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Anabela Mota Ribeiro

Rentes de Carvalho (sobre Portugal)

19.07.13

Rentes de Carvalho nasceu em 1930. Exilou-se por motivos políticos. Viveu no Rio de Janeiro, S. Paulo, Nova Iorque e Paris. Vive em Amesterdão deste 1956. O seu reconhecimento como escritor aconteceu primeiro na Holanda (foi um político holandês que falou dele a Durão Barroso...). Em Portugal é cada vez mais lido e reputado. Ernestina, La Coca ou Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia são alguns dos seus títulos mais famosos. O mais recente é O Rebate.

 

 

Os portugueses “são excessivamente sentimentais, com horror à disciplina, individualistas, talvez sem dar por isso, falhos de espírito de continuidade e de tenacidade na acção”. Salazar, 1938. Continuamos a ser assim?

Continuamos. Salazar tinha um tão bom conhecimento de quem somos e como somos que, não fosse a cadeira ter quebrado, tivesse ele chegado a centenário, ainda estava no mando. E nós contentes com o paizinho, pois, como disse Pessoa, somos dos que “quem acorda com pouca vontade de trabalhar”. Gostamos de ter paizinhos que de nós cuidem e nos dêem uns trocos.

 

A democracia é de equilíbrio periclitante em tempo de crise?

No tempo em que vivemos creio que não. Mas acontece que a democracia permite  formas mais subtis, eficazes e perigosas para a manipulação e coerção dos indivíduos. Os grupos sem rosto que detêm o poder gozam de quase todas as vantagens da ditadura, sem o empecilho de tiranetes.

 

Os números não nos deixam ficar bem quando olhados de fora. O que é que diria a nosso favor?

Como eu próprio, levado pelas circunstâncias, há uns sessenta anos que “olho de fora”, mas “sou de dentro”, custa-me a ver com clareza. A nosso favor talvez possa dizer que permanecemos adolescentes, recusamos a realidade, somos os alegres descendentes dos tripulantes das caravelas e dos bacalhoeiros que achavam que não valia a pena aprender a nadar.

 

Tem ideias miraculosas para salvar a Pátria?

Creio que sim. Em 1995 entrevistei a Mãe Maria, mais conhecida por Santa da Ladeira, que me afirmou – possuo a gravação – que ia muitas vezes ao Céu e, ao fim da estrada do Céu, viu Deus! "O Pai Eterno, sentado num grande trono, apresentava-se com barbas muito crescidas, tendo à sua direita Jesus Cristo e à esquerda a Virgem e São José. Junto de Deus Pai há uma caneta e uma espécie de olho que se transforma em espelho, tendo em frente uma pomba com a cabeça pequenina, que irradia uma luz que ilumina o Céu inteiro. Os anjos tocam trombetas, entoam cânticos e têm umas letras nas asas, cujo significado não estou autorizada a desvendar."

Temos Fátima, temos a Santa da Ladeira, se ainda não aconteceu o milagre da salvação é  porque, em vez de pedir logo, primeiro queremos ver o Benfica-Sporting.

 

O Zé Povinho continua a ser uma boa imagem do que somos?

Não. O Zé Povinho é um tosco, com o 25 de Abril perdeu a validade. Já somos europeus em demasia, e se nos falta o dinheiro, temos o visual. Na minha opinião, mais que o velho Zé,  um qualquer cantor pimba seria representativo da imagem que oferecemos.

 

Como o Zé Povinho, faria um manguito à Moody’s? Faria manguitos a quem?

Não o faria à Moody's nem a ninguém, porque o manguito demonstra impotência. É, aliás, um gesto pesado e obsoleto, pouco corrente fora de Portugal. O dedo médio tem mais ligeireza, e demonstra certo modernismo quando acompanhado de um "Fuck!"

 

Somos um povo que não se sabe governar? Qual é o enguiço? Parece ser assim há séculos...

Para saber governar é necessário saber obedecer, não recear a autoridade de quem merece tê-la, dar importância igual aos direitos e aos deveres, levar a sério a união, a solidariedade,

o respeito do bem comum. E assim por diante.

 

“Em Portugal a aventura termina na pastelaria”, frase famosa de Alexandre O’Neill. É forçosamente assim? Quando é que a sua aventura acaba na pastelaria? Quando é que foi além da pastelaria?

Fui além da pastelaria por volta dos quinze anos e ainda não parei de correr. Fujo dela como o diabo da cruz.

