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Anabela Mota Ribeiro

Onésimo Teotónio de Almeida (sobre Portugal)

24.07.13

Onésimo Teotónio de Almeida vive nos Estados Unidos. É doutorado em Filosofia na Brown University. É professor catedrático de Estudos Portugueses e Brasileiros e no Wayland Collegium for Liberal Learning da mesma universidade. Autor de duas dezenas de livros e centenas de artigos. Os seus livros mais recentes são De Marx a Darwin - a desconfiança das ideologias (Prémio Seeds of Science para Ciências Sociais e Humanidades); O Peso do Hífen. Ensaios sobre a Experiência Luso-Americana e Onésimo. Português Sem Filtro (crónicas).

 

Os portugueses “são excessivamente sentimentais, com horror à disciplina, individualistas, talvez sem dar por isso, falhos de espírito de continuidade e de tenacidade na acção”. Salazar, 1938. Continuamos a ser assim?

Esse “os” abre uma afirmação que na lógica se chama universal. Permite depois falácias do género: os portugueses são X. Tu és português, logo és X. Não é verdade que os portugueses sejam todos isso, mas é alta a incidência em Portugal de um tipo de comportamento que contrasta com o dos Povos do Norte da Europa (e de grande parte dos chineses e japoneses) e se assemelha muito ao dos mediterrânicos.

 

Falemos então dos tipos de comportamento. Quais são os traços mais constantes?

Acho mais correcto chamar “emotividade” e não “sentimentalidade”. E emotividade em contraste com frieza analítica (não diria “racionalidade” porque ela coexiste com a  emotividade). É mais comum no Norte da Europa encontrar-se o tipo de personalidade que analisa mais friamente, objectivamente, com distância, os problemas; que identifica as soluções e os passos necessários a dar e, com a mesma objectividade, passa a agir em conformidade de modo a obter os objectivos desejados. Mesmo que isso exija sacrifícios. Trata-se de pôr entre parêntesis prazeres a curto prazo que impedem o prazer maior que se obterá a longo prazo.

Tenho consciência de que acabei fazendo um pouco como o saudoso Millôr Fernandes naquela sua tirada célebre: “Os corruptos habitam todas as partes do mundo, quase todas no Brasil”.

 

Como o Zé Povinho, faria um manguito à Moody’s? Faria manguitos a quem?

O manguito é um exemplo de manifestação da emotividade não controlada. Dá o prazer impotente da masturbação (e até usa o braço!): conforta para dentro, alivia a tensão acumulada, mas não resolve nenhum problema. Além disso, a Moody’s nem sequer chega a sentir nada.

 

Somos um povo que não se sabe governar? Qual é o enguiço? Parece ser assim há séculos...

Acho que as pequenas amostras do comportamento das pessoas são o que melhor nos revela como se comportam colectivamente. Observe-se como um grupo de patrícios organiza algo tão simples como um passeio de grupo em dois ou três carros. Multiplicam-se as opiniões, expressas ao mesmo tempo e em tom de voz alto para ser ouvido no meio do barulho dos outros. Cada um achando que a sua sugestão sobre o trajecto será a melhor. Depois, o combinado entre todos acaba de um momento para o outro por ser completamente alterado ao menor pretexto e as combinações iniciais vão-se todas por água ao baixo. De um momento para o outro, está-se de novo na estaca zero.

 

A culpa é dos políticos?, a culpa é das elites?, a culpa é de quem se endivida e trabalha pouco? A culpa é da Europa?, a culpa é da desregulação do sistema financeiro? A culpa não é de ninguém e vai morrer solteira?

Não é exclusivamente português o hábito de se atribuir a culpa aos outros. Alguém sugeriu que quando se está a braços com um problema e uma pessoa está a sorrir, é porque ela encontrou já alguém em quem descarregar as culpas.

Em Portugal praticamos muito esse costume. Nunca a culpa é nossa. É como se fôssemos uns seres sem autonomia habituados a fazer tudo o que mandam os políticos e o Governo. E por isso, quando as coisas correm mal, as culpas pertencem-lhes exclusivamente. É uma auto-infantilização.

 

Porque é que não crescemos? Porque é que não rompemos o círculo?

Em Portugal como em qualquer país, os políticos, como toda a gente do país, partilham de hábitos mais ou menos comuns aos seus concidadãos. Quando chegam ao poder, não deixam esses hábitos à porta dos gabinetes ou da Assembleia da República. E um dos hábitos entre nós é culpar os políticos e o Governo. Por isso costumamos eleger os que melhor sabem criticá-los. Ganharam, aliás, notoriedade fazendo precisamente isso. Ao elegê-los, não o fazemos porque passaram um escrutínio e deram provas de saber fazer melhor. Quando lá chegam, passam para o papel de acusados. Os que entretanto saem do Governo vêm queixar-se e explicar as razões que os impediram de fazer o que quer que fosse. Claro que foi por culpa de X, Y, e Z.

É uma cultura excessivamente verbal e verbosa, acintosa, hipercrítica e que elege em heróis os que melhor se revelam nesse sector.

 

Qual é o tom dessa cultura verbal?

O escárnio e o maldizer entre nós são virtudes que vêm de longe. Quem toma uma atitude positiva, elogiando, acreditando na possibilidade de se alterar o estado de coisas é imediatamente apodado de ingénuo, pateta ou de simplesmente fazê-lo levado por ter interesses escondidos. Sei que estou a simplificar em demasia, no entanto creio que poderia encher umas quantas páginas a dar exemplos concretos de experiências em que me apoio para estas generalizações.

 

Somos dados à flagelação. Hetero-flagelação, bem entendido. Em que situações é capaz de fazer uma auto-flagelação?

Sim, somos. Aí Boaventura Sousa Santos, autor de um livro recente sobre a nossa autoflagelação, tem razão de sobra. Mas também somos dados a euforias irrealistas, como Eduardo Lourenço também apontou e muito bem. As duas manifestações são recorrentes e surgem na sua expressão exagerada de tempos a tempos. Quem se lembra dos anos de verdadeira euforia irrealista entre a Expo-98, o caso de Timor e o Euro-2004? Agora andamos no extremo oposto. Como acontece com as pessoas altamente emotivas, em colectivo as manifestações oscilam entre o excessivo entusiasmo e o pessimismo depressivo. Há também uma bipolaridade colectiva. E quem entra e sai no e do país não precisa de muita perspicácia para detectar estas alterações de humores.

 

No discursoCausas da Decadência dos Povos Peninsulares, Antero de Quental  fala de um “conservadorismo religioso que sufocou o pensamento inventivo”. Fala de submissão e resignação. Diz que a abundância dos Descobrimentos não nos ensinou a lidar com o dinheiro que resulta do trabalho honesto. Mutatis mutandis, estas são ainda razões do nosso declínio?

Tenho escrito muito sobre estas questões. Espero reunir alguns ensaios em volumes para os leitores interessados e com dificuldades de acesso a textos dispersos. O nosso declínio ainda é um mistério e creio que será sempre, porque é igualmente mistério a nossa ascensão em Quinhentos. Há pistas mais ou menos seguras, há elementos que ajudam a explicá-la. Todavia não creio que tenhamos as respostas todas. Se a história de um indivíduo é um problema, imagine-se a colectiva. Para mais, acontecida há 500 anos.

Não creio, porém, que tenhamos mudado assim tanto. Em Quinhentos um grupo de factores liderou um processo, mas não passou de uma relativa minoria, mesmo tendo sido grande o número de portugueses que abalou por esse mundo fora.

 

Os números não nos deixam ficar bem quando olhados de fora. O que é que diria a nosso favor?

Não, não deixam. Mas as pessoas esquecem-se que vivem num país que ainda goza de uma grande paz, que hoje usufruiu de uma grande liberdade, que as relações humanas, por mais complicadas e labirínticas que sejam, criaram uma extensa rede que se estende de familiares a amigos e enchem o quotidiano das pessoas de experiências afectivas potencialmente reconfortantes. Sim, o sol, o clima são também elementos magníficos do quotidiano. O país ainda tem inúmeros recantos lindíssimos. E as pessoas, por mais que hoje detestem a Europa, ainda gozam de tantos bens materiais e sociais que só foram tornados possíveis graças à Europa.

Já agora, regresso à emotividade: não conheço cultura nenhuma que termine e-mails com tantos beijinhos, abraços, forte-abraços, gandabraços. Tudo tem o seu lado positivo e negativo, dependendo do que queremos, do que escolhemos e do que praticamos. Porque uma coisa é certa: não se pode ter um bolo e comê-lo. As escolhas que contam são sobretudo as que fazemos não nas urnas de voto mas na nossa prática de vida diária.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2012

 

 

 

António Pires de Lima

24.07.13

“Eu quero ser eu próprio. Não tem nada contra o meu pai ou o meu avô. Eu sentia dentro de mim a necessidade de ter autonomia, de não ter que ir viver para o escritório do meu pai... Sabe, para se poder ser diferente é preciso confinar uma certa distância, nomeadamente quando somos acompanhados por pessoas que nos amam de forma tão obsessiva e protectora”.

