cor preferida é azul bebé e o edredon é às riscas azuis. As paredes são brancas; mas já foram azuis. Pintámo-las, a minha mãe e eu, e foi divertido. Tenho muitos peluches, ursos, tigres, cães. Tenho um armário com os meus bonecos e uma caixa extra de bonecos no sótão. As mesinhas de cabeceira são de madeira e é lá que tenho as colunas do ipod. Tenho um armário muito grande porque gosto muito de sapatos e vestidos.

O meu pai não entende o fascínio das senhoras com os sapatos! Vou às compras com a minha mãe. É um mundo à parte onde não entram os homens.

 

VONTADE

Os meus irmãos estavam no mesmo ponto de partida do que eu. Ainda jogam, treinam comigo, e jogam bem. Mas não tinham a mesma vontade. Preferiram estudar a estar horas e horas no campo. Desde o princípio, dei 110% no treino.

O que define um grande tenista é o trabalho nos treinos, a determinação e os sacrifícios. Sou jovem e não posso sair, não posso ir para a cama tarde… Sabia que os sacrifícios faziam parte da escolha.

 

FAMÍLIA E TRABALHO MISTURADOS

Pode ser uma confusão! Mas ao mesmo tempo ajuda. Muitas raparigas viajam apenas com os treinadores. Os meus pais e os meus irmãos vão sempre comigo. (Agora vai mudar, porque os meus irmão vão para a universidade). É como estar em casa, mas no hotel. Estamos juntos, almoçamos juntos, treinamos juntos.

Em Wimbledon (Londres) alugámos uma casa, em Rolland Garros (Paris) um apartamento. Nos torneiros mais pequenos ficamos num hotel. Tenho o meu quarto e a minha casa de banho. Tenho que estar sozinha um bocado.

 

LER

Gosto de ler. Gosto da série Twilight da Stephenie Meyer e gosto muito do Dan Brown. Nesses momentos desligo completamente e só penso no livro que estou a ler.

 

ESCOLA

Aos 13 anos, quando comecei a viajar, ficou difícil frequentar a escola normal. Faltava duas e três semanas. Arranjei um professor que me desse aulas privadas. Temos duas, três horas por dia. Um dia Matemática, outro Inglês, História, Geografia. Essa é a minha outra vida: a escola e os exames. Para a semana, quando voltar aos EUA, vou fazer exames.

 

FUTURO

Não penso no meu futuro. Gosto de viver o dia a dia, não gosto de olhar tão para a frente. Nunca sei se me vou lesionar…

O que pretendo fazer depois do ténis? Gosto muito de animais. Não quero ser veterinária, mas gostava de fazer alguma coisa com os bichos. Talvez um refúgio, dar-lhes uma casa onde viver.

 

CORPO

Não penso no meu corpo. Felizmente não ganho peso, sou do tipo magrinho. Dieta? Não! Outras jogadoras, sim, e têm dieta prescrita pelo médico. Claro que não posso comer MacDonalds todos os dias. Basta-me fazer uma alimentação saudável. Quando estou de férias posso comer chocolate!

No meu corpo, tudo tem de estar em forma. Senão a máquina fica enferrujada. Todos os anos faço exames. Tiro sangue e fazem um mapa, com imagens de todas as partes do corpo, de todos os músculos.

 

DIÁRIO

Quando era pequenina, tinha sete ou oito anos, tive um diário oferecido por uma tia. Foi no primeiro torneio fora de Lisboa, em França. Reli-o agora, antes de vir para Portugal, porque o encontrei no sótão. A minha letra era tão engraçada. Escrevi coisas assim: “Acordei às oito e comi um croissant. A seguir fui jogar o meu ténis”.

Não escrevi sobre o que senti. A minha tia disse-me: “Quero saber tudo o que fizeste”.

 

ARAVANE REZAI

No jogo em Rolland Garros, fiquei irritada com o que a Rezai fez: queixar-se ao árbitro dos meus gritos. Não porque eu a estivesse a distrair, mas porque queria distrair-me a mim. A verdadeira razão foi essa.

Eu estava a jogar bem, mas quando fui falar com o árbitro distraí-me e o meu jogo foi ao ar, completamente. Era a táctica dela.

Já tinha feito isso em Miami. Foi a segunda vez que joguei com ela. I hate her, actually I do. [risos] Nem posso olhar para ela.

Tenho de arranjar uma maneira de não ficar distraída e zangada por causa disto. Tenho de relaxar e continuar a jogar como antes.

A próxima vez que a encontrar vou fazer tudo e tudo para lhe ganhar! Perder duas vezes com ela, já chega!

 

RAIVA

A raiva e a zanga são um capital importante. Fico emocional em campo. Mostro as minhas emoções. Jogo com raiva. Estou ali para ganhar. Tenho essa vontade e essa determinação: de avançar para a próxima ronda.

