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Anabela Mota Ribeiro

Andrew Bennett (sobre Portugal)

31.07.13

Andrew Bennett é inglês. Vive em Portugal há cerca de 12 anos. É coordenador da Orquestra Nacional do Porto Casa da Música. É geógrafo.

  

 

Poder, dinheiro e influência são, no essencial, a mesma coisa?

Sim e não. Ter poder ou influência pode coincidir com ter dinheiro. A única certeza é que a falta de dinheiro está ligada a uma falta de poder e influência. Concentrar a atenção nas pessoas que têm estas supostas vantagens serve para ignorar a grande maioria da população, que não as tem e não tem possibilidade de alterar a sua posição. 

 

Não há almoços grátis e a canalha vende-se por um prato de lentilhas. Toda a gente tem um preço?

Tenho fraca opinião das pessoas que pensam assim. Talvez a tradição da cunha esteja a diminuir entre os portugueses. Ainda assim, às vezes, encontro pessoas que acham que uma prenda (seja física, seja figurativa) vai influenciar o nosso negócio em comum. Para mim, o resultado é negativo. Pessoas que precisam de pagar para atrair a minha atenção [são aquelas que] não podem ter sucesso baseado simplesmente no mérito.

 

A sua percepção do que é o poder alterou-se desde que vive em Portugal?

Não. Embora Portugal necessariamente tenha as suas características nacionais. O poder é um aspecto da vida humana que se reflecte quase igualmente em todos os países.

 

Quem é que tem poder em Portugal? Os banqueiros, os políticos, os artistas, a construção civil, as pessoas que aparecem na televisão?

As pessoas e as entidades que têm poder em Portugal são sempre internacionais. Algumas são portuguesas em termos de nacionalidade, mas isso não tem grande influência relativamente ao seu comportamento. Os aspectos fundamentais para a vida do país são globais – económicos, políticos e até artísticos. Indivíduos e instituições que somente praticam [a sua actividade] dentro das fronteiras estão sempre sujeitos a decisões tomadas fora do país. As empresas internacionais, os bancos sem fronteiras, os políticos da UE ou ONU, e os media internacionais são os que realmente têm poder em Portugal. Sem mencionar, agora, a Troika!

 

O que é ter uma agenda poderosa? É ter o telemóvel de Fernando Ulrich? É ter andado na escola com o Paulo Portas? É ser convidado por Ricardo Salgado para um almoço na Comporta? É conhecer o primo da mulher do assessor do ministro que manda?

Uma das vantagens de morar e trabalhar fora da capital é ter mais perspectiva. Como em muitos países, Lisboa tem a tendência de achar que é o centro do mundo. Auto-referência raramente contribui para uma perspectiva saudável.

 

Sem falsas modéstias, e partindo do princípio que, pelo menos no nosso quintal, todos temos poder: considera que é uma pessoa poderosa? Em que é que se baseia o seu poder?

O meu quintal do dia-a-dia é uma orquestra. Não toco, nem dirijo. Se eu tiver poder, pode unicamente surgir do respeito dos meus colegas (hierarquicamente superiores e inferiores). Se o sucesso da orquestra dependesse da minha contribuição directa, se não pudesse continuar sem o meu envolvimento, seria uma situação insalubre. Como acontece com a maioria das pessoas que trabalham na área da gestão das artes, a minha ambição é facilitar o trabalho da orquestra em conjunto e com os maestros/artistas convidados, e não atrair atenção sobre o meu trabalho. Em si só, o meu trabalho não deve ser interessante, se comparado com os concertos, as gravações, os projectos educativos, as digressões.

 

“Yes, we can” – Obama. Foi a força das palavras que elegeu o primeiro presidente afro-americano nos Estados Unidos?

Estou a responder a estas perguntas nos Estados Unidos, a terra da oportunidade. A eloquência da retórica de Obama foi um dos factores que resultaram na sua eleição em 2008. Percebendo agora que o seu grande poder não é suficiente para combater os interesses inerentes e intransigentes do mundo económico e político deste país, Obama está consciente do seu pouco espaço de manobra. “Yes, we can” está transformado em “Sorry, I found out we can't”.  Para uma parte significativa dos seus apoiantes há quatro anos a desilusão é considerável, e o único motivo para votar em Obama em 2012 é o medo maior do seu adversário.

 

Assistimos a um divórcio crescente entre os portugueses e a sua elite política e económica. Porque é que acha que os portugueses aceitam uma elite na qual não se revêem?

A situação portuguesa é interessante. Por razões históricas bem conhecidas, a tolerância do povo português – e a antiga aceitação da liderança por pessoas/instituições onde o poder estava especialmente concentrado nas mãos de poucas pessoas – continuou depois da Revolução. Alguns portugueses ainda respeitam pessoas com cargos “importantes”, independentemente da qualidade de liderança. Às vezes ficam à espera de instruções, embora já saibam qual será o melhor caminho a seguir.

 

Essa tolerância de que fala parece existir nos portugueses desde sempre...

A tolerância dos portugueses é uma tradição que vem do passado, mas o mundo está a mudar. Respeito automático para políticos, empresários e outras pessoas com poder está a diminuir. Sem as ligações fortes ao seu público, ou sem instrumentos de controlo, teriam os líderes nacionais capacidade para sobreviver à baixa estima que o seu trabalho merece?

