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Anabela Mota Ribeiro

Diana Krall

21.06.13

Quiet Nights é o disco novo de Diana Krall. Os músicos são os de sempre. A produção, assinada por Tommy LiPuma, é irrepreensível. Os arranjos são do mítico Claus Ogerman. Nós tínhamos meia hora para falar do disco, ou para, a partir dele, falar dela, num palácio de Lisboa convertido em hotel.

Tudo começou como estava combinado. E tudo mudou sem que o pudéssemos prever ou recusar. Começámos a falar de vestidos e de malas, dos saldos da Chloé e de o corpo não ser o mesmo depois da maternidade. Ela é mãe do Frank e do Dexter, de dois anos. É casada com o músico Elvis Costello.

Deu-me uma entrevista pouco convencional. Não só porque “sabotou” o seu próprio trabalho – que era falar do disco – como desatou a fazer-me perguntas sobre isto e aquilo – you know, as coisas de que as mulheres falam quando não têm de falar sobre um tema específico. O resultado é tão surpreendente que decidi transcrever a conversa como ela fluiu, com interrupções e partes desconexas. Deste modo, conhecemo-la de perto, mais do que conheceríamos se falasse exclusivamente da sua música e respondesse a perguntas retóricas.

Por momentos, ela foi a Diana, não foi a Diana Krall. Começou assim…

 

... Tive uma constipação terrível, a minha energia está mesmo em baixo. Por favor, não me interprete como sendo uma chata!, mas tenho estado tão doente…

 

Obrigada pela amabilidade. Então, o disco novo é uma carta de amor que quer sussurrar ao ouvido do seu marido e dos seus filhos...

Acho que significa apenas que estou feliz. O que a letra de [Quiet Nights] diz é: “Quero a vida sempre assim/Com você perto de mim/Até o apagar da velha chama”. Fala sobre encontrar a felicidade, estar satisfeito. Mas é um disco sensual também; tem várias leituras.

 

Posso perguntar-lhe sobre o momento em que encontrou a felicidade? Sobre essa mudança.

Sou o tipo de pessoa que está triste-feliz-triste-feliz... Porque tudo na vida me toca muito. Mas sinto-me feliz, como pessoa, como artista, como mãe. Este álbum revela a mudança que se deu em mim por ter sido mãe.

 

Pensei que a mudança tinha sido com The Girl In The Other Room, o primeiro álbum que gravou depois do casamento com Elvis Costello. No disco, é visível a influência do seu marido nas escolhas que faz; por exemplo, quando interpreta Joni Mitchell ou Mose Allison, que são músicos que ele admira.

Aconteceram várias coisas muito intensas nesse mesmo período. Perdi a minha mãe; uma perda tremenda. Depois, o casamento. Não foi um clique, foi uma coisa gradual – este sentimento de paz com quem sou e aquilo que faço.

 

Podemos perceber um cruzamento entre a sua vida pessoal e o seu trabalho. Estamos a falar daquilo que perdeu e daquilo que ganhou, e de como isso se reflecte no que faz.

Eu canto as canções, gravo, tal como imaginei; mas o resultado final só se entende quando se sai do estúdio, se entra na cabine e se escuta. É como se nos colocassem na frente um espelho, e então percebemos onde estamos. As pessoas perguntam-me se há [em relação a este disco] um sentimento romântico; mas não: é erótico, é escuro, num sentido sexual profundo. Tudo se conjuga agora na minha vida. E sinto-me mais velha, [risos] mas não muito. Não me sinto com 27 anos e à procura. Tudo veio tarde na minha vida.

 

Tarde? Eu pensava que tudo tinha começado cedo...

A minha carreira começou a ter sucesso quando eu tinha 37, com o The Look of Love. Antes, eu ainda tinha problemas em pagar a renda… Comecei a poder viver apenas da música. Casei-me com 39, tive filhos com 42, agora tenho 44.

 

Um dos seus discos preferidos de sempre é Amoroso, de 1977, de João Gilberto. Em Quiet Nights interpreta dois temas que João também cantou: Garota de Ipanema e Este seu olhar.

Vi João ao vivo este Verão! Este Seu Olhar é a minha música preferida. Ouvi-a vezes sem conta, e um dia pensei: “Tenho que aprendê-la!”.

 

No disco canta-a em português. Porquê?

É como se estas palavras escapassem à lógica…, não se podem dizer ou explicar em inglês. Aprendi-a ouvindo João Gilberto e com uma pessoa em São Paulo, que insistia para que eu dissesse gosta. Eu não queria dizê-lo com aquele sotaque, não estava a tentar cantar num português perfeito; estava simplesmente a tentar ser humana.

 

Logo, imperfeita. E com sotaque imperfeito.

Como uma miúda canadiana que adora esta forma de arte cantaria: com sotaque. Mas sinto-me confortável a cantar em português. Sinto o que estou a cantar. [No Rio], cantei em português e disse goshta de mim, e toda a gente se riu… Lixei tudo! Mas depois, estavam todos contentes, e nos jornais diziam: “Ela é carioca!” por causa do sotaque que apanhei do João Gilberto.

 

Se posso ser sincera, prefiro a sua versão, em português, de Este Seu Olhar à Garota de Ipanema, que canta em inglês. Porque consigo identificar a emoção, o quanto gosta da canção, e o prazer de cantá-la em português.

Sim. Mas canto-a melhor agora do que quando a gravei. A Garota de Ipanema tem que se entender como uma personagem: uma mulher da minha idade, a ver homens lindos na praia!

 

Claus Ogerman, que fez os arranjos do seu disco, fez, no passado, várias versões da Garota de Ipanema.

Fez cerca de trinta! E disse-me que neste disco queria reescrever tudo. Se ouvir o original que ele escreveu para Frank Sinatra e Jobim [1967], e ouvir agora Quiet Night, perceberá que fez uma versão mais negra, mais film noir. Mas o público não precisa saber isto: apenas precisa sentir o meu trabalho.

 

A sua relação com a música brasileira começa com a colecção de discos do seu pai?

Descobri sozinha a música brasileira. Com o Sérgio Mendes [& Brasil' 66]. Sempre gostei daquele Look Around, aquele te-te-te-re te-te-te... Para mim, a música é uma filosofia: não é só fazer e planear coisas. É como se vive, é a forma como nos exprimimos, sem palavras. A música, como o amor, realmente assume todas as formas. É um processo muito espiritual.

 

Como é que tudo se desenrola?

Sou uma pessoa intuitiva. Primeiro sinto, deixo que aconteça. Não falo muito com os músicos enquanto estamos a trabalhar, apenas vejo para onde se dirigem, o que vão introduzir, não peço que toquem desta ou daquela forma. Se há alterações a fazer, faço alterações subtis.

 

No início da sua carreira, queria ser apenas pianista, ou sempre quis ser cantora?

Nunca achei que fosse muito boa [cantora], é tudo. A minha família era muito musical. Fui criada por avós que gostam de jazz, e eu achava que toda a gente tinha isso; só mais tarde descobri que nem toda a gente tem. [Olha para o tecto trabalhado da sala onde estamos] Ohh, é lindo...

 

Todo o hotel é muito bonito.

Adoro estes cortinados. Sempre que venho aqui penso em comprar uns!

 

Pode roubá-los!

Roubar os cortinados, como a Scarlett O’hara, [de E Tudo o Vento Levou]! [risos]. Eu colecciono arte, e uma das minhas paixões é o design. Colecciono mobiliário modernista, do séc. XX, da década de 50. Vou a lojas de coisas em segunda mão, compro vestidos vintage, dos anos 40.

 

O seu vestido é lindo.

É um Gucci comprado nuns saldos.

 

Nos saldos? Porquê? Pode comprar sem ser em saldo.

Eu tenho dois filhos, entende? Era uma coisa da minha mãe: aproveitar os saldos. É confortável. Nunca uso padrões, normalmente visto-me de preto. [Pega no Blackberry] Deixe-me mostrar-lhe os miúdos: o pai mandou estas fotografias ontem, finalmente a dormirem! Este é o meu filho Frank e este é o Dexter, a aprender piano. E esta é a minha fotografia preferida de mim mesma, das mais recentes, na Disneyland. É como me vejo.

 

Com óculos. Parece uma miúda! Quando põe o cabelo de determinada maneira, a maquilhagem e os vestidos fazem-na parecer uma femme fatale.

Sim, mas se me visse por aí... [Mostrando novamente imagens no Blackberry] Este é o Dexter a aprender violino. Gosto de me arranjar, mas falta-me paciência para... Isto é onde eu faço ski, esta é a vista da montanha, e a cidade de Vancouver. [Retomando a conversa] Fui às compras em Paris com a minha manager, de calças de ganga, com óculos escuros, sem maquilhagem: entrava nas lojas e as pessoas reconheciam-me! Achei estranhíssimo!

 

Para o caso de não saber, é célebre no mundo inteiro. Vende milhões de discos.

Mas ninguém me reconhece no Canadá ou em Los Angeles. [risos] Como é que sabiam?! Fui ao ginásio aqui, esta manhã, e a senhora que me passava as toalhas perguntou se eu era a Diana Krall! Como é que ela sabe? Com aquele cabelo todo despenteado… Gosto quando me arranjo, mas quando estou no estúdio não uso maquilhagem nenhuma. As suas botas são bonitas.  

 

Obrigada. São Dries van Noten. Adoro Dries van Noten! Na verdade, adoro moda.

Eu também. Fui aos saldos em Paris, na Chloé, tinham coisas lindas. Gostava das coisas desenhadas pela Phoebe Philo. Guardei esses vestidos todos, e os do Tom Ford para a Gucci, os casacos YSL de veludo preto...

 

Nada melhor do que conversa de miúdas!

Pare de falar da porcaria do disco! [risos]

 

Era suposto falarmos do disco, dos arranjos do Claus Ogerman...

Eu sei. Estou aqui todo o dia e só me perguntam se quero um Porto ou ir passear. Eu quero é ir às compras! Mas como tive dois bebés, o meu corpo mudou. É uma trabalheira. Passo fome para tentar voltar [ao que era dantes]. Às vezes não aguento. “Mais um copo de vinho?” Ohh, sim! Eu não estou na televisão, não sou esse tipo de pessoa, de Hollywood, não tenho de sacrificar a minha felicidade [para ter uma imagem perfeita]. Mesmo assim, quero caber naquelas roupas!

[Uma pessoa da editora espreita pela porta para dizer que temos mais dois minutos dos 30 inicialmente estabelecidos]

Não se preocupe, é um alívio e uma bênção finalmente poder conversar com outra mulher sobre o Claus Ogerman e sobre moda. Porque é importante entender uma coisa e outra. Esta é a minha Balenciaga. De senhorinha! É a minha mala preferida, velhinha, velhinha, velhinha! A minha assistente, que é argentina, usa imenso DKNY, e cai sempre bem...

 

Na capa do seu disco When I look in your eyes usa uma saia azul DKNY deslumbrante.

Sou eu que decido tudo nas minhas capas. Sou muito exigente com aquilo com que apareço vestido. Neste disco novo é tudo Oscar de La Renta.

 

Onde tem a sua roupa? Onde é que se sente em casa?

Casa é Vancouver. Digo-lhe uma coisa importante sobre o álbum e as letras de Quiet Nights: “E eu que era triste, descrente nesse mundo/ ao encontrar você eu percebi/ o que é felicidade, meu amor”. Isto é real: sobre Vancouver e a minha família, as montanhas, os passeios que damos. É isso que está aqui: um sentimento de satisfação com aquilo que tenho, sem pensar constantemente em ir para Nove Iorque ou Los Angeles, ou equacionar viver em Paris uns tempos.

 

Viaja muito, e o seu marido tem também uma carreira exigente. Imagino que agora seja mais difícil, por causa das crianças.

Os meus filhos também viajam – sou aberta nesse sentido. Mas é bom sentir que pertencemos a um sítio, podendo esse sítio ser aquele de onde partimos. Não me vejo a criar os meus filhos em Nova Iorque; agora não, talvez mais tarde. Por enquanto, mantenho as minhas raízes na Colômbia Britânica. Está cá dentro, não consigo evitar.

 

Quando não está em tournée, a viajar à volta do mundo, como é o seu quotidiano?

Vou ao parque, vou à mercearia, convido amigos para jantar, bebemos bom vinho, cozinhamos, sentamo-nos a conversar, rimos.

 

Uma vida normal.

Não é bem normal. Não sei se quero ser normal! Não entrei para os grupos de mamãs, que têm que fazer isto ou aquilo... Não sou isso, nem os meus filhos são assim. Não me quero adaptar a nada. Gosto de uma vida com movimento, com liberdade para viajar, e apesar de dar em doida com tantas viagens, gosto da vida que tenho.

 

A sua expressão mudou. Quando estava a preparar a entrevista, vi coisas antigas, no Youtube, e é incrível como a sua cara mudou. Era mais tensa.

Mas sabe porquê? Porque perdi a minha mãe, e isso destruiu-me completamente. Depois o meu pai adoeceu, e eu tinha que trabalhar e processar tudo isso perante o público, e não conseguia... Foi muito duro. Toda a gente me diz que pareço outra pessoa. Olha-se para trás e tenta-se perceber quem fomos, e agora somos outros. Acho que tem a ver com essa dor que me acompanhou tanto tempo. [comove-se] Sinto-me muito grata por mo dizer. Estou vulnerável por estar doente e porque fico nervosa quando há muita cobertura de imprensa; sinto-me sempre encostada à parede, com os fotógrafos, tudo isso...

 

Parece mais leve, feliz e descontraída – foi isso que mudou na sua cara.

É por ter estes dois miúdos! Isto afectou o meu casamento. Eles não deviam dormir na nossa cama, mas nós queremo-los ali. Penso em pais que deixam os filhos chorar, que dizem que não faz mal deixá-los chorar vinte minutos porque depois readormecem... Mas houve uma coisa dentro de mim, quando peguei no meu filho que chorava, estive com ele no colo vinte minutos, e depois pu-lo na cama... Você tem filhos?

[prossegue a conversa pessoal…]

 

 

Publicado originalmente na Revista Máxima em Fevereiro de 2009

Os mais visitados (Maio/Junho)

14.06.13

Resisti anos a ter um blog, a estar no Facebook, a interagir nas redes sociais. Foi no dia 14 de Maio que comecei. Faz hoje um mês, portanto. 

Quero dizer algumas coisas. Para começar: muito obrigada. Às pessoas que me leram, e que de todas as maneiras me fizeram sentir bem vinda. Os seus comentários, likes, mensagens, smiles et cetera foram muito estimulantes. 

Obrigada à equipa do Sapo. Por tudo.

Obrigada àqueles com quem aprendo sempre. 

 

E agora, a lista dos conteúdos mais visitados:

 

1º Fernanda Serrano

http://anabelamotaribeiro.pt/16978.html

 

2º José Mourinho

http://anabelamotaribeiro.pt/14445.html

 

3º Ricardo Araújo Pereira

http://anabelamotaribeiro.pt/6282.html

 

4º Alexandre Quintanilha e Richard Zimler

http://anabelamotaribeiro.pt/16838.html

 

5º Isabel Moreira

http://anabelamotaribeiro.pt/19174.html

 

6º Luiz Pacheco

http://anabelamotaribeiro.pt/17360.html

 

7º D. Manuel Clemente

http://anabelamotaribeiro.pt/13350.html

 

8º Catarina e Nuno Portas

http://anabelamotaribeiro.pt/22906.html

 

9º Maria José Morgado e Saldanha Sanches

http://anabelamotaribeiro.pt/5111.html

 

10º Bruno Nogueira

http://anabelamotaribeiro.pt/20619.html

 

 

Teresa Guilherme

08.06.13

“Sempre achei que era um cliché, mas a saúde é o mais importante. Nada tem graça quando a pessoa está adoentada. É uma coisa que vem com a idade: valorizar sentir-se bem. Tomo imenso cuidado com o meu corpo. Tenho um personal trainer com quem faço ginástica uma vez por semana, ou duas. E um  massagista indiano, que é fantástico, equilibra as energias muito bem. E um quiropata, porque acho que a coluna tem que estar no seu sítio. Não fumo, nunca fumei”.

Quem assim fala é uma mulher de quase 50 anos. E neste pequeno pedaço, sem aparente importância, está imensa coisa dela: o cliché, a procura do prazer, o entusiasmo, a preocupação fanática com as energias e o equilíbrio.

Todos a conhecem. Conhecem? Há a mãe, o funeral do psiquiatra, o pai que trazia alegria à casa e desestabilizava quatro mulheres, há o não ser bonita mas ser muito vistosa, há o desejo de ser admirada pela mãe ídolo, de fazer tudo muito bem para merecer essa admiração, há aquela história de quem toda a gente se ri – de ter atropelado a avó quando levava o pai para uma casa de repouso –, há a fidelidade, há a desimportância do dinheiro, há o querer ser a melhor, há a presença dela na televisão, a falar muito depressa e a criar ansiedade no espectador – que era o que dizia o psiquiatra. E há a presença dela na televisão, a comunicar extraordinariamente bem, como previra o padrasto, Tony de Matos.

Teresa Guilherme é apresentadora e produtora de televisão. É a que tem por lema “posicionar-se muito mais na solução do que no problema”. A que resolve. A que toma conta. A que ama. A que espera por sinais, mas dá uma forcinha. A que vive.

Por último, uma confissão: esta conversa é uma reincidência. Uma vez, há muito tempo, aconteceu uma daquelas coisas que é a pior coisa que pode acontecer a um jornalista. Chegar ao fim e perceber que não estava nada gravado. Pois. Esta conversa apanha imensas pontas da primeira. E é uma conversa com uma mulher que parece mudada. 

 

 

Guarda alguma coisa da nossa conversa de há dois, três anos?

Lembro-me da conversa, mas não me lembro de nada.

 

É a mesma mulher? Parece mudada. Terá sido o casamento? O amor pode transformar-nos, revelar-nos.

Não sei se foi o casamento que me mudou ou se já tinha mudado, e, por isso, casei. Temos que estar predispostos a assumir um compromisso. Encontrei a pessoa certa, é verdade. Já conhecia o Henrique há anos, a trabalhar, e nunca tinha reparado nele.

 

Na outra conversa, eu pedia-lhe para explicar uma coisa que tinha lido numa entrevista: dizia que a pessoa mais interessante que conhecia era a Teresa. 

Não sei se continuo a dizer que a pessoa mais interessante que conheço sou eu... Essa busca, o interesse por essa pessoa que sou eu e pelos seus limites, continua. A prova mais clara foi esta ideia de fazer teatro, agora («A Partilha»). Correu muito bem, tive essa sorte. Como o nosso corpo tem uma enorme percentagem de água, a nossa vida também tem uma enorme percentagem de sorte. Sem isso nada funciona. Fazer teatro era uma coisa que trazia comigo desde os 18 anos.

 

Por causa da sua mãe?

Ela nunca fez teatro, cantava. Mas era o espectáculo, sim. Fiz aqueles cursos de teatro que se faziam na altura e cheguei à conclusão de que não tinha jeito nenhum! Era muito tímida, e aquilo era pavoroso para mim. Na verdade, acabo por me estrear em televisão aos 35 anos, muitíssimo depois dessa minha vontade. Mas sempre muito fascinada por teatro, por ver peças, ler peças.

 

Porquê?

É uma coisa que tem a ver com sentimentos, com pôr em palavras os sentimentos. Por outro lado, sempre fiquei fascinada com as pessoas que conseguiam transformar-se, que conseguiam ir buscar outras dentro delas. Adoro cinema! Sou completamente viciada em DVD’s, nas séries maravilhosas da HBO_ mando vir.

 

É fanática de “O Sexo e a Cidade”?