 

ROTINA

Acordo às cinco, cinco e 15. Estou na escola das seis às oito. Treino três horas de manhã e mais três horas à tarde. É um full time job. Vou para cama, e no outro dia é igual.

 

DINHEIRO

Não costumo pensar em dinheiro. Não cresci numa família rica.

 

RECOMPENSA

Se faço um bom torneio, vou a uma loja comprar coisas para mim. Um reward. Mas é claro que não gasto fortunas. Compro um fato, uns sapatos, um vestido. Em Rolland Garros, correu muito bem e fui à Louis Vuitton.

Cresci a ter de merecer, trabalhar, fazer bem. Os meus pais nunca me compraram uma coisa só porque a pedi. Tinha de a merecer.

Acho isso bem. Ter as coisas facilmente, sem ter de lutar por elas, é aborrecido. Se assim for, nada tem significado.

Como o wild card [convite para estar presente] que recebi em Wimbledon. Tive de mostrar que o mereci.

 

SERENA WILLIAMS

As pessoas perguntam-se se fiquei com medo dela! Eu sou pequenina e ela é mesmo grande. Grandes músculos. Mas olhei para ela como uma jogadora. Como eu. Isso é o que ela faz: jogar ténis. Foi um jogo incrível! Os pontos eram tão compridos.

O estádio estava completamente cheio e o no fim levantou-se em peso para aplaudir.

Ela disse-me: “Muito bom jogo. Bem jogado. Boa sorte para a tua carreira”.

 

ZANGA

O meu pai zanga-se comigo por eu ter perdido. É claro que não diz: “Pára de jogar ténis, que não sabes jogar!” Não se pode chatear por eu não ter tentado. Dou sempre o meu melhor. O que acontece é que a minha concentração não está ali. E estou mais lenta.

Zanga-se, grita um pouco. Mas no dia seguinte estamos a treinar outra vez e a melhorar.

 

SONHO

Às vezes, antes de dormir, imagino que estou no campo principal de um torneio e que ganho. É bom. Mas não quero sonhar tanto. Quero fazer coisas na vida real.

 

SOZINHA

Quando estou a jogar sou só eu. Mesmo que a família esteja a apoiar, ninguém me pode ajudar no campo. Posso não me sentir sozinha, mas estou mesmo sozinha.

 

GRITAR

Não é uma coisa que se aprende, é uma coisa que se faz. É parte do jogo. As pessoas dizem que nos ensinam a gritar na Academia Bollettieri. Mas eu grito desde pequena, antes de saber o que era a Academia Bollettieri. Se o meu corpo sente necessidade de gritar, grito”.

 

SORTE

Quando o vice-presidente da Bollettieri veio a Portugal ver miúdos, em Monsanto, eu não fui convidada. Os meus irmãos, sim. A pessoa que organizou o evento disse: “Tenho esta rapariga, que joga muito bem. Gostavas de a ver?”

Viu-me a jogar, gostou e convidou-me para ir aos Estados Unidos. Se não fosse esta pessoa, não estaria no lugar onde estou. Não me lembro do nome dele, mas os meus pais sabem.

Foi sorte.

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em Julho de 2009

 

 

 

 

 

 

 

Luís Portela

26.06.13

“Os meus grandes prazeres são, por exemplo, o contacto com a natureza. O enorme prazer que tenho em andar a pé descontraidamente, em fazer os meus passeios de bicicleta com os meus amigos, ao sábado de manhã. Ir do Porto a Espinho e regressar, junto ao litoral, a ver o mar, a areia. Fazer isto de Verão e de Inverno, quer esteja sol, quer faça chuva. A chuva não trinca ninguém…”.

Luís Portela é, portanto, o tipo de homem que diz coisas como “a chuva não trinca”.  

É um pacifista. “Sou incapaz de fazer mal a uma mosca. Se ela me incomodar apanho-a com a mão (20 anos de karaté permitem-me a concentração para apanhar a mosca com a mão), abro a janela e ponho-a lá fora. Eu não mato uma mosca, como não mato uma centopeia. Sou um pacifista que alarga o pacifismo ao universo”.

É o senhor Bial. Pegou numa empresa familiar e fez dela um caso de sucesso exemplar.

Desta vez, não se fala da produção do anti-epiléptico nem da facturação da maior farmacêutica portuguesa. Nem das minudências do meio, ou dos genéricos, a relação com os hospitais, as farmácias, as viagens e os médicos.

Desta vez foi a vez dele. Ele, Luís Portela. Muito mais do que o pacifista que diz que a chuva não trinca. Ele e um percurso absolutamente invulgar. Ele, que é um homem ímpar.