 

Como é que o ser português aparece no que faz?

O que mais faço é a escrita, por isso fácil se me torna afirmar e provar que sou português dos pés à cabeça, e português me reconheço no bom, no mau, no cómico, no tonto e no infeliz que à nossa gente se aponta. Com uma agradável excepção: a de me saber isento de inveja.

 

Portugal é o país do desenrasca. Você é adepto do desenrasca?

Detesto. Há no espírito do desenrasca o desprezo pela coisa bem feita, pela pontualidade, a obrigação, o cumprimento do prometido. O desenrasca é pueril no comportamento e na esperança de que o enrascado não se vai zangar, talvez até seja capaz de achar graça. O desenrasca é um garoto, no sentido pejorativo da palavra.

 

Temos uma veia sebastiânica inflamada? Continuamos à espera de alguém (que venha das brumas ou de outro lugar qualquer) para nos resolver a vida?

Existe essa veia sebastiânica no imaginário colectivo, mas o português está-se muito nas tintas para a salvação do país e a resolução das crises. O que ele de facto ambiciona é ganhar o Euromilhões e que Portugal fique como está, pois só assim haverá contraste que valha a pena.

 

No discurso Causas da decadência dos Povos Peninsulares Antero de Quental fala de um “conservadorismo religioso que sufocou o pensamento inventivo”. Fala de submissão e resignação. Diz que a abundância dos Descobrimentos não nos ensinou a lidar com o dinheiro que resulta do trabalho honesto. Mutatis mutandis, estas são ainda razões do nosso declínio?

Lidar com o dinheiro que resulta do trabalho honesto? Que dinheiro? Que paga recebia o trabalhador? O filósofo delira. A abundância dos Descobrimentos e o ouro do Brasil foram para as bolsas da Coroa e da nobreza, o povo não viu um tostão. A cornucópia da União Europeia coube aos senhores políticos e aos seus sequazes. O Manel e a Maria têm o cartão de crédito e o desemprego.

 

Aristides Sousa Mendes quase foi eleito maior português de sempre”. O vencedor foi Salazar. Votaria em quem?

Não saberia votar, pois estou pouco ao corrente. Tempos atrás censuraram-me por não reconhecer uma viúva célebre, agora tenho de confessar que ignoro quem seja o senhor Aristides. O meu voto seria nulo.  

 

Precisamos de ser mais organizados, mais empreendedores, mais produtivos. É possível?

É possível, mas não acontece do dia para a noite. É necessário grande esforço, muita escola, mudanças drásticas de hábitos e mentalidade, entrar no servicinho às oito – às nove já é tarde – abolir os almoços de duas horas, tirar das lojas aquele cartaz do "Volto já"…

 

A culpa é dos políticos?, a culpa é das elites?, a culpa é de quem se endivida e trabalha pouco? A culpa é da Europa?, a culpa é da desregulação do sistema financeiro? A culpa não é de ninguém e vai morrer solteira?

Com variações de grau a culpa é de todos nós.

 

 

Publicado no Jornal de Negócios no Verão de 2012 

                                                                                                         

A minha tara

19.07.13

A minha taradice maior, sem dúvida, é a arrumação. Lamento se a um segundo de expectativa sobreveio uma decepção mortal.

Au revoir aos que ficam por aqui.

Posso alimentar a curiosidade e dizer que também tenho uma grande tara por Nápoles, que é a cidade mais caótica que conheço. Suja, ameaçadora, visceral. A cidade onde senti, assim que cheguei, que podia viver. Podia mesmo mudar-me no dia seguinte, apesar da Máfia e dos problemas da recolha de lixo.

O que é que Nápoles tem? Tem o Vesúvio que se vê de todo o lado. Tem Capri ao fundo. Tem evidentemente as melhores pizzas do mundo. Tem o Hércules no Museu de Arqueologia, tem a Ingrid Bergman no filme do Rossellini a ver o Hércules no Museu de Arqueologia. Tem no mesmo museu o mosaico de Alexandre, o Grande, e o suor que se percebe na cara de Alexandre; suor da intensidade e do vigor, mesmo que a cara seja de pedra.

Talvez, por via da contradição, consiga prender o leitor.

Não queria parecer enfadonha, e até insuportável, como são aquelas pessoas que alinham as folhas na secretária antes de começar a trabalhar. Que têm a roupa organizada meticulosamente.