O novo grupo de líderes foi criado sem ter profundas raízes na comunidade. Funcionam na sua esfera de importância e influência, que assumem sem direito nem respeito realmente ganho. Os empresários antigos tinham ligações com a sua comunidade, compreenderam as necessidades do “seu” povo. Isto não pode ser o caso das empresas multinacionais, para quem o Porto é igual a Kansas City, Lisboa a Joanesburgo. Por outro lado, e independentemente dos nomes dos partidos políticos, raramente os políticos vêm de uma povoação ou de um sector da população que responsabiliza os políticos.

 

“O dinheiro não traz a felicidade. Manda buscar.” – Millôr Fernandes. O poder não dá felicidade. Mas manda buscar?

A reportagem recente sobre a infelicidade e espiral descendente de um dos herdeiros da fortuna da TetraPak mostra que, ainda que com muito dinheiro e grande espaço para buscar a felicidade, a vida não funciona assim.

 

Ter poder é poder escolher não ter patrão?

Nem o Rupert Murdoch (o suposto super-poderoso da News International) pôde escapar ao escrutínio do parlamento britânico (na sequência do escândalo das escutas ilegais na imprensa). Os mais poderosos têm menos patrões a quem devem responder, mas também têm mais espaço para cair.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2012

 

 

 

Inês Meneses

31.07.13

É possível ouvi-la na Antena 1, todos os dias, com Júlio Machado Vaz, em O Amor É. Também é possível ouvi-la na Antena 3 com Pedro Boucherie Mendes (Pedro&Inês), “rindo da actualidade…”. Está na Radar (Lisboa 97.8 fm), diariamente e no programa de entrevistas Fala com Ela. Como se isto fosse pouco, escreve e tem uma filha criança. Inês Meneses: o amor é a sua palavra de código.

 

 

O que é que o amor não é?

Tinha pensado imediatamente: “O amor não é mentira”, por ser tão avessa a que me mintam. Mas depois pensei se não haverá matéria que se deva ocultar a bem do amor… O amor não é egoísmo. O amor é um equilíbrio de cedências, e o egoísmo tem de ficar de fora.

 

Na sua adolescência, escreveu uma peça de teatro intitulada: Menos dez minutos de amor. O essencial, não só na sua vida, mas no seu discurso profissional, passa por aqui?

O amor pautou sempre todas as minhas escolhas, na vida profissional também. Tenho um imenso amor pela rádio, sou absolutamente feliz no que faço, e sempre fui atrás do que me fascinava. Sinto-me muito abençoada, ou privilegiada, por só fazer o que gosto e trabalhar com uma total liberdade. Como se fosse um compromisso que estabeleço inconscientemente com aquilo que faço: só fico até ser bom.

 

A rádio, mais do que uma vocação, é uma casa. Quais são os grandes desafios de fazer televisão?

A rádio é o conforto, ainda que me sinta nervosa em cada coisa que faça. É como ir para a cozinha experimentar uma receita nova e ficar expectante com isso. Sinto o risco de cada vez que falo, mas aquele chão, é o meu chão. A televisão é a ausência de chão, é o risco total, é o desconforto da imagem. Mas não tenho nenhum receio que a voz seja desmistificada pela imagem. Custoso na televisão é gerir os campos todos: o tempo, a imagem, a sobriedade, os nervos...

 

O que é a versão televisiva do programa que tem na rádio com Machado Vaz?

No programa da RTP-N, o desafio é continuarmos a ter o que temos na Antena 1 – química. E não deixar que os cinco minutos do guião nos comprometam a conversa. É tentar que a conversa que ali temos seja a conversa que qualquer um de nós pode ter à mesa do café. Sem pretensões, sem rigidez alguma. A mais valia é termos a opinião de um homem tão experiente como o Júlio, que alia tão sabiamente o conhecimento ao humor.

 

Para muitos, é, primeiro que tudo, uma voz. O que é que acha que ela diz de si?

Eu também acho que sou essencialmente uma voz [risos]. E a voz, pode ser muito transparente. A minha diz que sou aparentemente calma, com uma boa dose de perturbação. Essa sou eu…

 

Além da rádio, faz televisão e escreve.

A televisão é um desvio que vem de longe: tive uma primeira experiência aos 20 anos na RTP (no Porto), num magazine ‘juvenil’, em directo. Depois, veio a apresentação do Onda Curta na RTP2, programa ao qual continuo ligada, dando voz. Depois disso, a minha participação no Prazer dos Diabos, inicialmente na SIC Comédia, depois na SIC Mulher, e onde me diverti imenso comentando de forma ligeira os temas da actualidade. A escrita é o universo mais clandestino, mas aquele em que vejo algum futuro. Se conseguir ser mais disciplinada e menos preguiçosa… Escrevo há quase seis anos sob pseudónimo numa publicação semanal. Talvez em breve venha a revelar o meu nome... Tenho muitas histórias, muitas ficções por escrever… A ver se a rádio deixa!

 

 

Publicado originalmente na Máxima

Miguel Amado (sobre Portugal)

30.07.13

Miguel Amado é comissário e crítico de arte contemporânea. Foi comissário da representação portuguesa na Bienal de Veneza do próximo ano (a artista é Joana Vasconcelos). Começou nos Encontros de Fotografia de Coimbra, transformou a Fundação PLMJ, de Lisboa, numa instituição de referência, frequentou o Royal College of Art, foi contratado para um dos museus da primeira liga mundial: a Tate (fixando-se num dos pólos regionais, a Tate St Ives).