António Pires de Lima não quis ser mais um numa família em que o primogénito se chama António e estuda Direito. Não estudou Direito. Tem 46 anos, cinco filhas, dois casamentos. Vive entre o Porto e Lisboa. Está “a meio do caminho” – a expressão é dele – do desafio Unicer. É um político eventual.

O que é que na sua vida é escolha ou herança? Porque é que, quando pôde escolher, acabou por escolher um caminho (sobretudo político) que o mantinha preso à tradição? Uma tradição que não renega, mas da qual se distancia qb?

Nas fotografias, sobretudo de perfil, percebe-se como é um António dessa família. O mesmo nariz, testa, expressão. A vida dele foi, é, uma tentativa de ganhar o seu próprio recorte.

 

Quer começar por aquilo que na sua vida foi escolha ou por aquilo que é previsibilidade e herança?

[ri um pouco] Vamos começar pelas heranças.

 

Começamos pela herança do seu nome. Que é forte, pesada, talvez?

Não diria tanto. Os meus pais, que ainda são vivos, amaram cada um dos seus filhos de uma forma quase obsessiva. É uma geração que cresceu a seguir à Segunda Grande Guerra e que valorizava, acima de tudo, a unidade, a integridade da família. Essa é a principal herança. Esse lado familiar, quase genético, acaba por marcar a minha vida.

 

Na história da sua família, parece que os elementos masculinos são os mais destacados, preponderantes. O pai, Bastonário. O avô, alta figura do Regime...

Só me apercebi da importância dos elementos femininos da família na adolescência. O que me influenciou mais foi a vida do meu avô, que se entregou ao serviço público de um Regime até se exonerar. Felizmente foi ele quem tomou a decisão [de sair]. Acreditou até morrer. O meu pai empenhou muito na vida profissional, e fez dela, para além da família, uma razão de ser do seu percurso. É difícil imaginar o meu pai sem ser advogado – continua a exercer todos os dias. As mulheres: vivo rodado por mulheres, vou a caminho da quinta filha (que vai nascer provavelmente antes da publicação desta entrevista). A alegria, a energia que me foram transmitidas pelas minhas avós e pela minha mãe, foram fundamentais.

 

No seu imaginário as mulheres encarnam a alegria e o equilíbrio, e os homens representam a seriedade e o cumprimento. Construiu-se como pessoa com estas balizas? Conte-me a história da sua família.

A família do meu pai tem origem no Minho, Barcelos, Santo Tirso. O meu pai veio da terra para a cidade.

 

Há quantas gerações a família tem “muito de seu”? – para usar uma expressão do Porto. Há quantas gerações é que há licenciados – décadas atrás, os que eram letrados quase sempre dispunham de riqueza pessoal.

Capital, não creio que tivessem tido – ou eu não dei por ele – até o meu pai ter construído uma vida confortável. Agora, zelavam absolutamente pela formação intelectual e académica dos filhos. O meu avô, que além de ser meu avô era meu padrinho, desde os meus seis, sete anos levava-me a museus. Contava-me a História de Portugal. Passou-me os seus valores. Deu-me um testemunho muito forte do que é serviço público.

 

Foi uma figura proeminente do Antigo Regime.

Durante mais de 40 anos foi Director-Geral de um ministério, ao serviço de uma visão de país a que era leal. O lado da família da minha mãe é diferente: nasce também na terra, no Douro, Resende, onde os meus pais e os meus tios ainda têm uma pequena casa; vivia no Porto. Era uma família também ligada ao Antigo Regime. O meu avô foi deputado uns anos. Durante as décadas de 50, 60, 70 viviam num conforto material muito maior; tinham propriedades, algum capital.

 

Fale-me da sua relação com o seu avô, além das idas ao museu e das lições de História. É o neto mais velho. Não sei se ele tinha, por isso, uma relação preferencial consigo…

Tinha uma relação muito próxima, é uma sucessão de Antónios, não é? E o mais velho carga sempre um peso, é para ele que se viram em primeiro lugar as expectativas, não é? Passeávamos juntos, íamos lanchar à Garrett, na zona do Estoril. Era uma pessoa muito serena e tranquila.

 

Falava muito?

Dizia-me que mesmo nas alturas mais difíceis da vida dele, e teve muitas, porque sempre viveu a contar o dinheiro, e teve nove filhos, nunca houve uma noite em que não tivesse dormido as oito ou nove horas sagradas. Eu olho para essa serenidade com alguma inveja.

 

Como é que aprendeu a viver com o esquema de valores do seu avô? Estamos a dar um salto enorme, mas imagino que, numa determinada altura da sua vida, tenha interrogado o passado político do seu avô.

Apanhei a revolução de chapa. Tinha 12 anos. O meu avô passado dois ou três meses reformou-se. Mas não teve mais consequências para a família do que essa.

 

Que, emocionalmente, é uma consequência pesada.

Sim, mas eu cresci a contradizer o meu avô e a ser um rebelde. A partir dos 13, 14 anos, era frequente tomar a iniciativa das hostilidades em cada jantar de família ou em cada Natal.

 

Porquê a hostilidade?

Se eu queria fazer alguma coisa na vida, tinha que construir um conjunto de valores que eram meus, que não podiam ser um mero copy-paste do que tinha recebido do meu avô. Também o meu pai foi uma pessoa independente, nunca se colou ao Antigo Regime. Eu queria construir uma vida profissional forte, mas em definitivo não queria ser advogado.

 

Como foi essa revolução familiar? Ainda por cima, logo a seguir à Revolução, que ditou o desmoronamento de um tempo...

Não foi nada intelectual, que tivesse nascido na cabeça; foi epidérmico. Ou construía o meu próprio espaço ou estava tramado. Nunca conseguiria libertar-me daquele peso familiar tão forte. Lembro-me de ter dito ao meu pai, primeiro, e depois ao meu avô, que não iria para Direito – não tendo eu a mínima ideia do que é que iria ser. O meu pai, muito ao estilo dele, escondeu a decepção e disse: “Óptimo. O importante é que sejas bom naquilo que decidires vir a ser, e acima de tudo, que sejas útil”. Já o meu avô, demorou algum tempo a engolir a decepção; tinha criado a expectativa de eu ser a terceira, quarta ou quinta geração, já nem sei: mais um herdeiro daquela linha que tinha dominado a família até ali.

 

Voltando ao começo da entrevista: deixamos o que é herança e começamos a entrar no que é escolha.

Foi a partir daí que comecei a construir, um bocado às apalpadelas, sem saber muito bem por onde ia, um caminho. Comecei a ter uma vida política a partir dos 30 anos, que foi uma coisa que o meu pai nunca ousou ter – e tinha imenso jeito para isso.

 

Porque é que acha que ele não ousou ter?

Tem que lhe perguntar a ele. Recebi alguns reparos amigáveis do meu avô quando procurei ter uma intervenção dentro desse sistema político – o democrático...

 

Nomeadamente?

Que estava a perder o meu tempo. (Não acreditava num regime democrático, a funcionar com partidos). Que me devia focar na vida familiar e empresarial. Eu adoro o meu avô, adoro o meu pai. O meu pai, do ponto de vista do carácter, do desapego ao poder e material, é uma referência moral muito forte para mim. Mas a necessidade de construir o meu espaço, a minha carreira autónoma, e até a minha vida familiar, levou-me a decidir não ser advogado. Foi uma não decisão, no sentido de não querer ir por ali.

 

Estudou Gestão.

Fiz um curso de gestão e o mestrado fora de Lisboa, em Barcelona. Foi importante, com 21, 22 anos, sair. Nada estava especialmente programado.

 

Esta insistência no seu avô tem que ver não só com o peso de uma figura como ele, mas também porque parece que herdou uma coisa dele: saber mandar.

Não sei se aprendi a mandar com o meu avô. Se alguma coisa aprendi com ele, foi a servir. Causas “nobres” ou perdidas – o caminho vai esclarecendo. O meu avô mandava sempre de uma forma muito discreta. Pelo menos naquilo que eram as relações familiares. Nunca o ouvi elevar a voz, nem manifestar grandes gestos de presença. Passava os fins-de-semana, quando eu era criança, a despachar papelada numa camilha, enquanto me dava livros para ler.

 

O quê? Coisas muito orientadas, ideologicamente?

Livros de História. Aos 14 ou 15 anos, julgo que se terá equivocado na livraria, deu-me dois livros sobre o Holocausto: Um Saco de Berlindes, e o Mila 18, do Leon Uris. Fiquei chocadíssimo com aquilo que li. O meu avô não era nazista, nem pouco mais ou menos, mas havia uma certa aquiescência relativamente à posição que Portugal tinha assumido – e que tinha livrado Portugal da Guerra e a entrada do comunismo na Península Ibérica.

 

Era isso que ele destacava? O facto de o Regime ter poupado Portugal à Guerra?

De ter estabelecido um ordem, que ele achava que era construtiva, e que era um grande contraste com a “bagunça” da primeira República, que ele tinha vivido enquanto jovem.

 

Acha mesmo que foi por equívoco que ele lhe deu os livros?

É engraçada, a sua pergunta. Ele raramente se equivocava.

 

Estava a perguntar-me se ele gostaria de deixar, uma vez ou outra, o gérmen da inquietação, da intranquilidade, que conduzisse à discussão.

