Ricardo Reis (sobre Portugal)
Ricardo Reis nasceu em 1978. Vive em Manhattan. Dá aulas no departamento de Economia da Columbia University. Foi promovido a full professor com apenas 29 anos, um dos mais novos na história da universidade. Antes disso, foi professor na Princeton University.
Estudou na London School of Economics, em Inglaterra, doutorou-se em Harvard. Mais do que tudo, estuda macroeconomia.
Os portugueses “são excessivamente sentimentais, com horror à disciplina, individualistas, talvez sem dar por isso, falhos de espírito de continuidade e de tenacidade na acção”. Salazar, 1938. Continuamos a ser assim?
Nem somos hoje, nem nunca fomos assim. Quanto mais povos conheço e países visito, mais me espanta quão intrinsecamente semelhantes são os seres humanos. Os portugueses fazem o seu melhor, sujeitos às instituições que os rodeiam. Quando um português emigra, e se vê perante instituições diferentes, altera o seu comportamento. Se as instituições em Portugal mudarem, provavelmente também os comportamentos mudarão.
Provavelmente é muito novo para se lembrar do FMI em Portugal no começo dos anos 80 . O que lhe contaram da crise tem alguma semelhança com a crise que estamos a viver?
As duas crises são bastante diferentes. Em primeiro lugar, o nível de vida em 1983 era mais baixo, e a queda de riqueza foi mais acentuada e brusca. Logo, em 1983 os sacrifícios foram maiores, incluindo muita fome. Estamos muito longe dessa situação, hoje. Em segundo lugar, a recuperação nos anos 80 foi mais rápida, porque tínhamos mais ferramentas políticas, sobretudo por termos moeda própria. A crise actual surge após uma década de estagnação e terá sempre uma saída lenta. Nos anos 80 a crise resultou sobretudo da má gestão de dinheiros e finanças públicas. Hoje é uma crise mais concentrada no sistema financeiro e nos problemas estruturais de falta de competitividade.
Os números não nos deixam ficar bem quando olhados de fora. O que é que diria a nosso favor?
Somos um dos países que mais progrediram no mundo entre 1962 e 2012. A minha qualidade de vida é incomparavelmente melhor do que a dos meu avós. Os números não nos deixam ficar assim tão mal.
Tem ideias miraculosas para salvar a Pátria?
Não há milagres, apenas decisões acertadas, empenho e persistência. Sair da crise requer um número ilimitado de pequenos gestos.
“Em Portugal a aventura termina na pastelaria”, frase famosa de Alexandre O’Neill. É forçosamente assim? Quando é que a sua aventura acaba na pastelaria? Quando é que foi além da pastelaria?
Há séculos que os portugueses se desdobram para fora das suas pastelarias. Mas também há muito a apreciar na pastelaria portuguesa. Portugal sempre lutou com o dilema tão bem capturado por Camões no canto IV, sobre se deve partir em aventuras arriscadas na conquista do exterior, ou contentar-se com o que tem, lutando internamente pelos poucos espólios. Na última década, ganharam os velhos do Restelo. Com as PPP, as obras públicas, a corrupção no poder, os centros de decisão nacional, e outros, empobrecemos todos, e extraímos rendas uns aos outros.
Nada é seguro. E tudo é global. São enormes diferenças dos últimos anos.
Com a crise, hoje sobrevive só quem está virado para o mercado externo e arrisca nas exportações. Individualmente, nos últimos 25 anos os portugueses podiam procurar a segurança de um emprego no Estado ou buscar a aventura na economia privada; as instituições premiavam a primeira opção em detrimento da segunda. Há alguns sinais que isso possa mudar. Perene é este conflito entre duas atitudes que para mim melhor caracterizam a aventura portuguesa.
Portugal é o país do desenrasca. Você é adepto do desenrasca?
Não, não sou adepto. Pode ser notável a capacidade de adaptação e resposta rápida a adversidades. Mas a necessidade de recorrer ao desenrasca reflecte sobretudo a falta de preparação atempada. Em parte, isto deve-se ao nosso atraso de séculos na escolarização. Uma das principais lições da escola, que muitos portugueses não tiveram quando foram crianças, é que é preciso fazer o trabalho a horas e pensar de uma forma abstracta nas diferentes tarefas de forma a poder planear a sua execução.
Para além disso, Portugal é há séculos um país com um Governo muito centralizado, com elites governativas muito sensíveis às últimas modas ideológicas do exterior, e com elites económicas muito próximas do Estado. As mudanças de lei e regulação em Portugal são uma constante. Os portugueses estão habituados a viver com regras que mudam constantemente, desencorajando o planeamento atempado. O desenrasca e a capacidade de reagir rapidamente às mudanças constantes no Estado são as competências mais apuradas e premiadas.
Temos uma veia sebastiânica inflamada? Continuamos à espera de alguém (que venha das brumas ou de outro lugar qualquer) para nos resolver a vida?