Fui. Aquilo foi uma ruptura com tudo. Todas as mulheres se identificam com aquelas mulheres, por mais longínquo que seja o universo de Nova Iorque. Os homens não acreditam que aquilo tem a ver connosco! Tem a ver connosco na essência. O tipo de conversas, o tipo de interesses, aquele desespero pela estabilidade, por ter filhos, o não conseguirem afastar-se umas das outras...

 

Era a propósito do fascínio do teatro, que era antigo, embora não claramente identificado.

Quando falo com os meus amigos de sempre, dizem-me que toda a vida falei nisso, toda a vida dei isso como “um dia há-de ser”. Aliás, como o casamento: nunca ninguém acreditou e eu disse sempre que um dia havia de casar. Agora ando como uma fixação: sei com quem vou contracenar na minha próxima peça. Não sei qual é a peça, a pessoa ainda não sabe, mas eu sei qual é a pessoa.

 

À medida que fala, desenrola-se o pano da outra entrevista. Lembro-me de ter contado que estava no cabeleireiro a ler numa revista um comentário sobre o «Big Brother» e de ter dito ao Pedro Curto [produtor]: “Eu vou fazer isto”.

Pensei assim: “Era giro voltar a apresentar um programa que não fosse produzido por mim. Não sei se é este, se é outro qualquer, pode ser este.”

 

Mas estas coisas acontecem-lhe e acredita absolutamente nelas! É uma espécie de faro: confia cegamente na sua intuição. E na força do acaso.

Quando fiz o «Big Brother», já não apresentava programas há dois anos e meio. Tinha decidido que não ia apresentar mais.

 

«... não ia apresentar mais» quer dizer «para sempre»?

Agora também acho que quando acabar o «Um, Dois, Três» não apresento mais. Mas não quer dizer que não volte a apresentar. Quando estou a dizer, estou a dizer sinceramente; depois, renovo. Em televisão, e nas nossas vidas, o sempre e o nunca são três meses. Muda muito na nossa vida em três meses....

 

A relação com o tempo é muito elástica.

As pessoas não acreditam que me ofereci para apresentar um programa, polémico, sem nunca o ter visto. Acertei tudo com o Piet Hein [Endemol] e não sabia o que era o programa. Eu acreditei. Eu queria fazer um programa, e daí a dois dias apareceu-me uma proposta.

 

Com a peça foi um processo semelhante? Andava a falar nela e ela veio ter consigo?

Um dia, na piscina lá de casa, a ler, que é uma coisa que me deixa livre o subconsciente, pensei: “Agora é que era a altura de fazer uma peça”. Mandei uma mensagem escrita à Rita Salema, uma das amigas a quem falei disto, a dizer: “Hoje, a actriz que há em mim acordou”. Ela disse logo: “Tenho aqui uma peça fabulosa. Vou mandar-ta”. Era “A Partilha”. Li, gostei muito e pensei: “Isto é um campo mais complicado. Vamos esperar pelos sinais. Se houver sinais a favor, tudo bem”. No dia seguinte abro uma revista: [Miguel] Falabella vem a Portugal com a sua “Batalha de Arroz”.

 

Espera pelos sinais para avançar? Pode demorar um dia, pode demorar um mês?

Demora sempre um dia. É tudo muito rápido. Daí a 15 dias o homem veio. Nunca o tinha visto pessoalmente. Acabou a peça, fomos ao cocktail, o Manuel Luís [Goucha] apresentou-me. “Li a sua peça, ‘A Partilha’, e gostava de a levar à cena aqui. Mas também gostava de representar”, “Então, que personagem é que você quer ser?”, “Quero ser a Regina”, que é a esotérica. E ele disse: “Não, vai a ser a Selma”. Fiquei muito escandalizada, porque a Selma é a maldisposta do grupo, a rancorosa. Disse para a Rita: “Ele não deve ter percebido”. Depois apareceu o [Joaquim] Monchique, caído do céu: “Olha que ele é um bocado de achar que tudo são bons desafios e amanhã nem te vai telefonar”. Respondi: “Está na mão de Deus”. No dia seguinte ele telefonou e marcou o ensaio de leitura, no outro dia, em minha casa. Foi assim tudo em menos de um fósforo.

 

Confia no esoterismo, no acaso, mas dá uma forcinha...

Sim, fui à estreia. Comecei a apaixonar-me, comecei a viver o teatro, afastei-me até um bocado das minhas coisas da televisão. Por dentro. Por fora, tudo funcionou. Comecei a apaixonar-me porque é muito interessante descobrir coisas que eu não sabia dentro de mim.

 

Mas pensei que se conhecesse bem. Por causa dos anos de psicanálise.

Que foi mais do que preciosa para conseguir dissecar esta Selma. À medida que se vai andando com o texto, conhecem-se os bloqueios, as frases que não saem, as coisas que se compreendem bem de mais. Descobri que isso tinha a ver com emoções que me faltavam ou que não conseguia trazer à tona. Do que gostei mais foi da interiorização da personagem.

 

E isso é o quê?

É ir à procura de sentimentos, nossos ou de outras pessoas, e perceber exactamente quem é aquela mulher que se está a representar, a fazer nascer. É um processo muito parecido com a análise. Há dias de chorar baba e ranho, mesmo estando a preparar-se uma comédia, e há dias de uma libertação mais levezinha. Nunca tinha dado conta de que tinha muita pena de não ter irmãs. Um dia aquilo foi uma coisa avassaladora!

 

Na primeira entrevista falou muito da relação com a sua mãe e com o seu padrasto, o Tony de Matos. Sentiu-se muito amada por eles?

Sim. Os filhos únicos são desamparados. Não acho proveitoso para ninguém ser filho único. As famílias muito numerosas faziam-me alguma confusão. Desde muito novinha, os meus amigos foram sempre filhos únicos.

 

Sonhava com um modelo de família convencional, marido e filhos? Esquecemos que viveu uma vida muito diferente antes dos anos da televisão. Contou-me da sua relação com o Raúl Durão, de fazer sandes para os miúdos e de ser uma espécie de mãe daquela gente toda...

Eu não tenho uma perspectiva maternal, sou muito mais um pai do que uma mãe. As mães são as que aceitam tudo, as que têm sempre um colo. E até são rigorosas. Mas o pai é o da autoridade, o braço, o apoio. Eu sou de tomar conta. Descobri com a análise que sou mais uma figura paternal do que maternal, e que as pessoas me encaravam assim.

 

Nunca fala da relação com o seu pai.

Não tive uma boa relação com o meu pai. O Tony veio colmatar essa situação. Admiro o meu pai enquanto indivíduo que soube viver a vida. Queimou a vela dos dois lados ao mesmo tempo. Morreu há muitos anos. Cantava muito bem, era muito admirado pelos colegas, muito bem disposto, muito comunicativo. Provavelmente terei muito a ver com ele.

 

Viveu com ele ainda alguns anos?

Vivi, mas o meu pai sempre foi uma pessoa de não ficar. Eu também sou uma pessoa de não ficar, mas não me vou embora, propriamente. Ele ia. Viveu no Brasil, depois foi para África, naquela época em que os cantores iam fazer digressões. Depois já nem sei... Viveu no Canadá, viveu em todo o lado. A presença dele em casa é uma presença de um estranho que chega de vez em quando. Divertido e simpático, mas que quebra a rotina de três mulheres organizadas. Quase que posso dizer de quatro: a minha mãe, a minha avó (mãe do meu pai), a Lurdes, que era a nossa empregada, e eu.

 

A Lurdes, que é uma figura mítica na sua vida, continua a ser a sua empregada.

Continua a tomar conta de mim, da casa, da comida. Continua a chamar-me Teresinha. Conheço-a desde os meus cinco anos, levava-me à escola. Este núcleo era quebrado por aquele homem que aparecia lá em casa, que cantava na casa-de-banho. A imagem que tenho do meu pai é um bocadinho folclórica, no sentido de trazer alegria à casa. Mas inconsequente. Apesar de os dois serem cantores, a imagem que tenho é da minha mãe no palco, e não do meu pai.

 

Qual é a imagem mais recôndita que tem dessa vida de artistas?

É estar nos bastidores ao colo do pai da Ana Paula Reis, que era produtor no Brasil, enquanto a minha mãe cantava. A primeira imagem que tenho de um espectáculo são as luzes, as pessoas a bater palmas e a minha de costas a cantar.

 

Isso não é uma coisa muito simpática... Para já, a mãe não lhe dá atenção, está com outros, e está a admirá-la, a desejar tê-la para si, a ser como ela...

Ser como ela era uma coisa boa. Quando as pessoas me dizem: “Não tem medo do público, não tem medo das estreias?” O público para mim são pessoas que vão ver o nosso trabalho, são pessoas amigas. Há uma relação muito afectuosa entre mim e o público, sempre houve. A estreia é a primeira vez em que os nossos “amiguinhos” nos vêem. Não estava mais nervosa do que nos outros dias. Continuo a tomar um calmante antes de entrar, como faço nos directos.

 

A sério?

A sério. Porque tenho a maior das concentrações, mas falo muito depressa e tenho a noção de a minha cabeça andar sempre à frente do que eu digo!

 

O seu psicanalista é que dizia, quando começou a fazer televisão no «Chá das Cinco», que falava muito depressa.

Que falava tão depressa que criava ansiedade nas pessoas. Ele dizia que, apesar de o mar, (que são as emoções da minha vida), não ser um mar calmo, ser um mar agitado, que eu flutuava muito bem nesse mar.

 

Fez sempre psicanálise com ele?

Até ele morrer, sim. Ele morreu pouco depois de eu começar a fazer televisão, de um dia para o outro. Estive a chorar meses, como se fosse um pai que tivesse morrido. Depois andei anos para encontrar outro analista. Fui experimentando, uns por umas coisas, outros por outras... A gente tem que fazer um luto. Não adianta tentar substituir uma coisa por outra. Depois encontrei uma analista, com quem estou há muitos anos.

 

Como é que soube da morte dele?

Contou-me uma amiga minha, que é psicóloga. Fui jantar com ela e com o marido e a meio do jantar, com muita calma, explicou-me o que tinha acontecido. Foi arrasador. Fomos dali para a igreja. Estava lá um homem muito alto, que chorava muito, mais do que os outros, e quis saber quem era. Era aluno dele, professor na faculdade, e foi o meu psiquiatra seguinte.

 

 

É uma coisa extraordinária: escolher um psiquiatra porque é o homem que mais chora num funeral de outro psiquiatra.

Era o homem que estava a sentir mais aquela perda. Órfão como eu.

 

Não funcionou?

Fui à procura de um irmão... Para mim, era um irmão, porque ele era de alguma maneira o nosso pai.

 

As suas dores estão situadas onde, se se pode saber?

Nas frustrações, na relação ilusão/desilusão. Tenho uma relação um bocado infantil com a desilusão. Da mesma maneira que me entusiasmo com muita facilidade com tudo o que é novo, com tudo o que é começar. A ilusão também existe com força. As pessoas, à medida que vão crescendo, para não chamar envelhecendo, desiludem-se cada vez menos porque se iludem cada vez menos. Mas uma desilusão aos 20 anos e uma desilusão aos 50 não é bem a mesma coisa. É muito pior aos 50. Eu continuo a iludir-me, a ter os mesmos entusiasmos, a acreditar que as pessoas têm palavra. Há coisas que considero francamente imaturas, mas que vou manter no meu carácter. Porque perdê-las revela um conformismo com a vida.

 

A sua mãe era uma mulher muito bonita. Quando é que se libertou dessa coisa de ser a filha dela, de ter que corresponder àquilo que ela esperava de si, àquilo que os outros esperavam que fosse?

Acho que não me libertei nunca! Isto podia-me ter tornado amarga, frustada... Para uma miúda, é desagradável ouvir: “Ah, é sua filha?, veja bem...”. A minha própria mãe dizia uma coisa_ agora a gente já se ri disso –: “Oh, filha, deixa lá, não és bonita, mas és muito vistosa”. A tentar animar-me. Realmente a comparação era impossível. Saio ao meu pai.

 

Cresceu nisso.

Mas não é mau. O que é que acontece agora? Implorei à minha mãe para não ir à estreia. Claro que me disse que sim, que não ia, para eu estar tranquila, e depois foi na mesma, para um camarote, escondida. Podia ser uma entidade gigantesca, que nunca está satisfeita, mas não é. É uma pessoa estimulante.

 

Nunca viveram momentos tensos?

Tivemos aquela fase..., na adolescência. Mas nem era tanto ela, era mais a minha avó. A minha mãe sempre foi um ídolo. Elas davam-se bem porque se admiravam. A minha mãe fazia o papel da fraca, sendo uma mulher forte. Eram do mesmo signo, Virgem.

 

Ainda não tínhamos falado dos signos!

E a Lurdes também é Virgem. Portanto, estava rodeada de pessoas rigorosas, de pormenor... Eu sou Caranguejo_ o sentimento, a família...

 

Eu sou Balança. O que é que isso quer dizer?

A luta permanente pelo equilíbrio.

 

E é uma boa combinação, nós as duas?

O meu pai era Balança. Não tenho muitos amigos Balança. É muito difícil para um Balança compreender as pessoas que se entregam à emoção, demasiada emoção. Os Balanças são mais frios, o maior pânico que têm é desequilibrarem-se. Nestas coisas da astrologia há o ascendente. Eu não sou o caranguejo típico. O que é mais óbvio em mim é o ascendente, que é Leão, que é o quer brilhar, o querer mandar, o achar que não erra nunca. É aquele que empurra o Caranguejo. O Caranguejo é o signo do medo, da pessoa que tem a porta de casa fechada, que está com a família.

 

Estava bem com o seu pai quando ele morreu?

Tive sorte... É uma coisa estúpida de se dizer, mas o meu pai, uma das vezes em que estava em Portugal, tinha 50 anos e teve um AVC. Ficou em casa da minha avó, e houve uma aproximação. Não foi uma aproximação afectiva, mas aproximei-me dele um bocadinho. Depois ele voltou a ter um AVC e chegamos à conclusão de que a minha avó já não podia cuidar dele, e eu arranjei-lhe uma casa de repouso. O que é que acontece no dia em que ele vai para o lar? Eu é que o fui lá levar, a minha avó também quis ir, e atropelei a minha avó! Sei que dá vontade de rir, pode rir-se à vontade, toda a vida as pessoas se riram! Foi o pior dia da minha vida.

 

E há quantos anos foi isso?

Tinha 36 anos, estava no segundo ano do “Eterno Feminino”. Quem é que ficou responsável pelo meu pai no lar? Eu. Tinha que o ir visitar, mesmo não querendo....

Vai-se mesmo todos os dias, saber das roupas, das coisas, tomar conta de uma pessoa. Passado algum tempo, fui quatro dias para fora. Estava esgotada, ia começar uma nova série de programas. Quando cheguei ao aeroporto, estava o António [sócio] à minha espera... O meu pai tinha feito outro AVC e estava em coma, desde a véspera.

 

Como é que reage nesses momentos? Começa a chorar, fica muito nervosa?

Só choro nas coisas pequeninas. Sou uma pessoa que primeiro estanca o sangue, chama a ambulância, põe tudo em ordem. Só depois, quando toda a gente acha que já passou, é que choro.

 

Na tensão porta-se exemplarmente.

Não entro em pânico.

 

É por isso que é boa produtora?

Pois. E uma apresentadora também não deve entrar em pânico. O pânico não é uma coisa se treine, é a maneira de cada um reagir.

 

Nesses momentos tem que fazer qualquer coisa de que se possa orgulhar?

Não tem nada a ver: é só resolver a situação. Se for uma pessoa no meio da rua que caia, tenho a mesma atitude, e não quero saber da pessoa para nada. Mas chamo a ambulância. Se for preciso resolver, resolve-se. Deixe-me acabar a história do meu pai. No Hospital de S. José, tive a sorte de encontrar um médico que me disse: “Ele está em coma, não vai resistir. Neste estado, não ouve nada. Mas há pessoas que têm uma opinião diferente. Se quiser despedir-se, deixamo-la entrar”. E eu fui. Pus-lhe a mão no peito e falei um bocadinho com ele. Tive a nítida sensação de que falou comigo – transmissão de pensamento. Ficámos bem.

 

Teve a preocupação de lhe dizer coisas definitivas?

Sim. Que não tinha nenhuma relação pai-filha com ele, mas que achava piada ao percurso que tinha feito.

 

Era bom cantor?

Era excelente cantor.

 

Gostava mais de o ouvir a ele ou ao Tony? Essa questão punha-se-lhe?
Não. Eu adorava ouvir o Tony.

 

Sabe aquela coisa: qual deles escolho?

Escolho o Tony em tudo. Quando o Tony entra na vida da minha mãe, já eu era mais do que adulta, já não estava em casa.

 

Ah, achei que tinha sido um pai.

Mas foi, sem dúvida! Foi o único pai, na realidade. Mesmo aparecendo tão tarde. O Tony desmistificou uma série de coisas na minha vida: sobre mim, sobre o que era capaz de fazer. Ensinou-me imensas coisas sobre espectáculo. Ele ia cantar ao Coliseu e eu dizia-lhe: “O Tony não tem medo de estar aqui e saber que daqui a bocado vai estar a sala cheia?”; e ele disse: “Ó filha, o único medo que tenho é ter de cantar para uma sala vazia”. Cá me bateu, para não me esquecer. O único medo que se deve ter do público, que eu tenho do público, é que ele não esteja lá. O público tem de lá estar. Se faço um trabalho para dar, alguém tem que lá estar para receber. Foram um workshop, os dez anos com o Tony.

 

O Tony fê-la descobrir coisas sobre si. Quando é que percebeu que o seu talento era este?

Curiosamente, só comecei a apresentar programas no ano a seguir à morte do António. Tinha muito pena de ele não me ter visto. Ele sempre disse que eu tinha imenso jeito, que era óptima comunicadora, isto e aquilo, mas eu achava que eram elogios de carinho.

 

Era tímida antes de aparecer na televisão?

De não atender o telefone sequer! Mesmo muito tímida.

 

Havia alguma coisa em si de que gostasse na adolescência? O cabelo, por exemplo. Sempre a vi com um cabelo muito bem tratado. Parece ter uma especial vaidade no cabelo...

Se calhar, é a única coisa que tenho melhor do que a minha mãe. O cabelo da minha mãe é péssimo. A minha avó adorava o meu cabelo e a minha mãe nunca quis que o meu cabelo crescesse. Dava mais trabalho e não era muito saudável para as crianças. Quando eu tinha oito anos, a minha mãe foi cantar não sei para onde, ficou um ano fora, e a minha avó deixou-me crescer o cabelo.

 

Gosta de ir ao cabeleireiro? 

Tenho ideias boas no cabeleireiro. Não gosto que me mexam na cabeça, tem que ser uma pessoa com uma energia compatível com a minha. E normalmente dizem-me coisas importantes. Ou é porque estou descontraída, vou conversando e sou eu que digo coisas importantes, não sei. Mas tenho uma relação de afectividade com os cabeleireiros.

 

Por que é que se fechava tanto na adolescência?

Deve ter sido uma luta feroz... Medir-me com a mãe exemplar, ter a noção de que não podia fazer nada para chegar lá, e transformar isso numa coisa positiva: se não se consegue ser igual àquela mulher, como é que se consegue que aquela mulher nos admire? Eu era uma super aluna, de vintes na pauta, podia ter 17 e achava que era maravilhoso, mas se alguém tivesse 18, ia mortificada para casa. Eu tinha que ser a melhor em tudo. Tenho uma enorme necessidade de me esforçar.


E rapazes? Não lhes ligou até muito tarde.

Comecei a namorar tardíssimo. Aos 17,com o Raúl. O Rául era amigo da minha mãe. O Raúl chamava Lili à minha mãe, adorava-a e achava a minha mãe uma mulher ideal.