Se calhar. Ele prezava bastante o tipo de discussões e polémicas que tínhamos. Dizia que eu tinha um espírito rebelde, que o contrariava sistematicamente. Acho que, ao mesmo tempo, isso o irritava e lhe dava gozo.

 

Era o único contestatário?

Essa rebeldia está presente em muitos dos filhos do meu avô. Um era ligado à extrema-esquerda. Apoiara e advogara causas de esquerda, mesmo durante o Antigo Regime – o Joaquim Pires de Lima. A coisa que o meu avô mais prezava era o carácter. Detestava gente submissa. O meu avô e o meu pai, cada um à sua maneira, foram criando, dentro de mim, algum estímulo para que seguisse o meu próprio caminho.

 

Porque é que acha que ele detestava pessoas submissas, se aquilo que fazia era controlar o Ministério do Interior, que por sua vez controlava as questões relacionadas com a segurança e com a polícia?

Sempre me disse que a questão da segurança, a DGS, era um pelouro que não era dominado directamente por ele. Acho que reportava directamente ao Presidente do Conselho ou ao Ministro do Interior. Mas a verdade é que nenhum dos filhos dele nasceu ou cresceu particularmente submisso.

 

São insubmissos porque o patriarca era autoritário e era preciso fazer o jogo contrário?

Não. Tanto ele como a minha avó, não creio que prezassem filhos, netos, pessoas moles...

 

Mole é a canalha.

Depois do 25 de Abril, para além das pessoas que eram a sua referência, o meu avô valorizou figuras como o Álvaro Cunhal, mais do que os democratas do CDS, PSD ou do Partido Socialista. Quando o meu pai foi Bastonário, um dos seus mais próximos parceiros foi o Garcia Pereira [MRPP]. Isto é típico na família Pires de Lima: serem de direita, ou, no caso do meu avô, de extrema-direita, e terem uma relação forte com quem está do outro lado da barreira ideológica.

 

A relação do seu avô e do seu pai com o filho e irmão, Joaquim Pires de Lima, que estava nos antípodas politicamente e na forma de estar, era igualmente boa? Este tópico interessa-me para saber como se lidou na família com a sua rebeldia. Não era a única ovelha tresmalhada.  

A natureza das minhas divergências e das minhas rupturas nunca foi tão radical quanto a do meu tio Quiqui. Continuo a dizer que sou uma pessoa de direita, embora muito diferente daquilo que é a pessoa de direita típica neste país. Profissionalmente sempre tive um caminho próprio, mas muito certinho.

 

Muito certinho?

Sim: nunca fui pegar touros, como alguns dos irmãos dos meus pais. Consegui conciliar independência e rebeldia com valores que me foram inculcados. A minha vida tem sido sempre esse jogo: respeitar esta vontade de fazer diferente, e ser diferente, e manter um equilíbrio com tudo aquilo que de bom recebi.

 

Disse que foi amado obsessivamente em criança. Depois há a barreira dos 12 anos, com o 25 de Abril e o fim de um tempo. A seguir, um período de rebeldia, como é normal na adolescência.

Ao contrário, tive uma adolescência muito angustiada e pouco rebelde. Tive uma infância muito feliz, calma e serena, apesar de o meu pai ter sido chamado pela segunda ou terceira vez para o serviço militar. Vivemos em Luanda dos [meus] quatro aos seis anos. São as primeiras imagens e cheiros que tenho. O facto de ser filho de uma figura do Regime não o beneficiou. Voltámos quando eu tinha seis anos. O meu pai, com 31 ou 32 anos, ainda estava a recomeçar a vida. A infância dividia-se entre Lisboa e Resende, onde passávamos as férias, e onde chegavam a estar 50 ou 60 primos e tios juntos, durante duas ou três semanas.

 

Família claustrofóbica?

Isto eram os Magalhães. Boémios, divertidos, estroinas. O mês de Setembro era passado no Douro, na quinta de Lamelas. Íamos para o rio, matar galinhas, jogar futebol. Éramos quase todos homens, duas ou três primas. Fui crescendo assim, entre o [colégio] São João de Brito, as férias na praia, as férias no Douro, os anos em Angola. A partir dos 12, 13, 14 anos comecei a sentir uma inquietação interior – que nunca revelei, fui guardando para mim. Era muito tímido, vivia num universo relativamente fechado. Não tinha namoradas, não me conseguia aproximar das pessoas, não sabia como interagir. Só depois comecei a ganhar segurança e confiança naquilo que estava a fazer.

 

O que é que leu nesses anos?

Parei de ler. Tinha lido tanto até aos 13,14 anos... Camilo, Eça de Queiroz, tudo aquilo que via em casa e que se devia ler. Sabe que só retomei o gosto da leitura já adulto, aos 25, 26, 30 anos...

 

E escrevia, um diário? O que é que fazia?, se era tímido, se não se relacionava...

Fazia muito desporto, tinha um grupo social, que apesar de tudo, ia funcionando. No meio daquela confusão interior, fui para Engenharia; antes de entrar no Técnico passei para Economia; a meio do curso percebi que não queria ser economista e fiz um MBA. Li livros que me ajudaram a distanciar da educação religiosa que tinha tido – A Neurose Cristã, alguns textos do Nietzsche. E comecei a identificar-me com algumas imagens políticas, fundamentalmente de Francisco de Sá Carneiro, que apelavam a uma vida rebelde.

 

O que é que era rebelde em Francisco Sá Carneiro?, Snu Abecassis?

Na altura, era muito rebelde. Sempre foi uma figura incómoda para o Antigo Regime. Na relação com Snu Abecassis foi determinado e férreo. Pôs a sua independência e a sua liberdade acima dos valores que tinha herdado. Isso acabava por servir de referência a muita gente que, como eu, estava a crescer.

 

A verdade é que, quando se aproximou da política, foi para um partido mais à direita do PSD; um partido que o aproximava mais do seu passado familiar. É como se a Revolução não tivesse rebentado completamente dentro de si.

Sim, não rebentou, nem do ponto de vista familiar. A nossa família não passou por aqueles incómodos…, nem tínhamos nada que pudesse ser expropriado.

 

O seu pai não tinha dinheiro? Foi tudo construído, depois, com a carteira de clientes?

Tudo o que ganhou na vida foi à custa dele. Até aos meus 16, 17 anos tinha um carro, um Volkswagen 1300, onde viajava com a minha mãe e os quatro filhos. Vive com o que tem, não é rico, tem uma vida confortável. Eu fui educado a prezar esta ideia de que não herdamos nada, e que tudo aquilo que temos na vida é conquistado de forma quase braçal, como os nossos ascendentes seguramente faziam há 100 anos.

 

Apesar de tudo tiveram uma vida muito burguesa, com o colégio São João de Brito, as férias na praia, as férias no campo...

Sim, tivemos uma vida tranquila, mas sem luxos.

 

O que é um luxo?

É fazer uma viagem grande, é fazer uma compra desorbitada no Natal, é atirar-me a qualquer coisa que não seja muito necessária. Ainda hoje tenho dificuldade em fazer determinados gastos quando vou em viagem com a minha família, ou na minha vida pessoal. Não é que eu não viva bem, não preciso de pensar muito no dinheiro que tenho – a vida tem-me corrido bem. Mas sempre olhámos para o dinheiro com uma certa distância, porque nunca o tivemos.

 

É um homem novo e acabou de dizer que não tem que fazer grandes contas. Ganhar dinheiro foi um dos propósitos da sua vida?

Não.

 

Foi o que pensei. Porque esteve sempre entre a política e os negócios. Entre a militância e a necessidade ou vontade de ganhar dinheiro.

Não. Eu preciso, para manter o nível de vida que tenho, e com cinco filhas, de ser relativamente bem sucedido. Mas aquilo que me motiva não é, de todo, ganhar dinheiro. Aquilo que me motiva é ser respeitado, ser considerado, e ser útil nos projectos em que estou. No princípio da minha vida [profissional], senti que o meu lado devia ser aquele que serve projectos com um cunho nacional, por muito bacoco que isto possa parecer.

 

Porque é que isso era importante? Ainda por cima, vindo de Espanha.

Em primeiro lugar, por educação, pelo exemplo do meu avô e do meu pai. E depois apercebi-me do enorme contraste que existia entre a pujança espanhola em 86/87 e a depressão que vivíamos em Portugal nos anos 83/84. Senti um apelo forte para regressar e ajudar, na minha profissão, naquilo que pudesse, o meu país. Houve uns anos em que trabalhei em multinacionais, porque era aí que havia a maior fonte de recrutamento, e foram uma boa escola; mas a partir de 92/93, tinha 30 anos, comecei a procurar projectos que me permitissem trabalhar para grupos empresariais portugueses. Foi também nessa altura que me filiei no CDS e comecei a ter alguma intervenção política, ainda que muito discreta. Senti uma necessidade de me amarrar a Portugal.

 

Explique melhor a necessidade de se amarrar a Portugal.

Tem a ver com os afectos, com a família, com a terra, tudo aquilo que esteve presente no meu crescimento. [Trabalhar] em empresas multinacionais iria conduzir-me necessariamente para longe de Portugal, para longe de pessoas que me são queridas. É uma coisa que condiciona a nossa vida durante 10, 15, 20 anos. Vai-se para onde nos mandam. Senti a capacidade que tinha, quando estava ao serviço dessas multinacionais, de provocar dano a empresas portuguesas.