Por várias razões, sobretudo políticas e históricas, mas também geográficas, quer o Estado quer as empresas em Portugal têm estruturas hierárquicas muito centralizadas. Antigamente, os reis tinham muito poder, hoje os ministros têm uma influência enorme fruto do peso do Estado na economia. E desde sempre, as nossas empresas e organizações concentram o poder e a responsabilidade num único gestor.
Se tudo está centrado numa pessoa...
Os portugueses estão sempre ansiosos que surja um herói porque no mundo à sua volta vêem o poder concentrado em poucas pessoas. Isto também implica, infelizmente, que mesmo as instituições de sucesso em Portugal têm pouca persistência. A bons líderes sucedem-se lideranças desastrosas, e todos eles têm um efeito desproporcional no sucesso.
No discurso Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, Antero de Quental fala de um “conservadorismo religioso que sufocou o pensamento inventivo”. Fala de submissão e resignação. Diz que a abundância dos Descobrimentos não nos ensinou a lidar com o dinheiro que resulta do trabalho honesto. Mutatis mutandis, estas são ainda razões do nosso declínio?
Os Descobrimentos e a abundância ocuparam, no máximo, um século na nossa História Custa-me a acreditar que tenham tido tanta influência no nosso modo de ser. Já o conservadorismo, religioso ou outro, teve talvez um papel fundamental. Portugal chega muito atrasado à Revolução Industrial ou mesmo à procura do conhecimento, investigação científica e empreendedorismo que foram a marca do Iluminismo. Mais de 200 anos depois, continuamos com um grande atraso no uso do conhecimento e na capacidade inventiva.
Aristides Sousa Mendes quase foi eleito maior português de sempre”. O vencedor foi Salazar. Votaria em quem?
Afonso Henriques, Infante Dom Henrique, Fernando Pessoa. Afonso Henriques porque sem ele a pergunta não fazia sentido. O infante Dom Henrique porque é o único português que ocupa um papel de relevo na história do mundo. Fernando Pessoa pelo génio da sua criatividade.
A culpa é dos políticos?, a culpa é das elites?, a culpa é de quem se endivida e trabalha pouco? A culpa é da Europa?, a culpa é da desregulação do sistema financeiro? A culpa não é de ninguém e vai morrer solteira?
A culpa é de um sistema que está desenhado para que se evitem responsabilidades. O exemplo da economia e das empresas é ilustrativo. Em Portugal, um trabalhador que evite no seu posto a responsabilidade de tomar decisões tem o emprego protegido. Porque nunca se lhe pode apontar uma falha grave, ele não pode ser despedido. Ao mesmo tempo, a gestão e a tomada de decisões, mesmo banais, está centralizada em poucas pessoas. Porque são poucos os que decidem tudo, e porque gostam de cultivar a aparência do seu génio para se poderem perpetuar nestes cargos, a maioria da população naturalmente atribui a esta elite as responsabilidades por tudo o que ocorre – mesmo que muito dependa da sorte ou de factores externos.
Em Portugal, culpam-se constantemente os políticos e os capitalistas de todos os males do mundo. Ao mesmo tempo, para problemas pequenos concretos a culpa nunca parece ser de ninguém.
Os portugueses são do tipo “todos me devem e ninguém me paga”? E são indulgentes consigo próprios na falha, no incumprimento?
Não é essa a minha impressão. Até penso que em Portugal há muita auto-crítica e sentimento de inferioridade. Mas na relação dos portugueses com as instituições, e sobretudo com o Estado, talvez tenha razão. O Estado Social moderno em Portugal só se estabeleceu recentemente e muito rapidamente. Por isso, existe talvez uma percepção exagerada dos direitos que cada um tem, com menos enfâse do que desejável nas obrigações que vêm com eles. Existe muita dificuldade em lidar com isto: um euro a mais dado pelo Estado a alguém é um euro que tem de ser tirado ao um vizinho.
Somos um povo que não se sabe governar? Qual é o enguiço? Parece ser assim há séculos...
Podem-se escrever livros sobre esta pergunta. Faço só dois apontamentos. Primeiro, que continuamos com um atraso enorme na educação, quer nos anos passados na escola, quer cada vez mais na qualidade do que é ensinado. Um povo que tem dificuldades em fazer contas de deve-e-haver vai sempre ter dificuldades em governar-se.
Segundo, existe um fascínio por vezes desmesurado com o desenho das políticas e pouca preocupação com a sua implementação e avaliação final. Faltam académicos dedicados à avaliação de programas passados, faltam jornalistas que escrevam livros que exponham histórias recentes, e faltam "think-tanks" ou outras organizações de peritos que produzam pareceres mais técnicos. Nos debates em Portugal, há muitas opiniões, mas poucos factos. Temos melhorado muito, mas continuamos a fazer e a debater política pública de forma amadora.
Publicado no Jornal de Negócios no Verão de 2012