 

Não tinha ciúmes?

Com a minha mãe nunca tive essa situação. Achava que ela tinha pouco jeito para escolher homens, até chegar ao Tony. A minha mãe é de outra época. Cantava fado, como toda a gente sabe, mas não ia depois para as farras. Acabava a sua horinha de cantar e ia para casa, como se trabalhasse num escritório. Era uma senhora. E era rigorosíssima. Eu, como mulher, sempre fui mais azougada que a minha mãe, não tem comparação.

 

O ciúme é um sentimento estruturante, como toda a gente sabe, e em especial os que fazem análise. A competição é natural. Tem estas mulheres todas em casa e não fala de ciúme...

Não é um sentimento presente nas minhas relações. Nem de amizade, nem afectivas. Não sou ciumenta em nada. As pessoas pensam o pior, controlam os namorados, maridos, eu não se explicar...

 

Também se diz que as pessoas ciumentas são inseguras. Isso quer dizer o quê? Que é segura?

Há dois tipos de pessoas: aquelas que se focalizam na dor e vivem a dor, e aquelas que, mesmo quando estão na dor, já estão a tentar viver na alegria. Apesar de ser uma pessoa preocupada, e às vezes pré-ocupada, trabalho a minha segurança, não trabalho a minha insegurança. Sou pré-ocupada, imagino que pode acontecer o pior, ando à frente dos problemas e não atrás deles; mas para encontrar a solução. Tenho pautado a minha vida muito por isso.

 

O que é que faz?

Trabalho mais! Trabalho tanto, provavelmente, para combater a minha insegurança. O Monchique dizia que eu era uma coisa infernal. Sei o meu papel, o papel das outras, desde o primeiro dia! Ainda hoje, em palco, estou sempre a tomar conta de tudo.

 

Nunca teve vontade de ter filhos, a Teresa que toma conta de tudo?

Mesmo nunca. Talvez ainda venha a ter. Estou sempre à espera de um dia amanhecer com uma ideia nova. Pode ser que seja uma coisa que esteja adormecida, recalcada em mim. A partir de uma certa idade não se pode ter... Nesta altura, ainda posso.

 

Na nossa primeira conversa, confessou-me que de vez em quando lhe ocorria “E se não tiver filhos?”...

Acho que as pessoas querem ter os filhos para passarem pela maternidade, pelos bebés. Isso a mim não me fascina. Tenho pena de não ter passado por essa experiência, mas só por não ter passado pela experiência. As pessoas dizem tão bem que só pode ser uma coisa maravilhosa. E não a tive – é só por isso.

 

Então, foi uma opção.

Foi uma clara opção. Num período considerável da minha vida, o meu trabalho era a coisa mais interessante que tinha.

 

Houve uma altura em que se dizia que queria absolutamente ser a melhor produtora em Portugal, que queria ganhar muito dinheiro. Mas, mais do que a questão do dinheiro, queria ser a melhor.

Mas é o que quero em tudo. Não tenho a menor dúvida de que sou a melhor. Este momento que se vive em televisão é complicadíssimo. Há imensa falta de dinheiro, a concorrência é completamente desleal – uma empresa fundamentalmente portuguesa luta com empresas ditas portuguesas, mas que são multinacionais. Como a Endemol. Têm orçamentos muito mais caros, recebem muito mais dinheiro pelos programas que fazem, e têm óptimas condições. Nós, para conseguirmos fazer programas bons, para termos o mesmo nível, temos que ter uma margem de lucro muito mais pequena e trabalhar muitíssimo mais.

 

Controla tudo? Da a luz à realização.

Eu e a minha equipa. A minha preocupação continua a ser com o pormenor. Sabe aquela coisa de ir à casa-de-banho, ser o último, e não ir buscar o rolo de papel higiénico? Neste escritório é impossível, porque vou ver quem é que teve essa falta de respeito pelos outros! No teatro, antes de entrar, vejo se as minhas coisas estão todas dentro da mala, tomo conta do meu personagem e do personagem das outras, vejo se têm água, se as braguilhas estão apertadas, se estão vestidas, se o chapéu...

 

Também disse, na outra conversa, que é capaz de berrar com as pessoas que trabalham consigo, descompô-las de cima a baixo, ter um ataque de nervos, dizer tudo, tudo, tudo, e que depois passa.

Já disse, já passou. Agora poupo-me mais um bocado e é mais fácil trabalhar comigo. Tenho uma história engraçada: uma vez fiz um jantar em minha casa com uma quantidade de gente que trabalhava comigo há imenso tempo. Começámos a conversar e alguém disse: “Aquele dia em que me despediste...”. Chegámos à conclusão de que, as pessoas que estavam lá em casa, já as tinha despedido a todas! 

 

E readmite no dia seguinte? Como é que faz?

Não, no dia seguinte não. No programa seguinte, outra coisa qualquer. Digo que a televisão não é a Santa Casa da Misericórdia. Mas isso não quer dizer que as pessoas não tenham uma reabilitação e não voltem, e eu nem sequer me lembro. Tanto que aquelas pessoas todas, elas próprias, não se lembravam!

 

O que é que não perdoa?

Não perdoo a traição e não perdoo o roubo.

 

Dinheiro?

Sim. Da coisa mais pequenina às pessoas que roubam anos, e trabalham connosco – já me aconteceu. Isso é impossível perdoar. E não perdoo os abandonos de projectos quando as coisas não estão a correr bem. A pessoa trabalha numa empresa, ou tem um amigo, na altura em que é mais precisa, não está lá: é imperdoável. Os amigos, então, nunca mais voltam.

 

Adere às coisas com enorme intensidade. É voraz: como se tivesse um prato de comida, que é, naquele momento, o maior pitéu, e tem que o comer todo.

O único. Mas depois a satisfação não é grande. Como não fico parada no desgosto, também não fico parada na satisfação. Acho, até, que é uma incapacidade minha gozar mais as palmas, as coisas boas.

 

O dinheiro. Tinha uma recordação mítica de umas férias passadas no Brasil, com amigos, quando ainda eram todos “pobrezinhos”... Relativiza a importância do dinheiro.

O dinheiro serve para comprar coisas que nos fazem falta, para dar alguma tranquilidade, para dizer que não a coisas que não se quer fazer. Não sou nada consumista. Já passei por várias fases: a dos sapatos, da roupa, das jóias. Agora estou numa fase de coisa nenhuma. Continuo a adorar viajar, mas prefiro estar no teatro que estar a viajar. O dinheiro é para comprar as coisas necessárias. Não é para ter um carro fantástico... Por acaso, agora tenho um excelente carro, porque o Henrique achava que, com o que trabalho, com o que me esforço, devia ter um carro que fosse um sonho.

 

Autorizou-a a gastar o seu dinheiro!

Não! Obrigou-me, que é uma coisa mais extraordinária.

 

Autorizou sem culpa, era o que eu queria dizer.

Ele “obrigou-me” a comprar o carro que ele acha mais seguro. Vou ter com ele, está a chover muito, e ele está em casa satisfeito a pensar: “Ela vem naquele carro, seguríssimo, está muito melhor”. É como se ele me comprasse uma protecção.

 

Ele protege-a muito?

É extremamente protector. E ressente-se de eu dizer que não preciso de protecção nenhuma.

 

Não precisa mesmo?

Preciso.

 

Por que é que casou?

Porque gostava muito dele, achei que ele era muito interessante, não havia mais nenhum igual a ele e queria casar com ele. Foi uma coisa muito clara: no momento em que começámos a achar graça um ao outro, em que começámos a trabalhar directamente, quando assumimos que havia ali uma relação afectiva, achámos logo que íamos casar. Achámos que era uma coisa de família. Um dia perguntei à minha mãe: “Achas o Henrique parecido com o pai?”. E a minha mãe, que é muito cautelosa, disse-me: “Não te quis dizer nada, mas olha que o Henrique não é nada parecido com o teu pai do ponto de vista da personalidade, mas fisicamente é parecidíssimo”. Acho extraordinário!

 

Quando percebeu essa semelhança?

Não descobri logo. Estava casada há imenso tempo, estávamos os três a almoçar e houve ali uma visão: era o meu pai e a minha mãe. Não sei se é uma figura paternal, não estamos há tempo suficiente na vida um do outro para saber quem é que é quem.

 

São casados há quanto tempo?

Ano e meio. O primeiro ano é caótico em termos de sentimentos. Tem que se perceber o que é realmente importante para o outro. Nunca somos muito verdadeiros, damos uma imagem ideal de nós. Depois temos que nos agarrar aos pontos em comum e perceber o que é essencial. O Henrique, no princípio, achava que proteger era saber as coisas que me aconteciam no dia-a-dia. Mas preocupa-se imenso com outras coisas: se ponho protector solar, se dormi bem.

 

Cuida de si assim.

Descobriu várias falhas. Acha que exagero, que estico demais, que me ponho demasiado à prova. Há alturas que ele acha que tenho mesmo que descansar, ir de férias, essas coisas. Arranjou ali uns espaços de protecção.

 

Há quanto tempo é que não vivia com uma pessoa?

Há imenso tempo, já não sei.

 

Era preciso reaprender...

Mas não é a mesma coisa. Viver junto e ser casado não é a mesma coisa. Coisa que eu achava que era. Um marido é família. Uma pessoa com que se vive, não é. 

 

Sente que forma uma família com ele?

Sinto. Sinto que somos da mesma família, e não que formo uma família com ele. Não sei explicar a diferença.

 

Tenho uma pergunta delicada para lhe fazer. As mulheres que são muito bonitas, ou populares, ou poderosas questionam a razão pela qual os outros estão por perto. Interesse ou amor? Pensa nisso?

Tenho um longo treino. A interrogar. A não deixar que as pessoas se aproximassem. Acontece essencialmente quando uma pessoa se torna conhecida. Ser conhecida é um poder transitório, ter sucesso é um poder transitório – se é que há algum poder que não seja transitório. As pessoas aproximam-se por causa disso. Às vezes não se aproximam de nós, mas do nosso sucesso. Às vezes até por deslumbramento, não é para retirar benefício para si. Cria-se ali uma falsa relação, porque admiram uma parte de nós, e não a nossa globalidade. Nós também somos aquela parte, mas não somos só aquela parte.

 

Como é que se defendeu disso?

O que fiz foi estreitar as minhas relações ao máximo. Eu tenho amigos para as ocasiões difíceis. Nenhum dos meus amigos está na minha vida por interesse. Alguns ainda são do tempo em que íamos para casa de não sei quem para conseguirmos passar férias fora. Agora tenho os amigos do Henrique, que entraram na minha vida através dele. No caso do Henrique, que é uma pergunta normal, porque é muito mais novo do que eu e trabalhamos no mesmo meio, ele apaixonou-se por mim e não pela figura pública. Há até uma certa rejeição. E foi isso que vi nele

 

Então, tem uma vida boa?

Tenho, sou feliz.

 

É?

Sou, mas já sou feliz há muito tempo.

 

Volto ao princípio: desde que casou tem um ar mais feliz.

Mas não dou por isso, sabe... A perspectiva de ter uma pessoa – não é estar, é ter uma pessoa connosco – é boa. Acaba por ser um desafio, porque as relações, para serem duradouras, têm que ser trabalhadas todos os dias. É ele que é a casa. E depois, eu quero ser uma casa para ele, no sentido de pertencermos um ao outro. Será essa serenidade que as pessoas vêm. A inquietação profissional é a mesma. Estou a viver um momento em que sou feliz profissionalmente e afectivamente, e que nunca tive. Mas não sentia falta, não tinha essa consciência. É como lhe digo: posiciono-me muito mais na solução do que no problema. É o meu lema.

 

 

Publicado originalmente no Diário de Notícias em Julho de 2005

Henrique Granadeiro

07.06.13

Henrique Granadeiro, alentejano, nascido em 1943. Três filhos. Formado em Gestão de Empresas, em Évora. Chairman da PT.

Um homem que faz de um texto de Max Ehrmann, de 1922, um guia seguro. “Sê tu mesmo. Sobretudo, não finjas afeição, nem sejas cínico em relação ao amor”. Ou: “Se te comparares com outros, podes tornar-te vaidoso ou amargo, porque sempre encontrarás pessoas melhores e piores do que tu”.

Ele não se compara (senão com ele). E ele é ele mesmo – sem dissimulação. Ele é ele e as suas circunstâncias. E disto fez uma grande história. Nas próximas páginas, conta-a na primeira pessoa.

Não houve nada de que não se tivesse falado, excepto do processo PT/TVI. Granadeiro volta à comissão de inquérito parlamentar na próxima semana.

A entrevista aconteceu em dois momentos, no seu gabinete. Com um Batarda de um lado e um Ângelo de Sousa do outro.

 

Henrique Granadeiro

fotografia: Miguel Baltazar 

 

 

Comecemos por uma frase – “E porque não eu?” – que anotou nas margens de um livro de um autor que o entusiasma.

Clausewitz.

 

Gostaria de a colocar como interrogação de fundo de toda a sua vida. A partir de que momento é que percebeu que podia ser um dos escolhidos?

Muito cedo. O contexto em que nasci e fui criado era bastante limitado. Ou nos conformamos com o que temos ou procuramos o que não temos. Não tendo hipóteses, por razões familiares, de aceder aos estudos habituais, na cidade, fui para um seminário.

 

Antes do seminário, explique-me essa consciência de que era preciso lutar por uma coisa que não tinha.

A minha avó era uma pessoa bastante culta para os padrões da época, lia e escrevia. E tinha uma vida espiritual intensa, bem como a minha mãe. A minha mãe era mais dada a ler coisas de ficção, romances. A minha avó era mais ligada, até pela idade, a coisas religiosas, à vida de santos.

 

O normal era que pessoas daquele quadro social fossem analfabetos. Porque é que não era?

A família tinha alguns meios, o que, divididos por vários, são meios quase nenhuns. A minha avó era casada com um galego, um homem enérgico. Acho que o detonador desta minha consciência de que há outros mundos, e que esses mundos são acessíveis, pela via do conhecimento e do trabalho, se situa aí.

 

A quem pertenceu a decisão de ir para o seminário?

A uma tia minha que encontrou uma forma de me abrir a porta. Era um ensino quase gratuito.

 

Foi o único dos irmãos que foi?

Fomos dois, mas só eu prossegui.

 

Consegue perceber porquê? Entre os vários irmãos, há um que segue um percurso diferente. Que fibra é a sua para que o seu caminho se faça no sentido da ascensão social?

Há aquilo a que chama “a nossa fibra”; mas também há um conjunto de circunstâncias que podem ou não favorecer e potenciar o nosso esforço. A nossa vida depende dos bons e maus encontros que vamos tendo, e que não dependem de nós.

 

Alguma vez, dentro de si, sentiu culpabilidade em relação aos seus irmãos? Por ter uma vida melhor do que a deles.

Não sei se tenho uma vida melhor. Nunca tive qualquer sentimento de culpabilidade, pelo contrário. Sempre senti que estavam associados a mim.

 

Explique-me isso melhor.

Eles contribuíram para que eu pudesse seguir o meu caminho. Contribuíram com o seu trabalho e com o seu apoio. Também sou um produto deles, na medida em que tiveram de fazer algumas renúncias. Os meus irmãos trabalhavam todos. Somos uma família numerosa, éramos oito irmãos (infelizmente hoje somos só seis).  

 

É o mais novo?

Não. Tenho cinco irmãs mais velhas, depois um irmão e uma irmã mais nova. Sou o filho varão, o primogénito a seguir a cinco meninas. Tive seis mães e isso tornou-me um bocadinho mimado e às vezes caprichoso. Todas as minhas irmãs me envolveram de ternura, de facilidade.

 

Os seus pais apostaram em si como alguém que podia ter uma sorte diferente?

Não, isso é racionalizar excessivamente as coisas. Um caminho escolhe-se e depois anda-se nele. Não sou muito dado a dúvidas nem a angústias existenciais. Penso que eles também me viam nessa perspectiva: foi feita uma escolha, não havia nada a rectificar.

 

Materialmente é inegável que a sua vida é mais confortável do que a dos seus irmãos, e isso conta quando se vem de um quadro de pobreza.

Não conta tanto como isso. No fundo vivemos com relativamente pouco. Na minha vida há vários dinheiros. Procuro ser módico e austero. Foi o ambiente em que fui criado. As coisas todas tinham um valor, por isso sou bastante cuidadoso no respeito pelo valor das coisas. (Outro dia falávamos do respeito que temos pelo pão, como símbolo do esforço do Homem e da sua continuidade, porque era com o pão que mantínhamos a vida. O pão era um objecto sagrado). Tenho esse respeito estrutural pelas coisas. Não desperdiço.

 

Quando é que tem pela primeira vez consciência de si?

Por volta dos seis anos, talvez um pouco antes. Não posso referir-me ao momento de que fala, em que me distingo do mundo, em que me começo a relacionar com o exterior. É mais uma atmosfera, um conjunto de ambientes, de sabores. Lembro-me do ambiente dos pastores que passavam com os seus rebanhos perto da minha casa, da conversa com eles, dos cães, das lavouras, que eram feitas com juntas de bois. Lembro-me de um facto que me marcou muito, teria uns sete anos: a morte de um miúdo da minha escola. Morreu por envenenamento com cogumelos selvagens. Lembro-me do choque e do absurdo que é uma criança que brincava comigo estar de repente estendido. Vi-o morto e foi uma imagem que me acompanhou, que ainda hoje está recortada na minha memória.

 

Com uma sensação: “E se fosse eu”?

Não, isso não. Há coisas que acreditamos que nunca nos acontecem – as doenças. Os optimistas acham que essas coisas acontecem aos outros. Embora algumas vezes tenha sentido arrepios ao ver determinadas coisas – “Que diabo, podia ter sido comigo” – isso não é paralisante.

 

Pergunto sobre a sua infância, não só porque ela pode conter elementos essenciais para perceber quem é, mas também porque se passa num território de que não se desliga. O seu envolvimento com o Alentejo, quer nos montes que possui, quer na ligação à Fundação Eugénio de Almeida, são uma forma de retornar a esse lugar matricial. Porque é que volta para meter as mãos na terra, para recuperar e construir?

É verdade, tenho esse apelo e procuro pagar uma dívida. Sou dali, tenho de fazer alguma coisa para o progresso daqueles que são os meus companheiros de vida. Mas não vivo com a nostalgia de não estar lá. Vivo a minha vida de acordo com as perspectivas e oportunidades que se me vão oferecendo. Volto sempre porque aquilo faz parte da minha condição. Procuro ser um agente activo na valorização daquela terra e daquele povo.

 

Quando falei na culpabilidade em relação aos seus irmãos, por sobressair, por ter um percurso diferente, talvez devesse ter dito responsabilidade. E agora, quando fala de dívida em relação àquelas pessoas…

A responsabilidade é a dívida. Tenho-o com todos aqueles com quem partilhei segmentos da minha vida e que me ajudaram a construir a minha vida e a minha carreira.

 

É por modéstia que não diz: “Sobressaí porque sou especialmente bom e inteligente”?

Não é por falsa modéstia. É óbvio que no fundo dessa forma de pôr o problema há uma certa humildade, sabendo que o pivô dessa história sou eu.

 

Tem especial orgulho na construção dessa história, daquilo que foi capaz de fazer de si?

Não especialmente. Não acho nada de extraordinário. Se olhar para a história de Portugal, mesmo a recente, verifica que há milhares de pessoas que têm um percurso semelhante ao meu. Não me distingo com uma história singular. Faço parte de uma constelação de muitas pessoas que foram e são um dos factores de transformação do nosso país.

 

E o seu pai? Ainda não falou dele.