 

 

Quem é que tem poder em Portugal? Os banqueiros, os políticos, os artistas, a construção civil, as pessoas que aparecem na televisão?

 

Os artistas? Até será lisonjeiro pensar-se que os artistas têm poder, por pouco que seja, mas o poder que têm, efectivamente, é nenhum. Ao longo da história, quem teve dinheiro teve poder, e os artistas nunca tiveram dinheiro. Por isso, se há quem tenha poder em Portugal, são os banqueiros e figuras sucedâneas, empresários e administradores de empresas. A questão está, primeiro, na não tomada de consciência que são tais personagens que têm poder e, depois, no modo como elas o exercem. O problema é que, por razões históricas, o individual preside sobre o colectivo e, assim, os interesses particulares sobrepõem-se aos da comunidade.

 

Sem falsas modéstias, e partindo do princípio que, pelo menos no nosso quintal, todos temos poder: considera que é uma pessoa poderosa? Em que é que se baseia o seu poder?

 

Nunca busquei o poder. Por sistema, digo o que penso, não frequento os meios dos poderosos através dos quais poderia ser reconhecido como tal e estou do lado dos desprivilegiados. Duvido das minhas opiniões e não tenho certezas, ao contrário de muitos... Mas não fico à espera que as coisas aconteçam como se tivesse um direito natural a elas, pelo que procuro ser melhor e fazer mais. É daí que advém o mínimo poder que tenho na área em que trabalho (fora dela, aliás, ninguém me conhece e, por isso, se associarmos reconhecimento a poder, não tenho qualquer poder). A minha função é de mediação. Seleccionar é um dos modos de a executar, e é aí, na possibilidade de escolher A em vez de B, de oferecer algo a C em vez de a D, de falar de E em vez de F e por aí fora, que assenta o discricionarismo que eventualmente representa um pouco de poder. Importa, todavia, chamar a atenção para o seguinte: nunca exerço o poder como se exercem os “pequenos poderes” em Portugal.

 

Refere-se a quê?

 

Aqueles instantes do quotidiano em que outrem nos sujeita a si só porque sim. Ao invés, de mim pode esperar-se sempre diálogo ou debate. E nunca deixo alguém sem resposta a qualquer pergunta que me seja colocada.

 

O desejo de poder é indissociável de úlceras, cabelos brancos, rugas na testa? Ser ambicioso ainda é pecado? Porque é que se aposta “naturalmente” a palavra “desmesurada” a ambição?

 

Poder e ambição não são sinónimos nem sequer têm que andar lado a lado. Talvez o corpo pague pela falta de juízo, como dizia o António Variações, e o desejo de poder se reflicta em maleitas físicas várias, mas a ambição parece-me que escapa a tal provação. O que é a ambição senão a vontade de ser melhor – não o melhor, apenas melhor – no que se faz e no que se pensa? Por razões históricas, o espírito de iniciativa nunca vingou em Portugal, preferindo-se o miserabilismo ao sucesso. O atavismo do país faz com que não só se desdenhe dos empreendedores como também se lhes dificulte a existência, e que ninguém se mobilize para aplaudir mas todos se coloquem na linha da frente para denegrir. O rectângulo à beira-mar plantado é pequeno e passar Vilar Formoso custa muito. Por isso, mais vale ser pequeno e dizer mal dos outros do que arriscar abrir a cabeça ao mundo e perceber a tacanhez da existência que se protagoniza.

 

Ter poder é poder escolher não ter patrão?

 

Ou ser patrão de si mesmo... Não sei se é um poder porque, aqui, a palavra insinua privilégio e não creio que quem não tem patrão seja um privilegiado no sentido comum do termo. O facto é que, no meu caso, não depender de alguém, não funcionar de acordo com lógicas corporativas ou não criar rotinas, gera uma sensação de liberdade da qual dificilmente prescindiria. O reverso da medalha é a conversão da lógica do “trabalho das nove às cinco” numa dinâmica de “24 sobre 24”. A um projecto sucede-se outro e outro, há que constantemente encontrá-los e os prazos para cumprir cada um emergem como uma espada de Dâmocles.

 

A sua percepção do que é o poder alterou-se desde que vive fora de Portugal?

 

Vivi em cidades como Londres e Nova Iorque durante vários anos e aí é que se percebe o que é poder. Em Nova Iorque, nunca o cliché se terá aplicado tão bem: a cidade, efectivamente, nunca dorme. O adjectivo que melhor a descreve é “excesso”, mas não se pense que tal é fascinante, pois acaba por se soçobrar perante tão esfusiante realidade (mais própria da ficção científica).

Em Londres, não se quer saber de nada a não ser de si mesmo, mas dá-se a ideia do contrário. Nunca senti o “complexo do império” tão impiedosamente como ali. A metáfora a que recorro frequentemente é que, se for um náufrago, me dão a mão para não me afogar, mas jamais me puxarão para dentro do barco, mantendo-me sempre à tona, ciente da minha dependência.

 

“Yes, we can” – Obama. Foi a força das palavras que elegeu o primeiro presidente afro-americano nos Estados Unidos?