 

A Compal foi essa oportunidade?, foi a grande oportunidade?

ACompal foi onde pude, em primeiro lugar, testar as minhas capacidades. É mais difícil ser líder de uma equipa portuguesa, e às vezes sozinho, do que estar acompanhado sistematicamente por comités das multinacionais. [Quis] provar que nós, portugueses, temos a capacidade de nos bater de igual para igual. Isso deu-me um certo drive [motivação], excitou-me...

 

Quando é que percebeu que era capaz? O rapaz inseguro e tímido que descreveu precisou de muito para acreditar em si próprio.

Barcelona puxou muito por mim. Ao fim de dois meses, estava a viver numa espécie de república, com um norueguês, um colombiano-espanhol e um chileno... Foi uma experiência…, para quem foi educado na linha, entre Lisboa e o Douro. Tinha saído do país quatro ou cinco vezes até essa altura. Fui fazer um MBA em inglês e não sabia falar inglês... As notas do MBA eram dadas em função da nossa participação nas aulas e dos trabalhos de equipa. Se não participasse, era corrido.

 

Como é que aprendeu inglês?

Eu tinha aprendido inglês no São João de Brito, mas era péssimo. Fiquei nos 14% mais baixos. Entendia o que as pessoas diziam, mas não conseguia falar. Aprendi a desembaraçar-me em inglês, sozinho, no meio daquele curso. A safar-me. A desenrascar-me.

 

Saiu verdadeiramente fora da concha familiar.

No primeiro ano de trabalho, numa empresa espanhola, ainda estava relativamente protegido. Depois fui contratado por uma empresa americana para abrir a delegação em Portugal; tive que contratar pessoas, aos 25, 26 anos estava a chefiar uma equipa de 20 pessoas... A gente vai ganhando confiança à medida que se vai experimentando – não conheço outra forma. Só se aprende a nadar atirando-nos ao mar, não é? E à medida que vamos dando braçadas e percebemos que somos seguidos e que confiam em nós, essa confiança vai-se alimentando.

 

O impacto de um líder mede-se assim? Quando se é seguido, quando confiam? Ou é no gabinete, frente ao espelho, que diz: “Sou mesmo bom”.

Já me achei mais “sou mesmo bom” do que hoje em dia. Aos 30 anos a gente tem essa veleidade… Tenho 46 anos. À medida que o tempo passa, percebemos que o nosso sucesso é feito de coisas muito frágeis. Que a diferença entre ser bem e mal sucedido é fundamentalmente feita pelas pessoas de quem nos rodeamos.

 

Pensei que fosse ao contrário: que fosse o grande líder a pôr a equipa a trabalhar bem ou não.

Já deixei esse registo há uns tempos [risos] É muito importante dar o exemplo, mas, definitivamente, a grande qualidade de um bom líder é saber escolher aqueles que estão com ele.

 

O que é que representou na sua vida o encontro com o Paulo Portas?

Conheço o Paulo desde os seis anos. Fizemos juntos da primeira classe ao segundo ano do liceu. Era um dos meus amigos mais próximos. Distanciámo-nos a partir da universidade, porque o Paulo cresceu de uma forma completamente diferente de todos nós. Era precoce, só se dava com figuras que eram para qualquer outro miúdo de 13 ou 14 anos inacessíveis... Até ao 25 de Abril, fazíamos as brincadeiras típicas dos miúdos “betinhos” do São João de Brito. A partir da Revolução, o Paulo tornou-se uma referência no São João de Brito, deixou aquilo que eram actividades normais...

 

O berlinde e o futebol.

Aos 13 anos já não jogávamos ao berlinde, mas jogávamos futebol! Passou a desenvolver uma vocação fortíssima, de político. Percebia-se que em casa dele só se respirava política. Mas fui sempre tendo uma relação muito próxima, de amizade, com ele; a ponto de termos feito uma lista para as eleições do São João de Brito, em que ele era o Presidente e eu o Vice-Presidente. Já na altura era assim. Eu era a figura popular internamente e ele era o rapaz especial que trazia figuras como o Ministro da Educação para um debate.

 

Ele conhecia essas pessoas através da mãe e do pai.

Os fins-de-semana que ele nos contava eram irreais!, passados na piscina do Estoril Sol com figuras como a Helena Roseta ou o Santana Lopes ou o Sá Carneiro. Aquilo, para mim, era uma aventura. Eu passava os meus fins-de-semana com pessoas da minha idade… Chegar à segunda-feira e ouvir o Paulo descrever as conversas políticas e os projectos que tinha, as pessoas com quem se dava, deu continuidade ao interesse pela política que eu tinha desenvolvido com o meu avô.

 

O que tinha era um desejo de aventura. Que lhe acontecesse a aventura que o Paulo vivia ao fim de semana.

Era um estilo de vida e uma forma de estar diferente. O Paulo era filho de pais divorciados, o que, para a minha família, era uma heresia. Nessa altura, era alinhado com o Sá Carneiro e o lado mais à esquerda do PSD. Trazia um conjunto de ideias e novidades, uma abertura de espírito… Era interessante falar com ele, ouvi-lo. Era diferente da comida que me davam em casa!

 

Antes disso: quando se davam muito, o Paulo era a figura solar? O que contrasta com o menino tranquilo e tímido?

Não me lembro muito do Paulo dos seis aos 10, 11, 12 anos. Era mais culto do que nós, isso sim. Mas destacou-se das outras pessoas – e não é que isso o tornasse mais popular no Colégio – a partir da Revolução. A nossa prioridade era formarmo-nos, termos uma carreira, um curso; o Paulo vivia sempre num mundo à parte – como, aliás, acabou por acontecer.

 

Porque é que era mais popular do que ele?

Estou a dizer-lhe isto, mas hoje em dia ele é muito mais popular do que eu!! [risos]

 

As pessoas conhecem mais o Paulo Portas do que o António Pires de Lima, mas a sua figura é mais moderada. Os moderados estabelecem mais facilmente relações empáticas com o público, são menos ameaçadores... Por isso era mais popular no Colégio?

Eu era mais popular porque era um protótipo. Sempre fui o delegado desportivo, era eu que organizava os campeonatos de futebol, de andebol, de basquetebol, ganhava os corta-matos, era o capitão da selecção de futebol do Colégio (que tinha para aí 12 campos de futebol). Isto é muito mais popular para os miúdos do Colégio do que alguém que convida o Nuno Abecassis, o Vítor Crespo e a Ministra da Educação para um debate sobre o ensino privado e o ensino público. Em 1977, quando tínhamos 14 ou 15 anos, era mais fácil as pessoas identificarem-se com o Pires de Lima do que com o Portas!

 

Era assim que lhe chamavam?

Era! Depois cada um seguiu o seu caminho: ele foi para Direito, eu fui para Economia. Víamo-nos muito raramente, uma vez por ano íamos jantar juntos. Quando formou O Independente, tive algumas conversas com ele; havia pessoas que me eram próximas a serem atacadas pel’O Independente de uma forma desagradável. A certa altura percebi que o Paulo estava muito mais interessado na reconstrução do espaço à direita do PSD do que propriamente n’O Independente. Isso interessou-me. Desenvolveu-se uma cumplicidade, apesar das diferenças que temos.

 

Porque é que lhe interessa a política e a direita, quando o grosso da sua vida foi uma tentativa de criar distância em relação ao seu pai e ao seu avô – que personificam isso?

Foi distância mas também foi proximidade. Sou naturalmente conservador.

 

O que é que representou para um conservador, católico, o falhanço do primeiro casamento?

Foi preciso coragem. Não vou entrar em detalhes, até porque é um tema que não me sinto à vontade para aprofundar.

 

O seu avô ainda era vivo?

Era. Ainda viveu um ano e meio, mas nunca lhe contámos. Ele apercebeu-se, porque no último Natal apareci sozinho; mas nunca falámos sobre o assunto. A minha avó percebeu logo, ao fim de dois ou três meses – as mulheres são muito mais intuitivas na família, mais espertas do que os homens... Apesar de algumas discussões, nunca me senti desapoiado pelos meus país. A minha mãe foi fenomenal durante esse período. Fui educado para tudo, menos para que me pudesse acontecer aquilo. Casei muito novo. Precisei de me separar, de viver sozinho durante um par de anos, de reconstruir a ideia de parceria. Isto implicou muita dor. Uma das coisas que ainda me custam é não viver tão próximo, fisicamente, das minhas filhas mais velhas como gostaria.

 

Interrompi-o. Estava a dizer que é um conservador.

Porque tenho respeito pela tradição e herança que recebi. Também fui educado a ser contestatário e a prezar a liberdade individual das pessoas. Aquilo que mais me irrita na direita é a falta de respeito que tem pela autonomia e pela liberdade das pessoas. A direita tem muita dificuldade – no meu partido, por exemplo – em respeitar a diferença, a divergência.

 

Não poderia ser de esquerda, como seu tio Joaquim?