Era a autoridade, a referência inquestionável. Ouvir do meu pai ou ler na Bíblia era a mesma coisa. Respeitava o meu pai pela sua seriedade, pela enorme capacidade de trabalho. Trabalhou no campo e depois na extracção de mármores, que era um trabalho muito duro. Era o pilar da nossa estabilidade, assegurava os meios para podermos ter uma infância muito feliz, de grande harmonia, mas com limites.

 

Porque é que foi muito feliz, apesar da adversidade? O que é que conta mesmo e faz as pessoas felizes?

O quadro de adversidade definimo-lo hoje por referência a outros quadros que conhecemos e que não são tão adversos. Naquela altura era um quadro normal, era o nosso quadro e não vivíamos revoltados com ele.

 

A sua ascensão não radica num sentimento de revolta?

Radica num sentimento de ambição. Primeiro havia a consciência de que havia outros mundos, e que havia caminho para esses mundos – “E porque não eu?”. Nunca tive esse sentimento de revolta, [excepto] quando o Alentejo enfrentou a crise da luta pelas oito horas de trabalho (os horários eram de sol a sol, desde o romper da madrugada até ao “pôr do ar do dia”). Esse movimento dividiu o Alentejo. Não tive qualquer hesitação em ver de que lado é que estava: o da luta pelas oito horas.

 

Isso aconteceu em que ano?

Muito antes do 25 de Abril, eu estava talvez no 5º ano. Com a introdução de alguma industrialização, a base do trabalho passou a ser as oito horas, seis dias por semana. Muito mais tarde é que veio a semana-inglesa e não se trabalhava de tarde. A minha ligação à terra não vem de uma atitude romântica, de saudosismo; esse mundo era bastante duro. Nunca imaginaria a minha ligação a um sistema de exploração agrícola daquele tipo, de exploração do trabalho braçal, quase de bestialização do trabalho humano.

 

O seu pai trabalhava numa grande casa senhorial?

Não havia. Havia algumas lavouras grandes, mas sou de uma zona do Alentejo de minifúndio. Era uma sociedade de pobres e remediados.

 

Teve a tentação, já adulto, quando começou a comprar propriedades no Alentejo, de comprar o sítio onde viveu, o sítio onde o seu pai trabalhou?

O sítio onde nasci e vivi ainda é nosso. É uma pequena quinta de pouco mais de meio hectare. Não chega a ser uma quinta, é uma horta, em Santiago Rio de Moinhos. Ainda lá está um tio meu a tratar dela. Nunca senti essa vontade do regresso do triunfador. Se queria comprar uma herdade, então que fosse boa. Ser aqui ou ali, era-me indiferente. Nunca somos donos das coisas, isso aprende-se no convívio com a terra. Nós vamos e a terra fica cá. Não tenho uma visão dinástica das coisas, para mim e para os meus. Quero que cada um dos meus filhos encontre o seu caminho. A tranquilidade, vão ter de a conquistar, não vão herdá-la de mim.

 

Isso parece ser uma determinação muito forte.

É uma visão da vida. Tenho um certo desprendimento em relação às coisas materiais, sei que são precárias. A minha função é ajudar os meus filhos e proporcionar-lhes os meios para irem até onde forem capazes e até onde quiserem.

 

Em que momento da sua vida é que estava quando o seu pai faleceu?

Quando a minha mãe morreu, já era director-geral do Ministério da Administração Interna, em 1975. Quando o meu pai faleceu, era administrador de empresas. Já tinha sido embaixador de Portugal na OCDE, em Paris, onde ele esteve comigo algum tempo. Gostou imenso.

 

Eles assistiram a uma parte do seu sucesso.

Falar do meu sucesso é excessivo.

 

Aos 35 anos foi chefe da Casa Civil de Ramalho Eanes. Em 1979 vai para embaixador da OCDE, aos 30 e tal anos. Acha que não é sucesso?

É. Obviamente não foi por nenhuma razão senão a de me ter sido reconhecido mérito para fazer as coisas. Não tinha padrinhos nem nenhum partido. Seguramente que uma das alegrias que [os meus pais] levaram desta vida foi terem visto que o seu enorme esforço para que eu tivesse feito aquele caminho tinha tido sucesso. Ultrapassei aquilo que os meus pais esperavam para mim.

 

Voltemos à frase de Clausewits. Quando é que pela primeira vez escreveu na margem: “E porque não eu”? E como é que o livro vai parar à sua mão?

Fui um leitor precoce. Foi através de um advogado amigo, o Dr. Madureira, que tinha uma óptima biblioteca. Tudo o que eram autores franceses, russos, li. Literatura inglesa, ele praticamente não tinha, porque não falava inglês.

 

E isso com que idade?

Entre os 12 e os 18 anos. Estava no seminário, onde também havia muitos livros, mas destes, não. Havia um catálogo de livros proibidos ou desaconselhados, um Index. Livros como o “Crime e Castigo” ou “Os Irmãos Karamazov”. Nunca fui dado a respeitar essas baias.

 

Foram essas leituras paralelas ou o “Bairro Vermelho” de Évora que o desviaram do seminário e da vocação que lhe estava destinada, a de ser padre?

[O seminário] era um sistema de ensino que segui.

 

Nunca pensou seriamente ser padre?

Quando pus o problema, decidi que não era aquele o meu caminho. Já tinha 20 anos e era preciso tomar uma decisão. Via mais o seminário como sítio de estudo do que como vestíbulo de uma carreira eclesiástica.

 

Estes dois momentos de inquietação, o “Bairro Vermelho” – ou seja, o sexo – e as leituras não canónicas, foram o que o fez perceber que o seu caminho era outro?

Terá sido tudo, foi a convergência de muitos factores que pesaram.

 

Quando é que foi a primeira vez que se apaixonou?

Foi muito cedo, logo na escola primária [risos]. Pela Joaninha, com os seus caracóis loiros. Andava apaixonadíssimo.

 

Quando é que se apaixonou a sério? Porque uma paixão muda uma pessoa.

Não me parece que isso tenha acontecido comigo. Não acho que uma paixão tenha transformado a minha vida.

 

Apesar de ser racional e extraordinariamente metódico, não é aquilo a que chamaríamos um homem frio. É sanguíneo.

Acho que sou um animal de sangue quente, mas treinado para ter os comportamentos de um animal de sangue frio. Tenho tendência para reacções instintivas explosivas. Às vezes são essas reacções de instinto que estão certas, mas só se devem adoptar depois de se ter experimentado todas as outras.

 

Dê-me um exemplo. Isso apareceu durante a OPA?

Apareceu, mas não sou capaz de identificar um caso concreto. Todo o processo da OPA foi isso.

 

Porquê é que procura racionalizar o que começa por lhe aparecer de forma instintiva?

É esse o caminho que acho que está correcto. Mesmo com essas cautelas, algumas decisões não têm sido certas. Fazem-se bons e maus negócios, o que é preciso é que no balanço, os bons sejam francamente superiores.

 

Esta conversa ajuda-nos a perceber qual é o seu processo decisional. Como é que decide?

A decisão é um exercício de poder e esse exercício é solitário. Mas o processo de decisão deve ser um processo democrático. Deve ouvir-se não como um ritual a cumprir, como muitas vezes se faz, mas com o espírito aberto. Ainda que depois se possa decidir o contrário do que se ouviu.

 

Nesse momento em que decide, e em que pode decidir contra tudo aquilo que ouviu, segue o seu instinto?

Não, procuro racionalizar o meu instinto. Mas já tomei muitas decisões de instinto.

 

Estávamos em Évora. Ter encontrado Manuel Espírito Santo foi determinante na sua vida?

O primeiro Espírito Santo que encontrei foi o Zé Manel, que era meu colega, praticamente um irmão adoptivo.

 

O pai dele é que desempenhou um papel importante na sua vida.

Não desempenhou um papel importante na minha vida. Era uma referência importante na minha vida. Tinha acesso a ele através do filho, num quadro que não era muito vulgar (almoço, jantar, fins de tarde). Ele era um pedagogo, tinha muitos filhos. O primeiro empréstimo que contraí na minha vida foi concedido por ele.

 

Para quê? Em que altura?

Já andava no Instituto [de Estudos Superiores de Évora], foi na altura da constituição das cimenteiras, da Cinorte e da Cisul, que vinham quebrar o monopólio dos Cimentos de Leiria e do grupo Champalimaud. O primeiro empréstimo que fiz foi para subscrever o capital da Cinorte.

 

Como era o jovem Henrique que pede dinheiro emprestado para subscrever capital de uma cimenteira?

Era bastante atrevido.

 

Isso é muito diferente de ter uma atitude subserviente em relação ao poder.

Nunca tive subserviência em relação a ninguém. Talvez contribua para isso um certo DNA alentejano, orgulhoso. O alentejano não é servil.  

 

Como é que pediu o dinheiro?

Estávamos a jantar na Quinta do Perú, em Azeitão, num fim-de-semana. A conversa foi: “Tio Manel, agora vai haver uma oportunidade de subscrever capital da Cinorte, mas não tenho dinheiro. Queria que o seu banco me emprestasse”.

 

Não era o tio que lhe emprestava o dinheiro. Era o banco dele.

Isso era completamente inimaginável. Tinha noção de que não se pede dinheiro ao tio para fazer um negócio. “Como é que depois me pagas?”. Eu disse: “Preciso é que me dê a garantia, que é mais barato, para, no caso de me saírem as acções, as poder pagar. Nessa altura é que quero o empréstimo”. “Não me parece mal pensado”, disse-me ele. “Como sabes, sou o presidente do banco, mas o banco tem uma estrutura de decisão. Vais propor essa operação ao gerente do balcão de Évora”. Na segunda-feira de manhã, à abertura do banco, já lá estava plantado há meia hora! O gerente prodigalizou-se em sensatos conselhos sobre o perigo que era investir na bolsa sem ter capitais próprios. Levei uma boa manhã a tentar convencer o homem. Aprovaram a minha operação. Passou-se exactamente como previsto. (Lembro-me de o Tio Manel ter puxado de um caderninho quadriculado de capa preta e com um lápis ter tomado uma anotação numa das páginas. Adorava que tivesse sido encontrado esse caderno para saber o que é que tinha anotado).

 

Foi o primeiro dinheiro que ganhou na vida?

Não, já tinha ganho muito, porque nas férias trabalhava em tudo o que havia no campo. Tinha que contribuir. Eram três meses de férias no Verão, e isso coincidia com determinados ciclos da exploração agrícola. Mais tarde ganhei uma bolsa da Gulbenkian, logo no 6º ano. A partir daí fui sempre bolseiro da Gulbenkian. Foi com ela que me formei.

 

Foi desde o princípio o melhor aluno.

É verdade que fui, mas não tinha essa importância que se lhe atribui. Tinha de ter boas notas para não perder a bolsa. Perdia-se a bolsa desde que se tivesse uma média inferior a 14. Não havia que arriscar, era cair do trapézio. Mas estudar para 14 ou para 20 é a mesma coisa. Tive sempre boas notas.

 

Mais para o 20 ou mais para o 14?

Mais para o 20. “Porque não 20?” [risos] Já que tinha de ser.

E quando saí do seminário, comecei logo a dar explicações. Entretanto também havia um prémio, da Sociedade Central de Cervejas, o Prémio Nacional D. Dinis, que ganhava sistematicamente. Eram dez contos, o que dava para pagar a pensão Policarpo, onde vivia em Évora.

 

Estávamos no tio Manuel Espírito Santo. A partir dele, sonhou com um percurso na banca?

Nunca quis trabalhar no Banco Espírito Santo.

 

Porquê?

Era bastante amigo deles, e como sempre fui arisco e atrevido, se houvesse um conflito estragava uma boa amizade. Não tinha problemas de emprego, tinha uma boa nota, decidi que não ia. As pessoas às vezes fantasiam a minha relação com o Espírito Santo; nunca lá tive nenhum cargo. Enquanto exerci a minha actividade em regime liberal, como consultor, tive casos de viabilização de empresas que me foram entregues pelo banco, como foram entregues a outros. Mas ser tropa do banco, nunca fui. Foi uma opção, por um lado, e por outro lado, como estudante no seminário conheci o Dr. João Salgueiro, que era Secretário de Estado do Planeamento Económico do Prof. Marcelo Caetano.

 

Aponta-o amiúde como figura tutelar nessa fase da sua vida. Verdadeiramente, como é que o marcou?

Foi um homem importante na Ala Liberal, que acreditava que era possível resolver o problema político pela via da transformação (como aconteceria em Espanha). Acreditei nisso. Eu, que era de Gestão de Empresas, em vez de ir para empresas, como o Banco Espírito Santo, resolvi ir para o secretariado técnico da Presidência do Conselho, onde fazia os planos de fomento. Estávamos na revisão do 3º plano, estávamos a lançar os trabalhos preparatórios do 4º. Fiquei afecto aos trabalhos preparatórios do 4º Banco de Fomento. No secretariado, convivi com pessoas com quem mantive uma relação toda a vida: o Vítor Constâncio, a mulher dele, a Maria José, o Cravinho, o Guterres, o Abel Mateus (que depois encontrei na OPA), o Carlos Filipe (que infelizmente já faleceu), o Miguel Caetano, o Alberto Ramalheira, o Mário Bruxelas. Uma quantidade de pessoas que povoaram os governos.

 

Uma parte desses seguiu uma carreira política, assumindo posições de protagonismo. Chegou a pensar em ser político?

Eu sou político. Podemos ter uma visão da nossa vida em sociedade, da nossa vida política, e podemos fazê-lo no quadro de um partido ou fora dele. Tenho intervenção cívica, tomo posição sobre problemas do meu país.

 

Nessa altura, a intervenção cívica era quase indissociável da intervenção, não só política, mas partidária.

Mas eu estava na SEDES. Entrei nos anos 60.

 

Queria que me descrevesse melhor a sua relação com a política, para perceber o que é que ambicionava para si. Até onde é que queria intervir socialmente? Até onde é que queria para si um lugar de destaque?

Não procurava um lugar de destaque. Procurava um lugar. O destaque depois era comigo: ou o conseguia ou não.

 

Não acredito que um rapaz tão atrevido não procurasse para si um lugar de destaque. O lugar estava garantido com as boas notas e o mérito. Tratava-se de perceber até onde é que podia ir.

Tive duas partes na minha vida: uma parte de serviço público, no secretariado técnico, no 4º Banco de Fomento e no lançamento das comissões de coordenação regional. Depois houve uma remodelação governamental e a Ala Liberal foi sacrificada para os chamados “ultras” da época. O João Salgueiro saiu do Governo e acompanhei-o para um organismo para onde ele foi, a Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (onde fui director de planeamento e projectos). Quando o 25 de Abril aconteceu, estava nesse cargo. Entretanto abriu uma vaga de director-geral no Ministério da Administração Interna, concorri, ganhei e fui empossado. No contexto do 25 de Novembro conheci o general Ramalho Eanes, e fui convidado para dirigir a campanha eleitoral dele.

 

Surpreendeu-o o convite?

Éramos jovens, atrevidos e achávamos que tínhamos capacidade para mudar o mundo. Não me surpreendeu e achei que era capaz. Lembro-me de termos conseguido um prédio, ao lado do Galeto, que não tinha nada. O general Garcia dos Santos, na altura coronel, tinha uma ligação a uma empresa de móveis e trouxemos cadeiras, telefones, e montámos a campanha do ponto de vista logístico e da comunicação.

 

Fala disso com o brilho de quem conta uma aventura.

Sem dúvida que aquilo tinha um lado de irrealismo e idealismo.

 

Nunca nada o acanhou, o intimidou, no sentido de não se sentir capaz?

Às vezes. Quando fui convidado para presidente da PT, no decurso de uma OPA, era uma situação completamente inédita. Até quem me convidou pôs questões. Achei que não estava preparado, mas alguém tinha de ser.

 

“Porque não eu?”

Porque não eu. E depois as coisas não correram mal.

 

É curioso que agora fale da OPA. Parece que quando é melhor é em situações de guerra, de adversidade.

A coisa mais difícil que há na gestão, seja no sector público seja no privado, é gerir a rotina. Estabelecer rotinas que funcionem e assegurar que elas não se pervertem. A vida das empresas é fundamentalmente rotina. E depois, ter uma visão estratégica do caminho a traçar. Essas questões são extremamente estimulantes e exigentes.

 

Mas os grandes momentos da sua vida, aqueles para que olhamos no CV, são momentos em que há um salto, não são momentos em que se gere uma rotina.

Fui cavaleiro. Num campo de obstáculos, o cavalo pontua se não derruba o obstáculo. Se o derruba, é penalizado. Aquilo a que damos maior importância é ao salto, porque é aí que se faz a pontuação, mas para se chegar ao obstáculo é preciso fazer-se um caminho. O caminho para chegar àquilo que é mais atractivo é muito desvalorizado. Ninguém consegue saltar um obstáculo se não tiver feito um bom caminho para lá chegar. Se deixarmos o cavalo descompensar, se ele não tiver o passo certo, se não medir bem a distância para depois lhe dar o impulso total, ele não salta. Esta imagem é um bocado equestre…

 

É o alentejano a falar.

Não, é a vida a falar. Não vivemos permanentemente em saltos, não somos gafanhotos. De vez em quando há um episódio que é necessário ultrapassar, que dá mais nas vistas. E é aí que as coisas se decidem: ou se salta ou não se salta. Se não tenho saltado a OPA, o que é que se seguiria na minha vida? Era a vida de um looser.

 

Quando é que perdeu, na vida?

Os ganhos e perdas têm essencialmente a ver com a minha vida pessoal, espiritual e familiar. Os grandes acontecimentos da minha vida são os nascimentos dos meus filhos, as grandes perdas são as daqueles que amava. Não quer dizer que aquilo que se consegue nos planos social e profissional não seja importante, mas mantenhamos a hierarquia das coisas: o nuclear é o que se passa na vida pessoal, familiar e espiritual.

 

Sempre soube isso? Não houve um momento em que se deslumbrou com os sucessos que estava a conseguir?

Não. Já lhe confessei que era atrevido, arisco, mas nunca confessei que era deslumbrado. Como sou alentejano, sou por natureza um céptico.

 

Não conheço essa característica nos alentejanos. Porquê?

Relativizam muito as coisas. Já cometi muitos pecados, [o deslumbramento] não foi um deles.

 

Seria normal que, sobretudo numa primeira fase, existisse. Pelo menos contentamento.

Contentamento existe. Entre perder e ganhar, não há meio-termo. O sentimento de perda é bastante pesado e esmagador. O sentimento de ganho é exaltante. Mas nunca me deixei deslumbrar. Quando era chefe da Casa Civil, jantei com a Rainha de Inglaterra, com o Jimmy Carter, o Helmut Schmidt, o Giscard d'Estaing. Nunca deixei de ser quem era. E provavelmente nunca disse a ninguém que isso tinha acontecido. Também esteve cá o presidente Tito, da Jugoslávia, num jantar bastante restrito em São Julião da Barra. Convivi muito com o presidente do Governo espanhol, Adolfo Suárez, naquela fase de transição democrática em Espanha, e com o vice-presidente do Governo da altura, o general Gutiérrez Mellado, que resistiu de pé, como o Suárez, ao golpe de Tejero Molina nas cortes.

 

Voltando às pessoas com quem se dava, antes disso: Constâncio e Guterres politicamente assumiram posições de destaque (Secretário-Geral do partido, Primeiro-Ministro). Há um aspecto na política pelo qual não passou: ir a votos. Foi intimidatória a ideia de que podia ir a votos e não ser bem sucedido?