Há coisas que são ditas pela primeira vez, há coisas que já foram ditas, mas não desta maneira, com a devida contextualização. Nunca o livro se abriu desta maneira. Nunca se pôde ler nele, assim, Luís Portela.

 

 

Conte-me a sua história.

É a história de um jovem a quem não passava pela cabeça meter-se no mundo dos negócios. Um jovem que queria sobretudo ser útil ao outro, e que pensou em formas diferentes de ser útil ao outro. Pensou ser frade, monge tibetano e médico. Neto do fundador da Bial. Pressionado pelo pai para fazer um curso que fosse compatível com a vida da empresa, Farmácia ou Economia. Fiz Medicina. Quando estava a meio do curso, o meu pai faleceu. Portanto, o jovem que queria ser médico ficou com a carreira um bocadinho abalada, de estudante-trabalhador, trabalhador-estudante.

 

De onde vem essa ideia, desde tão cedo, de querer ser útil ao outro? E com a convicção de querer fazer disso vida.

De onde vem, não sei. Mas quando olho para trás, enquanto os meus colegas liam literatura policial, eu lia coisas de ioga, espiritismo, excertos da Bíblia. Tinha muita curiosidade sobre o que é o Homem, o que estamos a fazer na Terra, para onde vamos, o que é isto. Nunca achei muita graça a aliar-me a um grupo, a ser um “ismo” qualquer. Eu levantava questões e gostava de ler de tudo um pouco, procurando perspectivar onde é que estava a verdade, onde é que estava a mentira, encontrando bocados de verdade e de mentira em tudo. Era uma pessoa existencialmente incomodada, desde os 12, 13 anos. Só bastante mais tarde é que realizei que isso não era vulgar.

 

E antes disso, era uma criança alegre?

Não, tristonha. Foi uma infância tristonha.

 

Sabe que ainda tem um ar triste? Há sempre um veio de melancolia na maneira como olha.

Era disciplinado, bem comportado, curioso; tinha prazer de conhecer, estudar, saber mais. [Frequentei] uma escola primária muito exigente, que não tinha recreio.

 

Porquê?

Era assim que estava organizada. Acho que isso me deu uma endurance fantástica para a vida, hábitos de trabalho, disciplina.

 

Pensei que essa obstinação pelo trabalho e essa procura de conhecimento tinham chegado por via do seu pai e da educação que teve em casa.

Não veio pelo meu pai, seguramente. Pode ter vindo mais pela minha mãe e pela escola primária. A minha mãe sempre acreditou em mim. Achava-me um miúdo com grande capacidade e interiorizou-me isso. O meu pai tinha uma perspectiva de vida diferente da minha.

 

Como é que ele era?

Era conhecido como um homem conquistador, mas também trabalhador, sério, honesto, com a cultura dos verdadeiros valores. Começa a estudar Farmácia, para seguir as pegadas do pai que tinha criado a companhia; mas não passa do primeiro, segundo ano. Gostava de namorar, da noite. Gostava de automóveis, fazia corridas, tinha carros fantásticos. Com cerca de 40 anos, quando o pai morreu, assumiu os destinos da empresa. Talvez o pai, (o meu avô), com uma personalidade muito forte, não o tenha deixado esvoaçar mais. Só então se impõe como um homem de trabalho, dedicado, racionalizando a produção, mecanizando a empresa, procurando soluções a nível internacional. Mas tínhamos uma concepção de vida diferente. O meu pai teve quatro filhos de três mulheres. Naquela época, era invulgar. Eu sou homem de uma mulher só.

 

É o primeiro filho dele?

Sou o segundo.

 

Da segunda mulher?

Que não foi casada com ele.

 

Isso importou, marcou a sua história?

Marcou, porque era uma sociedade difícil. Uma sociedade que era dura para com um miúdo que tivesse no bilhete de identidade algo como “filho de pai incógnito”. Por lei, o meu pai não me podia perfilhar, porque era casado com outra mulher.

 

Sentiu isso como um estigma?

Eu achava que as pessoas distanciavam-se ou faziam chacota de mim, marcavam-me de uma forma que eu considerava injusta. O que é que eu tinha a ver com aquilo? Havia pessoas, desde vizinhos a conhecidos, que me diferenciavam. E até professores, e professores de Religião e Moral, que me diferenciavam na turma por causa disso. Talvez tenha gerado em mim alguma tristeza, mas, ao mesmo tempo, um desejo interior muito forte de procurar mostrar à sociedade que eu não era de segunda, não era fraco. E aí, o papel da minha mãe, do meu pai e da escola primária são muito importantes.

 

São estruturadores.

Sim. A minha mãe entendia que eu era brilhante, achava-me um menino de ouro; fez-me sentir que era capaz de fazer coisas. Com três ou quatro anos, ensinava-me as primeiras palavras, ensinava-me a ler e a escrever, e eu ia respondendo. Quando entro na primeira classe já sabia ler e escrever.