Eu não sou de esquerda, não sou capaz de me travestir como pessoa de esquerda, nem creio que a esquerda seja mais amiga da liberdade individual que a direita. O meu papel num partido como o CDS é, precisamente, procurar abrir algum espaço para que a direita do CDS seja mais tolerante, mais respeitadora daqueles que pensam ou vivem ou sentem de maneira diferente daquela que faz parte da matriz democrata-cristã. Estou mais próximo do CDS do que dos partidos do centro porque estes sempre me pareceram um bocadinho “desvertebrados”.

 

Houve algum momento em que tenha pensado seguir uma carreira política mais séria, em dedicação exclusiva?

Vou contar-lhe uma coisa que nunca contei a ninguém: na véspera da data limite para entregar as moções de estratégia ao congresso que o Dr. Ribeiro e Castro tinha marcado para que desafiassem a sua liderança, eu tinha uma moção escrita com mais duas ou três pessoas. E para não a entregar nessa data, tomei uma pastilha para dormir. Quando acordei, fui jogar golfe o dia inteiro. Só saí do campo depois de me assegurar que tinha passado a hora limite para entregar a moção. Se tivesse entregado essa moção, tinha tido que me candidatar à liderança do CDS e fazer da política a minha vida durante um bom conjunto de anos. Foi difícil resistir naquela altura em que o Dr. Ribeiro e Castro estava na mó de baixo e todos me empurravam para disputar a liderança. Foi difícil domar o impulso que me atirava contra ele e que me podia atirar, com alguma probabilidade…, não sei.

 

Porque é que resistiu?

Aquilo era demasiado imprevisível para o meu gosto. Não sei como é que se vive da política e se tem um nível de conforto razoável. Isso pesou mais nessa altura. Andei a trabalhar, a estudar para fazer um determinado percurso profissional, e agora vou deitar tudo fora para me meter numa coisa que não sei muito bem o que é? Num partido, ainda por cima, isso eu sei, intimamente, que não aceita metade das minhas ideias?Tive oportunidade de testar muitos dos meus discursos dentro do partido sobre a tolerância perante a liberdade dos outros; sei a reacção que causam. Ter um partido político, pegar no partido e transformá-lo numa coisa diferente, é um sonho...

 

Adiado?

Quase afrodisíaco e adiado. É um impulso difícil de resistir. Ia abdicar de uma vida que tenho para me pôr à frente de um partido que eu talvez não soubesse representar? O CDS é um partido demasiado conservador, muitas vezes até dogmático, para ter um liberal como eu.

 

E medo de ir a votos? Teve também? Medo que o rejeitassem publicamente. Que a outra moção fosse mais votada.

Não, não foi isso. Tive medo de deixar a vida que tenho, isso tive. Porque é boa, gosto dela, dá-me prazer. Não renego o partido a que pertenço, mas a maioria das pessoas que conheço tem um discurso mais dogmático e autoritário do que aquele que eu gostaria de fazer.

 

Isso significa que, agora, a sua intenção é continuar na vida empresarial, adiando um sonho político que pode, ou não, desabrochar no futuro?

A vida tem graça se for vivida com um mínimo de incerteza. Não faço planos a cinco ou 10 anos. A dois anos, estou comprometido com os accionistas da UNICER e com a equipa que entretanto formámos. Depois disso, logo se vê.

 

Para terminar: ama as suas filhas obsessivamente, tal como os seus pais o amaram a si?

Amo, mas é um estilo de dedicação diferente. Desde logo porque, fisicamente, não estou tão próximo, não controlo tanto as coisas, e vivo uma época diferente.

 

Quando o vêem nos jornais ou na televisão, a fazer um papel completamente diferente, elas reconhecem e gostam, ou é como se fosse outra figura?

Não, sou eu. É pretensão minha, mas eu sou exactamente aquele. Às vezes temos que fazer alguns papéis, mas eu sou muito aquilo que sou quando apareço nas minhas vidas públicas, seja aqui na UNICER seja na política. A mais velha, Marta, tem 18, entrou em Medicina este ano. A segunda é a Joana, tem 17. Depois tenho a Madalena, que tem seis, a Matilde, que tem dois, e a Patrícia que vai nascer um destes dias! Muitas mulheres! 

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2009

Filipa César (em Berlim)

24.07.13

Filipa César usa o vídeo para falar de coisas como a linguagem, expressão comportamental ou organização social. É como os flâneurs do século XIX que deambulavam pela cidade para a registarem nos seus suportes – eles na literatura, ela no video art.  É uma mulher atenta às pequenas encenações do dia a dia, à mecânica dessas relações.

Vive em Berlim há sete anos. Quando se despediu, partiu na sua bicicleta. Havia uma cadeirinha para a Rosa, a filha de quase dois anos. “Mas estamos em Berlim, aqui anda-se de bicicleta”. Quis ser fotografada no espaço Kunst-Werke, uma boa síntese da Berlim destes dias – cosmopolita, aberta, contemporânea. Ocupa um edifício e um pátio da velha zona oriental. O artista plástico Dan Graham colaborou na recuperação do café. Comemos paninis com queijo e legumes, e bebemos capuccinos uns atrás dos outros.

 

 

A cidade é um personagem central do seu universo criativo?

A cidade é um contexto, e este é particularmente enriquecedor. Porque está ela mesma em construção, em movimento. Desde há três, quatro anos está também a ser problematizada no cinema. Ou seja, o que é que é Berlim?, o que é que foi Berlim?, que mudança foi esta?

 

O filme «As vidas dos outros» é só um exemplo desse questionamento. Começa-se a mexer na ferida, no que aconteceu na Alemanha antes da queda do muro.

A cidade tem um protagonismo permanente. Mas é suficientemente grande para que cada um possa encontrar os seus passos. Tenho um atelier no cimo de um edifício na Alexander Platz. Estou no centro, mas estou isolada, não tenho contacto com ninguém se não quiser. Não fica muito longe de minha casa, mas não tem nada a ver com Prenzlauer Berg, com as suas casinhas e jardins de infância. Berlim é tão variada... Mudar de bairro é quase como mudar de cidade.

 

Quando se mudou, Berlim era um imenso estaleiro. Vivia na dupla condição de “infiltrada na cidade” e de parte activa na sua construção. A zona leste, sobretudo, estava num processo de renovação acelerado de que quis fazer parte.  Mas hoje, está mais acabada, feita. Por causa disso, é menos estimulante?

Não, é igualmente estimulante. Eu é que me sinto menos estranha nela, e começo a trabalhar de outra forma por causa disso. As observações que eu fazia, de pessoas em situação de espera, em estações..., agora tenho maior dificuldade em entrar nesta análise.

 

Uma das suas peças mais famosas consistia na observação de pessoas numa estação de comboios; tentava registar na cara delas a reacção ao facto de os seus transportes estarem atrasados ou terem sido cancelados. Havia tensão, espanto, ansiedade, dúvida.

Nas minhas primeiras peças, a cidade e a minha condição na cidade, eram tematizadas. Aquilo que me fascinava era analisar a cidade sob o ponto de vista de um estrangeiro. Mas vivo cá há sete anos, comecei a falar alemão, e isso altera a forma de pensar. A linguagem não é só tradução de qualquer coisa. Constrói pensamento também.

 

Não por acaso, a linguagem está cada vez mais no centro do seu trabalho.

Interessava-me sobretudo a linguagem que não era escrita nem falada – a linguagem comportamental. A minha questão base era: como é que a linguagem cinematográfica altera o comportamento do dia a dia no público? Essa relação entre ficção e realidade não é tão estanque. As minhas primeiras peças, não só analisam o cidadão na cidade, como remontam, reutilizam, reencenam depois essas situações. O alemão: aprendi-o depois dos 21 anos, ou seja, de uma maneira lógica. Não é como uma criança que aprende uma língua intuitivamente. Em 2005, numa peça que apresentei no Museu de Serralves, “Ringbahn”, trabalhei esse tema.

 

Observar continua a ser o verbo essencial?

Sem dúvida. Mas o momento fundamental é o seguinte, quando estou na sala de montagem a reorganizar aquilo que vi. O momento criativo é o da articulação. Podemos ter 300 câmaras a apontar para este café, mas o modo como esse material vai ser ordenado e articulado é que vai construir a mensagem.

 

O seu trabalho é muito conceptual. Mas as reacções que procura nas pessoas que filma são do domínio do instinto.

O próprio trabalho de montagem é muito instintivo. Joga-se muito com o acaso, com relações de imagem e som de que não estava à espera.

 

Se vivesse em Portugal, as suas ficções seriam diferentes? Ou seriam as mesmas questões, mas com outras respostas porque a cultura é diferente?

Aprende-se imenso quando se ouve estrangeiros a falar sobre Portugal. São coisas de que não estamos à espera, ou pormenores que nunca foram imporatntes para nós. Em Berlim é possível falar inglês durante dois anos. Estão imensas pessoas de fora e não aprendem necessariamente a língua. Misturam-se italianos, australianos, americanos... Este fenómeno é muito importante para a história alemã.

 

Uma certa miscigenação?

Quando vim, havia uma imagem dos alemães: frios, nazis, calculistas. Esse estereótipo ainda persiste. Mas a realidade está em mudança. Há mesmo um inter-câmbio cultural. Em Portugal, o que faria? Não sei. Fiz uma peça para a Gulbenkian; tematizei o edifício, os subterrâneos, a “vida escondida” num patamar onde vivem e trabalham funcionários. Mostrar os bastidores e o que está para além de: é o que está nessa peça.