 

Julieta Aranda, uma artista com quem trabalho regularmente, criou uma obra na qual escreve a frase: “No, we can’t”... Concretamente, o que é que mudou nos últimos anos na “política política”? Creio que nada. Sim, já não existem 50 milhões de norte-americanos sem acesso a cuidados de saúde, pelo menos na lei. Sim, mesmo antes da lei, o casamento entre homossexuais assume-se. Contudo, os drones continuam a bombardear alvos cirúrgicos algures num recanto perdido do mundo; os imigrantes ilegais (hispânicos, asiáticos e tantos outros) continuam a sustentar a economia; as mulheres continuam a ter duas semanas, um mês, um mês e meio de licença de parto; as exposições dos museus continuam a ser programadas em função de interesses particulares (dos galeristas ou de coleccionadores).

 

E isso é específico da realidade americana?

 

Os Estados Unidos são um país de extremos: há do melhor mas também há o pior. É claro que, ao nível dos costumes, a eleição de um negro – como, daqui a quatro anos, de uma mulher, espero – representa um passo em frente na diminuição da segregação étnica – ou de género – do país. Como os Estados Unidos são o farol do mundo, talvez essa circunstância sirva de exemplo a outros países, pelo menos nas democracias de matriz ocidental. Porém, o problema maior mantém-se e nunca se resolverá sem uma revolução: os ricos enriquecem cada vez mais e os pobres empobrecem cada vez mais. E, quanto a esta distribuição desigual dos rendimentos, Obama nada pode fazer.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2012

 

 

 

 

 

 

 

José Eduardo Agualusa

30.07.13

“Barroco Tropical” é o romance de 2009 de José Eduardo Agualusa. O autor angolano fala de um livro, e simultaneamente de um país e de um mundo: o nosso.

 

 

Angola parece, lida por si, com um pé no século XXI e outro no século XI. Lado a lado, estão o curandeiro e o traficante de armas. Porque é que escolheu o tempo futuro (2020) para falar de uma cidade onde vive no presente?

 Porque olhar o presente a partir de um futuro próximo nos pode ajudar a perceber como certas dinâmicas, já instaladas na sociedade angolana, podem evoluir. Uma distopia serve, pode servir, como alerta e exercício de reflexão. “Barroco Tropical” não pretende ser uma profecia – se daqui a doze anos eu for reconhecido como profeta essa será uma péssima notícia.

 

Em Barroco Tropical uma mulher é presidente da República. Outra cai do Céu numa tempestade tropical! Outra aborda um escritor no aeroporto e quer ter um filho/salvador do mundo com ele! Pergunto-me como é que olha para as mulheres…

Recentemente, durante uma viagem pela Alemanha, para promover a tradução alemã d’ “O Vendedor de Passados”, uma professora de literatura acusou-me de, como todos os homens, não me ser possível desenhar uma personagem feminina convincente. Segundo ela as escritoras podem atrever-se a criar personagens masculinos, porque os homens são mais simples. Talvez tenha razão, no que diz respeito à simplicidade dos homens, mas creio que a literatura é sempre um exercício de alteridade. Um bom escritor tem de saber colocar-se na pele de qualquer personagem. Eu já me coloquei na pele de uma osga, de assassinos e de torcionários. Nunca apertei a mão a um assassino, mas vivi sempre rodeado de mulheres. O mundo das mulheres também é o mundo dos homens. As fronteiras são fluidas. Modéstia à parte creio mesmo que as minhas personagens mais convincentes, mais humanas, são mulheres.

 

Há um personagem que vem do livro anterior, e que é escritor. É tentador vê-lo como uma projecção de si… Além de outras histórias que parecem decalcadas da sua história.

Isso faz parte de uma estratégia de credibilização. Eu quero que o leitor acredite no que está a ler, mesmo se o faço viajar por um universo povoado por anjos e sereias. Se o leitor acredita que um dos narradores é o próprio autor, já está a creditar naquilo que lê. Há muito de mim em Bartolomeu. Mas a verdade é que também há muito de mim na Kianda. Algumas das recordações dela, da infância dela, pertencem-me.

 

Ficou mais cínico nos últimos anos? Este livro é, não exactamente mais negro, mas mais descrente.

Meu Deus, acho que não! Não tenho nada de cínico. “Barroco Tropical” é um livro um pouco escuro, mas ao mesmo tempo cheio de riso, e onde continua a existir lugar para a esperança. Sim, estamos a avançar por caminhos perigosos, mas ainda podemos mudar de rumo.

 

A verosimilhança e a inverosimilhança coexistem neste romance, como em todos os outros. Sabe sempre onde é a realidade e onde começa a ficção?

Suponho que ninguém sabe. A realidade é constantemente subvertida e modificada pela ficção. Jorge Amado reinventou Salvador, ou Ilhéus, literariamente, e depois Ilhéus e Salvador modificaram-se de forma a adaptarem-se à invenção de Jorge Amado – porque era isso que os turistas procuravam. Salazar mandou colocar ameias no Castelo de São Jorge para o tornar mais verosímil. Todos nós nos reinventamos constantemente, inventamos o nosso passado, episódios do nosso passado, e acabamos por acreditar nessa invenção.

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2009

 

 

 

 

Thomas Fischer (sobre Portugal)

29.07.13

Thomas Fischer nasceu em 1954 na Alemanha. É jornalista, correspondente do jornal suíço Neue Zürcher Zeitung (o jornal de referência da Suíça que fala alemão), e colabora com a TV alemã ZDF. Licenciou-se em Economia. Chegou a Portugal em 1975.