Não, isso não é verdade. Fui muitas vezes a votos, fiz parte de várias listas do PPD pelo círculo de Évora. Ia sempre em último lugar porque não queria ir para deputado e abandonar a minha vida, a minha carreira profissional. Fazia isso como um serviço cívico e político. Ainda estive filiado no PPD algum tempo. É conhecido que a família liberal na qual me sinto incluído, a maior parte, está no PSD. Há uns também no PS, até por uma questão de percurso pessoal. Mas não sou socialista.

 

Não entendi porque é que numa altura de definição do seu percurso foi mais para as empresas e para o ganhar dinheiro, e menos para a política.

Foi uma opção. Estive num dos mais altos lugares da vida pública. A partir daí, ou ficava a marcar passo ou ia retomar aquilo para que me tinha preparado. Mais de metade da minha vida profissional foi passada em empresas.

 

O que é que o faz pender para um lado e não para o outro? Não respondeu.

Nem eu sei. Não tinha grande jeito para a vida partidária.

 

Tem um enorme jeito para negociar e para gerir poder – isso é fundamental na vida partidária.

Sim, mas não é tudo. A rotina na vida política não é atraente para a minha maneira de ser.

 

É um homem de poder. Só não o quis exercer por essa via.

Há outras formas de servir o país, de ter actividade política e de assumir responsabilidades políticas.

 

Houve realmente uma altura em que sonhou ser Presidente da República?

Não, nunca pensei nisso.

 

Foi uma coisa que correu, não há muito tempo. Que o seu desejo íntimo era ser Presidente da República.

Não sabia que isso tinha corrido. Claro que a maior honra que pode ser concedida a um português é ser escolhido pelos seus cidadãos para ser Presidente da República. Ainda sou do tempo em que os símbolos da pátria eram o hino, a bandeira e o Presidente da República, pelo qual tenho um enorme respeito, seja ele quem for.

 

Nem quando foi chefe da Casa Civil pensou nisso? Ao rapaz atrevido, que era, nunca lhe ocorreu, olhando para o general Ramalho Eanes: “Um dia posso estar naquele lugar”?

No domínio das probabilidades talvez, mas nunca fiz nada por isso. Nunca foi um objectivo na minha vida. Sempre que havia uma remodelação governamental, em determinado período, e começava o tiro aos patos, lá vinha eu.

 

Porque é que, quando foi convidado para ministro, recusou?

Fui convidado para aí umas 11 vezes. [risos] Mas assim com a espada ao peito foi uma vez pelo Dr. Sá Carneiro e pelo Prof. Freitas do Amaral, (na Rua D. João V, em casa da Snu, onde já vivia o Dr. Sá Carneiro). Foi no governo da Aliança Democrática e o Dr. Sá Carneiro queria que fosse ministro da Administração Interna.

 

Como é que resistiu ao Dr. Sá Carneiro? Consta que era a mais persuasiva das criaturas. E era uma referência para os jovens PPD da altura.

Mas nessa altura eu não era PPD. Entrei no congresso do Porto, imediatamente a seguir à morte dele, por convite do Dr. Balsemão.

 

Porque é que não quis ser ministro?

Não estava preparado para essa vida partidária e para a forma como as coisas se passavam. A verdadeira razão foi porque já havia uma política de grande confronto entre o Dr. Sá Carneiro e o general Ramalho Eanes, e tinha acabado de sair da Casa Civil…

 

Voilà, agora estamos a falar a sério.

… e estava na OCDE há poucos meses. Achava que devia ao cargo que tinha exercido junto do General Ramalho Eanes o respeito de guardar um período de nojo. Conhecia bem o que se passava em Belém, e entrar num Governo que estaria em conflito directo com o general colocava-me em situações difíceis de arbitrar, de resolver dentro da minha cabeça. Disse isso ao Dr. Sá Carneiro. E ele disse: “Então, entre mim e o general Ramalho Eanes, escolhe o general Ramalho Eanes?”, ao que respondi: “Não, escolho o respeito pelo meu trabalho”. Tivemos um período de relação tensa por causa disso. Depois houve uma visita dele a Paris, na preparação da adesão de Portugal à Comunidade Europeia, jantei com ele e com a Snu, e pudemos ter uma conversa franca. A partir daí restabelecemos uma relação que era bastante próxima, cordial, porque ele também fazia parte da Ala Liberal.

 

João Salgueiro também. E Balsemão, com quem vem a trabalhar mais tarde.

Exacto, o Miller Guerra, o Mota Amaral, o Magalhães Mota, o Pinto Leite, pessoas com quem convivi bastante, embora fosse um puto ao pé deles. Conhecia bem o Sá Carneiro dessa fase, mas não era uma amizade entre iguais.

 

Foi uma fase da sua vida em que se deu com toda a gente. Quando é que aprendeu mais?

Foi no tempo em que trabalhei com o Dr. João Salgueiro, o meu grande mestre. Nessa fase tive uma grande decepção: fui admitido para fazer um MBA na Sloan School of Management e não consegui bolsa. No ano a seguir também admitido no Warthon College e também não arranjei dinheiro. Fiquei com essa mágoa de não fazer uma coisa que estava dentro da minha carreira. Se calhar depois tinha tido outro percurso de vida, melhor ou pior, não se sabe. Mas na altura foi uma perda. Em compensação tive a oportunidade de trabalhar todo esse tempo com o Dr. João Salgueiro, o que foi mais valioso do que o MBA. Foi ele que me ensinou a trabalhar, a posicionar-me e me ensinou o método para resolver problemas.

 

Quando é que volta pela primeira vez ao Alentejo, mas já com um estatuo de vencedor?

Não olhe para mim como aqueles heróis dos filmes americanos. Olhe para mim mais como o Forrest Gump.

 

Run Forrest, run!”. A correr para a frente.

Mas é um cidadão comum. Como eu. Antes era o tipo que matava os índios, que fazia coisas gloriosas, que levantava a bandeira em Okinawa. Forrest Gump começa a chamar a atenção para a heroicidade que há entre a common people. Quando diz “o vencedor”…

 

Volta para tomar conta da Fundação Eugénio de Almeida, que era pertença do Conde de Vilalva, é o obreiro da recuperação daquele espaço. Atendendo às suas raízes, não é senão o regresso de um vencedor.

Provavelmente. Mas assumir a responsabilidade da Fundação era muito arriscado. A Fundação tinha sido ocupada, tudo estava completamente destruído. Problemas era o que lá não faltava. E o que lá faltava era dinheiro.

 

Em que ano foi isso?

Foi quando vim da OCDE. Vinha de um lugar confortável, onde podia ter ficado mais dois ou três anos, porque é muito bom viver em Paris, com um bom ordenado, chauffer, mordomo. Mas era demasiado contemplativo, não se coadunava com a minha vontade de fazer e transformar. É justo dizer, e foi público, que depois tive um conflito complicado com a viúva do fundador [da Fundação], mas nos primeiros passos tive uma preciosa ajuda por parte dela.

 

Insisto: desafiam-no para regressar ao Alentejo, mas num estatuto diferente. É a primeira confirmação, naquele meio, da sua ascensão social.

Não vejo as coisas assim. Se calhar a leitura correcta é essa.

 

Para os outros, para aqueles que olhavam para si como um déclassé, essa era a leitura.

Não me importo nada com os olhos deles. Aceitei aquilo como uma forma de mostrar que, até do ponto de vista político, havia alternativas no Alentejo. O caminho não era o do antigo regime, nem o das UCP [Unidades Colectivas de Produção]; era o de uma agricultura empresarial. Foi esse o desafio que procurei obter na Fundação, felizmente com sucesso.

 

Reabilitou as marcas, os vinhos.

Já não havia, recriei-os.

 

É uma coisa de que se orgulha especialmente?

Naturalmente que me revejo nisso. Foi uma coisa que saiu bem. [risos]

 

O seu pai nunca foi comunista?

Não. Nunca me falou sequer nisso. Aliás, eu também não fui.

 

Seria normal os da sua classe serem comunistas.

Não era tão normal. Não é a zona típica do proletário agrícola.

 

Mas o vendaval comunista varreu tudo.

Nasci numa família de raiz católica em que o ateísmo não jogava. Mas tem graça que me diga isso… Quando saí da Presidência da República, para ir para a OCDE, fui despedir-me dos líderes políticos com quem trabalhava e convivia semanalmente. O Dr. Mário Soares, o Dr. Sá Carneiro, o Prof. Freitas do Amaral e o Dr. Álvaro Cunhal. Este recebeu-me ali na Rua António Serpa, (sempre acompanhado, nunca tive uma conversa com o Dr. Cunhal a sós), e disse: “O senhor sabe que não sou hipócrita”. (Tínhamos grandes divergências, sobretudo no que dizia respeito à reforma agrária.) “É com um certo alívio que o vemos ir embora. Você criava-nos bastantes dificuldades, e às posições do partido. De qualquer modo quero reconhecer que estava sempre por dentro dos dossiers, quero render-lhe essa homenagem”. E ainda disse: “Nunca compreendi como é que você, tendo a origem que tem, não é um dos nossos”.

 

Boa pergunta. Que é que respondeu?

“Porque considero que o vosso caminho não é o caminho da libertação dos meus, e que há caminho melhor”. Depois disso tive sempre uma boa relação com ele.

 

Gostou de ouvir esse cumprimento?

Gostei, claro que sim.

 

Estou a tentar saber até onde lhe era agradável, e dependia, de certa maneira, dessas confirmações do exterior. Das pessoas que lhe diziam que era bom, superiormente inteligente.

Isso nunca ninguém me disse.

 

Nunca precisou disso?

Não.

 

Isto tudo é para receber a confirmação de quem?

De mim próprio. Preciso de ter uma noção de que consegui e cumpri. Perante o espelho não há nada que nos engane. O que dizem de nós é importante porque cria uma reputação que nos permite fazer mais coisas. Mas o importante é o juízo que fazemos de nós próprios. Os outros podem enganar-se e também nos podem enganar.

 

É um solitário?

Sou. E preciso do meu território.

 

Porque é que só casou depois dos 40?

Sinceramente não sei a resposta. Deixei-me conduzir por situações confortáveis. Encarava casar e hoje até tenho pena de ter casado tão tarde, gostava que os meus filhos fossem maiores. Casei com 40 anos, no dia a seguir fazia 41.

 

Esteve uns anos a investir em si e nas suas formas de realização e afirmação profissional e social. Mas não no pessoal, no íntimo.

É verdade. Talvez não tenha feito a melhor equação. Podia ter-me casado com uma mulher muito rica ou influente. Podia ter procurado um casamento conveniente que potenciasse aquilo que estava a fazer.

 

Toda a sua aposta era no seu mérito. Se fizesse um casamento por conveniência, ficaria sempre na dúvida se tinha lá chegado com ajuda ou não.

À boleia. É verdade, não tinha pensado nisso dessa forma. Mas hoje ter namoradas e casar mais tarde ou não casar é o pão-nosso de cada dia. Tive um comportamento avant la lettre.

 

Pausa

 

Olhando para trás, só tenho falado de mim. A minha filha Catarina escreveu-me uma coisa engraçada no último Dia do Pai: “Os pequenos têm orgulho em falar de si próprios, os grandes têm orgulho de não falar de si”. Estive aqui a falar de mim.

 

Tem receio de parecer pequeno?

Tenho receio de parecer ridículo. Tudo isto pode parecer uma coisa açucarada.

 

Continuámos daí a uma semana.

 

Como é que ganhou a OPA? Além da estratégia, do empenhamento da equipa, daquilo que já se sabe.

Inicialmente fui convidado para presidente do Conselho de Administração (CA), e depois de feitos alguns contactos com accionistas e outras pessoas, entendi que devia acumular com o cargo de presidente da Comissão Executiva (CE). Tratava-se de uma necessidade de concentrar o poder de decisão. As minhas condições de partida eram bastante desfavoráveis. Havia uma certa euforia com o lançamento de uma OPA da Sonaecom sobre a PT. Era a história romântica do David contra Golias, do poderoso Golias que atacava a PT.

 

Nunca viu a Sonae como o temível Golias?

Não. Analisei friamente a oferta da Sonae e verifiquei que ela não valorizava suficientemente os activos que estavam sob a minha gestão.

 

Foi a partir da análise que concluiu que ele não era o temível Golias?

Foi a partir dessa análise que considerei que aquela OPA não era imbatível. Se a OPA tivesse um valor muito favorável, que premiasse os nossos accionistas, tínhamos obrigação fiduciária de apoiar a OPA. Não foi o caso. A oferta inicial era baixa, e apesar de ter sido apresentada como definitiva, foi revista por mais meio euro, o que descredibilizou a rigidez com que tinha sido apresentado o valor da PT.

 

O momento em que o Eng. Belmiro disse que só se houvesse petróleo ou diamantes no solo da PT é que aumentaria o valor da acção: foi o turning point?

Não. Penso que isso não foi, do ponto de vista da estratégia da Sonaecom, uma posição acertada. Não se pode dizer isso e depois aumentar a oferta. Houve uma inconsistência que não esperava. O Eng. Belmiro é um homem bastante cortante e definitivo.

 

Estou a tentar reconstituir os seus sentimentos e a maneira como foi percebendo a OPA. Essa afirmação, num homem que é habitualmente cortante, deve ter tido significado para si e para a sua equipa. Uma injecção de confiança?

Os investidores são bastante frios. Estava convencido de que tínhamos grandes probabilidades de ganhar a OPA, porque faço as contas do lado do investidor. Fizemos muito road show, visitámos os nossos investidores. Os investidores não são pessoas cerimoniosas nas perguntas que fazem e na informação que exigem. Foi esse longo processo que nos levou à convicção de que poderíamos sair daquela sessão com uma vitória.

 

Antes de ir para a assembleia-geral, teve dúvidas quanto ao desfecho, ou ia convencido de que ia sair ganhador?

Não estava absolutamente seguro, mas estava convencido de que iríamos sair de lá vitoriosos. A OPA não é um acto, é um processo, e este foi bastante prolongado, o que nos foi francamente favorável. O regulador perdeu-se em análises um pouco esotéricas, morosas, confusas, o que nos deu tempo para trabalhar com os nossos investidores e mostrar a valia do nosso plano; e também para mostrar as fragilidades da solução, no caso de a Sonae ser a vencedora. Mas, como disse, o ponto de partida foi desfavorável.

 

Em que é que isso era visível?

Há declarações de ministros que vêem naquela OPA uma manifestação de vitalidade da economia, como se o facto de uma coisa mudar de mãos representasse só por si um valor acrescentado. Um economista, que ensina numa prestigiada universidade de Nova Iorque, escreveu um artigo a demonstrar que havia valor acrescentado no facto de a OPA de uma empresa mudar de mãos. Um conjunto de opinion leaders e opinion makers, o ambiente da imprensa, eram favoráveis à OPA. O ofertante era uma entidade credível e estava apoiado num grupo financeiro muito sólido. Do lado de cá estavam um CA e um CE, aos quais presidi, e havia uma certa hesitação. O Sérgio Figueiredo, que é um óptimo economista, excelente analista e grande jornalista, chegou a escrever sobre o que é que eu, que praticamente não sabia ler nem escrever, estava a fazer neste jogo. A tal dúvida que muitas vezes tive de encarar sobre a minha capacidade de enfrentar determinadas situações, também assaltou outros. O Sérgio Figueiredo resumiu o que muitos pensavam: “Porque é que aquele alien vem fazer uma operação desta dimensão?”. No fundo, eu próprio me punha a pergunta.

 

E a resposta, qual foi?

A resposta foi uma vitória no mercado. Aqui presto homenagem ao Eng. Belmiro de Azevedo e ao Eng. Paulo de Azevedo. O Eng. Belmiro de Azevedo, como é normal, não gosta de perder. Mas é um homem de mercado, e percebeu que tínhamos ganho no mercado, não na secretaria.

 

Que relação tinha com Belmiro?

Nunca tive qualquer intimidade com o Eng. Belmiro de Azevedo. Tive variadíssimas reuniões com ele para o tentar conquistar como cliente, sobretudo na área de impressão do Público, quando era administrador de uma empresa do grupo Balsemão. Não consegui. É um homem meticuloso na precisão do investimento, e quis ver a máquina a funcionar mais do que uma vez; o que significa que íamos para Cabo Ruivo, à meia-noite, hora a que a máquina arrancava. E depois íamos comer qualquer coisa às tabernas de Moscavide.

 

E com Paulo Azevedo?

Era amigo dele, tenho por ele muita consideração. Podia ser um menino mimado a gozar os rendimentos do pai e é um trabalhador infatigável. Passámos por um confronto tão forte e tão pesado – 16 mil milhões de euros é muita massa – e isso não afectou as nossas relações. Quero dizer outra coisa: embora o Público fosse o jornal do grupo [Sonae], não tenho queixas. A verdade é que teve um bom desempenho e foi isento na forma como cobriu a OPA. Embora eu compreenda algumas tomadas de posição mais de natureza editorial.

 

Disse que não foi uma vitória de secretaria. Mas ficou na opinião pública a sensação de que tinha sido, também, por via da intervenção do Governo que a OPA se tinha ganho.

Isso não resiste à mais leve análise do ponto de vista económico e financeiro. O Governo tinha uma golden share, e quando assumi as minhas funções fui chamado ao senhor primeiro-ministro, que me recebeu juntamente com o senhor ministro das Obras Públicas e Comunicações (que geria as relações da golden share). Queria assegurar, desde ali, que se os accionistas aceitassem a oferta, o Governo não usaria a golden share para inviabilizar aquilo que considerava ser uma solução de mercado. O Governo respeitaria a decisão da assembleia-geral, e não a golden share. Na antevéspera da OPA foi-me repetida esta posição por parte do Governo.

É a primeira vez que o estou a dizer.

 

António Lobo Xavier, que estava do outro lado, numa entrevista ao Negócios, disse que percebeu que tinham perdido “quando comecei a ver certas alianças e ambiguidades, sobretudo de empresas relacionadas com o poder público”.

Estas acções [do Estado] não têm chocalho, como as outras, os votos são anónimos. Dizer que houve combinações de bastidores, é tentar reescrever a história. Como é que pode haver combinações de bastidores numa empresa em que o capital está disperso como nesta? 33% da PT transacciona na Bolsa de Lisboa, mas cerca de 33% é transaccionado em bolsas europeias, das quais 14% no Reino Unido e 27% em Nova Iorque. Quase 50 por cento dos nossos accionistas são estáveis, de longo prazo. Como é que pode tanta gente ser objecto de manobras de bastidores? Só na mentalidade portuguesa, que está sempre a ver mosquitos na outra banda. É impossível fazer jogos de bastidores a 100 mil accionistas! Esta visão conspiratória que [Lobo Xavier] apresenta não lhe fica bem.

 

Quem foram os seus grandes aliados?

Foram os accionistas que assumiram publicamente o apoio ao nosso projecto. A maior parte dos accionistas de Nova Iorque ou da Europa são anónimos, temos conhecimento deles quando se registam para a assembleia-geral. O que fazemos são os road shows, realizados por bancos, em que são convidados os investidores que nos ouvem. Fizemo-los sobre o nosso projecto, mas a Sonaecom também os fez. E todos falávamos com os mesmos. A decisão foi dos accionistas. Como sempre acontece nestas coisas, sabíamos muito bem o que é que eles diziam nos shows deles, e eles sabiam muito bem o que é que nós dizíamos nos nossos.

 

Foi durante o processo da OPA que inaugurou a sua adega, no seu monte no Alentejo. Foi uma operação de charme? Portugal inteiro, o poder inteiro estava lá.

Eram os meus amigos mais próximos, incluindo aqueles com quem tinha cruzado a minha vida durante 12 anos na comunicação social. É um projecto que tem muito da minha alma. Está ali investido muito dinheiro, algum do qual não tinha. Chamei àquele dia o dia de Acção de Graças, dentro do espírito do Thanks Giving Day: a celebração de um dia feliz. O Eng. Álvaro Barreto, grande amigo, perguntou ao Eng. Belmiro de Azevedo se não ia ao meu dia de Acção de Graças; e ele respondeu-lhe com todo o humor: que talvez fosse se fosse um dia de acções de graça! [risos]

 

Muito se decide numa festa, à mesa.