 

O seu trabalho é muito focado na organização social e nos seus modos de expressão. Ter uma relação de pertença com Berlim, nem que seja porque é casada com um alemão e tem um filha que é bilingue, alterou alguma coisa?

Comecei a sentir na pele a burocracia!, de que antes não tinha noção. O facto de ter uma filha faz com que organize o meu tempo de maneira diferente. O tempo é muito mais precioso. Quando aos temas e ao olhar, não sei como se tem revertido no meu trabalho. Muitas destas coisas já estavam preparadas antes de a Rosa nascer... Não sei se vai haver uma redirecção do olhar.

 

Publicado originalmente na revista LA Mag em 2007

 

 

 

Álvaro Santos Pereira

24.07.13

Álvaro Santos Pereira é o tipo de entrevistado que não conhece a entrevistadora, e que assume uma inversão de papéis durante a sessão fotográfica. Pergunta-me sobre o regime em que trabalho (freelance), há quanto tempo faço o que faço (há anos), o flow da massa para trás e para a frente. Porque é que ele faz tantas perguntas?

Diz, com ar de quem deixou Viseu há muitos anos: “Não me quer tratar por Álvaro? Uma coisa de que sempre gostei no mundo anglo-saxónico é que não há senhores engenheiros, nem senhores professores, nem senhores doutores. Toda a gente é tratada pelo primeiro nome. Faço questão, quando falo com pessoas em Portugal, que me tratem pelo primeiro nome.”

Combinámos encontrar-nos num café do Chiado. Telefonou dois minutos antes a apontar um atraso de cinco minutos. Eu, a entrevistadora, portuguesa, percebi que estava com um estrangeirado. Ninguém em Portugal se dá ao trabalho de ligar dois minutos antes a avisar que vai chegar cinco minutos depois.  

Ouvi um amolador de facas e tesouras do outro lado do passeio. A imagem era bucólica, longínqua, inesperada no centro da cidade, manhã-não-muito-cedo. Álvaro Santos Pereira deliciou-se a olhar o amolador, a sua perícia, não se irritou com o barulho. Em Vancouver não há disto.

Quando chegou tinham passado não cinco, mas quinze minutos sobre a hora combinada. Desculpou-se o mais que pôde, que não gosta de se atrasar, patati, patatá. Eu, a entrevistadora, portuguesa, tinha-me esquecido que um estrangeirado, uma vez que pisa o solo pátrio, facilmente resvala para as práticas locais – em Portugal sê português, logo, chega atrasado.

A entrevista tem o tom provocador que Álvaro Santos Pereira gosta de imprimir às suas aulas. Quem com ferros mata, com ferros morre. Embora aqui não haja ferros, e um estrangeirado esteja habituado a ter uma plateia a desfazê-lo na primeira oportunidade.

Que temos então? Um homem que tem tanto tempo de estrangeiro como de Portugal e que escreveu um livro que pretende que seja seguido pelo Governo de Passos, se Passos for Governo.

Hoje, dia em que lêem esta entrevista, ele está em Vancouver a fazer uma vidinha em que a aventura acaba na pastelaria, mesmo que seja em Portugal, no verso de O’Neill, que a aventura acaba na pastelaria. No momento em que lêem a entrevista, ele estará a levar os filhos à escola, ou a challenge the students, ou sentado num banco de jardim, com o green e o sea e as mountains à volta, a escrever no seu laptop um romance (o seu programa ideal, confessou).

A entrevista aconteceu há cerca de um mês, quando da apresentação do seu livro-receita Portugal, na Hora da Verdade. “Gostaria que o próximo governo adoptasse a maior parte das políticas que advogo no livro”. Não tem padrinhos, mas Catroga esteve na génese do projecto.

Álvaro vai a ministro? On verra.

 

Escreve romances. Gostava que fizesse uma curta narrativa de quem é.

Só faço o que gosto. A escrever romances, a escrever livros de economia, dou sempre o meu melhor. A vida é tão curta que se não fazemos tudo com muita paixão e muito amor, não vale a pena fazê-lo.

 

Esta personagem é alguém que se permite, ou conquistou, o privilégio de só fazer o que gosta?

Infelizmente não. Mas as principais coisas que faço, faço por opção. Lutei por isso. Adoro a minha família, é a minha prioridade principal. Os meus filhos, o Tiago, a Mariana e o Miguel, têm seis, oito e quatro anos. Os meus livros, a seguir à família, são aquilo a que mais me dedico. Adoro ensinar. O que faço nas minhas aulas é always challenge the students. Para perceberem que as coisas não são tão lineares como pensam.

 

Quem é que no seu caminho o desafiou, como tenta fazer com os seus alunos?

A pessoa que mais me influenciou a nível profissional foi o meu orientador no doutoramento, o Professor Richard Lipsey. Na primeira vez que lhe entreguei um paper, um trabalho de investigação, deu-me o melhor conselho que algum dia alguém me deu: “Se estiveres interessado em chegar onde penso que podes chegar, tens de começar a escrever melhor”. Tinha entregue aquilo um bocado à pressa, à portuguesa, sem o cuidado necessário. E ele, apesar de ter feito um elogio, criticou logo.

Gosto, quando proponho políticas públicas, económicas, que critiquem. A crítica é essencial para o debate. No mundo anglo-saxónico existe a tradição de meritocracia. Se não for bom, as pessoas dizem e acabou. Não se tenta agradar desnecessariamente. Mas quando há elogios a fazer, fazem-se, não vale a pena estar com mesquinhices.

 

A tradição anglo-saxónica é a de não fulanizar. Em Portugal, pelo contrário, tem-se a ideia de que um elogio ou uma crítica, é uma coisa que se faz à pessoa, e não àquilo que ela produz.

Exactamente.

 

Nessa experiência internacional, deixou de ser um português educado na cultura portuguesa para passar a estar no centro do mundo, onde as regras são outras e a qualidade dos players também. Quer falar da abertura a esse mundo?

Fui fazer o Erasmus em Inglaterra. A partir daí fiquei. Venho cá muitas vezes, passo férias com a família, extensas. Acompanho o país; às vezes conheço melhor Portugal do que conheço o Canadá, a nível político e económico. Desde que fiquei fora habituei-me à maneira de ser anglo-saxónica. Há muitas coisas de que não gosto, há muitas coisas de que gosto. A transição foi fácil. Gostei muito de ser estudante em Inglaterra.

 

Para quem escreve romances, os seus resumos são muito resumidos (assumo o pleonasmo). Queria mais details. Foi sozinho? Integrou-se num grupo, foi para um campus?

Vivi nos alojamentos do campus, fiz amigos, deparei-me com uma cultura muito diferente. As festas à sexta-feira, ao sábado, montes de barulho, álcool. Eles agradecem muito mais do que nós agradecemos. Nunca se dá o dinheiro às pessoas sem ser na mão; se puser o dinheiro na mesa ou no balcão está a ser rude.

 

O que acha que significa esse entregar na mão?

Não sei. A cultura do mérito impera, há mais respeito pelo indivíduo do que num país latino. No entanto, a cultura deles é mais impessoal. Quando é para quebrar o gelo das relações, os primeiros contactos são complicados.

 

Era um rapaz inseguro quando foi para Inglaterra?

Nunca fui.

 

Sempre teve confiança em si?

Sim.

 

Porque é que acha que era agradável estar à mesa consigo a conversar?

Em Inglaterra? Vinha de Coimbra, onde existe a cultura de falarmos à mesa a noite inteira, com uma cerveja, uns amendoins.

 

Era agradável porque a sua conversa era sedutora?

Sim. Não tive receio de ir para Inglaterra. Quando ia fazer 16 anos consegui convencer os meus pais a estudar em Coimbra, sozinho. (É uma coisa que não faria agora aos meus filhos... Estou a brincar. Foi um passo óptimo, talvez um dos passos decisivos.)

Eles viviam em Viseu. Já vivo sem os meus pais, (vivia com a minha irmã, que tinha ido para a universidade), desde os 16 anos. Isto fez com que desde o princípio me tornasse uma pessoa segura de mim. Gosto imenso de ter desafios novos, estimulam-me.

 

Estamos no capítulo “Retrato do Artista Enquanto Jovem”. Como é que conseguiu convencer os seus pais?

Consegui persuadi-los que para o meu futuro era indispensável que fosse para Coimbra. Para grande desgosto da minha mãe, consegui. Contavam que não aguentasse em Coimbra e que voltasse para Viseu passado umas semanas. Quando saí nunca pus a possibilidade de voltar.

 

O que é que se expectava para a sua vida? De Viseu a Vancouver é um longo caminho.

Viseu também mudou muito nos últimos 20 anos. Quando lá vou, perco-me, desenvolveu-se imenso. Saí de Viseu porque tinha a ambição de criar uma banda rock [riso]. Eram os 16 anos, era normal que fosse assim. Era vocalista de uma banda em Viseu.

 

Quem olha para si com esse ar engomadinho não pode imaginar.

Se vir as fotografias da altura, era diferente. Aos 15 ou 14 fiz uma banda em Viseu, com as guitarras do Sérgio Rebelo (é um dos melhores economistas nacionais, está na Northwestern University). Também é de Viseu e o irmão dele andava comigo na escola.