 

Era um menino bem comportado. Olhando agora: alimentava sobretudo um desejo de harmonia?

Universal?

 

Familiar e universal. O desejo de uma paz que reinasse no seu mundo, no seu ambiente.

Não acho isso. Nunca me incomodei que no meu ambiente não houvesse paz. Procurei construir a paz de dentro para fora, dentro de mim próprio e à minha volta. Percebi cedo que o mundo não é o paraíso: é uma escola. Estamos aqui para aprender.

 

E que funciona, e que rola, apesar da convulsão; é isso?

Sim, e que rola. Sinto-me, eu próprio, uma partícula de uma harmonia universal, de uma inteligência universal que respeito imenso. Hoje raciocino isto de uma forma mais consolidada; em miúdo, não seria assim. Vejo-me a desenvolver-me assim, a pensar-me assim. Pacifista. Bom, sem querer ser bonzinho. Algumas vezes percebendo que estava a passar por lorpa. Mas preferindo ser lorpa a ser velhaco, optando claramente. E não me importando que os outros me achem lorpa, se estou com a consciência tranquila.

 

Não se importar com aquilo que os outros pensam, dizem, a maneira como nos apontam, exige que dentro de si esteja bem.

Exige confiança em si próprio.

Que veio da minha mãe, quando me dizia: “Tu tens capacidade, tu vai, tu luta, tu faz”. Eu tinha 14 ou 15 anos e sentia-me capaz. Se quisesse fazer uma coisa que estava correcta e direita, podiam vir 500 pessoas contra a minha opinião. Não era conflituoso, mas sentia-me estruturalmente capaz de ficar na minha posição. E num Portugal salazarista. Nunca me meti na política, nunca andei a levantar a voz, a lutar contra fosse o que fosse, mas se um dia me obrigassem a ir para África, não ia. Não queria matar nem dar tiros a ninguém.

 

E a relação com o seu pai?

O meu pai, apesar de ter uma concepção de vida muito diferente da minha, sempre me respeitou. É um valor extraordinário. Os pais muitas vezes têm tendência de impor aos filhos aquilo que acham que é melhor. Tive a felicidade de ter um pai, que era um homem rico, que podia impor as soluções, e que não me impôs nada. Mais do que isso: que me admirou. Era um homem que gostava da noite e que tinha um filho que não gostava da noite. Um homem que era um liberal e que tinha um filho que era mais conservador. Foi muito importante perceber que o meu pai gostava de mim como eu era. Procurava dar-me condições para eu brilhar.

 

Ainda viveu com ele todos os dias?

Vivi. Sobretudo na adolescência e na parte final da vida dele. Ele faleceu quando eu tinha 21 anos, e ganhámos um compadrio muito grande. Nalgumas coisas ele tinha dificuldade em me entender.

 

Quais? Onde é que o seu mundo era para ele uma porta fechada?

Disse-lhe que sou homem de uma mulher só, tenho o maior respeito pela relação entre um homem e uma mulher. O que provavelmente não era o caso do meu pai. Quando era jovem percebi que o meu pai tinha receio que eu fosse homossexual.

 

Mas tinham, então, uma relação íntima. Só é possível falar disso quando há uma relação de verdadeira intimidade.

Sim, sim. Sobretudo a partir dos meus 14 anos, o meu pai construiu comigo, (não fui eu que construí com ele), uma relação muito bonita. A determinada altura percebi que ele tinha esse receio. Vivi momentos em que ele quase me punha à prova. Penso que se convenceu de que não era.

 

Ele pressionou-o quanto ao seu futuro?

Queria forçosamente que eu fizesse Farmácia ou Economia para me dedicar à empresa. Até porque o meu irmão mais velho quis fazer Engenharia Mecânica. Eu dizia que não, que queria fazer Medicina. Mas fui pensando naquilo, e tinha tanto respeito por ele, gostava tanto dele, tinha também respeito pela obra do meu avô, que ele estava a continuar…

 

E que também tinha morrido cedo. Há ciclos na família que de alguma maneira se reproduzem.

O meu avô faleceu com 61 anos, salvo erro, o meu pai com 50.

Ele pressionava-me. Quando terminei o curso do liceu – fui aluno do quadro de honra –, dois dias antes de me inscrever, pedi para falar com ele, muito formalmente. Para lhe dizer que tinha decidido ir para Farmácia. Há momentos que marcam a vida de um homem, e esse foi um deles. Quando digo que decidi fazer-lhe a vontade, ele levanta-se e dá-me um abraço, daqueles abraços apertados, beija-me e diz: “Não vais fazer Farmácia coisa nenhuma, tens de dar sequência àquilo que achas que é a tua vocação”. Desatámos os dois a chorar nos braços do outro.

