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Anabela Mota Ribeiro

Thomas Fischer (sobre Portugal)

29.07.13

Thomas Fischer nasceu em 1954 na Alemanha. É jornalista, correspondente do jornal suíço Neue Zürcher Zeitung (o jornal de referência da Suíça que fala alemão), e colabora com a TV alemã ZDF. Licenciou-se em Economia. Chegou a Portugal em 1975.

Escreveu guias turísticos; “um sobre Portugal continental (viajei sistematicamente pelo País no tempo em que ainda não havia auto-estradas nem circunvalações) e mais um sobre os Açores. Recentemente, escrevi pequenos guias sobre Portugal e Lisboa para o Clube Automóvel da Alemanha (ADAC)”.

 

 

Os portugueses “são excessivamente sentimentais, com horror à disciplina, individualistas, talvez sem dar por isso, falhos de espírito de continuidade e de tenacidade na acção”. Salazar, 1938. Continuamos a ser assim?

 

Cada ditadura tem a sua maneira de justificar a repressão. Admito que exista em Portugal alguma aversão a excessos de disciplina e há, sem dúvida, falta de civismo. Mas também vejo excessos de conformismo, medo de ser diferente. Há uma obediência perante certas normas (basta ver homens de negócios vestidos de rigor e a suar com temperaturas acima de 30 graus) e hierarquias sociais, com uma submissão aos senhores doutores e engenheiros. Na Alemanha, muitas vezes vista como exemplo de disciplina a mais, algumas regras tornaram-se menos rígidas, o que facilitou a vida em muitos aspectos. Gostava que houvesse mais coragem para ser diferente em Portugal e, em geral, mais sociedade civil.

 

E somos sentimentais?

 

Sim, há alguma sentimentalidade. Mas não gosto de empolar esta ideia lá fora, para não alimentar chavões que acabam por dar uma imagem errada do País e das suas capacidades.

 

Tem ideias miraculosas para salvar a Pátria?

 

Ideias miraculosas não tenho. Mas tenho uma certeza sobre três coisas que fazem falta. Mobilizar, moralizar, motivar. E nada disso se consegue tirando benefícios e regalias, sempre aos mesmos, e empurrando pessoas para a emigração.

 

O Zé Povinho continua a ser uma boa imagem do que somos?

 

Se entendi bem, o Zé Povinho é uma figura irreverente, mas resignada. Em Portugal já não vejo razão para tanta resignação, já que existem novas vias para a participação e intervenção, infelizmente ainda pouco aproveitadas.

 

Somos um povo que não se sabe governar? Qual é o enguiço? Parece ser assim há séculos...

 

Já um general romano falou de um povo nos confins da Ibéria que nem se governava nem se deixava governar. Lamento não haver um livro sobre Astérix em Portugal, já que inspirações não faltavam. Quanto à cultura política, os consensos à volta de um “não” a qualquer coisa parecem mais fáceis do que a unidade a favor de uma causa comum.

 

Temos uma veia sebastiânica inflamada? Continuamos à espera de alguém (que venha das brumas ou de outro lugar qualquer) para nos resolver a vida?

 

Vejo sobretudo que até a República laica tem monarcas, santos, gurus, eminências pardas e figuras com o estatuto de monumentos nacionais vivos. E há muitos candidatos a salvadores da pátria e “sebastiões”. O sebastianismo é alimentado por uma tendência para olhar mais para as pessoas do que para as suas ideias. Ainda se procuram verdades fáceis. Após quase 30 anos em Portugal, ainda me espanta o eco dado em tantos órgãos de comunicação social às opiniões manifestadas por uma meia dúzia de “líderes de opinião”. Até no desporto existe algum sebastianismo, como verifiquei no Euro 2012.

 

Um jogador que é o Sebastião do momento? O salvador.

Não gostei do destaque, ora positivo ora negativo, dado a um só jogador da vossa selecção, sobrecarregado de expectativas, como se os colegas de equipa fossem figurantes. Penso que é preciso ver mais o colectivo, também na política, na sociedade, em tudo.

 

Precisamos de ser mais organizados, mais empreendedores, mais produtivos. É possível?