Eu sou desse tipo. Tenho de contrariar-me quando, sem querer, corrijo a posição dos cabides, de modo a que fiquem todos virados para o mesmo lado. Um horror. Taradice a esse ponto.

E a ponto de não suportar uma casa com uma vista soberba sobre Lisboa porque tem uma tal profusão de linhas, uma tal desorganização arquitectónica, que me causa claustrofobia. Esquinas a mais para quem gosta de linhas regulares. Uma espécie de quadro cubista dentro da minha cabeça. Invivível.

Esta taradice da arrumação está ligada a outra, que as pessoas à minha volta consideram uma qualidade inestimável, mas que não o é exactamente: dar tudo o que tenho. Dou livros, sabonetes, figos, roupa, postais, chá, chocolates – são as coisas que me lembro de ter dado a semana passada.

Não é exactamente uma qualidade porque na raiz deste comportamento está, tão forte como o desejo de partilhar, uma necessidade invencível de me desfazer de coisas. Não aguento tê-las comigo. Não consigo ser um contentor de tralha, tarecos, memorabilia, objectos de estimações, pedaços de uma vida – aquelas coisas que se dizem.

Tenho um único objecto da minha infância e tenho a certeza matemática de que um destes dias vai voar.

É-me estranha (incompreensível) a relação emocional com objectos. Se um cataclismo se abatesse sobre a minha vida, em forma de dilúvio ou fogo de Verão, sentiria uma certa pena de não poder ver mais a capa deste livro da Adriana Varejão que agora tenho à frente. Mas não pensaria no assunto uma segunda vez.

Não guardo um jornal no qual tenha escrito, um programa de televisão que apresentei, uma emissão de rádio que tenha feito. Não guardo bilhetinhos, fotografias, lembrancinhas, nhonhozices. Sou uma desgraça para o coleccionismo. A única coisa que alguma vez tentei coleccionar foi caleidoscópios, e estou sempre a dá-los, também. E livros do Nelson Rodrigues, que venero, e que trata de matérias pouco assépticas (para falar eufemisticamente de sexo e morte). Frequentemente pergunto-me: onde está aquele livro com as 1000 melhores frases do Nelson?, ah pois, dei-o. Dou tudo, mesmo aquilo de que gosto e que me interessa muito.

Mas que fazer?, só me interessam as coisas (imateriais) que posso guardar dentro de mim. 

Porque é que isto está ligado à taradice da arrumação? Elas quase assumem, para mim, uma mesma forma. Porque preciso de limpeza, caminhos desimpedidos, clareza, espaço para a novidade e a surpresa. (Borges falava das “esquinas desamparadas” de Buenos Aires; é bonito. Sobretudo no Borges. Na tal casa cubista, não). Preciso de estar sempre pronta para partir. Preciso de me sentir livre. E leve, já agora. Com objectos e objectos empilhados, sem saber em que prateleira os arrumo, à espera de catalogação num futuro próximo, não consigo.

Como ficou provado, esta tara contamina a minha vida toda. E tem um lado sinistro. Como não quero ser uma tara perdida, chegou o momento de irmos para Nápoles.

É como se o destino, em forma de cidade, me arrebatasse. Goethe, que sabia tudo, dizia que lhe faltavam os sentidos para falar de Nápoles. (Excusare o name dropping). Não encontrei melhor definição. O que ali se passa é de um domínio que a palavra não pode intermediar. Não é possível abordar Nápoles com precisão cirúrgica. E Goethe, um alemão, sabia isso. Só é possível perdermo-nos, e gostar. Sem medo.

Nápoles é como esta capa da Adriana Varejão, que tenho à frente e que me surpreende que ainda aqui continue (momento para risos e troça). A obra da artista brasileira é uma superfície fria, com a temperatura e o rigor geométrico do azulejo, cujas vísceras vêm por fora, o coração, o fígado, a tripalhada toda à mostra. Um nojo.

Nápoles está nas vísceras. Eu aparentemente estou na superfície fria. Só aparentemente. Talvez esteja mais em Nápoles. Mas dessas taras, do que uma cidade como Nápoles desperta em nós, não se pode falar.

A minha maior taradice, a maior taradice que podia cometer, seria mudar-me para Nápoles. Outra vida. Talvez quando me reformar, que é uma boa altura para se ser desarrumado.

E agora, aos que ficaram comigo, au revoir. Em italiano, como diria Lauro Dérnio, arrivederci.   

 

 

Publicado originalmente no jornal "i"