 

É bonita a sua relação com o seu pai. E com os seus avós?

Só comecei a conviver com a minha avó quando tinha cerca de dez anos, e depois de uma forma mais assídua quando tinha 12, 13, 14. Entretanto o meu avô faleceu e não tenho memórias dele.

 

O seu avô era uma figura dominadora na família?

Sim. Era um grande patrão, um self made man. É filho de um merceeiro que começa a carreira como funcionário de uma farmácia. Tem ideias brilhantes, como abrir a porta às cinco e meia ou seis da manhã, para poder recolher as receitas das pessoas que vinham dos subúrbios do Porto. Padeiras, leiteiras, vendedoras do Bolhão. Receitas que ele ficava a aviar, de maneira a que as pudessem levar [nesse dia], (nas outras farmácias só no dia seguinte é que as entregavam). O patrão procurou recompensá-lo dando-lhe oportunidades.

 

A Bial nasce aí?

Ele é que teve a ideia de construir um laboratório por cima da farmácia para aumentar o negócio, e, depois disso, de construir um laboratório industrial. Quando arrancou com a ideia, em 1919, ainda estava com o patrão, o senhor Almeida; ele era o Álvaro. “Bial” é os dois “al“, do senhor Almeida e do Álvaro Portela. Quando em 1924 arranca com o negócio do laboratório industrial, já é ele sozinho.

 

Foi ele a fazer fortuna?

Sim. Era um homem que sabia encontrar soluções expeditas para ganhar dinheiro, mas também sabia gastar dinheiro. Nos anos 30 passeava-se num Cadillac descapotável de cor amarela.

 

Imaginava isso no seu pai, não no seu avô.

O meu avô era um homem narcisista, um novo-rico, que deixou imensas fotografias, que tinha uma atitude exuberante perante a vida. O meu pai, talvez pelos excessos do meu avô, era um homem discreto, simples, tranquilo. Coisa que eu terei herdado. O meu pai assumiu a postura da minha avó, que era uma grande senhora, serena, filha de um coronel açoriano de família tradicional. Embora tivesse o vício do tabaco. Nos anos 50, 60 não era vulgar uma senhora fumar um maço ou dois por dia, e a minha avó fumava. Não era vulgar uma senhora conduzir, e embora tivesse motorista, gostava de conduzir o seu automóvel.

 

E a sua mãe, como é que era?

Era interiormente muito forte, mas foi uma mulher que abdicou da vida.

 

Por causa do filho?

Por causa do filho. A minha mãe terá amado profundamente o meu pai e dedicou-se-lhe totalmente na pessoa do filho. Recusou várias propostas de casamento porque não queria dar outro pai ao filho que tinha, do amor da vida dela.

 

Ela falava consigo sobre essas coisas?

Algumas vezes. O meu pai e a minha mãe cortaram completamente a relação entre eles quando eu tinha três anos; mas a minha mãe entendeu manter-se fiel. Dedicou-se a ajudar o filho a crescer e a desenvolver-se.

 

Nunca teve uma relação com os seus meios-irmãos?

No princípio, não, só a partir da adolescência.

 

A Bíblia, que lê desde os 12, 13 anos, pode ser lida como um romance onde a família e as vicissitudes da família são narradas de uma forma empolgante. Já conhecia aquela conflitualidade, aquela pulsão… Mas ao mesmo tempo tinha o desejo de procura da verdade e de harmonia.

Acho que não seria isso. Lia a Bíblia na busca do que é que nós estamos aqui a fazer, tentando perceber a mensagem que Jesus deixou. E para mim, Jesus não tem de ser forçosamente Deus…

 

É um cristão sem ser católico?

Sou, pode dizer assim. Não me considero religioso, não sigo nem faço parte de nenhuma religião.

 

Cortou com os ritos da igreja católica?

Sim. Quando tinha 12 anos, pedi autorização da minha mãe para não ir à missa. Não me considero religioso, mas sou um fã incondicional de Jesus. Acho que é uma partícula de Deus, como todos somos. Se calhar é um dos melhores. Não me parece muito lógica a coisa de ele ser um privilegiado, de estar sentado à direita de Deus Pai. Há enormes figuras na história da Humanidade, como Buda, Krishna, ou, nos nossos dias, Nelson Mandela, Ghandi, Martin Luther King. Se Jesus é mais filho de Deus do que todos os outros, provavelmente será pela sua capacidade de fazer coisas bonitas, pela sua capacidade de amar os outros, e não por ser o filho dilecto.

 

Mas isso entronca na sua história, não? Isso de não haver filhos dilectos.