Escreveu guias turísticos; “um sobre Portugal continental (viajei sistematicamente pelo País no tempo em que ainda não havia auto-estradas nem circunvalações) e mais um sobre os Açores. Recentemente, escrevi pequenos guias sobre Portugal e Lisboa para o Clube Automóvel da Alemanha (ADAC)”.

 

 

Os portugueses “são excessivamente sentimentais, com horror à disciplina, individualistas, talvez sem dar por isso, falhos de espírito de continuidade e de tenacidade na acção”. Salazar, 1938. Continuamos a ser assim?

 

Cada ditadura tem a sua maneira de justificar a repressão. Admito que exista em Portugal alguma aversão a excessos de disciplina e há, sem dúvida, falta de civismo. Mas também vejo excessos de conformismo, medo de ser diferente. Há uma obediência perante certas normas (basta ver homens de negócios vestidos de rigor e a suar com temperaturas acima de 30 graus) e hierarquias sociais, com uma submissão aos senhores doutores e engenheiros. Na Alemanha, muitas vezes vista como exemplo de disciplina a mais, algumas regras tornaram-se menos rígidas, o que facilitou a vida em muitos aspectos. Gostava que houvesse mais coragem para ser diferente em Portugal e, em geral, mais sociedade civil.

 

E somos sentimentais?

 

Sim, há alguma sentimentalidade. Mas não gosto de empolar esta ideia lá fora, para não alimentar chavões que acabam por dar uma imagem errada do País e das suas capacidades.

 

Tem ideias miraculosas para salvar a Pátria?

 

Ideias miraculosas não tenho. Mas tenho uma certeza sobre três coisas que fazem falta. Mobilizar, moralizar, motivar. E nada disso se consegue tirando benefícios e regalias, sempre aos mesmos, e empurrando pessoas para a emigração.

 

O Zé Povinho continua a ser uma boa imagem do que somos?

 

Se entendi bem, o Zé Povinho é uma figura irreverente, mas resignada. Em Portugal já não vejo razão para tanta resignação, já que existem novas vias para a participação e intervenção, infelizmente ainda pouco aproveitadas.

 

Somos um povo que não se sabe governar? Qual é o enguiço? Parece ser assim há séculos...

 

Já um general romano falou de um povo nos confins da Ibéria que nem se governava nem se deixava governar. Lamento não haver um livro sobre Astérix em Portugal, já que inspirações não faltavam. Quanto à cultura política, os consensos à volta de um “não” a qualquer coisa parecem mais fáceis do que a unidade a favor de uma causa comum.

 

Temos uma veia sebastiânica inflamada? Continuamos à espera de alguém (que venha das brumas ou de outro lugar qualquer) para nos resolver a vida?

 

Vejo sobretudo que até a República laica tem monarcas, santos, gurus, eminências pardas e figuras com o estatuto de monumentos nacionais vivos. E há muitos candidatos a salvadores da pátria e “sebastiões”. O sebastianismo é alimentado por uma tendência para olhar mais para as pessoas do que para as suas ideias. Ainda se procuram verdades fáceis. Após quase 30 anos em Portugal, ainda me espanta o eco dado em tantos órgãos de comunicação social às opiniões manifestadas por uma meia dúzia de “líderes de opinião”. Até no desporto existe algum sebastianismo, como verifiquei no Euro 2012.

 

Um jogador que é o Sebastião do momento? O salvador.

Não gostei do destaque, ora positivo ora negativo, dado a um só jogador da vossa selecção, sobrecarregado de expectativas, como se os colegas de equipa fossem figurantes. Penso que é preciso ver mais o colectivo, também na política, na sociedade, em tudo.

 

Precisamos de ser mais organizados, mais empreendedores, mais produtivos. É possível?

 

Está mais que provado que é possível. Basta olhar para muitos emigrantes. Podem não ter altos níveis de escolaridade ou de formação, mas têm uma enorme capacidade de adaptação e a fama de serem bons trabalhadores. Em Portugal, empresas bem organizadas, nacionais ou estrangeiras, conseguem óptimos resultados com pessoal motivado. O país tem grandes talentos e capacidades. Infelizmente aproveita mal o que tem.

 

A culpa é dos políticos?, a culpa é das elites?, a culpa é de quem se endivida e trabalha pouco? A culpa é da Europa?, a culpa é da desregulação do sistema financeiro? A culpa não é de ninguém e vai morrer solteira?

 

Todos estes factores têm algum peso. Alguma culpa é das chamadas elites, às vezes medíocres, que dão lições sem dar exemplos. Alguma culpa é da União Europeia que trata de forma igual o que é diferente. Também é (partes) da classe política e empresarial; esbanjaram fundos como se de prémios de lotaria se tratasse. Fizeram-se estradas e passou a haver dinheiro para novos carros. Mas quem ensinou as crianças das escolas primárias a atravessar uma rua em segurança (como me ensinaram a mim há 50 anos)? Na década de 90 apareceu o dinheiro fácil. Os alunos de há 20 anos atrás são, em parte, os sobreendividados de hoje. Uma educação financeira nas escolas não teria evitado que muitas pessoas caíssem em situações dramáticas?

 

Os números não nos deixam ficar bem quando olhados de fora. O que é que diria a nosso favor?