Não estou convencido de que ali se tivesse resolvido alguma coisa. Não é com uma boa operação de charme que se ganha um OPA numa empresa com 100 mil accionistas.

 

E depois dessa enorme vitória, passou para a retaguarda.

Só passei a chairman no momento em que saldei os compromissos com os meus accionistas. Entre eles, e aquele de que mais me honro, está o ter feito a separação das redes. Foi indiscutivelmente o maior acto liberalizador do sector das telecomunicações em Portugal. Esse mérito pertence-me, e à minha equipa.

 

Quando passou a chairman tinha 64 anos. Não se perguntou: “E agora o que é que vou fazer”? É um homem que precisa de grandes desafios.

Estou aqui como se estivesse para a eternidade, sabendo que a eternidade pode acabar amanhã. Não estou especialmente grudado a nenhuma cadeira, mas quando estou, estou para ficar. A PT está envolvida num grande desafio que me entusiasma. Não ser eu a principal locomotiva, não significa que viaje no vagão de trás. Estou na locomotiva e partilho com o presidente da CE esse desafio.

 

Não tem o poder todo, o maior poder, e é um homem de poder. Isso custa-lhe?

Não me custa nada, estou perfeitamente identificado com esta equipa de gestão de que faço parte. A gestão operacional está muito bem entregue e com muito bons resultados. Não há qualquer lamento ou saudade da minha parte.

 

Para onde é que quer ir? Ainda é um homem novo.

Quero cumprir este mandato e estes objectivos que são importantes. Daqui a 10 anos? Não me atormenta, hei-de fazer qualquer coisa. A pessoa envelhece no dia em que não tiver objectivos. O envelhecimento não é uma questão cronológica e de bilhete de identidade, é uma questão de atitude. Não estou cansado, não estou à procura da reforma. Nem sequer estou abrangido pelo sistema de reformas da PT (terei uma reforma relativamente modesta).

 

Os vinhos são uma reforma? É um caminho?

São um projecto que tem de ser analisado por si próprio e que tem de se auto-sustentar. Um projecto só se sustenta se for gerador de cash flow para poder crescer, para se modernizar e para remunerar os capitais que lá estão investidos.

 

A política activa é uma possibilidade?

Gostava de terminar a minha carreira ligado a um projecto de serviço público. Por exemplo, dar um novo período da minha vida à Fundação Eugénio de Almeida.

 

Como é o canto alentejano de que me falou?

“Sou devedor à terra e a terra me está devendo, a terra paga-me em vida e eu pago à terra morrendo”.

 

Nunca se vai abaixo?

Sou um optimista. Uma pessoa que faz o meu percurso, tem que ter uma grande reserva de energia, uma enorme capacidade de lutar contra a corrente e de desafiar a ordem estabelecida. Não sou lamuriento, não sou pessimista profissional, não tenho a convicção de que o meu país é assim e não tem outra hipótese. Pode ser muito melhor.

 

Como Kennedy: “Não perguntes o que é que o país pode fazer por ti, pergunta o que podes fazer pelo país”?

Essa é a minha atitude. O futuro do país não é construído exclusivamente pelos políticos, deve ser construído pelo conjunto dos cidadãos, cada um perseguindo os seus interesses. Aqui se dividem as grandes famílias; uma família política acha que o bem deve ser dividido às fatias iguais e distribuídas por todos; há outra família, à qual pertenço, mais liberal, que considera que o bem comum não é o bem abstracto que se pode dividir às fatias iguais, mas é uma realidade dinâmica que é o somatório do que cada um de nós pode fazer pela sua vida. Melhorando a nossa vida e a daqueles com quem partilhamos actividades e bens, melhora-se o país.

 

Para terminar, uma palavra que o defina. Resistente, lutador, trabalhador?

Isso são coisas obrigatórias. Defino-me por tudo isso e por um amor à vida, ao meu país, aos meus concidadãos. Gosto dos portugueses, do Alentejo, do meu próximo. E confesso que vivi, como diria o Neruda.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010

 

 

Gérard Castello Lopes

06.06.13

«Nasci Salieri. Eu não tenho dúvida nenhuma em ser Salieri. A admiração jubilatória que eu tenho pelos Mozarts que conheço...». Os Mozarts são Soudek, Lartigue, Eugene Smith, e, claro, Henri Cartier Bresson. Nasceu Salieri, então, em Vichy em 1925, o ano em que foi comercializada a Leica, o objecto fotográfico de culto que regista os seus instantes decisivos.

Gérard Castello Lopes tinha uma mãe francesa e um pai severo. Era um protegé que cirandava pelos melhores ambientes. Derramava charme, dinheiro e champanhe, que parece sempre uma boa combinação, até se dar conta da insipidez da combinação. A roçar os trinta, descobriu-se perdido, a explodir de raiva e desamor. Submergiu na água do mar com um prazer longínquo, amniótico, e foi para fixar esse universo aquoso que começou a fotografar.

Nos longínquos anos 50, retratou o país. Um Portugal entristecido, monocolor, castrado. As imagens mais conhecidas datam, justamente, desse período. Segue-se um longo, longo interregno, durante o qual fez as vezes de homem de negócios. Retomou a relação com a máquina quando um tal de Toé o convenceu a expor num país que parecia tê-lo proscrito. Pela primeira vez, tem um público. Inicia o seu segundo percurso fotográfico.

A exposição «Oui/Non», no Centro Cultural de Belém, mostra cerca de 150 fotografias, em grande parte inéditas. Gérard diz que o ponto de partida foi um arquivo de 32 mil provas de contacto que sintetizam meio século de actividade.

O nosso primeiro encontro aconteceu durante a montagem da exposição. A conversa que vão poder seguir aconteceu semanas mais tarde, num domingo com vista para o Guincho.  

 

 

Comecemos pelo pedregulho, parece-lhe bem?

Ó diabo!

 

Como é que lhe chama?

A pedra.

 

Numa entrevista dada há cerca de 10 anos dizia que se nada mais valesse a pena, aquela imagem já o justificaria. Como é que encontrou a pedra?

Há datas que se fixam: 28 de Agosto de 1987. Nesse dia a luz correspondia ao que mais gostava quando comecei o meu primeiro percurso fotográfico. Era clara, relativamente intensa, mas suficientemente difusa para que todos os detalhes fossem aparentes. Fomos todos em passeio em direcção à Praia do Abano, estávamos à borda de uma falésia e vi a pedra. A minha mulher [Danièle] não gosta nada que me chegue à beira das falésias, mas tive a noção de que estava ali uma fotografia como, suponho, nunca tirei.

 

Então anteviu?

Sim. Foquei a pedra e tirei uma fotografia. Uma fotografia. E soube, desde o princípio – coisa que acontece raramente –, que tinha feito uma fotografia importante. Mandei revelar o rolo e fazer uma ampliação em 10/15. Disse ao António Osório Sena da Silva, também conhecido por Toé: «Se isto não for uma boa fotografia, acho que vou desistir de fotografar». Ele olhou e disse: «Podes continuar». Depois cheguei a Paris e mostrei a fotografia à Danièle. Ela foi para a biblioteca e veio de lá com um livro do Magritte, onde me mostrou uma reprodução de uma pintura que parecia a minha pedra.

 

Já tinha feito a associação?

Não.

 

Conhecia o quadro do Magritte?

Essa pedra chama-se «Le Château des Pyrénées», é muito parecida com aquela que fotografei, mas não está na horizontal, está na vertical. E no topo da pedra estão uma espécie de edificações. O que é que acontece? Quando a Danièle me mostra o livro tive uma sensação muito agradável e uma sensação muito desagradável. A sensação muito desagradável foi: «Vão dizer que andei à procura de qualquer coisa e que isto é uma influência, quase um plágio».

 

Foi a sua insegurança a falar.

Exactamente. O lado agradável foi: «Les beaux esprits se rencontre!». Isto é, se ele andou atrás das pedras e eu andei atrás das pedras, houve pelo menos um cruzamento entre o meu caminho fotográfico e o caminho de pintor Magritte. Isso era uma coisa que me dava uma certa alegria. Não é impossível que eu tivesse visto «Le Château des Pyrénées». O que posso garantir é que em nenhum momento, quando fotografei a pedra, tive a mais pequena recordação do quadro do Magritte.

 

Porque é que disse: «Ó diabo!» quando sugeri que começássemos pela pedra?

É um bocado complicado explicar... Costumava dizer que, se depois do meu desaparecimento subsistisse qualquer coisa, seria provavelmente a pedra. E como sabe, tenho a ideia de que não fui eu que fotografei a pedra, a pedra é que se deixou fotografar. Para mim foi um verdadeiro milagre! As condições de luz eram perfeitas, as condições do mar eram perfeitas, tive a sorte de lá estar…

 

Acredita em Deus?

Não! Era o que faltava!

 

Interrompi-o porque, face à sua descrição, a expressão que me ocorreu foi «conjugação divina»...

Bom, o facto de não acreditar em Deus... Eu não posso acreditar em Deus. Fui educado catolicamente, deixei de acreditar aos 16 anos pelas más razões e aos 29, parece-me, pelas boas. Mas o facto de não acreditar em Deus não significa que não acredite que há qualquer coisa de transcendental no Homem. Para mim, todas as religiões – as politeístas e as monoteístas – são transferências de uma visão transcendental do próprio Homem sobre uma outra entidade, que é divina e omnisciente. Se tivesse que escolher uma forma de viver – que me é vedada pelo simples facto de ser ocidental – aquilo que mais me apeteceria ser era budista, que é uma religião sem Deus.

 

Como lhe disse no CCB, aquando da montagem da exposição, a pedra convoca em mim o mito de Sisífo. Apesar do esforço continuado, Sísifo não consegue colocar a pedra que carrega às costas no cimo do monte. Mas não desiste de fazer nova tentativa e reinicia sempre o processo. O mito traduz a noção de limitação do humano. Mas na sua fotografia, a pedra convoca também um estado de suspensão: sendo de uma enorme bruteza, tem, ao mesmo tempo, a leveza de uma nuvem.

Não é com certeza por acaso que numa pintura do Magritte – que se tornou, como não podia deixar de ser, num dos meus pintores favoritos – há uma taça de champanhe que está cheia de uma nuvem. Encher uma coisa material com uma coisa que é praticamente imaterial. E nisso havia uma inteligência diabólica do Magritte, quando ele procurava conceptualmente maneiras de redefinir a realidade, não como ela é vista, mas como é sonhada. Porque é que me admirei quando quis começar pela pedra? Bom, pode ser que a pedra, ou mais duas ou três ou quatro, ou, no máximo, uma dezena de fotografias me possam sobreviver. Mas até há relativamente pouco tempo, a pedra era o fim. Admirei-me porque quis começar pelo fim.

 

As suas imagens mais conhecidas são as do Portugal dos anos 50. Quando se pensa no Gérard fotógrafo pensa-se no cronista em imagens do Portugal lamuriento e salazarento. É curioso que escolha para si, como essência, uma imagem que não é dessa fase. E que representa, não o fim, mas um novo começo.

Exacto. Os meus dois percursos fotográficos são completamente distintos. São enformados por intenções quase opostas. Embora haja uma continuidade formal qualquer – às vezes a Danièle põe duas fotografias minhas, uma ao lado da outra, e percebe-se que há uns arquétipos que revelam a constância na forma como olho.

 

As nuvens reflectidas nos charcos, por exemplo…

É um dos arquétipos. Não gosto de dizer isto, mas, para falar depressa e barato, o meu primeiro percurso foi da ordem da denúncia de uma injustiça profunda dentro da qual vivemos: essa opressão, esse silêncio, essa clandestinidade, essa miséria, essa censura. Do teatro, da poesia, da música, dos romances, do cinema, da fotografia, de tudo. Era de tal maneira insuportável para quem, como eu, foi educado dentro de um critério de liberdade_ até porque a minha mãe era francesa... Portanto, esse percurso foi animado por uma ideia moral, denunciadora de qualquer coisa que era invivível. Mas durante esse percurso apercebi-me variadíssimas vezes que, por muito boas que sejam as nossas intenções, há pessoas que não gostam de ser fotografadas.

 

Essa questão transformou-se no problema central do primeiro percurso.

Nunca consegui resolver cabalmente esse problema. Nunca. Há maneiras de o fazer que não sou capaz de utilizar e entre essas maneiras há umas pessoas que vão pelas ruas saltitando, olhando para cima, olhando para o lado, andando para trás, andando para a frente, como se fossem um pouco tontinhas. Não vou dizer nomes, claro. Depois, na altura em que comecei a fotografar, tinha 1,90m. É muito difícil passar despercebido quando se tem 1,90m. Fui muitas vezes agredido e insultado e vilipendiado, preso até. Isto transformou-se numa espécie de obsessão que nunca fui capaz de resolver.

 

Esses pruridos não decorriam, também, da sua infindável culpa? Culpa de ser bem nascido, rico, e de devassar com a sua presença fotográfica e com o seu 1,90m a vida terrível daqueles desprotegidos.

Sim, senhora! Acho que tem visos de razão no que está a dizer. Lembro-me de uma homenagem que se fez na Provence ao meu grande amigo António Tabucchi em que as coisas começaram a embrenhar-se umas nas outras e às tantas o António levantou as mãos e disse: «Eu sinto-me culpado de existir». Fiquei desfeito. Fui ter com ele, abracei-o, estava à beira de chorar. Ele definiu aquilo que, dentro de uma coisa chamada Cristianismo, é o Pecado Original. O simples facto de existir e de não existir como um asceta, um eremita, de aproveitar de uma maneira mais ou menos legítima dos bens, das posses, das riquezas, da cultura, do saber ler, do saber escrever, de poder criar seja o que for, é já o fundamento de uma culpa qualquer.

 

Aos 29 anos escreveu numa biografia sumária que tinha um curso em Economia, lido 2 ou 3 mil livros, viajado pelo mundo inteiro, talentos vários. E que tudo isso não servia para nada. Não conseguia potenciar o que lhe fora oferecido de mão beijada. Claro que ter tido uma educação esmerada não anulou o facto de se sentir indesejado e desamado... Ou seja, aos 29 anos estava completamente deprimido.

Completamente perdido. O texto chama-se «A ponte do entusiasmo». Era por oposição a um verso do Mário de Sá-Carneiro que dizia: «Eu não sou eu nem sou o outro/ Sou qualquer coisa de intermédio/ Pilar da ponte do tédio/ que vai de mim para o outro». Eu não podia perceber que alguém fosse pilar da ponte do tédio porque aquilo que me tinha animado toda a vida tinha sido o entusiasmo.

 

Mas tinha sentido entusiasmo até aí?

Tinha! Sempre!

 

O que é que fez esse cair em si?

Esse cair em mim começou muito, muito, muito antes, na minha infância, que não foi uma infância feliz. Nunca me senti amado, nunca me senti protegido. Tornei-me rapidamente uma criança problema. E a melhor maneira que os meus pais encontraram foi meter-me num internato. Hesitaram muito entre uma escola jesuíta ou o Colégio Militar. Escolheram o Colégio Militar, não sei porquê.

 

Foi o seu pai que escolheu o Colégio Militar? O seu pai era severo, não era?

Era de uma severidade muito grande. Eu não gosto muito de falar nisto… Não sou contra a instrução militar. Sou contra a introdução dessa disciplina militar como uma segunda natureza. A gente fica completamente tocada, apodrecida. Tudo o que há de criador, tudo o que há de sensível fica completamente esboroado, desaparece pela boçalidade, de cuja única saída, em tempo de guerra, é uma forma particular de heroísmo. E depois, a minha mãe dizia-me que «une belle mort peut justifier tout une vie»! Levei anos a acreditar nisto romanticamente. E é completamente falso. É completamente falso! O homem que em Cuba foi fuzilado, com uma coragem indómita, que comandou o seu próprio pelotão de execução e que passou a vida a castrar jovens estudantes universitários; como é possível que esta bela morte justifique os horrores que praticou durante a sua vida?!

 

Só a vida justifica a vida?

Só a vida justifica a vida! Ponto final. Dentro deste regime Salazareno (como lhe chamo), uma sobrecarga de disciplina militar em que nem sequer se pode gerir o próprio tempo, se se tem frio não se pode pôr capotes… Essa disciplina institucional, a todos os níveis…

 

Impõe uma formatação.

É uma formatação do Ser. Sempre vivi dentro desse quadro num estado de revolta constante. Tenho muitas coisas para dizer que até hoje foram caladas sobre a minha passagem pelo Colégio Militar. Talvez um dia me decida a escrevê-las para serem lidas depois de eu desaparecer. Mas sou obrigado também a dizer que em 1992, quando o meu curso fez 50 anos e se reuniu, fomos recebidos na biblioteca – coisa que era completamente proibida quando eu era aluno no Colégio Militar.

 

Como se não fossem dignos?

Exactamente. A biblioteca era reservada aos oficiais. Era o seu salão. E fui acolhido por um brigadeiro, que era uma pessoa extraordinariamente bem-educada, culta, e senti-me na obrigação de lhe dizer que tinha passado os piores anos da minha vida naquela casa. Ele olhou para mim e disse: «Eu sei muito bem a que é que se está a referir. Mas, repare, estão aqui os directores todos do Colégio Militar e, infelizmente, durante os anos em que o senhor cá esteve, não está a imagem de nenhum. Foram todos directores interinos». Entrei no Colégio Militar em 1936, saí no dia 4 de Julho em 42. Possuído de uma revolta contra tudo e contra todos – isto é importante que diga, porque essa revolta levou-me a muitas coisas. Levou-me a uma necessidade de amor e de protecção.

 

E aí entram «as gajas» e o desbaratino no tempo de faculdade.

Pois. E entra o meu primeiro casamento.

 

Que idade tinha?

Casei-me com 23 anos. E a minha pobre mulher, primeira mulher, foi vítima dessa revolta e imperiosa necessidade de ser amado. À medida que os anos iam correndo, que as crianças iam crescendo, um dia, em 1955, tinha eu 29 anos, apercebi-me que a minha vida não tinha sentido nenhum.

 

Nem pelas crianças?

Nada. As crianças eram acidentes. O meu casamento era um acidente. A minha revolta era uma coisa constante. Eu achava que tinha sempre razão. Sentia uma perseguição que me acometia sempre. Não conseguia gerir o meu tempo. Levantava-me a desoras, a minha vida não tinha qualquer sentido. Isto passou-se estava eu sozinho em Paris e, num acto… A minha ideia era mesmo suprimir-me.

 

Um eufemismo...

E num determinado instante, agarrei numa revista e li um artigo sobre o budismo. A minha vida levou outro rumo. Percebi as razões profundas da minha revolta. A partir daí a minha tendência foi deixar de ter razão, dar razão ao outro. Quando estava no metro ou na rua olhar para as pessoas nos olhos. O que, às vezes, conforme o sexo das pessoas, deu circunstâncias curiosas.

 

Não ter medo de olhar os outros.

E assim foi. Comecei a sentir que era uma chave virgem e que cada intentação que fazia era um processo. Para que essa chave, um dia, me pudesse abrir a porta da felicidade. Apercebi-me, mais tarde, que essa chave não tem fim, e que a felicidade é o itinerário que se percorre até lá chegar.

 

Lembrei-me novamente da sua pedra. Então, tinha um peso incomportável. Todo o percurso foi feito no sentido de encontrar a leveza. Mas, para isso, é preciso ter um fito.