Pode ser, se quiser ver assim. O que me parece é que a justiça universal implica que cada um seja melhor por aquilo que faz, por aquilo que é, e não por aquilo que os outros dizem que é.

 

As pessoas procuram resposta para as grandes questões na religião e na ciência. Na sua vida, ainda que num modo indirecto, as duas coisas estão presentes. Digo indirecto porque a sua ligação à ciência não tem que ver com isto.

Tem, tem. É verdade o que está a dizer, mas quando resolvo ir para Medicina, faço-o para ajudar o outro. Havia duas maneiras: uma era apoiar, como médico, quem sofre. Outra era através da busca de esclarecimento. Noventa e tal por cento da Humanidade acredita que, para além do corpo físico, existe mais alguma coisa. Uns chamam-lhe alma, outros espírito. A ciência, há séculos que se divorciou de um estudo de fundo da actividade espiritual. Divorciou-se de uma série de fenómenos apontados, de escritos historicamente demonstrados, que não quis aprofundar.

 

É por isso que a Fundação Bial tem um espaço e uma bolsa para essa pesquisa?

É. Quando acabei o meu curso procurei especializar-me em Psicofisiologia, e ganhei uma bolsa para ir fazer o doutoramento na Universidade de Cambridge. Descobri lá um professor que também tinha interesse pelo tema; ele aceitou-me como estudante, e durante aqueles três anos eu não diria uma palavra de Parapsicologia! Senão, chumbavam-me!

 

Porquê?

Era uma universidade muito tradicional. Ainda hoje estes temas não são bem vistos, mas naquela época eram muito mal vistos. O que me interessava era dar algum contributo para o esclarecimento espiritual da Humanidade. Cada militante de uma religião acha que a sua é que é a religião da verdade; eu acho que todas as religiões são verdade, e que essa verdade será total quando todas as religiões confluírem nela. A nível científico é a mesma coisa. Infelizmente, quando a ciência não investiga, isso dá azo a muita exploração mercantil, misticismo, fantasia.

 

Receou que não o levassem a sério, ou pelo menos que o considerassem menos, academicamente, por causa da preferência por este assuntos?

Não, venham 500 ou 5000. Quando criámos a Fundação Bial, sabia que corríamos alguns riscos. Gostaria que a ciência pudesse demonstrar o que é verdade e o que é mentira, independentemente do que seja.

 

Gostava que fôssemos ao momento, definitivo na sua vida, subsequente à morte do seu pai.

Quando o meu pai faleceu ficou um farmacêutico, um homem da sua confiança, a liderar a empresa durante meia dúzia de anos. Havia a ideia de que o meu irmão, que é mais velho do que eu, pudesse ser o sucessor. Eu acalentava a ideia de ir para Cambridge, fazer a vida académica. O país vivia um período difícil; o meu pai faleceu em 72, veio a revolução de 74. Em 77, 78 tentava vender a minha posição na companhia.

 

Nesses anos, tinha dinheiro?

O período em que tive menos dinheiro foi até aos 10 anos, em que vivi com a minha mãe e os meus avós maternos. Eram pessoas de classe média, média-inferior, e os recursos da família eram menores. Quando aconteceu a revolução eu vivia do meu trabalho. Já estava a trabalhar na empresa desde 72. Durante esses anos, a empresa não distribuiu lucros, não estava numa fase ascendente, vivia num vermelho ligeiro. A empresa esteve para ser nacionalizada, tivemos comissões de trabalhadores que deram alguns problemas. Quem assumiu primeiro [a liderança] foi o meu irmão. O meu irmão dizia que o melhor era ficar só um (os nossos outros dois irmãos são bastante mais novos que nós). Que éramos dois galos para um poleiro.

 

Porque é que desistiu de ir para Inglaterra fazer o doutoramento?

Não me agradava ir sem conseguir vender a minha quota. Agradava-me mais a ideia de apostar na empresa, comprar a posição dos pequenos accionistas, adquirir a maioria e liderar. Ou então que o meu irmão me comprasse a mim e assumisse ele a liderança. Ele não quis comprar, achava que os tempos eram de grande desconforto político, económico, social. Terminei eu por comprar aos outros accionistas e a ele próprio [as suas participações].

 

É verdade que se endividou até à ponta dos cabelos para conseguir comprar 51 por cento?

Até à ponta dos cabelos. Vou-lhe falar a si pela primeira vez disto. O valor da amizade… Um amigo de família disse-me: “Você tem o dinheiro que quiser, empresto-lhe o dinheiro que precisar e não lhe cobro um tostão de juros”. Eu tinha algumas economias próprias, porque desde miúdo me habituei a aforrar. Tinha economias de família da parte da minha mãe, que me foram postas à disposição. E ainda a disponibilidade de alguns amigos e depois do banco. De maneira que me empenhei até à ponta dos cabelos. Desenhei um plano para pagar em seis ou sete anos, mas ao fim de uns três tinha tudo pago.