 

As vossas influências eram o rock inglês, alternativo?

Cantávamos em português. Gostava muito do Peter Gabriel. Só fizemos um ou dois concertos, pintámos a cara, com letras elaboradas. Eu queria ser economista ou músico. Apesar de fazer umas letras, talvez giras, era um péssimo vocalista. Em Coimbra – um novo desafio, cidade nova, a viver sozinho – o sonho da música deixou de ser tão importante. A escrita passou a ser mais importante. Aos 17, 18 anos tive a ideia do meu primeiro romance. Percebi que o meu desígnio era escrever. O que mais gosto, sem dúvida, é sentar-me e escrever.

 

Que autores lia? O que é que lhe interessava?

Os meus favoritos, ainda hoje, são o Garcia Márquez, principalmente um livro que as pessoas não lêem, O Outono do Patriarca. E já li muitas vezes um livro do Salman Rushdie, Filhos da Meia-Noite. Gostava muito de Pessoa. O meu heterónimo preferido? Álvaro de Campos, de longe.

 

Um verso do Álvaro de Campos.

“Se te queres matar, porque não te queres matar?”. É um poema lindíssimo. Infelizmente hoje não leio poesia tanto quanto ficção. (O maior sacrifício que fiz ao escrever o último livro, para além de ter andado um ano a dormir menos, e dos reflexos na família – sabia que este livro tinha que sair o mais cedo possível – foi estar um ano sem ler.) A primeira coisa que fiz quando acabei o livro foi comprar um livro e lê-lo. Comprei um livro de uma escritora nova, americana, Nicole Krauss, The History of Love.

 

Se era para ser um escritor, porque é que estudou Economia?

Sou as duas coisas. O meu fato-macaco é de economista, mas não consigo ver o Álvaro Santos Pereira sem a literatura.

 

Porque é que foi estudar Economia e não Línguas, Literatura, Filologia?

Adoro Economia porque a Economia tenta perceber porque é que há tanta pobreza no mundo, tantas desigualdades sociais. O mistério de crescimento económico foi o que me fez (e faz, dou aulas de Desenvolvimento Económico) pender para a Economia. Lá por se gostar muito de literatura não quer dizer que não se queira ajudar a resolver os problemas do mundo.

 

Porque é que é especialmente sensível ao problema da pobreza?

Em parte porque vi bastante pobreza quando era novo, não necessariamente na minha família. Não tenho dúvidas que a preocupação em tentar eliminar a pobreza é um dos princípios directores da minha vida. A Economia é uma ciência fascinante. É um bocado como a vida; sabemos a nossa trajectória pessoal, nascemos, crescemos, educamo-nos; se possível, trabalhamos, casamos, temos filhos, reformamo-nos e morremos. Sabemos que a trajectória é a subir, a subir, e depois é descendente. Quando se acorda, às vezes, há surpresas nas flutuações da nossa vida. Como costumo dizer aos meus alunos: “Nunca se sabe se nesta sala de aula, onde me estão a ouvir, encontram o amor da vossa vida”.

 

Vou dizer o que disse o seu professor: para chegar onde acho que pode chegar, tem de me contar mais detalhes. Das suas escolhas, daquilo que as explica. Que coisas viu, que coisas ouviu, que o fizeram perceber a injustiça da pobreza, da distribuição não-equitativa do valor.

Quando era criança passava dias inteiros na aldeia da minha avó. Era muito mau a jogar futebol, mas adorava jogar com os meus primos. E lembro-me de ver miúdos muito pobres, miúdos descalços. Havia famílias onde o álcool era uma tragédia, famílias extremamente humildes. Foram essas experiências, é difícil definir uma.

 

Sentia alguma culpabilidade por ser um calçado entre descalços?

Não, não. Eram poucos os que andavam descalços. Aos oito, dez anos, sente-se alguma culpa?

 

Acha que as crianças não sentem culpa?

Uma vez, já na cidade, éramos uma família de classe média, e havia pessoas na minha escola que eram bastante humildes.

 

Aquilo em que se especializa em Economia é na compreensão daquilo que faz o desenvolvimento económico e naquilo que ajuda a resolver desequilíbrios básicos. Insisto nele por ser um tópico tão importante, mesmo que a escolha não tenha sido consciente.

Não é à toa que os economistas de desenvolvimento económico são indianos ou de países subdesenvolvidos. As pessoas percebem o poder do que é o crescimento económico. Não digo isto neste livro com tanto ênfase, mas digo no anterior, O Medo do Insucesso Nacional. O crescimento económico teve um impacto brutal em Portugal. Há 30 anos era um país muito mais atrasado do que é hoje.

 

Quando usei a frase do seu professor, estava, não só a pedir-lhe detalhes, como a provocá-lo e a tentar perceber como é que reagia a esta provocação.

Gosto de provocações. Sou um incondicional da democracia. O primeiro romance, que as pessoas ainda não leram, porque não está publicado, [decorre desta ideia]: qualquer ditadura é sempre pior do que a democracia.

 

“A democracia é o pior de todos os sistemas, com a excepção de todos os outros.”

Exactamente. Gosto de provocar os meus alunos, perguntando-lhes se os direitos humanos são mais importantes que o desenvolvimento económico. Dou-lhes sempre o exemplo de Tiananmen. Uma aluna chinesa uma vez disse: “Eu estava a ouvir a BBC e a Voice of America e pensava que era terrível o que o meu governo estava a fazer às pessoas, aos estudantes. Tornei-me numa mulher de negócios, viajei pela China, vi muita pobreza, muita fome. Depois de saber da transformação económica brutal que aconteceu no meu país nos últimos 20 anos, já não sei o que hei-de pensar sobre Tiananmen”. Se as autoridades chinesas não se tivessem deparado com a rebelião, será que a China se desenvolvia tanto? É este dilema que provoco nos meus alunos, para os fazer entender que as coisas não são a preto e branco.

 

Qual é a sua resposta?

Claro que Tiananmen foi um erro, claro que as ditaduras são sempre más e são sempre inferiores à democracia. Mas como é que podemos avaliar uma ditadura que consegue levantar da pobreza centenas de milhões de pessoas? O que é que é preferível? Depois de falarmos disto, 90 por cento dos alunos estão a defender as ditaduras e a dizer: ”Nem acredito que estive a defender ditaduras nesta aula, mas fez-me pensar”. No final digo-lhes: “Shame on you!”. Mas é importante que as pessoas percebam que em quase tudo, e na economia isso é importante, não há uma resposta padrão.

 

Nem um livro.

Exacto. Os direitos humanos: é tudo muito bonito, e sou um incondicional da protecção dos direitos humanos. No entanto não há direito mais básico que ter uma vida decente, e ter uma vida decente para os filhos, também. Quando tinha 16, 17 anos, pertencia à Amnistia Internacional, uma organização que ainda respeito muito; mas hoje percebo que as coisas não são tão lineares como pensava.

 

Como é que se desencantou?

Não me desencantei, percebi. A história de Tiananmen é um bom exemplo de como às vezes as coisas não são tão simples.

 

Ficou com um discurso político. Isso é o tipo de concessões e o tipo de conciliação que os políticos muitas vezes fazem.

Espero bem não ter um discurso político. Obviamente tenho um discurso forte – como se diz em inglês, “opinionado”. Toda a gente sabe no meu departamento que não sou politicamente correcto. Se isso é ser político… Nem sempre digo as coisas que as pessoas estão à espera de ouvir. O que não gosto no discurso político é quando, para se proteger determinado interesse, se escondem as verdades. Isso não admito. É um princípio de que espero nunca ter de abdicar na minha vida.

 

Tinha expectativa de o ver político em Portugal daqui a não muito tempo. Estou a ver que dificilmente abdicará da sua carreira de académico em Vancouver.

A nível de serviço público, já disse que essa não é a minha intenção. A minha intenção foi contribuir para uma reflexão dos problemas do país, apresentar soluções diferentes. Tenho todo o gosto em colaborar, mas a questão de me tornar político não se coloca. Se se colocar no futuro, logo se verá. Se isso acontecer, espero que a minha independência e o meu espírito crítico não desapareçam. Tenho a certeza de que isso não vai acontecer. Um dos princípios que tenho é a integridade, a honestidade. Seria uma traição a mim próprio se quebrasse esses princípios.

 

Agora percebo que estou a falar com um homem que tem 39 anos.

Porquê?

 

Porque parece haver alguma ingenuidade no seu discurso.

Talvez. Ou então é de propósito [riso]. Talvez seja a minha resposta política. Neste momento tem que ser.

 

O que é que aprendeu sobre Portugal a partir do momento em que a sua grelha de leitura passou a ser anglo-saxónica?

Há algum tempo que ando a estudar economia portuguesa e Portugal. A vantagem de estar fora é que se consegue ter uma maior distância. Apesar de seguir a blogoesfera, ouvir a rádio e ver a televisão como se vê cá, há muito menos carga emotiva. O ruído consegue-se dissipar. Concentro-me no essencial. Tem-se uma visão mais neutra, mais ponderada.

 

São quase tantos anos de estrangeiro como de Portugal.