Óbvio. Compreendo perfeitamente o mito de Sisífo e é muito possível que a pedra seja um dos símbolos dessa incapacidade de levar a rocha até ao cume da montanha.

 

Tinha pensado já no mito de Sisífo a propósito da sua pedra?

Da pedra nunca. Acho que escrevi uma frase: a parecença é como o mito de Sisífo, é a rocha que não se consegue levar; e, às vezes, é a glória do fotógrafo. As boas fotografias, pelo menos no meu caso, são raras.

 

O que é uma boa fotografia? Como é que determina isso?

Uma boa fotografia é a que desencadeia em mim, para além da correcção geométrico-formal da composição, uma emoção qualquer.

 

Porque é que são tão raras? Não parece ser eminentemente um racionalista, parece ser permeável à comoção.

Eu sou um racionalista. Não posso ser outra coisa! Que a mais importante das civilizações europeias tenha morto 6 milhões de Judeus, 1 milhão e meio de comunistas e acho que 500 mil homossexuais… Um país que produziu um homem como Beethoven, ou Hegel, ou Karl Marx perpetrou os assassinatos maciços. Se pode haver um humanismo neste mundo, ele tem que ser necessária e constantemente posto em dúvida. O essencial de uma visão humanista não é dizer que somos todos iguais. É, para começar, dizer que somos todos diferentes. E não transformar essa diferença numa forma qualquer de superioridade, que pode levar a uma guerra, a uma matança, a um assassinato. Se há um autor para quem isto é completamente verdade, sempre, é António Tabucchi. Se o Carlos Afonso Dias me ensinou, quando eu tinha 30 anos, a dúvida no campo científico, o António Tabucchi ensinou-me a dúvida no dia-a-dia. Mas essa dúvida também não pode empanar excessivamente o entusiasmo e a curiosidade.

 

O Gérard e o Tabucchi eram amigos próximos do Alexandre O’Neil e não se davam especialmente. Competiam pela amizade do Alexandre?

Acho que sim. O Alexandre sempre foi um homem declaradamente de esquerda e o Tabucchi também. Ele hoje considera-se anarquista. Eu também acho que sou um anarquista moderado. Um anarquista porque toda a autoridade, todo o poder que se queira exercer sobre mim desencadeia logo uma desconfiança fundamental. E sou moderado porque não os mato, não ponho bombas. Mas enfim. Toda a literatura do Tabucchi, que comecei a ler muito tardiamente – há para aí uma vintena de anos –, ensinou-me isto que lhe estou a dizer: não pode haver humanismo no pleno sentido da palavra se não pusermos constantemente em dúvida as nossas convicções. Razão tinha o Descartes e razão não tem o Damásio.

 

E a emoção? Parece que vai fugindo dela. Sempre.

Não.

 

Ao mesmo tempo que alimenta o desejo de ser amado, encontra conforto no racionalismo que lhe foi inculcado. Imagino que reserve para o Colégio Militar uma raiva suplementar porque, apesar de toda a recusa, inculcaram-lhe valores aos quais não consegue fugir...

É verdade. Durante muitos anos, quando mandava fazer fatos no alfaiate, queria que fossem encostados ao corpo. Ainda hoje, se ponho roupa que me fica um pouco grande, sinto-me mal. Há outra coisa que devo ao Colégio Militar, que é o desporto que lá fiz.

 

Nunca lhe chamaram Gerardo?

Foi sempre Gérard. Normalmente as pessoas chamam-me Gérard (sem acento no «erre»). Não tenho nada contra isso. Lamento que me tenham dado esse nome.

 

Pensei que no Colégio Militar, entre rapazes, pudessem chamar-lhe Gerardo, à portuguesa, ou mesmo Castello-Lopes – é uma coisa muito masculina chamar pelo apelido.

Não. Desculpe. Desculpe. No Colégio Militar a gente não tinha nome. Tinha número. Só se era conhecido pelo número, como os prisioneiros.

 

Quando se dirigia a um colega seu de 12 anos chamava-lhe como?

Ó 24! Não havia personalidade. Ó 303! Ó 1-4-8! Depende. Havia uma melodia na forma de pronunciar os números.

 

O seu pai chamava-lhe Gérard à portuguesa ou à francesa?

À portuguesa, sempre.

 

Mas a sua mãe à francesa, naturalmente.

Mas a minha mãe abandonou-me quando eu tinha 5 anos. Divorciou-se do meu pai quando eu tinha 5 anos. Depois o meu pai casou-se uma outra vez com uma senhora húngara, que é mãe do meu irmão. Quer ele, quer eu, tivemos infâncias dolorosas, e isso desencadeou entre nós uma cumplicidade…

 

Até aos seis anos falava um português com sotaque francês, não era?

É verdade.

 

E é verdade que o perdeu instantaneamente depois de os seus pais se separarem?

Não. Os meus pais já estavam separados, creio que o meu pai já estava casado outra vez, e lembro-me perfeitamente do sítio em Caxias em que pela primeira vez fui capaz de rolar um «erre». Até esse momento só era capaz de pronunciar o «erre» à francesa. Foi uma grande vitória.

 

Não sei bem porquê, lembrei-me agora das suas imagens subaquáticas, que são muitos belas. Foi assim que a fotografia surgiu na sua vida: para fixar os momentos de pesca submarina

Sim. Sempre tive uma enorme atracção pelo mar. Lembro-me do primeiro dia em que consegui nadar. Tinha 7 anos e estava com o meu pai em Santo Amaro de Oeiras. Donde é que me vem todo este amor pelo mar? A primeira ideia vem da caça submarina, que foi uma coisa que fiz e de que tenho vergonha. Andar a matar peixes é bastante desagradável. Mas, numa determinada altura, fui a Cannes tirar um curso de escafandria autónoma. Quando se entra no mar e se mergulha com as barbatanas, é deslumbrante. Tenho a sensação de que a água do mar é aquilo que mais se assemelha ao líquido amniótico.

 

É uma espécie de reconhecimento inconsciente?

È. Por outro lado, o facto de respirar dentro de água, coisa que não acontece quando se está no ventre da mãe, torna-se ameaçador. O que é que estou aqui a fazer? Como é que posso respirar dentro de água? Uma altura, ainda mergulhava sem fato, lembro-me de estar a 10 ou 12 metros e de ver um terreno rochoso e uma falésia que ia até 20 ou 30 de profundidade. Aconteceu-me uma coisa inefável: esvaziei os pulmões e caí para o fundo. Não sei porquê. Ficou-me isto quase como um ícone da alegria que se pode ter debaixo de água.

 

A alegria na queda.

Agora, o que é que se passa debaixo de água? Dentro de água, quando se está convenientemente lastrado, não há gravidade: não se tem peso. Há qualquer coisa de completamente surrealista no mergulho em escafandro. Sou só eu, e eu sou responsável por mim. Embora uma das regras fundamentais do mergulho, sobretudo do contemporâneo, seja não mergulhar sozinho.

 

Ensinou os seus filhos a nadar? Ou a ver, ou a fotografar, ou a amar, ou a viver?

É um bocadinho complicado. Durante o crescimento da nossa filha, que tem 32 anos, estava bastante afastado da fotografia; só fazia fotos das férias, dos aniversários… O nosso filho, que tem 22, nasce na altura em que recomeço a fotografar. E qual não é o meu espanto – e o da Danièle – quando o nosso filho se revela um fotógrafo muito competente! Se eu fosse capaz de fotografar, com a idade dele, aquilo que ele é capaz de fotografar, eu era de certeza o maior fotógrafo do mundo!

 

Ensinou-o a olhar?

A olhar não se ensina. Ensinam-se as fases técnicas. O que é uma objectiva, qual é a distância focal de uma objectiva…

 

Mas isso pode aprender-se nos livros. O Gérard foi um autodidacta. Tinha umas noções que aprendeu sozinho, tinha o seu mestre Cartier-Bresson e tinha aquilo que queria fotografar. O que distingue um fotógrafo de outro é o seu universo, é aquilo que é para si quadrável. E o que é quadrável tem que ver forçosamente com o modo de ser. Educar um filho deixa implícita uma marca.

A olhar? Insisto pesadamente. Pode-se ensinar tudo o que é da ordem do técnico. Não se pode ensinar a olhar. E qualquer tentativa no sentido de ensinar a olhar é do foro ditatorial. O que não quer dizer que se não seja influenciado pelo olhar de outrem. Como eu fui influenciado por algumas regras fundamentais do Henri Cartier-Bresson _ tentei fazer fotografias um pouco à la manière de Cartier-Bresson. O olhar é qualquer coisa de muito misterioso.

 

Depois de um longo interregno, recomeça a fotografar em 82. Foi determinante o seu encontro com o Toé, que tem idade para ser seu filho, mas que o fez confiar em si mesmo.

Sempre levou duas horas! E como já disse, resisti, resisti, resisti e acabei por ceder. Primeiro para o calar, porque já não o podia ouvir, e em segundo lugar por aquilo que me restava de uma certa vaidade. Como é que hei-de dizer? A gente tira fotografias para as mostrar. A verdade é esta. Há qualquer coisa de pretensioso em imaginar que aquilo que registamos possa interessar outra pessoa. O risco essencial do fotógrafo, do escritor, do poeta, do músico, do dramaturgo, do romancista é: faz uma coisa, deita-a cá para fora e arrisca-se a levar uma reguada nos dedos.

 

Era sobretudo por medo que não havia mostrado antes?

Não. Era porque ninguém me tinha convidado para mostrar fosse o que fosse.

 

A sensação de ser expatriado, de não lhe darem atenção, de não estarem interessados em si, magoou-o muito.

Magoou. E quando o Toé vai a minha casa a Paris e me propõe fazer uma exposição, acabo por aceitar sem ter bem, bem consciência do que poderiam ser as consequências dessa anuência. Bom, a primeira coisa que sou obrigado a dizer é que se hoje sou um fotógrafo público devo-o ao Toé. Foi ele que pela primeira vez me pôs na posição de ter fotografias minhas a serem vistas por pessoas que não conhecia. Ou seja, um público. Isto desencadeia uma diferença categorial muito importante.

 

Até então, a sua actividade profissional era outra: geria o negócio da família. Pensava em si como um homem de negócios? Não pensava nunca em si como um fotógrafo?

Não, ao princípio não.

 

E agora?

Quando me perguntam qual é a minha profissão, digo: «Fotógrafo».

 

Sente um enorme prazer em poder dizer isso?

Ah, sim. Mesmo não me achando um grande fotógrafo – porque não me acho um grande fotógrafo –, é um grande prazer.

 

Isso não é por imodéstia. É mesmo o que considera.

É. Um dia o Fernando Lopes apresentou-me ao senhor Guterrez, com quem almoçava no Gambrinus: «Está aqui o meu amigo Gérard Castello-Lopes! Fotógrafo!». Foi um baile! Já havia pessoas que olhavam para mim não como homem do cinema mas como fotógrafo! Isso foi uma bênção, foi um linimento cá para dentro!

 

Na adolescência, entre outras coisas, quis ser realizador de cinema.

Antes de tudo, quis ser actor. O cinema era uma música para os olhos. Tinha a ver com o rito do fogo. Nunca lhe aconteceu olhar para o fogo durante muito tempo? O meu sogro dizia que aquilo que o salvou a ele e à mulher durante a guerra foi a possibilidade de olhar para o fogo. Há uma liberdade no fogo que é muito reconfortante. Entre o fogo e o cinema, não sei bem o que prefiro. Sei que preferi o cinema durante os anos da minha cinefilia e preferi filmes que foram de uma grande, grande importância.

 

Quais?

Se só pudesse ver um, parece-me que seria «La Règle du Jeu», do Renoir. Mas outros filmes houve que me tocaram de uma maneira muito, muito profunda. Um Hitchcock a preto-e-branco que se chama «Strangers on the Train». «Os Contos da Lua Vaga» de Kenji Mizoguchi, «Viagem a Itália» de Rossellini, «Persona», de Bergman.

 

Esses filmes de Renoir, Rossellini e Bergman tratam, essencialmente, do encontro e desencontro. Da procura de canais de comunicação com o outro.

Exacto. E, às vezes, da impossibilidade do encontro.

 

Que são os seus temas.

Não sei. O Vasco Graça Moura foi ver a exposição ontem e dizia que a coisa mais importante que fotografo são os espaços. O que me interessa é restituir através de uma imagem aquilo que é um espaço. O meu primeiro percurso foi um percurso denunciador. O segundo é mais complexo, mais difícil. Eu nunca sei o que vou fotografar. Quando saio para a rua, de repente tenho a ideia de que podia fotografar aquilo, que devia fotografar aquilo. Se tenho máquina fotografo, se não tenho, não fotografo. Mas a ideia é sempre qualquer coisa de misterioso, e, às vezes, de contraditório. Todas as grandes fotografias têm de mostrar uma forma qualquer de conflito.

 

De tensão?

Exactamente. Esse conflito pode-se exprimir de muitas maneiras: com as sombras e com os claros, com determinadas atitudes, com as pedras e com as rochas. Tem que haver um conflito, senão a imagem transforma-se numa afirmação pobre.

 

Estava a perguntar-me se será feliz.

Sou. Eu sou um homem feliz. Levei muitos anos a dar conta disso e sou um homem feliz. Porque vivo no amor. No amor que tenho pela minha mulher, no amor que tenho pelos meus filhos. A melhor maneira de percorrer o caminho é com o amor, com a ternura, com a capacidade de se estar em paz. E, se possível, ter algum carinho por nós próprios.

 

E agora tem, finalmente?

Isso é o mais difícil. Fui muito magoado na minha infância e na minha adolescência para achar que…

 

A reparação nunca será completa?

Nunca, nunca. Sabe, tive uma primeira namorada – para aí com 17 anos – e namorei essa menina durante 4 anos. Durante 4 anos ela disse-me que eu era particularmente hediondo.

 

Hediondo?

Feio, horrível. Isso marcou-me indelevelmente. A ideia que tenho é que sou um estupor.

 

Fisicamente?

Sempre achei. Nunca tive conforto com o meu corpo. Nunca.

 

Na exposição há duas fotografias belíssimas da sua mulher encaixada em árvores desmesuradas. Se pudesse fazer uma fotografia da Danièle, para ser a face do amor e da salvação, como é que a imagina?

Eu tirei muitas fotografias à Danièle. Muitas! De uma maneira geral, ela não gosta das fotografias que lhe faço.

 

Porquê? Não se reconhece?

Ou não se reconhece ou não quer saber da forma como olho para ela. O olhar de uma mulher sobre si própria, particularmente quando chega a uma certa idade, é descoroçoante. E por mais que diga que a acho bonita, que não posso viver sem ela, as coisas que se dizem… não acredita. A mais interessante fotografia que tirei dela é aquela em que está em cima da árvore. A justaposição do corpo dela e da árvore…

 

É uma árvore desmesurada.

É uma árvore desmesurada como desmesurado era aquilo que eu sentia por ela nessa altura.

 

 

Publicado originalmente no Diário de Notícias em Abril de 2004

Gérard Castello Lopes morreu em 2011

Berlim

02.06.13

Berlim loves Art

Berlim é um ponto essencial no panorama da arte contemporânea. Conheça o trabalho de Filipa César, Rui Calçada Bastos, Noé Sendas ou Adriana Molder, alguns dos artistas plásticos portugueses que vivem na cidade (são mais de 20). Porquê esta escolha? Porque Berlim é uma das cidades mais cosmopolitas do mundo; tão cosmopolita que pode viver anos na cidade sem ter de aprender o alemão; o inglês é usado como língua franca. Outras razões: é mais fácil implementar o trabalho numa cidade com as características de Berlim do que numa babel imensa como Nova Iorque, tem óptimos museus e galerias, é francamente barata. O reconvertido leste de Berlim agrega uma parte significativa destes artistas. Os bairros estão cheios de pequenas galerias e cafés, e por consequência de artistas.    

 

Memorial do Holocausto

São 2700 blocos de pedra que formam um labirinto. À superfície, parecem todos do mesmo tamanho. Mas assim que entramos, percebemos que os tamanhos são desiguais. Parecem pedras tumulares, embora essa não seja a ideia. Nem há nessas pedras qualquer referência aos milhões de judeus que morreram naqueles anos – vozes discordantes criticam o facto de ser um memorial demasiado abstracto...

A ideia do autor, o arquitecto americano Peter Eisenman, é, justamente, que aquilo seja um espaço vivo, e não um túmulo gigante, que homenageia os milhões de vidas que se perderam na Segunda Guerra. Eisenman pensa nele como espaço integrante da vida dos berlinenses. Numa entrevista disse que preferia que fosse usado para encurtar caminho, por exemplo, mais do que “uma experiência sagrada”. A peça assinalou os 60 anos do fim da Guerra.

Mesmo que essa não seja a intenção, atravessar o memorial pode transformar-se numa experiência sagrada. Comovente, pelo menos.

 

As Asas do Desejo

O maravilhoso filme de Wim Wenders é uma das melhores abordagens à cidade de Berlim. Veja-o antes de ir. Veja-o para conhecer a cidade, mesmo não indo. Realizado dois anos antes da queda do muro, portanto, num tempo em que o Leste era ainda um território inacessível, mostra uma cidade e um tempo que deixou de existir. É interessante perceber o contraste, a reconstrução, a fusão de duas cidades, dois povos, dois mundos num só.

Para sempre, ficam as imagens dos anjos Damiel e Cassiel, de sobretudo comprido, à espreita nos telhados da cidade. Eis um diálogo do filme: “Gostaria de sentir o agora, jogar cartas, ser cumprimentado, nem que fosse com um aceno, chegar a casa cansado, ter febre, ficar com os dedos sujos de ler o jornal. Supor em vez de saber sempre tudo. Comer borrego assado e beber vinho, sentir os pés descalços. Poder dizer “ah, oh”.

 

Está provado que só é possível filosofar em alemão!

Caetano Veloso tem um verso que diz assim: “Se tiver uma ideia incrível, é melhor fazer uma canção, está provado que só é possível filosofar em alemão”. Como ignorar o monumento colossal que é a cultura alemã? Kant, Nietzsche, Heidegger, Hanna Arendt, Goethe, Günther Grass… Caetano não disse, mas podia dizer que também a música alemã é insuperável. Bach, Beethoven, o maestro Karajan, a cantora Elisabeth Schwarzkopf…

Dois espaços em Berlim evocam esta tradição: a biblioteca estatal, Staatsbibliothek, e a Philarmonie, uma das salas de espectáculos mais famosa do mundo. A Philarmonie é belíssima, a acústica é transcendente, os concertos uma experiência única. A biblioteca não está aberta a turistas, apenas a sócios e estudantes. É uma pena se não conseguir entrar porque o edifício é uma obra ímpar. Tente.

 

10 coisas a não perder em Berlim

 

1 - As Birkenstock já foram consideradas as sandálias mais feias do mundo. Hoje, são um objecto de moda apetecível. São ortopédicas, existem em todas as cores, ficam bem com tudo. E são mesmo o calçado mais confortável do mundo. Só é proibido usá-las com meias! www.birkenstock.com

 

2 - Deixe-se hipnotizar por Nefertiti. O busto está no museu egípcio de Berlim e é alvo de uma velha disputa com o Cairo, que reclama a transferência da peça. A beleza da rainha Nefertiti é indescritível. Como é possível ver mil reproduções e ter uma sensação de assombro quando a vemos ao vivo pela primeira vez?

 

3 - Visite todos os mercados de rua (sábado é o melhor dia). Vai encontrar vestígios da abertura ao leste, mesmo que tenham passado 20 anos desde a queda do muro: casacos de vison a menos de mil euros, talheres em prata, mobiliário vintage, Bauhaus e não só, em óptimo estado, uma diversidade infindável de medalhas e distinções militares.