 

Era uma cartada em que toda a sua vida ficava em questão, empenhada naquela opção.

Não receei. Se calhar foi uma loucura, mas era um jovem de 27 que achava que se trabalhasse, se desse o melhor de mim, as coisas podiam resultar. Não tinha uma formação de base que me ajudasse, não era economista nem gestor, mas conhecia a empresa relativamente bem. Desde os 16 anos que o meu pai me obrigava a ir à empresa uma hora ou duas por dia para me pagar uma boa mesada. Entre os 27 e os 31 anos não tirei um dia de férias, não tirei um sábado nem um domingo para descansar. Foram quatro anos sempre a trabalhar. E muitas vezes estava no escritório até à meia-noite, e algumas vezes estava às cinco ou seis da manhã. As pessoas apostaram em mim, acreditaram em mim, perceberam que estava honestamente a dar tudo por tudo.

 

A sua personalidade e a sua entrega ao trabalho eram o seu capital próprio.

Não sabia se tinha talento mas dedicação tinha, e isso as pessoas perceberam. E perceberam que estava a fazer coisas que faziam sentido. Naquela altura, as empresas portuguesas apresentavam cópias; eu procurei licenciar novas tecnologias, novos medicamentos com empresas multinacionais para trazer para Portugal. A empresa nunca apostou nas cópias, como não está agora a apostar nos genéricos. E quando as coisas correram bem em Portugal, lançámo-nos para África, América Latina, Espanha. A empresa começou a crescer, e a rapaziada foi aderindo, foi sendo conquistada.

 

Esse sucesso é também um tributo ao seu pai?

Ao meu pai e ao meu avô. Mas não só: a toda a equipa Bial. Sempre tive uma postura de grande admiração, de grande carinho pela obra do meu avô, do meu pai, de todos aqueles que ao longo de 85 anos se dedicaram à Bial. A melhor forma de honrar o trabalho deles é procurar dar-lhe continuidade, melhorando aquilo que foi feito.

 

Nunca se pôs a questão: “E se isto corre mal, o que é que vou fazer”?

Ah, isso pôs, várias vezes ao longo dos anos, com certeza.

 

Podia sempre ser médico.

Quando me afastei da carreira clínica meti uma licença sem vencimento. Se as coisas corressem mal podia voltar a ser médico.

 

Chegou a exercer?

Cheguei, durante 3 anos, no hospital de São João, com muito gosto. E cheguei a dar aulas, de Psicofisiologia, também com muito gosto.

 

É um homem que gere um montante anual extraordinário, sobretudo agora, com a produção do anti-epiléptico. E é um homem que escreve um livro cujo título é “O prazer de ser”. Gostava de perceber melhor como é que vive esta dicotomia, Ser/Ter, e o papel do dinheiro na sua vida.

Quando era jovem sentia que o dinheiro era uma coisa que me importava pouco.

 

Tinha quase desprezo pelo dinheiro?

Não digo desprezo: fazia parte da vida. Lidar com dinheiro, não me interessava. Assim era e assim tem continuado a ser. Quer dizer: nunca na minha vida profissional fiquei importunado por ganhar muito ou pouco dinheiro. A minha vida profissional tem sido feita por objectivos. Quando na Bial procuramos lançar novos medicamentos à escala global, estamos a servir na área da saúde com o melhor que os portugueses podem oferecer e que nunca antes tinham oferecido. Isso é que é a força que profissionalmente me move.

 

Portanto, ser rico nunca foi um objectivo.

Nunca. Acho que a riqueza das pessoas é saberem estar na vida, saberem encontrar-se a si próprias, saberem aperfeiçoar-se, saberem acima de tudo conquistar outros, nomeadamente aqueles que são seus filhos ou amigos. Termos conta no banco, maior ou menor, para mim é absolutamente secundário.

 

Dá uma certa tranquilidade.

Dá muito jeito, com certeza.

 

O que é que deixa aos seus filhos? Foi uma escolha ter cinco filhos?

Quando casei, o meu ideal era ter entre seis a dez. Gosto muito de crianças. A mãe dos meus primeiros três filhos, dos meus filhos de sangue, teve um aborto, perdeu o quarto filho e optou por não ter mais. Quando, por força das circunstâncias que infelizmente nos bateram à porta, não fomos capazes de gerir a nossa relação, fazendo-a perdurar no tempo, e a interrompemos, surgiu-me outra pessoa na vida, que hoje é minha mulher, e que já tinha duas filhas. Procurei tratar essas duas meninas como se minhas filhas fossem, e tenho por elas um carinho como tenho pelos meus filhos, e também sinto que elas o têm por mim, como os meus filhos têm.

