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Anabela Mota Ribeiro

João Pereira Coutinho (sobre Portugal)

26.07.13

João Pereira Coutinho nasceu em 1976. É professor universitário. Colunista da Folha de S.Paulo e do Correio da Manhã. Estudou História de Arte, doutorou-se em Teoria e Ciência Política Contemporânea. No Brasil, há quem o aponte como o melhor cronista que se pode ler nos jornais brasileiros.

 

 

 “O dinheiro não traz a felicidade. Manda buscar.” –Millôr Fernandes. O poder não dá felicidade. Mas manda buscar?

Prefiro uma outra máxima de Millôr que se aplica igualmente ao dinheiro. “O dinheiro não traz felicidade. Mas paga tudo o que ela gasta.” Voilà.

 

“Dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro.” – Nelson Rodrigues. O que é que o dinheiro e o poder não compram?

Se fosse menos cínico, diria: uma consciência tranquila. Mas até isso o dinheiro compra: a ciência farmacológica evoluiu imenso nos últimos anos e mandou Raskolnikov para a reforma.  

 

“Se quiseres pôr à prova o carácter de um homem, dá-lhe poder.” – Abraham Lincoln. Isto equivale ao nosso: “Se queres ver o vilão, põe-lhe a vara na mão.”?

Sem dúvida. Como na máxima marxista (tendência Groucho), só devemos respeitar um político que não aceite entrar no clube da política como membro.

 

“Usa o poder que tens. Se não o usares, ele prescreve.” – provérbio chinês. Só o poder formal prescreve? Que poderes não prescrevem?

Creio que o poder da estupidez, da ignorância e da boçalidade nunca prescrevem. Como dizia o saudoso Paulo Francis, a estupidez, a ignorância e a boçalidade ainda são as maiores multinacionais do mundo.

 

“Mantém os amigos por perto; e os inimigos, mais perto ainda” – Don Corleone, “O Padrinho”. Conhece bem os seus amigos e inimigos?

Conheço bem os meus amigos. Os meus inimigos interessam-me tanto como saber a previsão meteorológica para amanhã no Burkina Faso.

 

“O poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente.” – Lord Acton. Porquê? Ter demasiado poder é inebriante?, provoca um desfasamento da realidade?

A frase de Lord Acton é uma tirada clássica do pensamento liberal. Significa que, para o exercício da política, o mais importante não é a quantidade de poder à disposição de um líder. São os limites que colocamos a esse exercício. Assino por baixo.

 

“Yes, we can” – Obama. Foi a força das palavras que elegeu o primeiro presidente afro-americano nos Estados Unidos?

Não, não foi. Obama foi eleito porque os Estados Unidos ainda vivem um profundo sentimento de culpa pela escravatura e pela segregação social. A eleição de Obama simboliza o triunfo da culpa sobre a racionalidade.

 

Quem é que tem poder em Portugal? Os banqueiros, os políticos, os artistas, a construção civil, as pessoas que aparecem na televisão?

Podem ser todas essas pessoas, excepto as que aparecem na televisão. O verdadeiro poder é invisível aos olhos e raramente aparece em frente às câmaras.


Sem falsas modéstias, e partindo do princípio que, pelo menos no nosso quintal, todos temos poder: considera que é uma pessoa poderosa? Em que é que se baseia o seu poder?

O meu poder, a existir, baseia-se na independência perante partidos, no estudo das matérias sobre as quais escrevo e na honestidade perante os leitores. Ter uma destas qualidades já seria bom. Ter as três, todas as semanas, é um milagre que agradeço ao Altíssimo.


O que é ter uma agenda poderosa? É ter o telemóvel de Fernando Ulrich? É ter andado na escola com o Paulo Portas? É ser convidado por Ricardo Salgado para um almoço na Comporta? É conhecer o primo da mulher do assessor do ministro que manda?

Uma agenda poderosa é ter uma vida tranquila e feliz sem precisar de nenhum dos contactos referidos.