 

4 – Consta que Prenzlauer Berg é o bairro europeu onde nascem mais crianças por ano. Como compreender isto? Olhando em volta e percebendo a qualidade de vida deste bairro, que outrora ficava no espaço leste. A população é sobretudo jovem, os parques infantis e os espaços verdes são constantes, as casas são baratas. Ao sábado, é adorável ver famílias inteiras a passear pelas ruas. A escultora Käthe Kollwitz vivia no bairro. É possível ver algumas das suas obras nos parques de Prenzlauer Berg.

 

5 - Passear na Unter den Linden. Marlene Dietrich cantou: «Enquanto as tílias continuarem a florir na Unter den Linden, Berlim será sempre Berlim». A avenida, com tílias no corredor central, conduz à Porta de Brandemburgo – zona de fronteira onde se celebrou a queda do Muro. A Linden está para a Berlim Oriental como a Kurfürstendamm está para a Berlim Ocidental: amplas avenidas, um glamour importado de Paris, vida comercial e empresarial intensa.

 

6 - Entre em todas as lojas Jil Sander que encontrar. São como os alemães: discretos, minimais, de qualidade. Os casacos são especialmente bem cortados. A criadora alemã é uma das referências no mundo da moda. www.jilsander.com

 

7 - O Reichstag, sede do Parlamento, é talvez o edifício mais visitado de Berlim. A renovação da cúpula, obra de Norman Foster, atrai milhares de visitantes. Não deixe de subir uma rampa espelhada e ver do alto uma boa parte de Berlim. Vai sentir que está dentro de um caleidoscópio. É normal que exista fila, mesmo em dias de chuva e frio.

 

8 - Entre num autocarro turístico e faça um tour por Berlim. Ficará imediatamente com uma ideia geral da cidade. Perceberá a sua identidade mista, os vestígios de um tempo em que dois mundos não se tocavam, as marcas das balas da Segunda Guerra em algumas fachadas, a reconstrução recente de uma cidade que ficou em escombros. A seguir, descubra-os a pé, em função do programa que organizar.

 

9- Veja o filme As Vidas dos Outros, vencedor do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2007. Uma amostra exemplar do tempo em que no Leste se espiavam as vidas dos outros. Um outro filme, Alemanha Ano Zero, de Rossellini, dá uma amostra do horror da guerra. Ambos disponíveis em DVD.  

 

10 - Os museus berlinenses são superlativos. Vá a um por dia. Na Gemäldegalerie tem uma colecção soberba, com Ticiano, Vermeer, Caravaggio. A Neue Nationalgalerie foi desenhada por Mies van der Rohe. No PergamonMuseum tem o colossal altar da cidade grega de Pérgamo e as portas da antiga cidade de Babilónia.

 

Onde ficar

O hotel Radisson Blu é um hotel de cinco estrelas que tem, no hall de entrada, um aquário gigante, um dos maiores da Europa. A visita ao aquário é permitida a não-hóspedes, mediante o pagamento de um bilhete. O elevador sobe e desce dentro do aquário.  

 

O que beber

Ir à Alemanha e não beber cerveja é o mesmo que ir a Roma e não ver o Papa! Em qualquer bar. Com ou sem salsichas. Em Berlim, sabem de maneira diferente…  

 

O que comer

Os brunch de sábado de manhã, em esplanadas de bairro, são deliciosos e acessíveis. Um menu tipo: sumo de laranja quente (é surpreendentemente bom, no Inverno), um prato de três andares com carnes e peixes fumados, queijos, pães de diversos tipos, doces e frutas. Pode custar entre sete e dez euros por pessoa.

 

Como andar

De metro, autocarro, a pé. A cidade é plana. Os berlineses andam de bicicleta, com os filhos atrás. O táxi é caro, mas não proibitivo. Não se espante se vir cães e bicicletas no autocarro…

 

Onde comprar

O KaDeWe, situado na zona Oeste de Berlim, é desde há décadas uma catedral do consumo. Mega armazém, tem oito andares, com tudo o que têm os grandes armazéns: roupa, perfumes, mobiliário, etc. O piso da comida é sumptuoso.

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima

Isabeli Fontana

01.06.13

“Essa coisa de tirar foto…, não é uma coisa que eu ame fazer. É uma coisa que eu sei fazer direito.” Isabeli Fontana nunca quis fazer foto. No começo, bem no comecinho, como ela diria, e como nós dizemos, reproduzindo o seu brasileiro com sotaque do Paraná, ela era apenas uma menina magra, que escondia “uma beleza que nunca ninguém viu”. Entretanto passaram 13 anos e ela é uma das modelos mais famosas do mundo.

Falámos das coisas de que habitualmente as modelos não falam. De dinheiro, de deslumbramento, de ambientes perniciosos, da gestão da carreira. Falámos durante uma hora, depois da sessão fotográfica.

Nessa altura, já vestia uns jeans que deixavam perceber que, mais do que magra, (que é muito), Isabeli é estreita; vestia também uma tshirt da Zara, imitação de uma Balmain, que ela poderia ter. Mas é poupada. E sabe que o verdadeiro segredo está em combinar. Claro que as bailarinas eram Chanel.

É muito simpática, faladora. “As pessoas que me seguem no Twitter adoram perceber que sou uma pessoa normal.” Não há vestígios da menina calada que durante muito tempo foi. Por fim, um pedido inesperado: “Você manda para mim uns cinco exemplares da revista? Minha mãe adora ver!”

 

 

Houve um tempo em que achava que o mais difícil era lidar com a fama. Ainda é assim?

Disse isso quando era anti-fama. Tinha uns 16 anos quando a minha carreira verdadeiramente começou; hoje estou com 27. Eu não queria ser famosa. Só queria ganhar o meu dinheiro e ir para casa. Não me vejo como uma celebridade. Vejo-me como uma pessoa normal que teve sucesso.

 

Porque é que passou a dar entrevistas?

Porque percebi o quanto os meus clientes ficam felizes. Muitas revistas queriam me entrevistar, porque era a modelo mais nova da Victoria’s Secret, e eu não queria. Morava em Florianópolis com meu ex-marido (quer dizer, nunca foi marido, mas é o pai do meu filho); me chamavam em S. Paulo, e não ia. Foi difícil convencer-me de que a fama e o modelo precisam andar junto.

 

No princípio, estava só o desejo de ganhar dinheiro? Foi isso que a fez começar?

Foi. Venho de uma família humilde. Sempre chamei muito a atenção na rua. Não gostava de ser muito magra, que me olhassem muito. Por isso jogava o cabelo todo na minha cara e usava três calças para fingir que era mais gordinha! Eu era a coisinha fechada, o patinho feio. ([O Blackberry acusa uma mensagem] Me dá um segundo. Desculpa.) Um dia, estava com minha mãe, levando meu cachorrinho no veterinário, e falando que queria ser veterinária, cuidar de cachorro; tinha 12 anos. Uma pessoa na rua falou: “Meu Deus, que menina linda. Você tem que ser modelo!”. Olhei para minha mãe... “Que é que modelo faz?”. “Desfila, tira fotos”. “Será que ganha dinheiro? E se eu fosse modelo, para a gente ganhar dinheiro?”.

 

A sua intenção era simplesmente ajudar a família?

Era. Minha família teve uma vida muito batalhadora. Meu pai era representante comercial de uma marca de roupa bem popular; vendia para lojas, fazia pedidos. Minha mãe trabalhava na firma de calçado que meu pai abriu. Eu via meus pais sofrendo para pagar as contas, as contas, sempre contas. O dinheiro nunca chegava. Três filhos, né? Eu via esse desespero. Inventava coisas para ganhar meu próprio dinheiro.

 

Como?

Um dia, peguei meu irmãozinho mais novo (o mais velho não queria, “imagina, eu vendendo…”) e fui batalhar de porta em porta com o mostruário do meu pai. A gente morava num condomínio gigantesco. São uns 20 prédios de quatro andares, dois por andar. Vendi um montão! Ganhei 200 reais, era muito dinheiro. Sempre fui à luta.

 

Essa consciência da situação da sua família, revela uma maturidade muito grande, numa menina de 10 anos. Acontece-lhe pensar nisso quando olha para o seu filho mais velho, que tem sete anos?

Nem tanto. Quero que ele entenda que o dinheiro é importante, mas que não é tudo. Em primeiro lugar vem o coração e a família. O meu filho adora comprar. “Filho, você não sabe como é difícil ganhar dinheiro…”. 

 

Mas o que surpreende é que diga que tinha obrigação de ajudar os seus pais.

Eu sentia isso: obrigação. Minha mãe andava com um Corsa antigão, a porta abria toda curva… Me lembro dela cheia de sapatos, que levava para a faculdade para vender às amigas. Ela queria estudar, ser psicóloga; a mensalidade estava sempre atrasada. Uma guerreira.

 

A vossa relação sempre foi cúmplice?

A nossa criação foi muito de amizade. Ela me explicava as coisas, me fazia pensar. Às vezes eu ia no que eu queria e quebrava a cara… Aprendi a prestar mais atenção no que minha mãe falava. A única coisa: era complicada para comer. Igual ao meu filho menor. Era magricela porque não gostava de comer, tinha preguiça de mastigar!

 

É parecida com a sua mãe?

A gente tem o mesmo carácter. Explosivas. Os sentimentos são à flor da pele. Muito directas. Não somos o tipo de pessoa rancorosa, que vai guardando. Alguma coisa acontece, e as cartas estão aqui na mesa, vamos resolver! Fisicamente, a minha mãe não é tão alta (eu tenho 1.77m, ela tem 1.68).

 

De onde vem o seu tipo físico? Como é que numa família de Curitiba aparece uma morena de olhos azuis, tão alta?

Engraçado, não é? Todo o mundo falava que eu era anormal de beleza, desde pequenina. “Isabeli tem uma beleza que não existe”. Deus foi bom comigo. Mas eu não ligava, era muito tomboy, muito menino… como é que fala aqui?

 

Maria-rapaz.

Eu era Maria-rapaz. Tenho dois irmãos, era moleque, não tinha amiguinha, não botava saia. Aprendi a ser feminina no meio da moda.

 

Quando vê o seu álbum de criança, reconhece-se? Era a mesma expressão, os mesmos traços?

Tudo igual. Você quer olhar? Tenho uma foto, que acabei de mandar no Twitter. [Mostra].

 

Disse no Twitter que está a dar a entrevista?

Não, não avisei. 

 

Nessa fotografia está irreconhecível. É só uma menina, morena.

Eu era muito levada!, gostava de ser engraçada. Na escola, os meninos não olhavam para mim porque era muito magra. [Continua a mostrar fotos no telemóvel] Veja só o olhão azul do meu filho!, igual ao meu, até mais claro do que o meu. Eu levei sorte de ter olho claro, porque o meu pai e a minha mãe têm olho castanho; o pai do meu pai tem o olho claro, azul-piscina – puxei a ele. A minha cara? Sou uma mistura da minha mãe e do meu pai. Tenho uma estrutura larga, que pode resultar andrógina nas fotografias, com uma luz mais escura.

 

Foi então descoberta na rua. O que é que se seguiu?

Minha mãe me colocou num curso de modelo para aprender boas maneiras. Eu andava corcunda! E tinha corpo de criança, 83 de quadril. As pessoas adoravam! Por isso peguei todos os desfiles quando comecei. Adolescente, passei para 87. Gostava de coisa gótica!, adorava pintar minha unha de preto. Sempre gostei de uma coisa meio-trash, meio-robótica, meio-dark. Não gosto da coisa bonitinha e perfeita.

 

A sua explosão profissional aconteceu com o desfile da Victoria’s Secret?

Antes disso, já tinha feito [um editorial para a] Vogue América. E fiz também os melhores desfiles de Nova Iorque.

 

O que é que você tinha? Que características eram as suas para ser tão bem sucedida? Há milhares de meninas bonitas que aparecem todos os anos.

Sabe que nunca me perguntei porque é que dei certo? A sorte bateu várias vezes na minha porta. Parei duas vezes, porque tive filhos, e voltei até melhor. Mas sei que cobro muito de mim mesma. Quero estar perfeita, em good shape. Eu me delapidei para estar onde estou. Quando comecei, era somente sexy. As pessoas me viam como a modelo que passa Versace. Queria mostrar que podia ser mais do que isso. Do que sempre gostei foi do fashion, andrógino, esquisito.

 

Tem uma atitude, quando desfila, que é confiante e sexy. Como é que tinha noção de potencial aos 16 anos?

Não tinha noção nenhuma! Não sabia andar rebolando. Quem me ensinou foi a Marcella Bittar, uma modelo que começou comigo. “Você tem que jogar para cá, jogar para lá…”

 

Rebolava correspondendo ao paradigma da brasileira, numa altura em que as brasileiras estavam em alta?

Sim, mas a minha ascendência é europeia. A minha avó é misturada de italianos com portugueses. Ela é Silva. A brasileira mesmo é índia.

 

Fotografou muito com Mario Testino, muito responsável pelo boom de brasileiras na moda?

Nem tanto. Comecei por trabalhar com Steven Meisel, mas não era a favorita dele. Com quem eu cresci foi com o David Sims, que trabalhava especialmente com a Vogue Francesa. Entrei nas graças do Guido, o cabeleireiro que ele mais escolhe. Eu era blasée num mundo onde toda a gente é puxa-saco.

 

Foi para Paris e depois para Milão, com a sua mãe atrás. Porquê?

De 14 para 15 anos fui morar em Milão. Minha mãe largou tudo. “Você não vai sozinha por esse mundo afora, com as pessoas mais loucas do mundo!”

 

Era o receio de quê? Sexo, drogas?

De tudo. Minha mãe fez muito bem.

 

Hoje faria o mesmo com uma filha sua?

O mesmo. Não a largaria. As meninas ficam deslumbradas.

 

Com o quê? Com o dinheiro fácil?, com a atenção de que são alvo?

Há uma passagem free para tudo quanto é canto. [Livre-trânsito] Todo o mundo quer uma modelo, uma menina bonita por perto. Todos os homens, os ricos, ficam de olho. O que chama a atenção das meninas, novinhas, é o dinheiro. Nunca foi uma coisa prioritária para mim. O meu lema é querer ser feliz de verdade. Não quero fingir que estou feliz porque estou com um cara que tem dinheiro… Sou batalhadora e quero fazer o meu dinheiro. O meu dinheiro! O do outro não é válido. Mas as meninas não pensam assim. “Vamos lá, nos divertir! Tudo pode”. É uma putaria. Tudo cheio de droga, bebida à vontade, tudo de graça. Se você dá, que é que querem de volta?

 

É uma pergunta que sempre se faz? O que é que querem de si na volta?

Sempre tem um interesse. Sempre tive amigos ricos que quiseram me comprar de uma tal maneira. “Eu te dou”. “Não, não, muito obrigada”. Sei que não é só isso que eles querem. Eles me querem. Então, não deixo nada em aberto.

 

Vinca uma enorme diferença entre ganhar o seu dinheiro e casar com um homem rico. Porquê?

A maior parte das modelos casam com homens ricos. Porque é que não sou assim? Há excepções, mas todas as pessoas ricas que conheci acham que o dinheiro é tudo. Para mim, o dinheiro nunca falou mais alto. Se comprar um palácio com o dinheiro dos outros, não vai ser bom para mim. Quero conseguir comprar porque é o meu mérito que mo permite. Agora, por exemplo, estou começando a construir a minha casa – depois de 13 anos de carreira. Em Florianópolis. Minha mãe fala: “É muito fácil bater continência com chapéu dos outros”. Significa usufruir da grana do outro, tranquilamente. Nunca quis.  

 

É inesperado que o dinheiro não a tenha deslumbrado, provindo de um meio carenciado, como é o seu.

Nunca gostei de ricos. Eles me deixam de pé atrás. São prepotentes, usam e abusam do poder. A arrogância [dos ricos] é a pior coisa do mundo. O que mais me horroriza é ver alguém menosprezar os pobres ou aqueles que são menos bem sucedidos. Ensino os meus filhos a serem educados com todo o mundo.

 

Foi mãe aos 19 anos. Aconteceu?

Sou assim: “Amo essa pessoa, quero ficar com ela o resto da minha vida, quero ter filhos com ela”. Minha psicóloga fala: “Você é muito careta”. Na verdade, engravidei sem querer.

 

Muito estava em jogo. Porque é que escolheu ter os filhos cedo?

Muita gente me falava: “Olhe para a sua carreira. Pense bem”. Muita gente falou para eu tirar esse filho. Não. Já amava aquela criança na minha barriga. Sempre quis ser mãe.

 

Já tinha ganho o dinheiro suficiente para não ter de se preocupar com o futuro?

Pensava: agora tenho um filho, tenho por que trabalhar. Nunca gastei dinheiro em roupas caras, em bullshit. Meu pai me incentivou a comprar propriedades. Ofereceu-me livros de auto-ajuda. “Pai rico, filho pobre”, foi o primeiro livro desses que li. Nunca joguei na bolsa.

 

Ganhou muito dinheiro?

Ainda estou à espera do meu contrato milionário. O mundo da moda mudou, e ninguém está querendo pagar milhões para uma modelo. Nos anos 90, sim. Escolho poucas coisas, e boas, para fazer. Tem certas coisas que você não pode fazer para continuar com um nível bom. Mas as besteiras é que dão dinheiro.

 

O que são besteiras?

São trabalhos para clientes que não são A. O que acontece depois é que o cliente A não vai contratar uma menina B. Nem a Vogue. Sem Vogue, você não consegue fazer certos trabalhos. Então, é uma gestão que tem de ser feita. Neste momento, estou fazendo uma parceria com a C&A, que investe barbaridades em mim e acredita que posso fazer moda. Estou desenhando Isabeli Fontana by C&A. Estou virando um nome, não sou apenas uma modelo.

 

Estima-se que em 2007 ganhou três milhões de dólares. É significativo.

Sim. Mas comprei um apartamento em NY que custou quase quatro milhões. Real estate [imobiliário] foi o lugar onde ganhei mais dinheiro.

 

Como assim? Dê um exemplo.

Ganhei 200 mil dólares. Como? Muita Victoria’s Secret. Tinha 17 anos. “Nossa, que é que vou fazer com esse dinheiro?” Usei esse dinheiro como entrada num apartamento de 700 mil. Revendi-o por um milhão e meio. Ganhei um milhão de dólares.

 

Quando é que começou a fazer terapia?

Faço desde os sete anos. A minha mãe descobriu que eu não falava na escola. Sempre fui muito tímida. Continuo fazendo todas as semanas, ainda que por vezes dê umas piradas! Saí muito desencantada do casamento com o Henri Castelli, o actor da Globo. Terapia me faz bem.

 

Onde é que é a sua casa?

Brasil. Moro em S. Paulo, a minha estrutura familiar está lá, meus filhos frequentam uma escola bilingue (inglês é fundamental). Fora de casa, preciso, para me sentir em casa, do meu telefone. Estou o tempo todo falando com a minha família e o meu namorado. Às vezes digo à minha agente: “Dá um jeito, que eu quero ir embora logo!”. Quando fico muito tempo nos Estados Unidos (duas, três semanas), tenho vontade de cancelar tudo. Preciso me restabelecer. Longe de casa fico chochinha.

 

O seu segredo de beleza, qual é?

Não tenho. Aprendi umas coisas. Primeira: que cada um tem um rosto. Segunda: você tem que ser feliz. Depois, amo massagem, amo comer bem, amo fazer exercício para revigorar. (Hoje em dia faço menos, estou querendo namorar mais…) Meu segredinho: o spray de água natural ajuda muito a pele.

 

Pensa muito no envelhecimento?

Penso. Deve ser bem doloroso… Sou totalmente a favor do botox!

 

   

Publicado originalmente na Revista Máxima em Junho de 2010

 

    

 

 

 

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