 

Ter uma relação cúmplice com eles é uma coisa de que se orgulha?

Não sei se é orgulho – não gosto muito da palavra; mas é uma coisa que me faz sentir interiormente feliz e realizado.

 

Parece uma pessoa solitária…

Nunca fui um indivíduo muito social, num tive um grande prazer em coisas mundanas. Sempre tive gosto em partilhar as minhas ideias com os meus amigos, meia dúzia de pessoas. Festas: foi coisa que nunca me atraiu. Poucas vezes fui a um baile. [Sorriso] Não sei dançar.

 

A sua cara muda quando sorri.

Obrigada.

 

Não é para agradecer. Mas fica muito diferente.

Digamos que fiz um percurso exigente. Quando as coisas começaram a melhorar, aproximei-me um bocadinho mais da sociedade.

 

A sua mãe ainda vive?

Ainda. Vive comigo, em minha casa. Vai fazer agora 88 anos. Ela entregou-se muito ao filho, e hoje sinto necessidade de a apoiar e minimizar o desconforto da velhice.

 

Quando recebeu a notícia de que iam produzir o anti-epiléptico, em quem é que pensou?

O anti-epiléptico não é uma notícia. Quer dizer, não se recebe como notícia, construiu-se ao longo de 14, 15 anos.

 

Mas há um momento que é detonador...

Quando uma empresa norte-americana – e os norte-americanos são muito objectivos e frios nestas coisas – se disponibilizou a pagar 175 milhões de dólares por entrar no negócio, (nem sequer era para vender ou comprar, era para adquirir o direito, durante dez anos, de comercializar em exclusivo nos Estados Unidos e no Canadá), percebemos que era um negócio em grande! Pensei sobretudo no meu avô e no meu pai. Pensei naquelas centenas de milhar de pessoas que ao longo de 85 anos trabalharam em torno daquele projecto. E pensei que tem sido bom partilhar a vida com a minha mãe, com o meu pai, com os tais professores mais exigentes, com os meus filhos, com a minha mulher.

 

Está casado há quanto tempo?

Há uma dúzia de anos. Posso parecer solitário, mas tenho uma companheira fantástica, uma mulher que é capaz de fazer despertar em mim aquilo que às vezes deixo apagar. Às vezes tenho uma postura um bocado humilde, talvez pela minha infância. A minha mulher fez-me despertar.

 

Um bocadinho como a sua mãe.

De uma forma diferente, mas talvez sim.

 

Fazendo-o acreditar em si, estimulando-o.

Fazendo-me acreditar em mim, estimulando-me.

 

Que idade é que tem?

57, quase 58.

 

Às vezes parece mais velho. Deve ser por ser sério.

Mas se vir fotografias minhas de miúdo e de adolescente, é uma cara tristonha.

 

Nunca se escangalhou? Já sei que nunca se irritou – li numa entrevista.

Não disse que nunca me irritei, mas são 30 anos em que nunca berrei para ninguém. Se calhar nunca me escangalhei.

 

Escangalhar quer dizer “sair de si”, “descontrolar-se”, “perder a cabeça”.

Apenas na minha vida particular. De criança gostava de ser assim: sereno, tranquilo, mais do que controlado. Não me interessa muito ser controlado, interessa-me ser intrinsecamente sereno. Uma pessoa que é serena não precisa de se controlar. Os 20 anos de karaté ajudaram a isso, a uma auto-confiança, a uma postura a que se chama controlada.

 

Escreveu abundantemente. É uma forma de se arrumar?

Talvez seja. Acho que a vida é um aprendizado permanente. Sempre gostei muito da comunicação. Tinha 14 anos e subi as escadas (o elevador estava avariado) até ao 7º andar na Rádio Renascença, no Porto, para perguntar o que é que era preciso fazer para ter um programa na rádio. Quando tinha 20, 21 deram-me essa oportunidade; desenhei, com um amigo, um programa que se chamaria “Simbiose”, entre música e palavras, que não chegou a ir para o ar porque exigiam que arranjássemos cobertura publicitária; não conseguimos arranjá-la. O meu pai nunca acarinhou isso: “Se queres fazer, faz por ti”,

 

Que outras coisas é que podia fazer ao domingo, se não escrevesse?

Dedicar-me à família, ler. Gosto muito de ler, de aprender, lendo, e depois conversar, partilhar com a família e com os amigos.

 

Quem é que lhe comprou essa gravata? É uma gravata Louis Vuitton.

Esta, já não me lembro. Normalmente sou eu ou a minha mulher. Uma vez ou outra os filhos oferecem uma gravata. Quando compro um fato de melhor qualidade, faço-o porque tenho gosto em me apresentar bem, limpo, e não de qualquer maneira.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Agosto de 2009