 

Está mais que provado que é possível. Basta olhar para muitos emigrantes. Podem não ter altos níveis de escolaridade ou de formação, mas têm uma enorme capacidade de adaptação e a fama de serem bons trabalhadores. Em Portugal, empresas bem organizadas, nacionais ou estrangeiras, conseguem óptimos resultados com pessoal motivado. O país tem grandes talentos e capacidades. Infelizmente aproveita mal o que tem.

 

A culpa é dos políticos?, a culpa é das elites?, a culpa é de quem se endivida e trabalha pouco? A culpa é da Europa?, a culpa é da desregulação do sistema financeiro? A culpa não é de ninguém e vai morrer solteira?

 

Todos estes factores têm algum peso. Alguma culpa é das chamadas elites, às vezes medíocres, que dão lições sem dar exemplos. Alguma culpa é da União Europeia que trata de forma igual o que é diferente. Também é (partes) da classe política e empresarial; esbanjaram fundos como se de prémios de lotaria se tratasse. Fizeram-se estradas e passou a haver dinheiro para novos carros. Mas quem ensinou as crianças das escolas primárias a atravessar uma rua em segurança (como me ensinaram a mim há 50 anos)? Na década de 90 apareceu o dinheiro fácil. Os alunos de há 20 anos atrás são, em parte, os sobreendividados de hoje. Uma educação financeira nas escolas não teria evitado que muitas pessoas caíssem em situações dramáticas?

 

Os números não nos deixam ficar bem quando olhados de fora. O que é que diria a nosso favor?

 

A crise actual não é só portuguesa, mas é óbvio que em Portugal nem tudo tem corrido bem. Falando em crescimento económico e finanças públicas, penso que Portugal se envolveu numa corrida desigual na qualificação para a moeda única, nos anos 90. Os países mais ricos partiram de posições mais cómodas, dispondo já de generosos sistemas sociais, de educação e saúde, e de boas infraestruturas. Esquece-se que a criação de muitas destas coisas em Portugal coincidiu parcialmente com a consolidação das finanças públicas e outras mudanças profundas. Historicamente, por exemplo, Portugal nem sequer tem uma verdadeira tradição de economia de mercado. Em muitos aspectos, Portugal seguramente viveu acima das possibilidades – o que foi incentivado pelos bancos. Mas não se compreende que certos países que agora condenam estes excessos precisaram de ver a grave crise rebentar para perceber que algo estava mal.

 

O seu olhar sobre Portugal mudou no decorrer dos anos? Como era então (quando chegou)? O que mudou?

 

Mudou bastante, sim. Estive aqui pela primeira vez no “verão quente” de 1975. Era estudante com 20 anos, vim com a minha namorada, a tenda e o carocha. Passámos um mês a saborear a revolução, com um ambiente de festa, com vinho e praia no meio. Gosto imenso de recordar este tempo, com tanta esperança que havia, mas que deixou de haver.

 

O que é que sabia de Portugal?

 

Pouco. A não ser que se tinha libertado de uma ditadura através de uma revolução pacífica, ainda por cima com flores. Claro que desejávamos que Portugal saísse da pobreza sem perder o encanto e sem copiar modelos de desenvolvimento menos recomendáveis de alguns outros países. Foi então triste ver o consumismo tomar conta da vida da tanta gente, com os centros comerciais a tornarem-se locais de peregrinação ao fim-de-semana. Mas isso pode ter sido uma fase inevitável para muita gente descobrir o que afinal não quer. Hoje vejo vontade de construir ou reconstruir relações humanas, de preservar o que é vosso e de restaurar património que estava ao abandono. Vejo também a grande desilusão das pessoas aqui com o País marcado por fortíssimas desigualdades sociais e bloqueado por compadrio.

 

A sua leitura de Portugal é marcada pelo seu país de origem?

 

Na juventude, fui influenciado por tudo o que veio na sequência de 1968. Vivendo em grupos de estudantes, passámos por uma espécie de revolução nos corações e na forma de vida, algo que Portugal não teve. Aqui, na sequência da revolução política, o enquadramento para as relações humanas evoluiu muito e houve abertura, mas algumas respostas tardam em aparecer. Há muita solidão no meio de muita gente. Penso que na Alemanha é mais fácil fazer amizades no meio anónimo. Em Portugal há muita gente com medo de se abrir. Às vezes parece-me que aquilo que antes se podia desabafar no fado hoje se conta ao psicólogo. Acho que umas conversas abertas com verdadeiros amigos podem ter melhor efeito que “ajuda externa”.

