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Anabela Mota Ribeiro

Pedro Gadanho (sobre Portugal)

28.07.13

Pedro Gadanho vive em Nova Iorque. É o curador de Arquitectura Contemporânea do Museu de Arte Moderna (MoMA). Nasceu em 1968, é arquitecto. Tem desenvolvido um trabalho enquanto crítico, investigador e professor na área das artes visuais.

 

 

 “Dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro.” – Nelson Rodrigues. O que é que o dinheiro e o poder não compram?

 Curiosamente acredito que dinheiro compra até amor verdadeiro, bem como ilusões de poder e aparente futuro. Só não compra felicidade e paz de espírito. Acabei de aterrar numa cidade que é o exemplo infeliz e acabado desta dura verdade.


“Mantém os amigos por perto; e os inimigos, mais perto ainda” – Don Corleone, “O Padrinho”. Conhece bem os seus amigos e inimigos?

 Às vezes, parece-me que conheço melhor os meus inimigos. Talvez porque já os conheci de perto. E, no entanto, não tive nem tenho qualquer vontade de os manter por perto. Procuro ignorar que os meus inimigos existem, de uma forma que pode aparentar, até, uma certa naiveté. Mas que os há, há. E às vezes são os mais surpreendentes e inesperados. Aqueles que não precisavam de o ser, que supostamente seriam maiores que a necessidade de alimentar pequenos ódios, mas que afinal, como o escorpião, não conseguem conter a sua natureza.


“O dinheiro não traz a felicidade. Manda buscar.” – Millôr Fernandes. O poder não dá felicidade. Mas manda buscar?

Nem dá, nem manda buscar – pelo menos para mim. Desejei sempre apenas o poder suficiente para poder fazer aquilo que achava útil à sociedade. Como sabemos, até para isto é preciso algum poder, já que as resistências, principalmente em países pequeninos como Portugal, são brutais. Na verdade, abomino o poder que se esbanja e se exibe – e que deixa tantos pobres de espírito a babar e invejar.

 

“Se quiseres pôr à prova o carácter de um homem, dá-lhe poder.” – Abraham Lincoln. Isto equivale ao nosso: “Se queres ver o vilão, põe-lhe a vara na mão.”?

Não me parece. O vilão já tem o carácter definido antes de se lhe colocar a vara na mão. O poder não revela o carácter, põe-no, de facto, à prova, tenta-o, procura a sua transformação em algo que poderia nunca ter sido. Nesse sentido, sinto que é bom ter chegado ao que os outros vêem como uma posição de poder – e que o tem de facto, embora seja um poder puramente simbólico, de construção de história cultural – já com o carácter amadurecido e definido. Poderia ficar deslumbrado. Mas na verdade apraz-me perceber que a solidez das minhas posições, o gosto que formei, os pontos de vista que cultivo dificilmente são alterados pela mudança de contexto.

 

“Usa o poder que tens. Se não o usares, ele prescreve.” – provérbio chinês. Só o poder formal prescreve? Que poderes não prescrevem?

 Se não usares o poder que tens para transformar o mundo, por pouco que seja, esse poder definha, emudece, amolece, auto-censura-se e, um dia, calar-se-á de vez. É terrível pensar que isto acontece com gerações inteiras em Portugal. Não é de agora, mas quando finalmente havia uma geração com uma formação mais completa e profunda, eis que crise lhes tirou o tapete debaixo dos pés. E isto, como escreveu Paul Krugman recentemente, a propósito do desemprego nos Estados Unidos e na Europa, representa uma perda económica brutal para o país. Investe-se em criar “poder” que podia gerar todo o tipo de empreendedorismo, mas depois não se verificam ou oferecem as condições para que esse potencial seja realizado.


“Yes, we can” – Obama. Foi a força das palavras que elegeu o primeiro presidente afro-americano nos Estados Unidos?

Não, foi o querer acreditar demasiado que havia alguém que conseguiria ser diferente. Notoriamente, agora que as pessoas verificaram que Obama é apenas mais um político, parece ser mais difícil a reeleição, mesmo partindo com a vantagem de já estar no gabinete.


Quem é que tem poder em Portugal? Os banqueiros, os políticos, os artistas, a construção civil, as pessoas que aparecem na televisão?

As velhas famílias, os carreiristas, os corruptores. Muito mais abaixo na lista, vêm aqueles que construíram algo visível com o valor do seu trabalho. Portugal é muito velho, não é um país para novos e inocentes. Por isso, os novos e inocentes emigram à procura de novos horizontes.