A cultura do mérito é muito mais seguida no estrangeiro, sobretudo no mundo anglo-saxónico. Há uns anos, fiz uma cadeira de Economia Urbana na qual estudei os resíduos sólidos urbanos e o modo como se fazia a reciclagem. Fui a três aterros tentar perceber todo o processo. Quando fui tirar fotografias à lixeira de Coimbra, apareceram uns senhores com resíduos hospitalares, sangue, seringas; tornei-me mais discreto e tirei fotografias. Falei com o vereador: “Sei disso, mas prefiro que estejam aí do que deitados num campo qualquer”. Depois fui falar com a QUERCUS: “Vamos esquecer isso por um tempo porque vem aí o Mário Soares fazer uma presidência aberta e temos outras coisas [sobre que falar]”. O meu sogro, que era médico e trabalhava no centro de saúde, em conversa com um administrador, ouviu isto: “Um tipo qualquer, que deve estar à procura de tacho, tirou umas fotografias sobre resíduos hospitalares e causou aqui uma bronca dos diabos”. Isto é a mentalidade portuguesa que ainda perdura.

 

Esperar um tacho?

Sim. Outro exemplo. Quando publiquei o último livro pedi ao Eng. Belmiro de Azevedo para ser o prefaciador. Não o conhecia, conheci-o no lançamento do livro. O Eng. Belmiro de Azevedo é uma pessoa que acredita no mérito, gostou e decidiu dar a cara pelo livro. Um amigo meu, como tenho bastante exposição nos meios de comunicação social, virou-se para mim e disse: “Quem é o teu padrinho?”, “O meu padrinho é o meu trabalho”.

 

Em Portugal pergunta-se quem mete a cunha, qual é o apelido, quem é o padrinho.

Quem o ajudou a chegar onde chegou. Se há coisa em que tenho orgulho, em mim e no meu trabalho, é que tudo foi construído à custa do meu esforço. Se algum dia chegasse a algum lado por causa de um favor que me foi feito, sentiria que estava a perder a face. Acredito piamente, e isto não é uma resposta política, que se algum dia fosse nomeado ou convidado para alguma coisa que não fosse por mérito, estaria a ir contra todos os meus princípios. Não sou assim, não quero ser assim e não gosto quando as pessoas são assim. Isto não é ser moralista. A cultura do mérito é muito importante para mudarmos o nosso país. Os favores e os padrinhos: é vergonhoso! É uma coisa que, espero, seja erradicada, ou pelo menos atenuada, em Portugal.

 

Quando é que percebeu que nada é impossível?

Foi quando estive fora. Dizemos muito isso aos nossos filhos. Se achamos que vale a pena lutar por uma causa, se acreditamos, o trabalho, mais cedo ou mais tarde, vai-nos conduzir a isso. E mesmo que não consigamos, é importante que percebamos que demos o nosso melhor. Quando os meus filhos jogam futebol ou basebol, o que lhes digo é que primeiro tentem ser os melhores, e mesmo que não consigam, é importante que percebam que não deram só 50 por cento.

 

Isso é uma cultura muito orientada para o sucesso.

Não quero ser o melhor, quero fazer o que me faz feliz. Senão não escrevia literatura. O sucesso não é o meu drive.

 

Qual é o seu drive? What makes you run?

Há muitas coisas que me fazem correr. Depende do que estou a fazer. Obviamente, este livro de economia é para influenciar. Gostaria que o próximo governo adoptasse a maior parte das políticas que advogo no livro, porque gosto muito de Portugal e gostaria que o meu país tivesse futuro.

 

Escreveu o livro pensando que ele podia ser uma espécie de manifesto?

Não é um manifesto político. O que se passou nos últimos anos é gravíssimo. É meio caminho andado para o país estar na bancarrota, para as pessoas emigrarem e para haver um desemprego recorde. E não foi por causa da crise internacional, foi por causa dos problemas que se foram acumulando na economia portuguesa nos últimos dez, 15 anos. Há alternativa. A alternativa é o que acho que deve ser feito, o que digo no livro.

 

Foi o Eduardo Catroga, não o seu padrinho, mas aquele que o convenceu a escrever este livro há um ano?

Não, ao contrário. O Eduardo Catroga e o Alexandre Patrício Gouveia contactaram-me quando fiz o segundo livro para pertencer ao manifesto da reavaliação do investimento público. Foi aí que eu e o Eduardo nos tornámos mais conhecidos e amigos. Uma vez vim a Portugal e disse-lhe: “Gostava de escrever um livro sobre finanças públicas; está interessado?”. Ele disse que tinha um bocado de dificuldade em escrever: “Não se preocupe, discutimos as ideias e eu escrevo, gosto de escrever”. Ele gostava de fazer uma coisa que não fosse só de finanças, e eu também queria fazer uma coisa sobre a competitividade. Passado um mês o Eduardo disse que não tinha agenda, e eu disse que não havia problema. De qualquer maneira já tinha começado o livro e fiquei com liberdade total. O Eduardo ainda não leu o livro, vai lê-lo agora, como revelou ontem [na sessão de lançamento]. Foi uma referência para as finanças públicas, não há mais entrelinhas.

 

É claro para si que o livro contém uma receita.

Tem, mas não é mágica, são várias receitas. Estamos numa situação muito parecida com aquela em que estava a Argentina nos anos 30. A Argentina era um dos países mais ricos do mundo.

 

Isso, nunca chegámos a ser.

Claro. A Argentina estava a começar a ser um país intermédio, mas havia a possibilidade de se tornar um alto milagre económico, como nós, até aos anos 90. A Argentina nunca recuperou depois do Perón. Espero que Portugal consiga recuperar depois de José Sócrates e dos governos dos últimos 16 anos. Para o fazer é urgente que o próximo governo mude o curso. Por isso escrevi este livro.

 

Quer convencer-me de que quer continuar em Vancouver, depois do que acaba de dizer? Parece evidente que tem uma apetência política.

O livro tem contornos políticos.

 

Falo da sua vontade de mudar o curso das coisas, confiando em si e naquilo que contém o seu livro.

A política não está nos meus planos. A intenção é a de influenciar, senão não teria escrito o livro. Se me está a dizer que tenho um político dentro de mim, todos os economistas são um bocadinho políticos. Os que fazem macroeconomia têm de ser políticos, porque quando se fala de política económica tem que haver escolhas. Não há que ter medo das nossas opções.

 

Isso já é uma resposta politicamente correcta.

Provavelmente. Tenho a vida tão estabelecida em Vancouver…, é das cidades mais bonitas do mundo. Temos uma vida bastante boa.

 

Como é a sua vida? Vive numa casa boa, vai a pé para o trabalho, trabalha quantas horas por dia?

Os meus filhos acordam às seis e meia, sete, eu acordo com eles. Vivo numa casa perto da universidade onde dou aulas. Preparo o pequeno-almoço para os meus miúdos, preparo café para a Isabel, tomo o meu café, e, ou eu ou ela, levamos os miúdos à escola. (Agora temos ama. A Isabel esteve um ano e meio sem trabalhar para acompanhar os meninos – lá é muito habitual; agora voltou à consultoria, ao project management.) Apanho o autocarro para ir até ao metro. Prefiro porque posso ler os meus livrinhos, as notícias de Portugal na Internet. Chego ao trabalho, e em vez de ir para o meu gabinete, gosto de pegar no computador e ir escrever para um café. (Uma das coisas de que gosto em Vancouver é que há privacidade total.) Às quatro, cinco da tarde vou para casa, a Isabel chega por volta das seis, jantamos, e às oito, nove da noite os miúdos vão para a cama. Se houver hóquei ou futebol vemos um bocadinho. O que faço, especialmente quando estou a escrever livros, é escrever até à uma, duas da manhã. É o dia típico.

 

E os romances que escreve, são sobre quê?

São muito diferentes uns dos outros. O primeiro foi sobre ditaduras. Com três ditadores, um religioso, um comunista e outro tipo Salazar. Um ditador decidiu comprar um país todo branco – a metáfora da ditadura. No final começa a democracia e a cidade é pintada de cores, as letras aparecem pintadas de diferentes cores, no texto. Por isso se chama O Povo Branco e a Revolução das Cores. Escrevi-o em 2004, em português. Não chegou a ser editado; meteu-se outro romance pela frente, um livro de economia, e ainda não tive tempo de o rever. Mais cedo ou mais tarde vou publicá-lo. O segundo, porque adoro ciência e religião, foi sobre a história de Deus e do universo. O pressuposto é: se o universo existe há 14 biliões de anos, sabendo que a eternidade tem triliões de anos, porque é que Deus levou tanto tempo a criar o universo? Tento explicar isso no livro. Deus é a personagem principal. E tento perceber o que é que poderá acontecer no futuro. É O Diário de um Deus Criacionista, foi o primeiro livro que publiquei cá. O terceiro, que já está parado há um ano e meio, é uma história de amor no Portugal rural. Ficou parado por causa de dois livros de economia.

 

Os romances que escreve não têm nada que ver com os livros de economia?

A minha voz em economia é diferente da minha voz na literatura. A escrita tem que se praticar muito, trabalhar muito. O importante quando se escreve é descobrir a própria voz, e ser diferente do resto. 

 

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011

Álvaro Santos Pereira foi ministro da Economia entre 2011 e 2013