 

O que é para si pertencer a um país?, ser "um dos nossos"?

 

Sou geralmente bem tratado em Portugal. Alguma desconfiança que pode haver em relação ao meu país de origem supera-se no relacionamento pessoal. O que sou agora, nem sei bem. Já não me sinto alemão, mas também não me sinto português.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2012

João Tordo

29.07.13

João Tordo nasceu em 1975. Quando se fala do futuro do romance português, fala-se dele. Estudou Filosofia e Escrita Criativa. É guionista. Viveu em Nova Iorque, regressou a Lisboa. Com o terceiro livro, ganhou o prestigiado Prémio José Saramago.

 

 

Recebeu o Prémio José Saramago com o romance "As Três Vidas". O que é que isto representa para si?

O prémio representa muitas coisas. Para além da felicidade que é recebê-lo, é também uma responsabilidade enorme, uma vez que, a partir de agora, o nome mais importante das letras portuguesas associa-se, de alguma maneira, ao nosso, e é nosso dever não defraudar as expectativas.

 

Pode falar das afinidades com a escrita do Nobel português?

A minha afinidade com a obra de Saramago é completamente emocional, no sentido em que sou grande admirador dos romances, em particular "O Ano da Morte de Ricardo Reis" e "O Homem Duplicado", dois dos livros que mais me marcaram e me converteram num "saramaguiano". O primeiro pela magnífica efabulação do heterónimo de Pessoa e o percurso solitário pela melancolia portuguesa, o segundo pela demonstração de um thriller sobre o tão difícil problema da identidade.

 

No seu romance, fala-se de funambulismo; porquê o interesse pelos que andam na corda bamba? Escrever/viver é um exercício de equilíbrio e desequilíbrio?

Achei que era uma bela metáfora para a vida daquelas personagens e também para o próprio exercício da escrita, quando este é feito na forma de uma confissão. O livro é confessional, e o narrador duvida constantemente da sua capacidade de levar aquela história a bom porto. A pergunta que fica no ar é: o que leva alguém a querer atravessar o vazio numa corda bamba, caminhando no limite do imperfeito? Julgo que a vida pode ser entendida como algo parecido, sobretudo quando as estruturas desta são abaladas e a própria existência é colocada em questão.

 

Camila, a personagem feminina, é uma espécie de anjo da desgraça? Uma encarnação do sonho, da ameaça, do intangível?

 Neste caso, até acho que a Camila é a personagem principal. É ela que coloca a narrativa em movimento no sentido emocional (Millhouse Pascal, o seu avô, cumpre o mesmo papel mas pelo lado intelectual). E sim, julgo que é uma espécie de anjo da desgraça, sendo que a desgraça se abate sobre ela própria. Mais do que as mulheres serem uma força motriz, acho que representam um enigma, não no sentido racional (aí acho que os homens têm algum ascendente) mas no sentido emocional que, uma vez mais, é o que faz mover o ser humano.

 

Grandes acontecimentos da história do século XX (como o 11 de Setembro ou a Guerra Civil de Espanha), servem de pano de fundo e condicionam a vida dos personagens. Há também uma dispersão geográfica (passa pelo Alentejo ou por Nova Iorque). Há indivíduos de diferentes idades e de diferente condição social. Qual é o fio condutor essencial?

O fio condutor vai-se encontrando na procura, uma vez que o romance é uma aventura que percorre muitos anos da vida do narrador e várias épocas históricas. Talvez o problema da morte seja aquilo que, no final, acaba por determinar a narrativa: como resistir à morte, sobretudo à segunda morte, aquela que acontece quando já não há ninguém que se lembre de nós? O Javier Cercas falou uma vez disto, dessa segunda morte, dizendo que a literatura o que faz é resgatar os mortos. Esse é o sentido da narrativa n’ “As Três Vidas”: o resgate daquelas personagens que determinaram a vida do narrador e, uma a uma, pereceram sem deixar outro rastro que não as memórias. Por isso, a literatura é memória e, nesse caso, auto-conhecimento retrospectivo, construído a partir da memória.

 

Publicado originalmente na revista Máxima