 

Ter poder é mandar prender? É contratar, é despedir? É saber mais? É ter relações?

Ter poder pode ser tudo isso. Mas creio que os estóicos tinham razão quando diziam que era o oposto disso: ter poder é não desejar mais do que aquilo que se tem. Touché.


Marcelo Rebelo de Sousa/ Ricardo Araújo Pereira: qual deles tem mais poder?

Depende da audiência, embora talvez fosse mais correcto dizer: depende do país. Em países civilizados, o humor sempre foi mais eficaz do que a seriedade. Em Portugal, onde ninguém se põe em causa e todos se levam demasiado a sério, talvez um professor doutor tenha mais poder sobre as massas do que um humorista.

 

Muito poder torna uma pessoa impopular? Embirramos com o chefe porque ele tem poder, porque invejamos o seu poder, porque insuportamos a maneira como exerce o poder?

Invejamos o poder do chefe porque acreditamos, erradamente, que ele está acima das misérias e inseguranças dos seus subordinados. Não está. Antes pelo contrário: quem tem poder vive a angústia suplementar de que o pode perder.

 

A vaidade tem razões que a massa encefálica desconhece? É o desejo de reconhecimento, mais do que tudo, que instiga o desejo de poder?

Diria que é o desejo de recriar na idade adulta os confortos e as seguranças que se teve, ou não teve, durante a infância. Sem falar de outros traumas, alguns de natureza sexual, que normalmente se manifestam no desejo constante de deixar “obra feita” (sobretudo estradas, pontes, rotundas – numa palavra: betão). A busca de poder é quase sempre um transtorno patológico.

 

O desejo de poder é indissociável de úlceras, cabelos brancos, rugas na testa? Ser ambicioso ainda é pecado? Porque é que se aposta“naturalmente” a palavra “desmesurada” a ambição?

Existe uma diferença fundamental entre querer ser melhor naquilo que se faz e naquilo que somos; e medir uma vida inteira pela quantidade de poder que se acumula. São dois comportamentos distintos: no primeiro, somos a nossa matéria-prima; no segundo, queremos fazer dos outros a matéria-prima.

 

Quando é que o poder se torna perigoso? Quando se torna insaciável? Quando se alia à inteligência (e à competência) a falta de escrúpulos? Quando à embriaguez do status se associa a falta de bom senso?

O poder torna-se perigoso quando é exercido sobre a vida de terceiros sem nenhum limite que seja exterior aos caprichos do poderoso. É por isso que o liberalismo clássico sempre defendeu um “governo de leis”, por oposição ao "governo dos homens”. Os liberais sabiam que não devemos esperar grandes milagres da espécie Sapiens Sapiens. E com razão: só acredita em macacos quem julga honestamente que não é um.


Ter poder é poder escolher não ter patrão?

Ter poder é sermos o nosso próprio patrão. E não estou a falar de trabalho.


O poder, como a política, produz sempre inimigos? Os inimigos são os invejosos?, os insubordinados?

Depende. Há inimigos poderosos e inimigos só invejosos. Nem sempre coincidem na mesma equipa. Quando coincidem, o rasto de destruição é considerável.

 

Poder, dinheiro e influência são, no essencial, a mesma coisa?

Não. Há quem tenha dinheiro mas não poder. Há quem tenha influência mas não dinheiro. E por aí fora. Direi mais: conheço gente que trocava o dinheiro que tem pelo poder que não tem.  

 

Não há almoços grátis e a canalha vende-se por um prato de lentilhas. Toda a gente tem um preço?

Não faço ideia: nunca comprei ninguém e nunca me vendi a ninguém. Sou uma nódoa para os negócios.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2012

 

Rita Barros (em NY)

26.07.13

O Chelsea Hotel, onde vive, funciona como uma amostra microscópica de NY?

O Hotel mudou muito desde que há um ano o gerente e sócio maioritário, Stanley Bard, foi “despedido”. Stanley Bard foi o responsável pela ideia de haver uma mistura enorme de gente, desde o artista falido ao banqueiro, o músico na moda e o fora de moda, o jovem criador com sonhos de se tornar no novo bad boy  e o vagabundo. Desde há um ano que o hotel deixou de aceitar residentes de longa duração, o que tem um impacto neste “caldeirão de cultura”.

 

Poderia trabalhar das nove às cinco? Como se tornou numa pessoa criativa?

Presumo que nove às cinco seja trabalhar para uma companhia, coisa que nunca fiz. Sempre trabalhei como freelancer. No meu próprio trabalho não tenho horários e os dias acabam por ser bem mais longos. Não penso que uma pessoa se torne criativa. A criatividade e a necessidade de mostrar o trabalho fazem parte da própria identidade e de uma maneira de encarar o mundo e de viver nele.

 

Que impacto teve NY na sua actividade criativa? Pode falar do encontro com a cidade?

Foi fascinante. Cheguei em 1980 e fui viver para o East Village, na altura o centro de uma nova visão artística que passava pela música, performance, pintura e moda. Era excitante sair à rua e assistir ao espectáculo diário duma cidade em plena ebulição. À noite, os clubes eram grandes catalisadores para a energia de uma nova geração. Tudo parecia possível.

 

As imagens dos famosos habitantes do Chelsea Hotel são retratos de personagens: excêntricos, singulares, fascinantes. São também pessoas de todos os dias, normais e previsíveis?

Os vizinhos que eu fotografava, apesar de terem um ar extravagante, eram pessoas tão normais quanto o resto. Sempre tive mais receio dos alucinados que se comportam como gente normal e que se chocam com as excentricidades previsíveis.

 

As suas imagens têm duas vertentes: os retratos e a paisagem. O que é que procura quando fotografa pessoas? Registar o lado documental - por exemplo, o trabalho sobre os 15 anos no Chelsea Hotel? Capturar a alma, o génio, a singularidade daquele que tem pela frente?

Os retratos e a paisagem e naturezas mortas (que tenho vindo a fazer) têm um lado subjectivo. Há uma escolha (de enquadramento, de luzes, de composição) que tem como finalidade criar um ambiente específico: um momento que transmite uma ideia. No caso do Hotel, os retratos contam a história de um colectivo complexo, com várias sub-realidades, que funciona com as suas próprias regras. Nas naturezas mortas há um trabalho sobre a ideia da ausência que pode ter contornos ligados à solidão.

 

A solidão, a dependência, o sexo são temas fulcrais nas vidas das pessoas que habitam o Chelsea Hotel? Parecem, muitas vezes, uma condição de um certo desequilíbrio sem o qual não se pode criar... Concorda?

Não, não concordo. O desequilíbrio não é sinónimo do criativo. O sindroma Van Gogh, no meu entender, tem sido explorado demais. Cortar a orelha não implica ser-se génio. A solidão, a dependência etc., fazem parte da vida humana, sobretudo em grandes centros urbanos. No Hotel diria mesmo que é o oposto. Há uma verdadeira comunidade de entreajuda dentro do prédio. O lobby é um verdadeiro salão onde as pessoas se encontram e ficam nas poltronas à conversa. O anonimato funciona como uma escolha e não forçosamente como sinal de desespero. O colectivo não é repressivo e tem uma dinâmica humanista.

 

Vive há muitos anos no quarto onde Arthur C. Clark escreveu 2001, que daria origem ao filme de Kubrick. Como é o seu quarto? E como era o quarto da sua infância? 

 Quando me mudei para o quarto/apartamento 1008, ele estava decorado com o mau gosto típico de certos quartos de hotel. Livrei-me de tudo e criei um espaço à minha medida com paredes de várias cores e o conforto necessário para quem passa bastante tempo em casa a trabalhar. O quarto da minha infância era espaçoso; decorado com um papel de parede de pequenas flores cor de rosa em fundo branco, com janela e porta para uma varanda, com vista sobre o jardim e o mar ao longe. O quarto era dividido com a minha irmã.

 

Publicado originalmente na revista LA Mag