 

A crise actual não é só portuguesa, mas é óbvio que em Portugal nem tudo tem corrido bem. Falando em crescimento económico e finanças públicas, penso que Portugal se envolveu numa corrida desigual na qualificação para a moeda única, nos anos 90. Os países mais ricos partiram de posições mais cómodas, dispondo já de generosos sistemas sociais, de educação e saúde, e de boas infraestruturas. Esquece-se que a criação de muitas destas coisas em Portugal coincidiu parcialmente com a consolidação das finanças públicas e outras mudanças profundas. Historicamente, por exemplo, Portugal nem sequer tem uma verdadeira tradição de economia de mercado. Em muitos aspectos, Portugal seguramente viveu acima das possibilidades – o que foi incentivado pelos bancos. Mas não se compreende que certos países que agora condenam estes excessos precisaram de ver a grave crise rebentar para perceber que algo estava mal.

 

O seu olhar sobre Portugal mudou no decorrer dos anos? Como era então (quando chegou)? O que mudou?

 

Mudou bastante, sim. Estive aqui pela primeira vez no “verão quente” de 1975. Era estudante com 20 anos, vim com a minha namorada, a tenda e o carocha. Passámos um mês a saborear a revolução, com um ambiente de festa, com vinho e praia no meio. Gosto imenso de recordar este tempo, com tanta esperança que havia, mas que deixou de haver.

 

O que é que sabia de Portugal?

 

Pouco. A não ser que se tinha libertado de uma ditadura através de uma revolução pacífica, ainda por cima com flores. Claro que desejávamos que Portugal saísse da pobreza sem perder o encanto e sem copiar modelos de desenvolvimento menos recomendáveis de alguns outros países. Foi então triste ver o consumismo tomar conta da vida da tanta gente, com os centros comerciais a tornarem-se locais de peregrinação ao fim-de-semana. Mas isso pode ter sido uma fase inevitável para muita gente descobrir o que afinal não quer. Hoje vejo vontade de construir ou reconstruir relações humanas, de preservar o que é vosso e de restaurar património que estava ao abandono. Vejo também a grande desilusão das pessoas aqui com o País marcado por fortíssimas desigualdades sociais e bloqueado por compadrio.

 

A sua leitura de Portugal é marcada pelo seu país de origem?

 

Na juventude, fui influenciado por tudo o que veio na sequência de 1968. Vivendo em grupos de estudantes, passámos por uma espécie de revolução nos corações e na forma de vida, algo que Portugal não teve. Aqui, na sequência da revolução política, o enquadramento para as relações humanas evoluiu muito e houve abertura, mas algumas respostas tardam em aparecer. Há muita solidão no meio de muita gente. Penso que na Alemanha é mais fácil fazer amizades no meio anónimo. Em Portugal há muita gente com medo de se abrir. Às vezes parece-me que aquilo que antes se podia desabafar no fado hoje se conta ao psicólogo. Acho que umas conversas abertas com verdadeiros amigos podem ter melhor efeito que “ajuda externa”.

 

O que é para si pertencer a um país?, ser "um dos nossos"?

 

Sou geralmente bem tratado em Portugal. Alguma desconfiança que pode haver em relação ao meu país de origem supera-se no relacionamento pessoal. O que sou agora, nem sei bem. Já não me sinto alemão, mas também não me sinto português.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2012

João Tordo

29.07.13

João Tordo nasceu em 1975. Quando se fala do futuro do romance português, fala-se dele. Estudou Filosofia e Escrita Criativa. É guionista. Viveu em Nova Iorque, regressou a Lisboa. Com o terceiro livro, ganhou o prestigiado Prémio José Saramago.

 

 

Recebeu o Prémio José Saramago com o romance "As Três Vidas". O que é que isto representa para si?

O prémio representa muitas coisas. Para além da felicidade que é recebê-lo, é também uma responsabilidade enorme, uma vez que, a partir de agora, o nome mais importante das letras portuguesas associa-se, de alguma maneira, ao nosso, e é nosso dever não defraudar as expectativas.

 

Pode falar das afinidades com a escrita do Nobel português?

A minha afinidade com a obra de Saramago é completamente emocional, no sentido em que sou grande admirador dos romances, em particular "O Ano da Morte de Ricardo Reis" e "O Homem Duplicado", dois dos livros que mais me marcaram e me converteram num "saramaguiano". O primeiro pela magnífica efabulação do heterónimo de Pessoa e o percurso solitário pela melancolia portuguesa, o segundo pela demonstração de um thriller sobre o tão difícil problema da identidade.

 

No seu romance, fala-se de funambulismo; porquê o interesse pelos que andam na corda bamba? Escrever/viver é um exercício de equilíbrio e desequilíbrio?

Achei que era uma bela metáfora para a vida daquelas personagens e também para o próprio exercício da escrita, quando este é feito na forma de uma confissão. O livro é confessional, e o narrador duvida constantemente da sua capacidade de levar aquela história a bom porto. A pergunta que fica no ar é: o que leva alguém a querer atravessar o vazio numa corda bamba, caminhando no limite do imperfeito? Julgo que a vida pode ser entendida como algo parecido, sobretudo quando as estruturas desta são abaladas e a própria existência é colocada em questão.

 

Camila, a personagem feminina, é uma espécie de anjo da desgraça? Uma encarnação do sonho, da ameaça, do intangível?