  

Sem falsas modéstias, e partindo do princípio que, pelo menos no nosso quintal, todos temos poder: considera que é uma pessoa poderosa? Em que é que se baseia o seu poder?

Não me considero uma pessoa poderosa, talvez apenas influente num meio circunscrito. Qualquer poder que tenha tido com a minha actividade profissional baseou-se apenas na possibilidade e capacidade de fazer escolhas e, assim, legitimar ideias, tendências, pessoas. Ainda é assim, mas agora a uma escala global. No MoMA ainda faço escolhas – por exemplo, de peças para a colecção permanente do museu. E estas escolhas apenas são mais relevantes porque têm impacto junto de mais pessoas, mas também porque têm a qualidade de criar história cultural, de constituir um arquivo e um mecanismo de legitimação de uma forma quase instantânea.

 

O que é ter uma agenda poderosa? É ter o telemóvel de Fernando Ulrich? É ter andado na escola com o Paulo Portas? É ser convidado por Ricardo Salgado para um almoço na Comporta? É conhecer o primo da mulher do assessor do ministro que manda?

Qualquer destas hipóteses pressupõe que o poder vive apenas do tráfico de influências. Talvez seja verdade, mas isso constitui uma visão empobrecedora do poder. Quero crer que há outras formas mais relevantes e interessantes de criar ou gerir o poder.

 

Marcelo Rebelo de Sousa/ Ricardo Araújo Pereira: qual deles tem mais poder?

O Marcelo Rebelo de Sousa. O poder, como outras coisas, funciona como uma cadeia de influência que se espalha por círculos cada vez mais alargados. É o que os anglo-saxónicos referem como trickle down effect. Chegar a uma base de receptividade popular, sem ter uma verdadeira influência sobre os círculos intermédios de opinião – como é o caso do Ricardo Araújo Pereira – representa menos poder do que um caso, como o do Marcelo, em que há poder sobre os poderosos, só depois se chegando a atingir círculos com menos poder. 


Muito poder torna uma pessoa impopular? Embirramos com o chefe porque ele tem poder, porque invejamos o seu poder, porque insuportamos a maneira como exerce o poder?

O poder pode. O poder interfere. O poder revela o não-poder. Logo gera ressentimento em quem sente que o não tem.


A vaidade tem razões que a massa encefálica desconhece? É o desejo de reconhecimento, mais do que tudo, que instiga o desejo de poder?

Sempre achei – senti na pele – que o “desejo de reconhecimento” está nos olhos de quem reconhece. A maior parte das pessoas faz porque tem que fazer, mesmo que contra tudo e todos. O reconhecimento gera apenas a satisfação de sentir que havia razão na determinação. Claro que há vaidade no facto de querer ter razão. E mesmo se o reconhecimento não é o motor das coisas, não deixa de ser verdade que o não-reconhecimento desilude.


O desejo de poder é indissociável de úlceras, cabelos brancos, rugas na testa? Ser ambicioso ainda é pecado? Porque é que se aposta “naturalmente” a palavra “desmesurada” a ambição?

 

Se ser ambicioso alguma vez foi pecado, foi-o apenas em sociedades movidas pela culpa e pela mediocridade. Ser ambicioso pode justamente não ser “desmesurado”, nem gerar úlceras e cabelos brancos. Pode apenas ser a gestão e o cálculo ponderado de onde se tem que estar a seguir. Sem a ambição de querer fazer mais e melhor, parece-me impossível fazer mais e melhor. Os resultados, como os almoços, não caem do céu.

O poder, como a política, produz sempre inimigos? Os inimigos são os invejosos?, os insubordinados?  

 

O poder também cria milhares de “novos amigos” absolutamente desconhecidos. Esta foi uma das primeiras coisas que me disseram em jeito de gracejo quando cheguei ao MoMA.

 

Poder, dinheiro e influência são, no essencial, a mesma coisa?

Não. Há gente com poder que ou tem dinheiro ou tem influência, ou tem ambos. Porém, também há gente com muito dinheiro sem qualquer tipo de poder e influência. E há gente com influência sem dinheiro e sem poder – como eu.

Não há almoços grátis e a canalha vende-se por um prato de lentilhas. Toda a gente tem um preço?

 

Só posso supor que sim. Que eu tenha reparado, nunca ninguém me tentou comprar. Ou, dito de outro modo, ninguém licitou para que eu fizesse alguma coisa que não quisesse fazer.