 Neste caso, até acho que a Camila é a personagem principal. É ela que coloca a narrativa em movimento no sentido emocional (Millhouse Pascal, o seu avô, cumpre o mesmo papel mas pelo lado intelectual). E sim, julgo que é uma espécie de anjo da desgraça, sendo que a desgraça se abate sobre ela própria. Mais do que as mulheres serem uma força motriz, acho que representam um enigma, não no sentido racional (aí acho que os homens têm algum ascendente) mas no sentido emocional que, uma vez mais, é o que faz mover o ser humano.

 

Grandes acontecimentos da história do século XX (como o 11 de Setembro ou a Guerra Civil de Espanha), servem de pano de fundo e condicionam a vida dos personagens. Há também uma dispersão geográfica (passa pelo Alentejo ou por Nova Iorque). Há indivíduos de diferentes idades e de diferente condição social. Qual é o fio condutor essencial?

O fio condutor vai-se encontrando na procura, uma vez que o romance é uma aventura que percorre muitos anos da vida do narrador e várias épocas históricas. Talvez o problema da morte seja aquilo que, no final, acaba por determinar a narrativa: como resistir à morte, sobretudo à segunda morte, aquela que acontece quando já não há ninguém que se lembre de nós? O Javier Cercas falou uma vez disto, dessa segunda morte, dizendo que a literatura o que faz é resgatar os mortos. Esse é o sentido da narrativa n’ “As Três Vidas”: o resgate daquelas personagens que determinaram a vida do narrador e, uma a uma, pereceram sem deixar outro rastro que não as memórias. Por isso, a literatura é memória e, nesse caso, auto-conhecimento retrospectivo, construído a partir da memória.

 

Publicado originalmente na revista Máxima

 

 

 

Pedro Gadanho (sobre Portugal)

28.07.13

Pedro Gadanho vive em Nova Iorque. É o curador de Arquitectura Contemporânea do Museu de Arte Moderna (MoMA). Nasceu em 1968, é arquitecto. Tem desenvolvido um trabalho enquanto crítico, investigador e professor na área das artes visuais.

 

 

 “Dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro.” – Nelson Rodrigues. O que é que o dinheiro e o poder não compram?

 Curiosamente acredito que dinheiro compra até amor verdadeiro, bem como ilusões de poder e aparente futuro. Só não compra felicidade e paz de espírito. Acabei de aterrar numa cidade que é o exemplo infeliz e acabado desta dura verdade.


“Mantém os amigos por perto; e os inimigos, mais perto ainda” – Don Corleone, “O Padrinho”. Conhece bem os seus amigos e inimigos?

 Às vezes, parece-me que conheço melhor os meus inimigos. Talvez porque já os conheci de perto. E, no entanto, não tive nem tenho qualquer vontade de os manter por perto. Procuro ignorar que os meus inimigos existem, de uma forma que pode aparentar, até, uma certa naiveté. Mas que os há, há. E às vezes são os mais surpreendentes e inesperados. Aqueles que não precisavam de o ser, que supostamente seriam maiores que a necessidade de alimentar pequenos ódios, mas que afinal, como o escorpião, não conseguem conter a sua natureza.


“O dinheiro não traz a felicidade. Manda buscar.” – Millôr Fernandes. O poder não dá felicidade. Mas manda buscar?

Nem dá, nem manda buscar – pelo menos para mim. Desejei sempre apenas o poder suficiente para poder fazer aquilo que achava útil à sociedade. Como sabemos, até para isto é preciso algum poder, já que as resistências, principalmente em países pequeninos como Portugal, são brutais. Na verdade, abomino o poder que se esbanja e se exibe – e que deixa tantos pobres de espírito a babar e invejar.

 

“Se quiseres pôr à prova o carácter de um homem, dá-lhe poder.” – Abraham Lincoln. Isto equivale ao nosso: “Se queres ver o vilão, põe-lhe a vara na mão.”?

Não me parece. O vilão já tem o carácter definido antes de se lhe colocar a vara na mão. O poder não revela o carácter, põe-no, de facto, à prova, tenta-o, procura a sua transformação em algo que poderia nunca ter sido. Nesse sentido, sinto que é bom ter chegado ao que os outros vêem como uma posição de poder – e que o tem de facto, embora seja um poder puramente simbólico, de construção de história cultural – já com o carácter amadurecido e definido. Poderia ficar deslumbrado. Mas na verdade apraz-me perceber que a solidez das minhas posições, o gosto que formei, os pontos de vista que cultivo dificilmente são alterados pela mudança de contexto.

 

“Usa o poder que tens. Se não o usares, ele prescreve.” – provérbio chinês. Só o poder formal prescreve? Que poderes não prescrevem?

 Se não usares o poder que tens para transformar o mundo, por pouco que seja, esse poder definha, emudece, amolece, auto-censura-se e, um dia, calar-se-á de vez. É terrível pensar que isto acontece com gerações inteiras em Portugal. Não é de agora, mas quando finalmente havia uma geração com uma formação mais completa e profunda, eis que crise lhes tirou o tapete debaixo dos pés. E isto, como escreveu Paul Krugman recentemente, a propósito do desemprego nos Estados Unidos e na Europa, representa uma perda económica brutal para o país. Investe-se em criar “poder” que podia gerar todo o tipo de empreendedorismo, mas depois não se verificam ou oferecem as condições para que esse potencial seja realizado.


“Yes, we can” – Obama. Foi a força das palavras que elegeu o primeiro presidente afro-americano nos Estados Unidos?

Não, foi o querer acreditar demasiado que havia alguém que conseguiria ser diferente. Notoriamente, agora que as pessoas verificaram que Obama é apenas mais um político, parece ser mais difícil a reeleição, mesmo partindo com a vantagem de já estar no gabinete.


Quem é que tem poder em Portugal? Os banqueiros, os políticos, os artistas, a construção civil, as pessoas que aparecem na televisão?

As velhas famílias, os carreiristas, os corruptores. Muito mais abaixo na lista, vêm aqueles que construíram algo visível com o valor do seu trabalho. Portugal é muito velho, não é um país para novos e inocentes. Por isso, os novos e inocentes emigram à procura de novos horizontes.

  

Sem falsas modéstias, e partindo do princípio que, pelo menos no nosso quintal, todos temos poder: considera que é uma pessoa poderosa? Em que é que se baseia o seu poder?

Não me considero uma pessoa poderosa, talvez apenas influente num meio circunscrito. Qualquer poder que tenha tido com a minha actividade profissional baseou-se apenas na possibilidade e capacidade de fazer escolhas e, assim, legitimar ideias, tendências, pessoas. Ainda é assim, mas agora a uma escala global. No MoMA ainda faço escolhas – por exemplo, de peças para a colecção permanente do museu. E estas escolhas apenas são mais relevantes porque têm impacto junto de mais pessoas, mas também porque têm a qualidade de criar história cultural, de constituir um arquivo e um mecanismo de legitimação de uma forma quase instantânea.

 

O que é ter uma agenda poderosa? É ter o telemóvel de Fernando Ulrich? É ter andado na escola com o Paulo Portas? É ser convidado por Ricardo Salgado para um almoço na Comporta? É conhecer o primo da mulher do assessor do ministro que manda?

Qualquer destas hipóteses pressupõe que o poder vive apenas do tráfico de influências. Talvez seja verdade, mas isso constitui uma visão empobrecedora do poder. Quero crer que há outras formas mais relevantes e interessantes de criar ou gerir o poder.

 

Marcelo Rebelo de Sousa/ Ricardo Araújo Pereira: qual deles tem mais poder?

O Marcelo Rebelo de Sousa. O poder, como outras coisas, funciona como uma cadeia de influência que se espalha por círculos cada vez mais alargados. É o que os anglo-saxónicos referem como trickle down effect. Chegar a uma base de receptividade popular, sem ter uma verdadeira influência sobre os círculos intermédios de opinião – como é o caso do Ricardo Araújo Pereira – representa menos poder do que um caso, como o do Marcelo, em que há poder sobre os poderosos, só depois se chegando a atingir círculos com menos poder. 


Muito poder torna uma pessoa impopular? Embirramos com o chefe porque ele tem poder, porque invejamos o seu poder, porque insuportamos a maneira como exerce o poder?

O poder pode. O poder interfere. O poder revela o não-poder. Logo gera ressentimento em quem sente que o não tem.


A vaidade tem razões que a massa encefálica desconhece? É o desejo de reconhecimento, mais do que tudo, que instiga o desejo de poder?

Sempre achei – senti na pele – que o “desejo de reconhecimento” está nos olhos de quem reconhece. A maior parte das pessoas faz porque tem que fazer, mesmo que contra tudo e todos. O reconhecimento gera apenas a satisfação de sentir que havia razão na determinação. Claro que há vaidade no facto de querer ter razão. E mesmo se o reconhecimento não é o motor das coisas, não deixa de ser verdade que o não-reconhecimento desilude.


O desejo de poder é indissociável de úlceras, cabelos brancos, rugas na testa? Ser ambicioso ainda é pecado? Porque é que se aposta “naturalmente” a palavra “desmesurada” a ambição?

 

Se ser ambicioso alguma vez foi pecado, foi-o apenas em sociedades movidas pela culpa e pela mediocridade. Ser ambicioso pode justamente não ser “desmesurado”, nem gerar úlceras e cabelos brancos. Pode apenas ser a gestão e o cálculo ponderado de onde se tem que estar a seguir. Sem a ambição de querer fazer mais e melhor, parece-me impossível fazer mais e melhor. Os resultados, como os almoços, não caem do céu.

O poder, como a política, produz sempre inimigos? Os inimigos são os invejosos?, os insubordinados?  

 

O poder também cria milhares de “novos amigos” absolutamente desconhecidos. Esta foi uma das primeiras coisas que me disseram em jeito de gracejo quando cheguei ao MoMA.

 

Poder, dinheiro e influência são, no essencial, a mesma coisa?

Não. Há gente com poder que ou tem dinheiro ou tem influência, ou tem ambos. Porém, também há gente com muito dinheiro sem qualquer tipo de poder e influência. E há gente com influência sem dinheiro e sem poder – como eu.

Não há almoços grátis e a canalha vende-se por um prato de lentilhas. Toda a gente tem um preço?

 

Só posso supor que sim. Que eu tenha reparado, nunca ninguém me tentou comprar. Ou, dito de outro modo, ninguém licitou para que eu fizesse alguma coisa que não quisesse fazer.

 

A sua percepção do que é o poder alterou-se desde que vive fora de Portugal?

Não. Para começar só se passaram seis meses. E o mundo, como a natureza humana, não é assim tão diferente do outro lado do Atlântico. Talvez seja preciso viajar para outros lugares ou culturas mais remotas para, de facto, começar a perceber – e a deixar-se tocar por – outras concepções de poder.

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2012

 

 

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