 

A sua percepção do que é o poder alterou-se desde que vive fora de Portugal?

Não. Para começar só se passaram seis meses. E o mundo, como a natureza humana, não é assim tão diferente do outro lado do Atlântico. Talvez seja preciso viajar para outros lugares ou culturas mais remotas para, de facto, começar a perceber – e a deixar-se tocar por – outras concepções de poder.

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2012

 

 

Alexandra Lucas Coelho

28.07.13

Alexandra Lucas Coelho é jornalista. O diário da sua viagem ao Afeganistão resultou no livro “Caderno Afegão”, editado pela Tinta da China. Uma parte desses textos/reportagens foram publicados no Público e na Antena 1. Pela mão da jornalista, somos levados a um país onde “tudo cheira mal como se estivesse podre” e nas “rotundas há rosas lindas”. Onde há uma equipa de boxe feminina e “as burqas estão sempre à mão”.  

 

 

O que é que cresceu nesta viagem? Num país onde há sítios “onde tudo parece possível, até a paz”.

 

A realidade. Pessoas que são o Tareq, o Rameen, a Shaharzad, a Sofia. Lugares que se chamam Cabul mas também Band-e-Amir, e já tinham poetas quando os portugueses ainda estavam a tentar descobrir o mundo. Cada história é um país, mas para a ouvir temos de chegar perto.

 

O seu livro é um relato de medo e de coragem? Uma vez, acorda com tiros na parede atrás da cama. Em Kandahar escreve: “O que estou aqui a fazer? É como se o céu a todo o momento fosse explodir”.

 

Não há viagem sem medo. Avançamos contra o medo, escrevemos num caderno contra o medo, e é contra o medo que nos aproximamos das pessoas. Há medo quando não sabemos se somos o alvo, ou pior, quando o alvo é completamente arbitrário. Deixa de haver medo quando nos sentimos em casa. Na primeira noite em Kandahar, não conhecia ninguém, não sabia em quem confiar, não havia uma única mulher. Dois dias depois já não me queria vir embora.

E escrevi isto: “Rebentamentos e helicópteros Apache, mas crianças a tomar banho no braço do rio. Porque não? Está calor. E tudo aqui é tão menos assustador por ser a vida de todos os dias. Cabul parece perigoso visto da Europa, depois Kandahar parece perigoso visto de Cabul, depois Arghandab parece perigoso visto de Kandahar. E no fim de tudo há sempre homens que vendem bebidas de lata ou têm pomares, homens e crianças descalças a tentarem viver num país sacudido por 30 anos de guerra fria e quente.”

 

A burqa impossibilita as mulheres “de verem o mundo olhos nos olhos”; e “há quem prefira deixar morrer uma mulher a levá-la a um médico”. Como é que conseguiu largar os preconceitos ocidentais e imergir na sociedade afegã?

 

A burqa, e sobretudo preferir deixar morrer uma mulher a levá-la ao médico, não são matéria que entre no campo dos preconceitos ocidentais, são matéria de direitos humanos. São uma violência, no caso das mulheres impedidas de ir ao médico, uma violência extrema, mortal. Não há relativismo possível aqui.

Um viajante é sempre ele a sua circunstância. Porque é antes de mais curioso, o viajante observa, regista, tenta ver o mais possível, entender o melhor que pode antes do julgamento. Essas são as matérias relativas. Depois, há matérias não relativas, o direito à vida, o direito à dignidade.

 

Fala menos dos mortos, mutilados, refugiados. Fala mais das pessoas de todos os dias. Estranhamente, parece que a vida continua, apesar da guerra de três décadas.

 

Há muitos mortos neste livro, e um capítulo inteiro com mutilados que perderam uma ou duas pernas, e um capítulo inteiro com refugiados. E ao longo de todo o livro passam outros mortos, outros mutilados, outros refugiados. Tudo isso é a vida de todos os dias, entre os que estão tão intactos quanto possível, estudantes, atletas, bordadeiras, soldados, polícias, professores, pintores, calígrafos, jornalistas, deputadas, médicas, parteiras, jardineiros. Tudo se mistura, porque é a cada minuto que um inteiramente vivo pode perder a vida. A fronteira é um fio.

 

O livro tem os cheiros do Afeganistão. A matéria fecal e a rosas. O que é que as rosas representam?

 

As rosas são o que não se vê daqui mas também está lá. Tudo é um todo, uma coisa não deixa de o ser por estar diante do seu contrário.

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima